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Sobre os escombros da formação escravista começa a formar-se nos séculos V e VI a sociedade feudal na Europa Ocidental. Na História termina o período Antigo para dar lugar à Idade Media. O regime feudal floresceu entre os séculos X e XV.
"Sob o regime feudal, a base das relações de produção é a propriedade do senhor feudal sobre os meios de produção e sua propriedade parcial sobre os produtores, os servos, a quem já não podiam matar, porém podiam comprar e vender. Ao lado da propriedade feudal, existe a propriedade pessoal do camponês e do artesão sobre os instrumentos de produção e sobre sua fazenda ou sua indústria privada, baseada no trabalho pessoal. Essas relações de produção acham-se, fundamentalmente, em consonância com o estado das forças produtivas desse período. O aperfeiçoamento progressivo da fundição e elaboração dos metais, a difusão do arado de ferro e do tear, os progressos da agricultura, da horticultura, da viticultura e da fabricação de azeite; a aparição das primeiras fábricas junto às oficinas dos artesãos: tais são os traços característicos do estado das forças produtivas nesse período.
As novas forças produtivas exigem que se dê ao trabalhador certa iniciativa na produção, que o faça sentir inclinação para o trabalho e interessar-se pelo mesmo. Por isso o senhor feudal prescinde dos escravos, que não têm o menor interesse pelo trabalho nem o realizam com qualquer iniciativa, e preferem entender-se com os servos, os quais sua fazenda e suas ferramentas e se acham interessados, até certo grau, no trabalho, de forma a elaborar a terra o suficiente para pagar ao senhor apenas com uma parte da colheita.
Durante esse período, a propriedade privada faz novos progressos, A exploração continua sendo quase tão rapace quanto sob a escravidão, embora um pouco suavizada. "A luta de classes entre exploradores e explorados é o traço fundamental do feudalismo"(29).
O nível da cultura, especialmente nos primeiros tempos da Idade Média, era baixo em extremo. Contudo a Idade Média não foi, de modo algum, "uma simples interrupção no curso da história". Durante o período da Idade Média, embora com muita lentidão, o desenvolvimento econômico e político da sociedade avançou e, juntamente com ele, progrediu também a cultura. O movimento ideológico dessa época refletia a encarniçada luta das classes camponesas e suas correlatas contra os senhores feudais, eclesiásticos e seculares, e também as contradições existentes entre os diversos grupos no campo da classe exploradora.
A religião cristã foi a ideologia dominante do feudalismo europeu. A opressão eclesiástica estendia a tudo a sua marca cadavérica. A igreja católica, proprietária de enormes extensões de terra e bens móveis e imóveis, desempenhou um papel exclusivo na economia da Idade Média. Ao Estado feudal mal equipado, opunha seus sistemas severamente centralizados, com o Papa romano na cúpula. A situação difícil "... dos pequenos camponeses, esmagados pela miséria, humilhados pela dependência pessoal e pela ignorância"(30), e a completa insegurança da vida medieval com suas lutas, fomes e epidemias, favoreceram a propagação da religião.
A igreja monopolizou também a cultura. Tomou o ensino nas mãos. Eclesiásticos e monges eram professores, sábios e filósofos. O movimento oposicionista, e mesmo o revolucionário, confundia-se inevitavelmente durante a Idade Média com a rebelião contra as doutrinas eclesiásticas e contra a igreja, manifestando-se nos diversos movimentos heréticos.
No limite da filosofia antiga e da medieval, servindo de "introdução" à última, está a patrística (séculos II-VI).
Os primeiros filósofos cristãos, os "pais da igreja" ("patres ecclesiaes") elaboraram os fundamentos da dogmática cristã; sua filosofia confunde-se por completo com a teologia (a ciência de Deus). O cristianismo começou com uma furiosa perseguição à filosofia e à ciência "pagãs", apesar da grande influência que exerciam, sobre a formação da ideologia cristã, juntamente com a teologia judaica, as doutrinas filosóficas do período heleno-romano: o estoicismo, o neoplatonismo e o neopitagorismo.
A figura mais notável da nascente filosofia cristã foi o bispo de Hipona (África do Norte), Santo Agostinho (anos 354-430), que exerceu a influência mais forte sobre a ideologia medieval. Sua atuação efetuou-se durante o período da decomposição do império mundial romano e da consolidação simultânea da igreja católica, cujo teórico e prático mais notável foi Agostinho. Agostinho castigava com uma crueldade sem limites todos aqueles de "pensamento distinto" e erigia zelosamente o edifício do catolicismo.
Para Agostinho, "a verdadeira filosofia e a verdadeira religião é uma e a mesma coisa". Procurava encontrar no platonismo uma base filosófica para o cristianismo. A Ideia de Platão, segundo afirma Agostinho, é "o pensamento do criador antes do ato da criação". Deus criou o mundo do nada. Para a "salvação" do homem na vida de além-túmulo não são suficientes suas boas ações e a vida moral, é necessário pertencer à igreja cristã; fora dela "não há salvação".
