A Alternativa Italiana do PCI


O PCI e a Cultura


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Texto de Elio Vianello(10)

Gostaria, antes de mais, de salientar como facto muito positivo a seriedade e empenhamento com que foi preparada esta sessão do Comité Central sobre os problemas da batalha ideológica e cultural do partido.

Quero referir-me não apenas à série de reuniões sobre temas específicos, universidade, investigação, etc., que se realizaram recentemente, mas também ao facto de os camaradas se terem apetrechado com documentos e dados estatísticos que permitem, agora, apresentar como conhecidos e comummente adquiridos toda uma série de factos, de conhecimentos, de análises, e atacar temas específicos com base neste conhecimento comum. Na minha opinião deveríamos recorrer com mais frequência a este estilo de trabalho.

É difícil recolher no espaço de uma breve intervenção todas as indicações e estímulos que nos são fornecidos pelo relatório, rico e articulado, do camarada Napolitano, com o qual estou de acordo.

Limiitar-me-ei, por conseguinte, a sublinhar e aprofundar apenas alguns aspectos relativos ao papel dos intelectuais cientistas e técnicos na batalha por uma profunda renovação da vida cultural e da estrutura produtiva do nosso país.

Observou-se com toda a justiça que, como consequência do processo de extensão da escolarização e da presença de estratos intelectuais cada vez mais amplos, se criaram condições, principalmente após 68, para o desenvolvimento de um progresso intelectual de massas, quer entre as forças intelectuais quer entre a classe operária e as massas populares.

É certo que continua em aberto o problema da conquista duradoira para a democracia da maior parte dos círculos intelectuais, nem são de subestimar as resistências a qualquer hipótese de reforma de grupos consistentes ligados a posições parasitárias e privilegiadas, mas não é menos certo que, nestes anos, se desenvolveu nos círculos intelectuais uma tendência, como dizia o camarada Napolitano, de viragem à esquerda, não apenas de indivíduos isolados, mas também de estratos consistentes e qualificados.

Não é caso aqui de aprofundar em que medida este fenómeno de viragem à esquerda foi inicialmente provocado por uma adesão autêntica à ideologia e à missão da classe operária ou se não foi antes uma manifestação de consciência infeliz, fruto da perda progressiva de papel social, não apenas económico, mas também cultural, não só de indivíduos singulares, mas também de grupos.

Creio que se tratou, pelo menos em parte, daquele fenómeno, tão bem analisado por Gramsci, que leva, nos momentos de crise, as gerações jovens da burguesia a rejeitar a hegemonia da classe de que provêm, a deslocar-se para a classe operária à qual vão buscar a ideologia na tentativa de sie situarem como líderes, enquanto nos momentos de refluxo e de recuperação da crise se desenvolve a tendência para o regresso ao redil.

Creio poder afirmar-se que, ao contrário das condições históricas analisadas por Gramsci, este processo de regresso ao redil, embora desejado, é cada vez mais difícil na medida em que a crise que provocou o fenómeno não tem as conotações de uma normal crise cíclica do capitalismo mas antes as de uma irreversível e profunda crise de tipo novo, devida ao concurso de grandes processos de dimensão histórica, muito bem analisada no relatório do camarada Berlinguer.

Em tais condições, a recuperação da hegemonia da burguesia toma-se difícil, até porque a crise não se limita aos aspectos económicos e produtivos, ataca toda a vida social e política, o campo das ideias, da cultura, da vida moral.

Isto não significa que a viragem à esquerda de certos círculos intelectuais seja um facto adquirido e irreversível; trata-se, pelo contrário, de um processo que é continuamente controlado, estimulado, alimentado por novas perspectivas e novos conteúdos.

De uma análise dos dados e informações disponíveis parece-me que se pode concluir que a viragem à esquerda, embora com as conotações e as limitações que a caracterizam, se aplica em percentagem mais elevada exactamente aos estratos científico-técnicos. As causas deste facto são decerto múltiplas e complexas, mas creio que entre as principais se deve colocar a que se refere à acentuação relativa no trabalho deste género de intelectual de um processo de dependência e de progressiva perda de criatividade, que é típica do modo neocapitalista de produção e que foi errada e interesseiramente interpretada como um processo de proletarização dos técnicos.

Este processo, porém, não atinge apenas os quadros técnicos dependentes da indústria, decerto influenciados, por exemplo, pelo discurso relativo ao enquadramento único, mas também e fortemente os cientistas que trabalham na universidade e nos centros de investigação.

