MIA > Biblioteca > Imprensa Proletária > Novidades
Perguntaram-me como é que eu, sendo um historiador de arte e não um político, aceitei ser presidente da Câmara de Roma. Não é tão estranho como isso; sempre defendi que há relações entre a história da arte e a história da cidade, que a crise de uma é a mesma coisa que a crise de outra e, principalmente, que não se faz história sem uma intenção política. Especialmente quanto a Roma, não me parece descabido que dela se ocupe um historiador da arte. No inventário do seu património os bens culturais são uma voz essencial e os monumentos, as obras de arte, constituem parte importante dele.
Esse património não é feito apenas de objectos raros e não é eterno, como se diz: é um conjunto perecível, deteriorado, ferozmente e estupidamente dilapidado. Culpada da depredação é a especulação e, principalmente, a especulação imobiliária, isto é, a exploração dos bens necessários à vida de todos com o objectivo do lucro privado. Seria facílimo demonstrar que a especulação prejudica o centro histórico e cria os ghetos desumanos das periferias superlotadas dos bairros populares, das barracas. Existiu sempre especulação imobiliária, mas na época do capitalismo no poder foi protegida, encorajada e provocou prejuízos tão vastos e profundou que lançou em crise a cidade como instituição, tipo de agregado social, concentração e acumulação cultural, lugar histórico por excelência. Neste ponto estão de acordo os sociólogos, os geógrafos urbanos, os urbanistas e os historiadores da arte: a civilização industrial destruiu as cidades antigas sem conseguir criar a tipologia e a morfologia da cidade moderna. A cité industrielle de Tony Garin foi tão utopia como a Sforzinda de Filarete. Mas criar a incompatibilidade entre o antigo e o moderno não é a dinâmica da função industrial. Um exemplo só: Van Easteren projectou o desenvolvimento moderno de Amesterdão de modo perfeitamente coerente com a sua história (mas Amesterdão defendeu-se da exploração privada do solo público).
A verdadeira inimiga da cidade é a especulação e o verdadeiro inimigo da especulação é o socialismo. Por isso é que, sendo um historiador da arte (e por conseguinte, da cidade), as minhas ideias políticas são socialistas e não me parece inconsequente passar da teoria à práxis no momento em que uma coligação assente sobre partidos de esquerda e aberta ao contributo de todas as forças democráticas disponíveis torna em mãos a administração de Roma.
Porque é que estes partidos decidiram fazer presidente da Câmara um historiador da arte apoiando-o com a sua força política? É evidente que pensaram que a sua competência não era supérflua para enfrentar os problemas de fundo da cidade; nesse caso é sinal de que pretendem dar aos problemas da cidade uma perspectiva coerente com a sua história. De resto, a mais moderna metodologia histórica é marxista e o pensamento marxista pode encarar-se como historicismo.
Sei bem que de todos os problemas de Roma o mais escaldante é o financeiro; mas este problema também está na história da cidade, que nunca foi uma máquina industrial e por isso importa actuar em ligação com Região para requalificar e ampliar as suas bases produtivas.
Pelo facto de ser a capital da República Italiana e o centro da ecuménê católica, pela imensidade e significado do seu património cultural, pela sua própria situarão na geografia política, Roma deve sobretudo produzir serviços: a sua passividade está em não produzi-los ou produzi-los mal. No fim do Cinquecentto, para remediar o péssimo estado das finanças Sisto V imaginou instalar uma fiação no Coliseu; felizmente não o fez e Roma foi salva pela reforma urbanística do seu arquitecto Domenico Fontana que lhe deu nova funcionalidade.
Produzir serviços não significa apenas instalar em todos os sectores organizações suficientes; significa também produzir cultura e manter a cidade ao nível das outras capitais «mundiais»: Paris, Londres, Nova Iorque, Tóquio. No século XVII Roma era o protótipo, a figura Ideal da cidade capital e agora é uma das capitais mais provincianas do mundo. Há causas remotas, tais como a obstrução às ideias do Iluminismo e da Revolução Francesa, mas a causa próxima e determinante é a decadência galopante e relativamente recente da cultura urbana.
