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Em 1922, a sociedade brasileira vivia uma extraordinária efervescência cultural e política, materializada pela inauguração da Semana de Arte Moderna, pela fundação do Partido Comunista, pelo Primeiro Congresso Feminista e, também, pela explosão da Revolta do Forte de Copacabana. Um ano de cortar o fôlego.
O Partido Comunista — cuja trajetória nos interessa mais de perto aqui — surge então com uma dupla característica. De um lado, trata-se de uma agremiação política que se quer profundamente brasileira, com a proposta de se entranhar nas lutas sociais e nacionais. De outro, apresenta um perfil internacionalista, profundamente solidário com os povos em luta. Além do que, é um partido que ambiciona governar para os setores menos favorecidos da população, com a classe operária à frente. E tudo isso é muito novo, para os padrões do país e para a época. Se o Partido obteve ou não êxito em sua função, trata-se de outro problema. O fato é que ele representava, ao mesmo tempo, o avanço das forças produtivas no país e a rebelião contra esse mesmo avanço, buscando uma saída humanista para a situação em que o Brasil se encontrava.
De toda forma, com vocação para lutar pela democracia, conforme se verificaria mais nitidamente com o correr do tempo, o Partido Comunista Brasileiro daria uma contribuição importante à vida nacional. Senão vejamos. Foi o primeiro agrupamento a defender, já em 1923, a implantação de uma reforma agrária entre nós (exigência essa que guarda ainda uma certa atualidade, ao menos no plano social). E foi também o primeiro a propor uma política relativamente ampla de alianças, conforme o atesta a formação do Bloco Operário Camponês (BOC, 1928) e da própria Aliança Nacional Libertadora (ANL, 1935). Isso, para não aludirmos à criação, em 1967 da Frente Ampla, uma tentativa de combater a ditadura militar pela via política.
Mais: a partir da chamada Declaração de Março de 1958, o PCB elege a democracia como o espaço para a superação da ordem vigente no Brasil. Foi com essa firme determinação que a maioria do Partido optou por derrotar politicamente — e não derrubar pela força das armas — a ditadura político-militar instalada no país desde 1° de abril de 1964. Não deu outra, a História daria razão aos comunistas, apesar de o partido ter cometido alguns equívocos sérios no decorrer de sua trajetória.
Um dos herdeiros da tradição pecebista, no que ela possuía de positivo e também de negativo, o Partido Popular Socialista (PPS) dá continuidade histórica a algumas das propostas do PCB. Mas, de certa forma, sua entrada na cena brasileira também representa uma ruptura com determinadas práticas e mesmo concepções desse Partido. Pois o PPS compreendeu que a sociedade brasileira é plural, complexa, e que no caminho político nacional não há espaço para um modelo autoritário de partido único. E tampouco para exclusões de qualquer natureza. Com essa ótica, o Partido quer continuidade, mas também mudança. Talvez até mais mudança do que continuidade, no entender de alguns.
A cultura sempre aproximou o PCB-PPS da população brasileira. Nos tempos mais agudos da clandestinidade, ela chegou a ser, praticamente, a única forma de o Partido estabelecer um vínculo permanente com a sociedade organizada. Talvez até por isso, a cultura possa ajudar a política a redirecionar seu foco do Estado para a sociedade civil. O Partido contribuiu, historicamente, para conscientizar alguns de seus melhores intelectuais para o fato de que entre a adesão pura e simples ao sistema e a indiferença em relação a esse mesmo sistema, a saída se encontrava na adoção de uma terceira posição. Ou seja, a atuação crítica para ir arejando as cabeças, criando, assim, condições para mudar a sociedade. Tratava-se, na visão dos comunistas, de aproveitar todas as brechas possíveis. Já no Manifesto do Partido Comunista, em 1848, Karl Marx e Friedrich Engels demonstraram o lado avassalador do capitalismo, ao transformar “o médico, o advogado, o pregador, o poeta, o homem de ciência, em trabalhadores assalariados”. Vale dizer, a burguesia caminhava para ser a detentora dos meios de produção da cultura. Pelo mercado, ela tendia cada vez mais a controlar os passos dos intelectuais e artistas.
Assim, somente a atividade política, explorando as contradições sociais inerentes ao sistema, é que poderia viabilizar a ultrapassagem do capitalismo, até chegar à realização de “uma associação em que o livre desenvolvimento de cada um será a condição para o livre desenvolvimento de todos”. Essa, ao menos, a visão de Marx e Engels.
Os comunistas não estão muito longe de ter uma concepção de cultura como uma espécie de estar no mundo, uma relação social entre indivíduos. Para eles, a cultura é uma ferramenta de transformação do mundo real. E o homem, ator da sua própria história. Isso, em teoria. Mas a prática pecebista não apresenta nenhum corte entre o mundo real e a visão que se tem desse mesmo mundo no tocante à cultura. Prática e teoria como que se fundiram, nesse caso. Passada de geração a geração, como uma herança social, a cultura une. O Partido soube entender que a sociedade é sempre maior do que o Estado e que é ela que produz cultura. Mais: que o capital impulsiona a cultura não tanto por estar interessado nela — e sim nos lucros que eventualmente poderá auferir. Mas quando o mercado se impõe como único critério, o capital, por seu turno, começa a travar o desenvolvimento da atividade cultural. É bom aquilo que dá dinheiro e ponto final.