Nestes casos não se trata tanto de um agravamento da dependência do trabalho, que continua a ser de facto trabalho criativo, ou de uma progressiva perda de criatividade do trabalho científico, como sobretudo de uma decadência generalizada de todo o processo de produção do conhecimento científico que é típico e específico do nosso país e que está ligado ao papel subalterno da Itália no mercado internacional do trabalho.

É exactamente à difusão a nível de consciência de massas da incapacidade da classe burguesa paira ser portadora da missão de desenvolvimento e de estímulo do conhecimento científico, que desempenhara, embora no meio de grandes contradições, na sua fase de ascensão, que se deve atribuir principalmente a viragem à esquerda não só de cada um dos cientistas, mas igualmente de algumas associações científicas em que se polarizam interesses quer de tipo científico quer de categoria nos diversos sectores da ciência — a tal se refere Giovanni Berlinguer na apresentação da proposta de lei do partido sobre investigação. Uma delas, a Sociedade Italiana de Física, não só lançou iniciativas sobre a relação entre investigação e ensino, mas se responsabilizou por um vibrante e articulado protesto de massas por ocasião da cedência aos Estados Unidos da base naval de La Madalena e intitulou significativamente o volume que reúne as actas de um dos seus congressos A Ciência no Mundo Capitalista; também a Sociedade de Medicina do Trabalho, outrora tradicionalmente subjugada aos interesses dos patrões, promoveu uma colaboração frutuosa com as confederações sindicais, e orientou as suas investigações já não para dar cobertura científica à exploração e à nocividade do trabalho, mas antes para a defesa da saúde nas fábricas; a Sociedade Italiana de Biologia Molecular interveio também contra a utilização bélica da ciência.

Decerto estamos bem longe do tipo de relações entre classes dirigentes e ambientes científicos que caracterizara estas sociedades na sua origem e que repetia o tipo de relação sempre positivo, embora nem sempre idílico, entre as grandes sociedades científicas inglesas, as Royal Societies e o establishment imperialista da Inglaterra.

Gostaria de falar-vos, se o tempo mo permitir, de uma experiência referente a uma associação científica da qual faço parte e que, a par dos seus fins institucionais, promove reuniões e inquéritos sobre os aspectos mais especificamente políticos relativos à ciência e à tecnologia.

Aproveitando a ocasião do seu último congresso, em Novembro passado, a Associação Italiana de Química e Física lançou uma iniciativa que a mim me parece significativa dentro do quadro do processo de ruptura do círculo fechado em que os cientistas se encontram em geral a mastigar os seus problemas e da procura de uma relação positiva com o mundo externo, com a cultura nacional, com o mundo do trabalho.

No decurso do referido congresso organizou-se uma mesa-redonda sobre os êxitos profissionais dos licenciados em Química em Itália, e em que participaram, entre outros, representantes da associação patronal da categoria e da Federação Unitária dos Trabalhadores Químicos.

Não se tratava de uma genérica mesa-redonda para discutir em geral o problema das carreiras profissionais, mas de uma reunião chamada a avaliar criticamente os resultados de um inquérito rigoroso dirigido pela mesma associação a todos 0s licenciados em Química na Itália no quadriénio 68-71.

Não tenho tempo agora, e de resto não me parece este o lugar próprio para analisar em pormenor os resultados desse inquérito; parece-me entretanto oportuno realçar alguns pontos porque creio ser necessário isolar por sector os dados sobre a ocupação intelectual em ordem a uma mais pormenorizada compreensão do fenómeno.

O número dos licenciados em Química está a diminuir quer em relação ao aumento da escolarização, que se deu nestes anos, quer em absoluto, embora se trate relativamente de poucas unidades, mil ou pouco mais por ano. Esse processo é percentualmente mais elevado no Sul do que no Norte; se examinarmos os dados relativos às carreiras profissionais verificamos que a maior parte dos licenciados se empregou no ensino (o bem conhecido fenómeno de auto-alimentação da universidade e da escola) em proporção tanto maior no Sul e no Centro quanto menor é a presença da indústria química.

Entre os que encontraram emprego na indústria, que são menos de 40 por cento dos licenciados destes anos, a grande maioria desempenha funções de tipo administrativo ou do denominado «colaborador científico», eufemismo que serve para designar propagandistas e vendedores de produtos farmacêuticos, operação para a qual não é necessária qualquer licenciatura.