Uma vez mais, temos de falar da urbanística como ciência da cidade que não trata só de bairros residenciais ou de representação, da distribuição de escritórios e de edifícios, de higiene ou de tráfego. Pensemos na Roma moderna de Seiscentos ou de Setecentos, de Bernini a Valadier: uma proporção perfeita de arquitectura e paisagem (leia: cultura e natureza) nas duas margens da dupla curva do Tibre, ainda não murado como uma cloaca. Foi a última afirmação da cultura urbana de Roma. Depois do parêntesis da medíocre, mas não desonesta, urbanística dos burocratas piemonteses. (Via Nazionale, o acrescento burguês de Prati) começou o escândalo dos parques destruídos e das ville fechadas; das áreas hipotecadas, açambarcadas e especuladas, das ruas direitas e dos caixotes, das periferias-dormitórios: bandos de roedores vorazes e insaciáveis, aristocracia negra e prelados, burocratas e negociantes, politiqueiros e aventureiros. Um capítulo vergonhoso da história da Itália, a que um estudioso inglês deu o título de «o terceiro saque de Roma»: e ainda não acabou, porque primeiro foi a vez do fascismo e da sua política de «saneamentos» e demolições, com uma monumentalidade híbrida que cobria a primeira especulação no centro histórico, depois foi a dança incontrolada dos grandes e pequenos «novos ricos», a extensão em mancha de óleo de periferias super-povoadas, inóspitas e impraticáveis, que não resolvem qualquer problema e agravam-nos a todos, a demonstrar que a especulação, além de fraudulenta, é tecnicamente incapaz.
Quando se fala da decadência cultural de Roma não se alude apenas à falta de iniciativas culturais, à vida esforçada das instituições culturais e das academias, aos monumentos em perigo e aos museus semifechados, à insuficiência das escolas, à desagregação da Universidade, à estagnação da investigação científica, ao isolamento dos institutos estrangeiros. Infelizmente, tudo isto existe, mas preocupa principalmente a falta quase total daquilo que Lewis Mumford sintetizava no conceito de culture of cities e que seria, em síntese, o movimento de inteligência e o acto de consciência que faz dum habitante, um cidadão.
Recordo mais uma vez Van Easteren, o amigo de Mondrian que foi arquitecto-chefe do município de Amesterdão. Numas enormes águas-furtadas do palácio municipal colocou um grande modelo da cidade, com passerelles por cima para poder estudar em pormenor e passava lá em cima o dia discutindo com os seus colaboradores e com os cidadãos interessados, até os mais insignificantes, intervenções no tecido urbano. Coisa bem diferente dos nossos planos reguladores nascidos entre dificuldades e compromissos infinitos, depois repentinamente cortados por milhares de variantes e quase esquecidos, enquanto por todo o lado crescem construções clandestinas que ipso facto se legitimam.
Estamos agora perto de uma viragem decisiva no destino de Roma: as eleições para as circunscrições e a descentralização da administração citadina. Como todas as viragens, exige decisão e prudência. Não deverá limitar-se à formação de conselhos locais interessados exclusivamente nos problemas do bairro. A circunscrição não deve encorajar o folclore local como a Região não deve promover o provincianismo. Trata-se antes de equacionar, a partir das bases, a partir de uma larga rede de informações, os problemas de cultura urbana quanto aos quais Roma está a viver um momento bastante difícil e que mão poderão ser encaminhados para uma solução orgânica sem restituir à comunidade citadina a identidade, a iniciativa, a autonomia que perdeu.
Roma não pode ser apenas o cenário berniano ou piranesiano da política que se faz no Quirinal ou no Vaticano; para ter uma função política própria deve adquirir uma cultura urbana. Resigne-se a ser apenas civitas em vez de urbs, esqueça o regere imperio populos, e aprenda a governar-se com honestidade e empenho, sem confiar excessivamente na perigosa denominação, que lhe deram, de cidade eterna. No fundo, não é mais do que uma cidade antiga, que procura modernizar-se e pode consegui-lo sem perder ou falsificar a memória daquilo que foi.