Como explicar o engajamento político dos intelectuais e artistas brasileiros no Partido Comunista? Provavelmente não existe resposta única e acabada a essa pergunta. Certamente há por parte deles uma postura generosa diante das mazelas sociais que afligem o país e um desejo sincero de superá-las.
Não há como negar tampouco que alguns deles enxergavam no socialismo uma possibilidade de realizar suas expectativas de trabalho, seus anseios profissionais, pelo menos de forma mais efetiva (apesar de, como observou o cientista político Paulo César Nascimento, muitos desses intelectuais e artistas já serem nomes consagrados quando se aproximaram do PCB). Outros intelectuais e artistas, ainda, se sentiam atraídos pela possibilidade de contribuir para a formação da identidade brasileira. Afinal, a ação do PCB os estimulava a produzir cultura. Ou talvez tudo isso junto, quem sabe.
E convém salientar que os intelectuais — considerados por Antonio Gramsci como uma categoria cujo peso político ganhava autonomia em relação até mesmo às divisões de classes verificadas na sociedade burguesa, conforme veremos mais adiante — dificilmente se deixariam conduzir de forma subalterna pela direção partidária. Eis o que contribui, historicamente, para arejar o Partido, uma organização extremamente centralizada em alguns momentos de sua trajetória política. Assim sendo, é interessante observar que a política cultural do Partido extrapola o próprio âmbito da agremiação, ou seja, nada tinha de estreita, voltada para dentro. Em certas épocas, é verdade, houve atritos vigorosos com a intelectualidade nacional, mas o Partido compreenderia que era preciso respeitar a liberdade de criação dos artistas e intelectuais, sobretudo após os ventos libertários trazidos pela Declaração de Março de 1958, na esteira do desmoronamento do sistema stalinista. Assim, sua proposta cultural pleiteia, quase sempre, amplos setores da sociedade. A política cultural era encarada, ao menos em certos períodos da trajetória partidária, como algo voltado para a sociedade e não para o interior do próprio Partido. E mais: era preparada ou estabelecida, sobretudo a partir de 1958, é sempre bom lembrar, pelos próprios criadores de cultura.
Ou seja, o Partido soube encontrar o necessário equilíbrio entre política e cultura, evitando tanto tratar a cultura como um apêndice da propaganda partidária, quanto esquecer que “a classe que é o poder material dominante na sociedade é, ao mesmo tempo, o poder espiritual dominante”, segundo sinalizaram Marx e Engels no célebre A ideologia alemã. O Partido nunca se apoderou da máquina do Estado, ou esteve no poder, é bem verdade; mas talvez tenha construído algo melhor. Isto é, uma sólida relação com a chamada sociedade civil, que ele buscava oxigenar com suas ideias e proposições. Curiosamente, essa visão se aproxima da realidade do mundo da cultura de hoje, quando intelectuais vêm se preocupando menos em se aproximar dos governantes do que da chamada opinião pública. A prioridade pode ter se deslocado do Estado para a sociedade civil.
Não seria muito complicado para o PCB estabelecer pontes entre a cultura elaborada pelos intelectuais e a prática política popular. Por uma razão: o Partido soube compreender, talvez instintivamente, que a síntese era a principal característica da cultura brasileira. Soube mover-se nesse ambiente.
Não há exagero em afirmar que o Partido contribui para estruturar a cultura brasileira contemporânea, por intermédio de instrumentos como jornais, revistas, livros e grupos de teatro e cinema. Evidentemente, nem só de comunistas se compôs aquilo que a cultura brasileira tem de melhor e nomes expressivos como Heitor Villa-Lobos, Mário de Andrade, Ariano Suassuna, Antonio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes nunca pertenceram ao Partido. Do poeta carioca, destaque-se seu último grande gesto, o de ter levado, de Buenos Aires para o Rio, o Poema Sujo, de Ferreira Gullar. Mas é inegável que os comunistas são uma parte importante da identidade cultural brasileira (ou seja, aquilo que a caracteriza e diferencia das demais práticas culturais) ao longo do século XX, forjada sem dúvida pelos setores mais criativos da militância partidária. Eis o que talvez explique a presença de nomes tão ilustres da intelectualidade e da criação artística nacionais no PCB-PPS. Essa ligação com a intelectualidade era tão próxima que a crise do PCB significou também, em certa medida, a crise da própria cultura brasileira. Parafraseando o poeta, é impossível escrever a história da nossa cultura sem falar no PCB — sob muitos aspectos, uma espécie de partido da inteligência brasileira.
Inclusão | 16/08/2019 |