Creio que, em relação às aspirações dos jovens que realizaram os seus estudos científicos, decerto com ambições bem diferentes destas, se trata realmente de uma traição ligada a uma situação de desocupação e de subocupação.

As causas desta desafeição pelos estudos científicos — tudo quanto disse refere-se à Química, mas a situação da Física é muito análoga — são decerto múltiplas e não me parece ser este o lugar para a sua análise; é verdade que joga em sentido negativo a redução da base produtiva, o desenvolvimento invulgar, por exemplo, da Química Primária, produção tecnologicamente madura, com prejuízos da Química Secundária que exige, e por conseguinte promove e estimula, a investigação científica. Mas em sentido negativo joga uma atitude generalizada de desconfiança para com os estudos científicos, uma recusa ao empenhamento necessário para fazer a licenciatura em Ciências.

Creio que uma tendência deste tipo tem de nos fazer reflectir não só porque ela representa um exemplo de tendências anticientíficas mas também porque é o resultado da total falta de programação do desenvolvimento da escola e da universidade.

Não podemos adiar por mais tempo a abordagem rigorosa do problema da programação universitária pondo-o em relação com a programação democrática, com o desenvolvimento da base produtiva, com as previsões das necessidades reais do país e também com as dimensões da capacidade de cada uma das instituições didácticas e científicas, como as universidades e os institutos, de garantir realmente um processo de formação de massa, mas exactamente por isso qualificado.

O problema da expansão da base produtiva não se resolve com certeza na universidade, mas nela devem preparar-se os técnicos e os cientistas altamente qualificados capazes de gerir e promover essa expansão.

Não se trata de voltar à velha e ultrapassada questão do numerus clausus. Se tivermos em conta a real qualificação do nosso processo produtivo, o desenvolvimento que relações diferentes com países socialistas e países do Terceiro Mundo provocaria, creio que o número de técnicos e cientistas que presentemente trabalham em Itália, entre os de mais baixo nível da Europa, seria insuficiente.

Não se trata por conseguinte de restringir a escolaridade, que infelizmente já apresenta fenómenos autónomos de compressão, nem de reconstruir modelos de escolaridade elitista, hoje certamente ultrapassados; trata-se sim de equacionar a expansão escolar com as necessidades reais na perspectiva de um processo de preparação qualificada da força de trabalho intelectual.

Esta perspectiva leva-nos também a encarar os problemas da licenciatura e do doutoramento que, na minha opinião, em vez de resolvermos temos andado a iludir.

O camarada Berlinguer, no relatório que apresentou na última sessão do Comité Central, afirmou que mestres o alunos devem reencontrar o empenhamento, a disciplina, o rigor dos estudos. Desta premissa deve partir o nosso modo de equacionar o problema para uma qualificada renovação democrática de massa da escola e da universidade.

Parece-me que se pode tirar uma segunda observação da experiência a que me referi atrás: o significado positivo do facto de não apenas os cientistas individualmente mas associações em bloco sentirem a necessidade e o estímulo — é sem dúvida também consequência das lutas políticas do mundo do trabalho — para tratar de problemas que há muito pouco tempo ainda teriam sido considerados como problemas contaminadores da pureza do pensamento científico. É realmente um facto positivo que vá avançando num nível cada vez mais amplo, embora ainda não de massas, a consciência das íntimas relações existentes entre modo de produção da ciência o modo de produção tout court e ao mesmo tempo se vá afirmando a ideia de que não há alternativa para a crise fora do desenvolvimento ordenado, programado e democraticamente determinado nos seus fins.

O facto de vastas categorias de trabalhadores da ciência se interrogarem sobre o significado social e político do modo específico de ser e operar e de se apreciar criticamente o significado social das carreiras profissionais é já uma maneira de recusar a tendência para a catástrofe, para a interesseira sugestão do crescimento zero, para os românticos e impossíveis regressos a modos de vida e de produção historicamente superados.

Não é de admirar se algumas associações de cientistas continuam a acreditar na concepção da capacidade intrínseca da ciência para resolver os problemas que põe quando é utilizada em função do lucro; isso pode corresponder simplesmente aos interesses de grupo dos próprios cientistas.

Parece-me, ao contrário, muito mais importante o processo de crise, que sem dúvida se encontra ainda no começo e se desenvolve de maneira não linear, do ideal tecnocrático que alimentou maciçamente todo o mundo da ciência e da técnica na Itália, no início dos anos 60. É necessário evitar que este processo vá longe demais, que de um mítico conceito de ciência capaz de resolver todos os problemas e de associações de cientistas capazes de os gerir se passe a uma ideologia de recusa total da ciência e do progresso e de completa desconfiança no papel que os cientistas e os técnicos podem e devem ter.