Prezados colegas:
Na profunda emoção deste momento, certamente dos mais graves e decisivos da minha existência, quero, antes de mais, endereçar a expressão da minha gratidão ao PCI que, embora eu não seja um militante, quis integrar-me nas suas listas, pedir aos seus eleitores para votarem no meu nome e agora propôs-me para este cargo cheio de responsabilidade e de prestígio. E com o PCI e com todos os seus eleitores agradeço ao Partido Socialista Italiano e ao Partido Socialista Democrático Italiano que, fazendo parte da mesma coligação, quiseram conceder-me o seu voto e ao Partido Republicano que, com a sua abstenção, tornou possível esta eleição; e exprimo também o meu sincero apreço pela abstenção da Democracia Cristã que, renunciando a qualquer recusa intransigente, demonstrou esperar do novo Governo de Campidoglio o cumprimento do compromisso expresso no acordo institucional para uma administração aberta aos mais amplos entendimentos no interesse da cidade, cujos graves e inadiáveis problemas estão à vista de todos e exigem um esforço concorde de todas as forças democráticas.
Ao Chefe do Estado e ao Parlamento envio, em nome da nova Junta, a expressão da maior deferência. Representam não só toda a Itália democrática, antifascista, nascida do épico esforço da Resistência, mas constituem o título por que esta cidade é a capital da República. E permita-se-me recordar que foi exactamente esta cidade, como centro do mundo católico e como supremo e quase paradigmático exemplo de comunidade depositária e portadora dos grandes valores ideológicos, o modelo da cidade capital de Estado, por conseguinte, do moderno sistema de distribuição e de gestão dos poderes políticos.
É bem conhecido de todos vós, prezados colegas, como esta nossa cidade está a viver uma das crises mais graves da sua história e como os problemas que a afligem são tão sérios que põem em perigo a antiga fé na sua eternidade. São problemas que em parte são os mesmos que afligem as grandes cidades do mundo por causa das mutações qualitativas operadas no modo de vida da comunidade pela actual conjuntura económica e social; mas são muito mais preocupantes e urgentes numa cidade como Roma, que de há séculos é urna cidade internacional ou cosmopolita e não tem estruturas para manter a posição que deveria ocupar entre as capitais mundiais, mas sobretudo sofre de uma crise de identidade, do desfasamento entre as suas tarefas de centro internacional e a condição miserável de vida de grande parte dos seus habitantes, relegados para a vergonhosa miséria dos bairros populares pela própria expansão da cidade.
É preciso empreender uma vasta obra de saneamento e renovação, é preciso sobretudo um novo modo de governar. Não aludo apenas a um maior empenhamento, a uma maior virtude e a um maior espírito de sacrifício; aludo à necessidade de que o saneamento e renovação não sejam obra de um órgão de governo a não ser enquanto interprete a vontade do povo, atinja a sua força operativa através da colocação de todos os cidadãos e especialmente da classe dos trabalhadores. A ideia da cidade, não como lugar dos maiores poderes políticos mas como conjunto de pessoas cada urna empenhada na sua função própria e a actuar em vista de um fim comum, foi formulada por Santo Agostinho, e os grandes humanistas de Quatrocentos reavivaram-na identificando, pode-se dizer, a ideia de cidade com a ideia de história. A cidade feita de almas e não apenas de pedras é a cidade de todos aqueles que concebem a vida comum como trabalho comum; e é por isso que, como historiador, vejo realizar-se, na ordem da história, a conquista do governo da cidade de Roma, a Cidade por antonomásia, pelos partidos que representam o movimento operário e conduzem a sua luta.