A doutrina de Agostinho desempenhou um papel especial junto à igreja como representante da "cidade de Deus" e sua semelhança na terra. Os visigodos, sob a chefia de Alarico, conquistaram e saquearam no ano 410 a "Cidade Eterna", Roma, que se julgava invencível. Agostinho explica teologicamente a queda de Roma. Na sua opinião, só morreu a "Cidade Terrena", ou Estado pecador criado pelos pagãos. Mas seu lugar é ocupado pelo reino universal "divino" eterno, a "Cidade de Deus". Isto, na prática, supunha a exigência da primazia do Poder eclesiástico sobre o secular e dá fundamentação ao desejo de domínio mundial da igreja.
O Estado deve colaborar com a igreja na sua luta contra os hereges. É preferível queimá-los vivos a permitir que "se embruteçam no erro". O "santo" padre da igreja defendia a desigualdade social, a riqueza, a escravidão.
Agostinho pregava a ascetismo. À vida material e pecadora da terra opunha a existência eterna e santa do "além". Achava a natureza digna de desprezo! A vida real é só preparação para a de além-túmulo, e quanto antes se emancipasse o homem dos laços terrenos, tanto melhor para ele.
Durante os séculos IX e X, no caos da decomposição do Estado romano e no meio dos grandes progressos provocados pelas "grandes migrações de povos", esboçam-se duas forças dominantes, o papado romano e o "Sagrado Império Romano", que durante o período de seu florescimento abarcava a Alemanha, a Itália e algumas regiões vizinhas. Naquela época começa a formar-se também a filosofia escolástica, que vai florescendo à medida que a igreja católica vai se consolidando.
A escolástica (do latim, schola = escola) é a filosofia cristã da Idade Média que impera no ensino escolar e que depende totalmente da teologia. "A filosofia é a servente da teologia"; assim definia a igreja o lugar e o papel da filosofia. A tarefa fundamental da escolástica foi fundamentar, defender e sistematizar, por meio da lógica abstrata, os dogmas religiosos eternos.
Os traços típicos da escolástica foram os seguintes:
O escolástico, em suma, não se interessava pelo conteúdo da filosofia, tanto quanto pela construção artificial e os discursos casuísticos formais. Dedicavam a maior parte da sua atenção à astúcia na palavra e às discussões formais. A lógica escolástica era completamente desligada da experiência. A autoridade das "sagradas escrituras" dos chamados "pais da igreja" e do adulterado Aristóteles, foi seu único ponto de partida.
Essas particularidades revelaram-se com especial aspereza durante o período da decomposição da escolástica. Naquela época, sustentavam-se longas disputas e escreviam-se prolixos tratados sobre temas como este: "Que leva o porco à feira, a mão ou a corda?", "Qual a idade de Adão quando foi criado?", "Pode Deus onipotente criar uma pedra que ele próprio não possa levantar?", "Os anjos dormem", etc.
O império da dogmática morta relacionava-se com o nível sumamente baixo das ciências naturais e o estancamento da produção medieval, da vida econômica e social em geral. É claro que a filosofia medieval não se reduziu, sem deixar rastro, a semelhante falta de conteúdo. Nela havia uma encarniçada luta entre as diversas tendências progressistas para a época e as tendências reacionárias. E, à medida que crescia a luta de classes da burguesia e das massas populares contra o regime feudal, desenvolvia-se também a luta contra a falta de conteúdo, a abstração e a decomposição do método escolástico.
A filosofia escolástica formou-se definitivamente no século XI. Foi este o período de luta mais encarniçado entre a igreja católica, que pretendia o domínio universal, e os imperadores germanos, os quais desejavam restabelecer o Império mundial romano e privar o Papa do Poder temporal. A escolástica propunha-se a cimentar a primazia do Poder eclesiástico sobre o secular, o predomínio da religião sobre a ciência. Os teólogos anteriores agiam apenas apoiados na Bíblia, na "revelação" divina, pregando a fé cega, coisa que já não era suficiente nas novas condições. Era preciso reforçar a autoridade da religião, da igreja e do Poder papal com argumentos mais racionais. A escolástica tomou a peito também a realização dessa tarefa. Para resolvê-la serviu-se da parte mais idealista e formalmente lógica da filosofia antiga Por exemplo, os escolásticos deduziam a existência da divindade do conceito que a julgava o ser mais perfeito. A construção "inteligente" e "em harmonia completa" do mundo, para eles atestava a existência de um arquiteto divino, que planifica o mundo sabiamente e modifica toda a natureza.