Servindo-me das palavras de Giovanni Berlinguer diria que as três formas em que se exprime o progresso humano, isto é, a produção, a ciência e a luta pela emancipação devem encarar-se nas suas complexas relações, evitando que uma destas formas absorva e anule a outra como acontece justamente na tendência dos industriais para subordinarem a investigação ao lucro imediato, na tendência dos tecnocratas para privilegiarem a dialéctica interna da ciência relativamente às finalidades globais da sociedade e na tendência dos políticos dogmáticos para interferirem fortemente na escolha de objectivos e metodologias científicas; sobretudo nesta fase, dizia Berlinguer, em que a utilização produtiva e a verificação social do progresso científico se apresentam como uma necessidade, a relação entre as três formas de progresso deve ser livre como nunca.

Creio que os intelectuais comunistas, todo o partido e o sindicato, podem e devem ter um papel importante nesta matéria superando limites e carências que até agora têm constituído um sério obstáculo.

Se examinarmos, por exemplo, o problema das 150 horas, devemos dizer que pouco se fez ainda para valorizar este formidável instrumento de progresso intelectual de massas. O empenhamento dos intelectuais democráticos tem sido com frequência exíguo e não lhe correspondeu um estímulo adequado por parte do partido nem por parte do sindicato. De qualquer modo, abandonou-se exactamente o campo deixando espaço para os grupos extremistas que criaram confusão e desorientação nos operários.

Grande desafio, em especial à FGCI e às outras jovens forças democráticas, lançam a breve termo as eleições para a escolha de representantes nos órgãos de gestão na universidade, e especialmente significativo pela presença simultânea neles dos representantes da região e das forças sindicais.

Creio também, camaradas, que dentro e fora do partido, exactamente dentro do quadro da batalha na frente cultural e ideológica, será necessário aprofundar a discussão, a investigação, a análise do papel da ciência, da investigação científica e tecnológica quer em relação com os problemas do conhecimento quer em relação com os problemas da produção e do melhoramento da qualidade de vida. Tem razão o camarada Napolitano quando afirma que, pela nossa parte, nos devemos libertar cada vez mais dos limites de uma tradição em que a ciência e a natureza tinham muito pouco peso.

Nestes últimos anos o partido deu passos decisivos no sentido da compreensão da necessidade de avançar para um maior aprofundamento da relação entre ciência o marxismo e da elaboração teórica, mas ainda existem limites. Há pouco empenhamento neste sector, e nesta tendência pesou certamente a proveniência e a cultura dos intelectuais marxistas do grupo dirigente do partido, que reflectiu em grande medida a típica formação humanista dos grupos intelectuais italianos.

Creio que seria também de apreciar quanto a luta contra o positivo, que com Gramsci e Togliatti deu indiscutivelmente grande contributo para o desenvolvimento do marxismo, ajudou a agravar, a tomar mais pesada esta herança típica da cultura italiana. Em consequência disto, os próprios cientistas marxistas raramente têm sabido estabelecer relação entre as suas investigações, o seu método de análise da natureza e a concepção histórico-materialista de que são portadores.

Creio que é necessário superar a diversidade que existe entre as duas culturas num esforço cada vez maior de aprofundamento de uma e de outra e das suas relações, e que a separação entre as duas culturas se procure no quadro mais vasto da superação entre cultura elitista e cultura de massa no quadro de uma luta dentro e fora das instituições culturais para a conquista de uma cultura histórico-económica e científica que esteja na base de todo o processo de escolarização e de formação de grandes massas de cidadãos.


Texto de Ernesto Ragioneri(11)

Parece-me que o relatório do camarada Napolitano(12) — e a discussão que aqui se travou está a confirmá-lo — constituiu um contributo muito importante para a realização da missão que o camarada Berlinguer apontava nas suas conclusões ao anterior Comité Central e que com tanta eficácia exprimia por estas palavras:

«Aproximar aquilo que dizemos entre nós e aquilo que dizemos ao povo.»

Trata-se sem dúvida, no trabalho cultural e no debate ideológico do partido, de uma aproximação que é necessária porque ela se apresentou, nos últimos anos, como um campo no qual as distâncias se aprofundaram, embora, entenda-se, não avaliemos negativamente o processo pelo qual estas distâncias se aprofundaram.

