Textos Históricos da Revolução

Organização e introdução de Orlando Neves


O Dia


Introdução 3

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Os textos que se seguem têm vários tipos de interesse. Antes de tudo, significam para nós, a mais de um ano de distância, a recordação de uma noite (para os que estavam acordados) e de um dia sem dúvida inesquecíveis.

Já foi dito que todo o país ficou em estado de choque nessa memorável noite-dia de 25 Abril. Em primeiro lugar, porque pouca gente (apesar do 16 de Março) esperaria um golpe militar contra o governo fascista. Em segundo lugar, porque esse golpe decorria, ao longo do dia, de uma forma surpreendente: não se ouviam tiros, não havia mortos, não havia lutas (este facto iria sendo explicado exactamente através dos comunicados); em terceiro lugar, o golpe decorria, ao fim e ao cabo, como um mero exercício militar sem oposição do «inimigo» o que era espantosamente surpreendente dada a posição de força que o antigo regime tomava em qualquer manifestação que lhe fosse contrária; em quarto lugar, porque se verificava que o Povo, longe de cumprir o pedido do Movimento para que ficasse em casa, viera para a rua e pusera-se ao lado dos soldados disposto também ele, a dar a vida, se tal fosse preciso, para derrubar o fascismo. Isto provaria completamente que o Povo não estava com o regime caetanista e provaria também que estava de alma e coração com o MFA. Nessas poucas horas que durou o 25 de Abril parece-nos que, para além do derrube do fascismo, algo de muito importante aconteceu nesse curto espaço de tempo: as Forças Armadas tinham conseguido colocar a seu lado um Povo que, durante 48 anos, as considerara como aliadas do opressor. A revolução dos cravos fizera-se inesperada e chocantemente.

Caíram muitos mitos nesse dia, mas o mais importante afigura-se-nos ter sido o destruir por completo, e a nível do País inteiro, da ideia de que o Povo estava alheado da política e que tinha, como os reaccionários diziam, «o governo que merecia». Afinal, isso era falso e ficará por verdadeiramente se compreender a razão por que, perante vontade tão forte do Povo, o fascismo se pôde impor durante tantos anos. Ao cabo e ao resto não seria apenas o medo o que o manteria: esse medo desapareceu completamente em 25 de Abril, quando um povo desarmado se entrepôs por várias vezes entre duas forças armadas que, de um momento para o outro, poderiam entrar em guerra aberta. Não entraram — e ainda bem. Mas terá ficado a dúvida da razão por que os fascistas não deram luta.

A sequência dos comunicados (não todos mas apenas os mais significativos) vem também comprovar o alto grau de consciência política do MFA. Note-se: só às 07.30 horas é lido um comunicado em que o Movimento se define como opositor do regime, ao, abertamente, o condenar. Até então, os poucos que tinham ouvido os primeiros comunicados, hesitariam em saber se o movimento armado a desenrolar-se seria de direita ou de esquerda; foi isso, tacticamente, um excepcional passo. Assim se evitou seguramente a entrada imediata em acção de algumas unidades não afectas e se evitou também o pânico entre a população. Quando às 07.30 horas o Movimento se define a todo o Povo, começa a surgir a explosão popular e ela vai até tal ponto que, num dos comunicados transmitidos mais tarde, o próprio Movimento vem agradecer o «carinho» da população e o apoio que ela estava a prestar.

A proclamação lida ao País por Spínola, já no dia 25, através da TV, é, sem dúvida, um documento histórico por si e pelo facto de nele se adivinhar já um tipo de linguagem camuflada que viria a ser timbre do agora ex-general. Sabe-se da comum surpresa que foi o aparecimento de Spínola como presidente da Junta quando se previa (assim o queriam os capitães) que naquele lugar, surgisse o general Costa Gomes. E facilmente se verifica, numa leitura atenta dessa proclamação, que o dedo spinolista lá está: compreender-se-á doutro modo esse texto fundamental ao verificar-se que não há nele a mínima alusão ao problema colonial e que a única possível referência é a expressão «todo pluricontinental» cara exactamente a Spínola? Decerto não teria sido esse o desejo dos capitães que, precisamente, faziam do problema colonial um dos factores básicos do seu movimento — tratou-se sem dúvida, estamos em crê-lo, da primeira imposição de Spínola, da primeira cedência do Movimento, do primeiro golpe spinolista.

A Sequência Inesquecível
(25 Abril 1974)

Comunicado — 04.20

«Aqui Posto de Comando das Forças Armadas.

As Forças Armadas portuguesas apelam para todos os habitantes da cidade de Lisboa no sentido de recolherem a suas casas, nas quais se devem conservar com a máxima calma.

Esperando sinceramente que a gravidade da hora que vivemos não seja tristemente assinalada por qualquer acidente pessoal, para o que apelamos para o bom-senso do Comando das Forças Militares no sentido de serem evitados quaisquer confrontos com as Forças Armadas.

Tal confronto, além de desnecessário, só poderá conduzir a sérios prejuízos individuais, que enlutariam e criariam divisões entre portugueses, o que há que evitar a todo o custo.