Roma, prezados colegas, é uma cidade internacional não só porque é a sede do Papado e porque é a única cidade do mundo que alberga dois corpos diplomáticos, mias porque, pelo menos desde Quinhentos, é um dos grandes centros da cultura mundial. Do Norte chegavam à Porta del Popolo, do Sul ao porto de Ripetta não só soberanos e embaixadores mas literatos e artistas que não se envergonhavam de dizer que vinham humildemente estudar um passado, cuja grandiosa perspectiva se abria justamente em Roma.
Não há qualquer razão histórica, qualquer exigência cultural que expliquem a decadência de Roma da sua alta posição cultural. Mas a cultura não é um Parnaso: hoje sabemos — ensinou-o Marx — que a história não é feita só pelos poderosos, mas é sobretudo a história das lutas que se desenvolvem e procuram uma solução dentro do corpo social. Para restituir a Roma a sua posição cultural não bastará dar novo brilho às suas Academias: é necessário o esforço concorde e organizado de todo o povo romano, de todos os grupos laboriosos, qualquer que seja o tipo de trabalho, das organizações de trabalhadores, sindicatos, de todas as forças culturais e sociais. Seja-me permitido pedir esta colaboração a todos, mas especialmente aos colegas que já tiveram assento neste Conselho e com uma particular e amiga saudação e cumprimentos, aos funcionários, aos empregados das repartições da Câmara.
Os problemas mais urgentes a enfrentar nesta primeira fase lo trabalho desta Junta são os compendiados no acordo institucional: a casa, a escola, as finanças, a urbanística, os bairros populares. De há muitos anos, Roma não é uma cidade utilizada, mas uma cidade explorada: a especulação desfigurou-a, estendeu-a em mancha de óleo, acumulou enormes e densíssimas periferias sobre as velhas e frágeis estruturas do centro histórico. Do ponto de visa urbanístico e de construção, Roma é uma cidade muito gravemente doente. Não se pode curar com providência ocasionais e fragmentárias, é preciso tratar as suas estruturas, habituá-la a não receber do alto o pouco bem e o muito mal, a sofrer passivamente o seu destino de cidade antiga que deve funcionar como cidade moderna. A perspectiva de uma transformação estrutural está próxima, devemos todos procurar que se realize do melhor modo. Teremos muito brevemente as eleições directas dos conselhos de circunscrição, que irão provocar una praxe diversa de governo.
O facto que hoje, depois das eleições de 20 de Junho, me parece essencial é que, enquanto se realiza uma ruptura história com todo o passado não se abre um fosso entre as forças democráticas, antes, a oposição, que já foi dura, é hoje menos profunda e motivada. Depois do acordo institucional assinado por todos os partidos do leque constitucional, depois do acordo programático, assinado também pelo Partido Republicano e apreciado por outros, forrou-se uma coligação que pela sua natureza e origem esta aberta às mais amplas colaborações programáticas e políticas, mesmo com a Democracia Cristã. Esta Junta quer ser aberta e favorecer o desenvolvimento de feições políticas entre todas as forças democráticas e antifascistas: ouso pensar que a minha designação e eleição para presidente da Câmara possa contribuir para tornar mais evidente a fisionomia de abertura, de diálogo e de projecção para o futuro. Seja-me permitido recordar, este momento solene, que tempo houve em que as forças democráticas de Roma souberam unir-se e combater em conjunto: penso nas jornadas de Setembro de 43, na defesa de Porta San Paolo. Roma é a cidade das Catacumbas, mas é também á cidade das Fosse Ardeatine e é recordação desses mortos, simultaneamente heróis e vítimas, que em nome da Junta me comprometo a fazer o possível, com o vosso conselho e ajuda, para que essa primeira fase de renovação seja útil para a cidade. É um compromisso que há de durar enquanto puder ser til ao presente e ao futuro desta cidade que amamos.
Notas de rodapé:
(13) Independente, eleito pelas listas do PCI para presidente da Câmara da cidade de Roma, em 1976. Entrevista publicada no Corriere della Sera. (retornar ao texto)
(14) Publicado em L'Unità, de 10-08-1976. (retornar ao texto)
Inclusão | 28/06/2015 |