Houve durante estes anos, no partido, uma procura que teve sem dúvida a sua razão de ser e creio que, no fim de contas, algo de positivo. Creio que não devemos esquecer (na minha opinião isso emerge implicitamente do relatório do camarada Napolitano) que, durante anos, grande parte da elaboração teórica e da linha cultural do partido foi praticamente chamada a si pelo camarada Togliatti, no decurso do seu trabalho, como parte integrante do momento da direcção política do partido. No fundo, estes dez anos significaram, conjuntamente com uma crise deste modo de direcção, a tentativa de a reconstruir na sua essência, num outro nível e sobretudo na situação nova, complexa, que se foi criando no país.

O camarada Natta, na sua intervenção, fez uma observação muito significativa quando afirmou que, no fundo, se têm vindo a criar recentemente as condições pelas quais o primado da política, o fazer política, se constituiu como um atributo correlativo da substância do partido novo e tal acontece profundamente, substancialmente, apenas hoje. Não é apenas mais uma grande intuição, não é apenas mais a determinação de uma situação geral do nosso partido na vida social do país, nem sequer apenas o esboço de um sistema de alianças sociais e políticas, mas um modo de ser que hoje é possível como consequência das transformações profundas que se deram no país e do papel que o nosso partido desempenhou nelas, contribuindo para modificar o país, mas modificando-se e desenvolvendo-se a si mesmo.

Aqui parece-me necessário um aprofundamento sobre a natureza da crise italiana, da crise que o nosso país está actualmente a atravessar, porque, segundo credo, na discussão que estamos a fazer, na última sessão do Comité Central e na actual, as sugestões que se vão delineando e que levam alguns camaradas a realçar com muita força os elementos de possível regresso e involução geral e outros a defender com maior força ainda a presença de forças renovadoras, necessitam de elementos de maior rigor e determinação.

Isto é, não creio que possamos limitar-nos a distinguir entre optimistas e pessimistas, entre quem vê negro e quem vê cor-de-rosa, até porque alguns dos elementos da situação italiana e internacional, para que parte dos camaradas que participam nesta discussão chamaram a atenção, são vistos com indubitável realismo e inegável eficácia e ninguém poderia pôr em discussão o ponto de partida teórico geral desta nossa reflexão que nega a possibilidade de um processo indefinido, de um evolucionismo indeterminado.

Creio que não foi apenas a experiência real das coisas mas também a redescoberta do modo como Marx viu e perspectivou o desenvolvimento da história humana que nos armou suficientemente contra os perigos do optimismo evolucionista de que a social-democracia não soube vacinar-se e que por ele se encaminhou para a grande derrota que foi mortal para o movimento operário europeu.

Parece-me necessário um aprofundamento e uma determinação ulterior do carácter da crise italiana que a especifique historicamente e com mais rigor. Corremos o risco de ver prevalecer, dum lado, teses niilistas e, do outro, teses superficialmente optimistas, mas sobretudo interpretações que risquem a presença da classe operária e o papel do Partido Comunista Italiano de todo este processo, não apenas como factores sociais e políticos mas como elementos de alguma maneira de carácter ideológico que podem contribuir para a própria interpretação da crise.

Vou tentar explicar-me melhor, se possível, com alguns exemplos e observações ulteriores.

Muito justamente, na minha opinião, o camarada Zangheri, na sua intervenção, sublinhou que o marxismo italiano, o marxismo — se esta expressão parecer um pouco imprecisa — de Gramsci e Togliatti foi portador não apenas do princípio de contradição mas também do um princípio de iniciativa política que é também um elemento integrante da crise italiana, e não é possível compreender a natureza da crise que o nosso país atravessa sem o compreender.

Estamos efectivamente diante de uma situação cujo elemento mais saliente, na minha opinião, é o desenvolvimento que o país conheceu no decorrer destes trinta anos; um desenvolvimento que não foi só económico-social, cujo carácter contraditório é inútil sublinhar porque é característico de qualquer progresso numa sociedade dividida em classes, mas foi caracterizado pela presença de uma autêntica classe dirigente e, embora a expressão seja rica de ambiguidade, creio que é possível tomá-la mais clara se atentarmos no papel da Democracia Cristã em todo este processo; um partido a que devemos reconhecer, ainda quando nos preocuparmos com uma análise mais atenta e matizada, alguns méritos históricos no decorrer destes trinta anos; mas também não podemos fugir à verificação de que ele não conduziu ao desenvolvimento global da sociedade italiana; um partido que se preparou nos anos imediatamente após a libertação, principalmente com a ruptura da aliança antifascista, para uma restauração do Estado (prefiro esta expressão à expressão «restauração capitalista» que, de há algum tempo, entrou nos hábitos da nossa propaganda política), restauração que se efectuou sobretudo revitalizando um sistema de poder que assenta sobre um conjunto de aparelhos para-estatais geridos directamente pelo partido dominante e, consequentemente, impondo ao crescimento global do país um ritmo e uma possibilidade que não poderiam deixar de sofrer um forte desfasamento no momento em que o processo global de desenvolvimento do país assumisse carácter impetuoso.