Não obstante a expressa preocupação de não fazer correr a mínima gota de sangue de qualquer português, apelamos para o espírito cívico e profissional da classe médica, esperando a sua concorrência aos hospitais, a fim de prestar a sua eventual colaboração, o que se deseja sinceramente desnecessária.»

Comunicado — 04.45

«A todos os elementos das forças militarizadas e policiais o comando do Movimento das Forças Armadas aconselha a máxima prudência, a fim de serem evitados quaisquer recontros perigosos. Não há intenção de fazer correr sangue desnecessário, mas tal acontecerá caso alguma provocação se venha a verificar.

Apelamos, portanto, para que regressem imediatamente aos seus quartéis, aguardando as ordens que lhes serão dadas pelo M. F. A.

Serão severamente responsabilizados todos os comandos que tentarem por qualquer forma conduzir os seus subordinados à luta com as Forças Armadas

Comunicado — 05.15

«Informa-se a população de que, no sentido de evitar todo e qualquer incidente, ainda que involuntário, deverá recolher a suas casas, mantendo absoluta calma. A todos os elementos das forças militarizadas, nomeadamente às forças da G. N. R. e P. S. P. e ainda às forças da Direcção-Geral de Segurança e Legião Portuguesa, que abusivamente foram recrutadas, lembra-se o seu dever cívico de contribuírem para a manutenção da ordem pública, o que, na presente situação, só poderá ser alcançada se não for oposta qualquer reacção às Forças Armadas. Tal reacção nada teria de vantajoso, pois conduziria a um indesejável derramamento de sangue, que em nada contribuiria para a união de todos os portugueses. Embora estando crentes no bom-senso e no civismo de todos os portugueses, no sentido de evitarem todo e qualquer recontro armado, apelamos para que os médicos e o pessoal de enfermagem se apresentem em todos os hospitais para uma colaboração que fazemos votos seja desnecessária.»

Comunicado — 06.45

«Atenção elementos das forças militarizadas e policiais. Uma vez que as Forças Armadas decidiram tomar a seu cargo a presente situação, será considerado delito grave qualquer oposição das forças militarizadas e policiais às unidades militares que cercam a cidade de Lisboa. A não obediência a este aviso poderá provocar um inútil derramamento de sangue, cuja responsabilidade lhes será inteiramente atribuída. Deverão, por conseguinte, con- servar-se dentro dos quartéis até receberem ordens do Movimento das Forças Armadas. Os comandos das forças militarizadas e policiais serão severamente responsabilizados, caso incitem os seus subordinados à luta armada.»

Comunicado — 07.30

«Conforme tem sido transmitido, as Forças Armadas desencadearam, na madrugada de hoje, uma série de acções com vista à libertação do País do regime que há longo tempo o domina.

Nos seus comunicados as Forças Armadas têm apelado para a não intervenção das forças políticas, com o objectivo de se evitar derramamento de sangue. Embora este desejo se mantenha firme, não se hesitará em responder, decidida e implacavelmente, a qualquer oposição que se venha a manifestar.

Consciente de que interpreta verdadeiros sentimentos da Nação, o M.F. A. prosseguirá na sua acção libertadora, e pede à população que se mantenha calma e que recolha às suas residência.»

Comunicado — 08.45

«O Movimento das Forças Armadas verifica que a população civil não está a respeitar o apelo já efectuado várias vezes para se manter em casa. Muito embora o controlo das acções desencadeadas seja quase total, tendo já o ex-ministro do Exército abandonado o Ministério e entrado em contacto com oficiais superiores do Comando do Movimento, pede-se mais uma vez à população para que permaneça nas suas casas, a fim de não pôr em perigo a sua própria integridade física.

Em breve será transmitido um comunicado sobre a sitação geral do País.»

Proclamação — 11.00

O Movimento das Forças Armadas que acaba de cumprir com êxito a mais importante das missões cívicas dos últimos anos da nossa História, proclama à Nação a sua intenção de levar a cabo, até à sua completa realização, um programa de salvação do País e de restituição ao Povo Português das liberdades cívicas de que vem sendo privado. Para o efeito, entrega o Governo a uma Junta de Salvação Nacional a quem exige o compromisso, de acordo com as linhas gerais do Programa do Movimento das Forças Armadas que, através dos órgãos informativos, será dado a conhecer à Nação, de no mais curto prazo consentido pela necessidade de adequação das nossas estruturas, promover eleições gerais de uma Assembleia Nacional Constituinte, cujos poderes, por sua represen- tatividade e liberdade na eleição, permitam ao País escolher livremente a sua forma de vida social e política.

Certos de que a Nação está connosco e que, atentos os fins que os preside, aceitará de bom grado o governo militar que terá de vigorar, nesta fase de transição, o Movimento das Forças Armadas apela para a calma e civismo de todos os Portugueses e espera do País adesão aos poderes instituídos em seu benefício.

Saberemos deste modo honrar o Passado no respeito pelos compromissos assumidos perante o País e por este perante terceiros. E ficamos na plena consciência de haver cumprido o dever sagrado da restituição à Nação dos seus legítimos e legais poderes.»