Se quisermos examinar a questão de um outro ponto de vista veremos como a força da Democracia Cristã está fortemente ligada ao facto da existência em Itália do movimento católico, o primeiro movimento de carácter social e político que organizou os estratos intermédios do país e depois se encontrou em estado de conter a arrancada do movimento operário e de gerir a ruptura da unidade das forças antifascistas através da contraposição de parte dos estratos intermédios e também de parte dos estratos populares ao resto do movimento operário organizado. Em certo momento este seu privilégio foi posto em discussão pelo desenvolvimento global do país, e o país sentiu-o; entramos numa fase da crise italiana em que me parece ser nossa missão não apenas aprofundar este aspecto mas também denunciar mais fortemente as responsabilidades do Partido da Democracia Cristã e do sistema de poder introduzido por ela, apontando também as contradições de carácter geral que ele faz pesar sobre todo o desenvolvimento da sociedade nacional.

Por outro lado, creio que devemos empregar um esforço maior na individualização dos momentos, das fases, das etapas em que se processou a ruptura do equilíbrio em que assentava este sistema de poder, isto é, em que se abriram as contradições que presentemente estão no centro da vida política do nosso país. Só com uma investigação deste tipo, feita com todo o rigor, poderemos reconstituir as mais profundas unidades e divisões de carácter ideológico e cultural.

Ao equacionarmos todo o problema da relação com a cultura nacional e verificarmos que esta relação se rompeu não só nas instâncias de direcção da vida e do Estado, mas em certa medida também na acção política, na iniciativa política do nosso partido, não devemos fixar-nos como objectivo a recuperação passiva desta tradição cultural, mas o confronto com esta tradição do ponto de vista e do ponto de chegada do momento a que chegou hoje a luta social e política no nosso pais.

O camarada Reichlin falava-nos, na sua intervenção, dos problemas postos no Mezzogiorno pela ruptura com a grande tradição cultural meridional. Pois bem, camaradas, quantos serão, se nós não o fizermos, os que recordarão, por exemplo, que dentro de poucos meses, em Março de 1975, passam cem anos sobre a publicação das Lettere meridionali de Pasquale Villari e da abertura oficial da questão meridional no nosso país; não digo das bases reais deste problema, mas deste problema como problema nacional sentido por alguns sectores da classe dirigente e depois espalhado por caminhos diversos em vastos sectores da cultura do país? Se não formos nós a fazê-lo, se não formos nós a retomar o problema meridional e ver em que é que ele hoje se transformou, como condiciona não só a vida da sociedade italiana, a direcção do Estado italiano, mas até a própria posição internacional da Itália, não creio que outros estejam em posição de o fazer.

Quanto a estes problemas seria bom que se reflectisse mais atentamente e se chegasse a análises muito mais matizadas do que as que fizemos até agora. Vou limitar-me ao exame de três aspectos particulares, três formas ou instrumentos da nossa actividade que devemos submeter a uma reflexão mais atenta e a uma crítica mais rigorosa.

Exactamente porque consideramos que a presença do partido deve ser encarada como facto integrante da crise italiana e, por conseguinte, também das possibilidades de definição e de saída dessa mesma crise, devemos ser mais críticos e autocríticos quanto à nossa presença, aos instrumentos e às formas da nossa acção.

Seria contraditório se não tirássemos da primeira afirmação esta consequência. Seria, se assim posso exprimir-me, um puro elemento de patriotismo partidário mais do que um elemento de orientação e de acção na vida presente; porque deve ser esta a reivindicação da presença do partida como um dos coeficientes e um dos elementos que podem determinar a saída da crise do nosso país.

Em primeiro lugar, a imprensa. Ouvi do camarada Tortorella uma apreciação bastante negativa da situação actual da imprensa italiana. Parece-me que entre os muitos elementos de crescimento do país que devemos registar, muito embora se trate de um crescimento que dispenso-me de voltar a repetir, não pode deixar de ser contraditório e registar elementos positivos ao lado de outros negativos, há que contar com o que aconteceu na imprensa italiana no decorrer dos últimos anos.

Sei que as greves dos jornalistas não se devem apreciar de maneira unívoca, mas também não posso ignorar que, por exemplo, se os jornalistas dos maiores jornais italianos tivessem podido fazer os jornais sozinhos em 1920, em 1921, em 1922, não fariam jornais orientados para a esquerda, faziam jornais de direita. Se o Resto del Carlino ou o Corriere della Sera, em 1920, durante um dia não tivessem um Albertini ou um Missiroli podemos estar certos que não fariam um jornal política e culturalmente mais bem orientado do que aquele que podia ser feita com a garantia que o director dava à propriedade.

Parece-me a mim que a imprensa, sobretudo a imprensa quotidiana, é um espelho, por um lado, da orientação à esquerda que se foi delineando ao longo destes trinta anos (porque eu considero como longo tempo de amadurecimento todo este período) em grande parte dos intelectuais italianos e, por outro, um espelho da participação dos grupos que nasceram nestes anos para uma vida cultural ou então que ganharam maior familiaridade com a vida social e política do nosso país. Há um amadurecimento positivo, não o considero realmente como facto negativo.

Sob este ponto de vista, terá a nossa imprensa seguido, acompanhado o crescimento que se deu na outra? Podemos dizer, por exemplo, que o Corriere della Sera é um grande jornal europeu como não houve outro até agora na Itália. Quanto poderá durar, com a mudança de propriedade, não o sabemos; o certo é que a mudança de propriedade é contrariada, obstaculizada pela função, pela orientação que os jornalistas têm na produção do jornal. Teremos tido nós uma transformação da nossa imprensa a acompanhar o desenvolvimento social, cultural, global do país? A mim parece-me francamente que não. É verdade que L’Unità é de longe o melhor jornal comunista da Europa. Camaradas, trata-se de uma primazia realmente muito relativa. Lançámo-nos, lutámos para sermos um dos maiores jornais italianos; tínhamos talvez, e ainda temos, a possibilidade de ter o maior quotidiano italiano. Parece-me que neste aspecto perdemos terreno e devemos interrogar-nos porquê; porque é que a nossa imprensa não só não adquiriu uma série de qualidades e de melhorias do ponto de vista técnico mas também de participação e de desenvolvimento do debate como fez outra imprensa. Certamente que isto está ligado ao facto de L’Unità ser jornal de partido e não só quotidiano de informação, embora eu julgue não ter sido mal nenhum reivindicar para L’Unità o carácter de jornal de informação para além de jornal de partido, embora nem sempre tenha sabido cumprir esta sua missão.

E sou da opinião que nestes últimos anos, deste ponto de vista, em vez ide se notar qualquer progresso, houve uma espécie de oficialização empobrecida, isto é, uma oficialização que não teve sequer a solenidade que por vezes o carácter oficial dá; era modesta, procurava dizer o menos possível, dar o menos nas vistas possível. Disso não pode resultar qualquer elemento de atracção, qualquer ampliação de hegemonia que nós reivindicamos como elemento importante da presença cultural e política do partido.

Aquilo que digo para L’Unità não é senão um caso; com certeza que o confronto a que o camarada Napolitano nos convidava, a uma apreciação mais atenta e, se recordo bem o adjectivo, mais franca de todos os nossos órgãos de imprensa levar-nos-ia a conclusões que, em muitos aspectos, exigiriam da nossa parte a autocrítica não tanto pelo modo como certos órgãos de imprensa ou de propaganda são feitos ou não são feitos, mas sobretudo pelo modo como registam, seguem, orientam, acompanham a transformação social do país, social e cultural. Deste ponto de vista, parece-me que a autocrítica deveria ser atenta e o esforço para eliminar os defeitos, rigoroso.

Passo a um outro ponto que é o concernente à vida e iniciativa do partido neste sector.

Parece-me a mim, pela limitadíssima experiência que tenho a este respeito, que se nota, em certo momento, uma contradição na nossa actividade. Quando nos movemos a nível de secções encontramos um reflexo bastante imediato daquilo que muda, mudou e está a mudar no país e do tipo de actividade que estamos a desenvolver.