Comunicado — 14.15

«Aqui posto do Comando das Forças Armadas.

Pretendendo continuar a informar o País sobre o desenrolar dos acontecimentos históricos que se estão processando, o Movimento das Forças Armadas comunica que as operações iniciadas na madrugada de hoje se desenrolam de acordo com as previsões, encontrando-se dominados vários objectivos, entre os quais se citam os seguintes: Comando da Legião Portuguesa, Emissora Nacional, Rádio Clube Português, Radiotelevisão Portuguesa, Rádio Marconi, Banco de Portugal, Quartel-General da Região Militar de Lisboa, Quartel-General da Região Militar do Porto, Instalações do Quartel-Mestre-General, Ministério do Exército, donde o respectivo ministro se pôs em fuga, Aeroporto da Portela, Aeródromo Base n° 1, Manutenção Militar, posto de televisão de Tróia, Penitenciária do Forte de Peniche.

Sua excelência o almirante Américo Thomaz, Sua Excelência o prof. Marcello Caetano e os membros do Governo encontram-se cercados por forças do Movimento, no Quartel da Guarda Nacional Republicana no Carmo e no Regimento de Lanceiros 2, tendo sido já apresentado um «ultimatum» para a sua rendição.

O Movimento domina a situação em todo o País, e recomenda, uma vez mais, a toda a população que se mantenha calma. Renova-se, também, a indicação já difundida para encerramento imediato dos estabelecimentos comerciais, por forma a não ser forçoso o decretar do recolher obrigatório. Viva Portugal.»

Comunicado — 14.45

«O Movimento das Forças Armadas informa a Nação de que conseguiu forçar a entrada no Quartel da Guarda Nacional Republicana, situada no Largo do Carmo, onde se encontrava o ex-presidente do Conselho e outros membros do seu ex-Governo; o Regimento de Lanceiros 2, onde se recolheram outros elementos do seu ex-Governo, entregou-se ao Movimento das Forças Armadas, sem que houvesse necessidade de emprego da força que os cercava. A quase totalidade da Guarda Nacional Republicana, incluindo o seu Comando e a maioria dos elementos da Polícia de Segurança Pública já se rendeu ao Movimento das Forças Armadas.

O Movimento das Forças Armadas agradece à população civil todo o carinho e apoio que tem prestado aos seus soldados, insistindo na necessidade de ser mantido o seu valor cívico ao mais alto grau, solicita, tambémI que se mantenha nas suas residências durante a noite, a fim de não perturbar a consolidação das operações em curso, prevendo-se que possa retomar as suas actividades normais amanhã, dia 26.

Viva Portugal»

Comunicado —20.00

«Continuando a dar cumprimento à sua obrigação de manter o País ao corrente dos acontecimentos, o Movimento das Forças Armadas informa que se concretizou a queda do Governo, tendo Sua Excelência o presidente Marcello Caetano apresentado a sua rendição incondicional a Sua Excelência o general António de Spínola. O ex-presidente do Conselho, o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros e o ex-ministro do Interior, encontram-se sob custódia do Movimento, enquanto Sua Excelência o almirante Américo Thomaz e alguns ex-ministros do Governo se encontram refugiados em dois aquartelamen- tos que estão cercados pelas tropas, e cuja rendição se aguarda para breve.

O Movimento das Forças Armadas agradece a toda a população o civismo e a colaboração demonstrados de maneira inequívoca desde o início dos acontecimentos, prova evidente de que ele era o intérprete do pensamento e dos anseios nacionais.

Continua a recomendar-se a maior calma e a estrita obediência às indicações que forem transmitidas. Espera-se que amanhã a vida possa retomar o seu ritmo normal, por forma a que todos em perfeita união consigamos construir um futuro melhor para o País. Viva Portugal

Comunicado — 22.00

«Para conhecimento de toda a população informa-se que se encontram sanados os incidentes ocorridos com a Polícia de Segurança Pública, que a partir deste momento aderiu totalmente ao Movimento. Assim, com a finalidade de manter a ordem e salvaguardar as vidas e os bens, pede-se a todos que aceitem obediente e prontamente quaisquer indicações que lhe sejam transmitidas por elementos daquela corporação ou da Polícia Militar. Igualmente deverão ser obedecidos os agentes das Brigadas de Trânsito.

Torna-se indispensável que a população continue a manifestar a sua compreensão e civismo, e a melhor forma de o fazer no momentoé manter-se calmamente nas suas residências.»

Proclamação Lida ao País por Spínola
Dia 26 — 1.25

«Em obediência ao mandato que me acaba de ser confiado pelas Forças Armadas, após o triunfo do Movimento em boa hora levado a cabo, pela sobrevivência nacional e pelo bem-estar do Povo Português, a Junta de Salvação Nacional a que presido, constituída pelo imperativo de assegurar a ordem e de dirigir o País para a definição e consecução de verdadeiros objectivos nacionais, assume perante o mesmo o compromisso de:


Inclusão 02/04/2019