Para quem conhece um pouco a vida das secções ou está em relação com elas, parece-me que se pode constatar que deste ponto de vista deu-se uma transformação enorme que se manifestou também na renovação global do quadro das nossas acções; renovação que não foi só de população, quantitativa, mas que foi também qualitativa e que nisto reflectiu profundamente o progresso da escolarização, o desenvolvimento da vida cultural e da participação daa grandes massas. É muito positivo que actualmente haja províncias inteiras, talvez mesmo regiões de Itália, em que o quadro dirigente das nossas secções são jovens com menos de trinta anos.

Quando começamos a subir além da secção algo começa a estalar, a ranger.

Logo que se exercem funções directivas, de governo, começam a rebentar mecanismos, a que eu julgo não haver mal em chamar de carácter burocrático, daquela burocracia que significa também possibilidade de fazer as coisas de maneira organizada, mas que introduz também elementos que falsificam depois o carácter de participação e proximidade que todas as nossas manifestações não podem deixar de apresentar.

Se continuasse a subir poderia apresentar muitos outros exemplos. Queria apenas anotar como é profundamente necessário que correspondamos a estas necessidades culturais de luta de modo mais imediato.

Toco num último ponto que poderia ser objecto de atenção, o da relação entre os intelectuais comunistas que é, por sua vez, também, um dos elementos de complicação que certas actividades da vida do partido adquirem e, apesar de os intelectuais comunistas serem todos eles defensores da necessidade da luta contra a burocracia, também estas relações acabam, por seu lado, por serem causas indirectas da burocratização da direcção política da nossa actividade cultural.

Creio que temos de ser consequentes quando afirmamos que queremos desenvolver um debate ideológico franco entre intelectuais comunistas e conduzir neste sentido a direcção política necessária.

Em que é que consiste a direcção política necessária? Parece-me que não é necessário repetir hoje, entre nós — porque todos estamos profundamente convencidos e já o afirmaram tantos camaradas na discussão que aqui teve lugar e o camarada Napolitano apresentou os maiores esclarecimentos e certezas possíveis — que dirigir o debate cultural não significa prescrever formas ou conteúdos que a nossa actividade cultural deva assumir.

Neste ponto, creio que o partido assimilou globalmente, na sua direcção política, a distinção que Gramsci dizia dever fazer-se, e sem dificuldade, entre a discussão e ia agitação política e propagandística à volta de certos temas e que, como tal, quando se arriscava a ter um carácter contrário ao partido podia ser facilmente eliminada.

Quero referir-me sobretudo àquela tendência que dificulta muito a discussão e que a transforma em algo de separado do resto do corpo do partido e que consiste em discutir sem nomes nem cognomes.

Creio que a direcção dos nossos jornais e revistas se devia comprometer a não publicar, a censurar, a remeter à procedência os artigos que chegam e que têm referências polémicas cujo destino não se descortina. É precisa lançar debates verdadeiramente francos e abertos em que seja possível realmente distinguir entre o que deve ser discutido, porque constitui objecto de discussão, porque está aberto ao confronto de opiniões dos camaradas, e aquilo que, pelo contrário, não tem necessidade de ser continuamente posto em questão.

Ainda neste aspecto, gostaria de aludir ao relatório do camarada Napolitano e às conclusões do camarada Berlinguer ao último Comité Central; aproximar o que dizemos entre nós daquilo que dizemos ao povo, porque creio que o falar claro, o exprimir-se com clareza é por si próprio uma componente importante da presença democrática do partido na sociedade italiana, uma tentativa da sua parte de corresponder eficazmente ao processo de mobilização social e cultural que se deu no país; e não só, porque creio que é também um modo, o primeiro modo, a primeira forma verdadeiramente eficaz para superar o desfasamento que se introduziu, por vezes, na nossa acção política e cultural de reivindicação de pluralismo, por um lado, e de integralismo ideológico, por outro.


Notas de rodapé:

(10) Membro do Comité Central do PCI. Este texto vem publicado em Battaglia delle idee e rinnovamento culturale (Atti delia Sessione del Comitato centrale e della Commissione centrale di controllo del PCI, Roma, 13-15 gernnaio 1975). Editori Riunilti, Roma, 1975, pp. 179-186. (retornar ao texto)

(11) Historiador, falecido em 1976, organizador das obras completas de Palmiro Togliatti. Este texto vem publicado em Battaglia delle idee e rinnovamento culturale, op.Cit pp. 200-208. (retornar ao texto)

(12) Relatório de Giorgio Napolitano que abriu a sessão do Comité Central sobre questões de cultura, de 13 a 15 de janeiro de 1975 em Roma (N. do T.) (retornar ao texto)

Inclusão 24/06/2015