O fato mais importante na história da filosofia da Idade Média foi a luta desencadeada durante o século XI entre os "nominalistas" e os "realistas". Por sua importância, esta luta ultrapassava muito os limites do acostumado "alvoroço de ratões dos escolásticos em torno de qualquer problema fútil e insignificante. As disputas entre os nominalistas e os realistas foram tão encarniçadas que foi necessário separar os partidários dos dois grupos hostis por meio de uma forte barreira.
Os realistas afirmavam a existência real dos conceitos gerais, os universais" ("o homem em geral" "a casa em geral", etc.) que eram essenciais ou semelhanças das coisas singulares. Os "universais", diziam, existem realmente antes das coisas e as engendram. A fonte deste realismo extremo foi a filosofia de Platão, pois ela ensina que todo o mundo das coisas materiais múltiplas e variadas é o reflexo de ideias perfeitas, imóveis e imutáveis que existem no outro mundo.
Em resposta, os "nominalistas" afirmavam que as "universais" eram nomes (nomina) "posteriores às coisas". Reais eram apenas as coisas soltas, singulares, individuais, como por exemplo, os diferentes homens. "Homem em geral" é uma simples palavra empregada como denominação. Os homens, por meio dessas denominações gerais, generalizam pela imagem exterior, as classes ou formas semelhantes dos objetos singulares. Os representantes das formas mais moderadas do nominalismo admitiam a existência do geral, apenas porém nos conceitos humanos (daí o "conceitualismo"), que fixa os traços semelhantes das coisas separadas.
O caráter idealista e metafísico do realismo e, ao contrário, as tendências empíricas e materialistas do nominalismo, que tomam como ponto de partida as coisas separadas, sensualmente perceptíveis, para o estabelecimento dos conceitos gerais, saltam à vista.
"O nominalismo, escreve Marx,...é a primeira expressão do materialismo"(31).
Nesta luta, em forma de disputas teológicas casuísticas entre o nominalismo e o realismo, manifestam-se as tendências dos dois campos fundamentais: o materialismo e o idealismo. Ela foi o reflexo da luta de classes que existia no seio da sociedade feudal. A linha ortodoxo-eclesiástica defendia o realismo. O nominalismo, em troca, era a constante bandeira dos elementos da oposição. O nominalismo foi mais de uma vez condenado como heresia.
O representante mais notável da primeira escolástica foi o francês Pedro Abelardo (anos 1079-1142), que gozou de uma enorme popularidade em vida. De todos os países da Europa afluíam estudantes à Paris, onde Abelardo ensinava.
Abelardo, em oposição aos teólogos mais fanáticos, destacava a importância da ciência como base da fé. "Não desejava crer naquilo que não esmiuçasse previamente com a razão", diziam dele seus contemporâneos. Em sua obra "Sic et non" ("sim ou não") demonstra que as autoridades eclesiásticas eram forçadas a dar respostas antagônicas a um mesmo problema dogmático. Contudo não procurava refutar a religião. Apenas indicou a forma lógica de resolver essas contradições. Esse caminho é a dialética, no sentido medieval da palavra. Tal "dialética" é uma lógica formal, entendida como a arte de discutir e argumentar. Os dialéticos medievais limitavam-se a considerar todos os prós e os contras possíveis. Na disputa com os realistas, Abelardo defendia o nominalismo moderado, o conceitualismo.
A princípio, a igreja olhava com muita suspeita esses elementos da ciência e da instrução antiga que, de uma ou outra forma, foram postos a reluzir por meio da escolástica. Sob esse aspecto é muito significativa a perseguição e a acusação de heresia de que foi objeto o próprio Abelardo.
"Seus livros venenosos, escrevia um teólogo, não permanecem quietos nas estantes, não; são lidos nas encruzilhadas. Têm asas. Em vez de espalhar luz, enchem as cidades e os castelos de trevas; em lugar de mel, dão veneno, ou melhor veneno no mel".
Abelardo foi por fim dominado pelos eclesiásticos, sendo obrigado a abjurar seus "erros". Só mais tarde, especialmente na luta contra os hereges, começou a igreja a retirar todo o proveito da "erudição"’ escolástica.
Abelardo viveu no tempo das duas primeiras cruzadas. O crescimento das relações econômicas e culturais com o oriente foi uma das múltiplas e variadas consequências dessas cruzadas.
Nos séculos VIII-XII, quando o desenvolvimento econômico e cultural da Europa ocidental ainda se achava num nível extremamente baixo, no oriente florescia a cultura árabe, original e poderosa.
A base desse florescimento foi a economia, adiantada para a época, do califado árabe, que abarcava no século VIII a Arábia, o Irã, a Armênia, a Ásia Central, o noroeste da índia, a Síria, a Palestina, o Egito, todo o litoral setentrional da África e, por fim, a península ibérica.
Os árabes converteram-se nos herdeiros da cultura antiga, conservando e desenvolvendo muitas de suas conquistas. Os portadores da cultura árabe não foram só os árabes, mas também os povos das regiões que submeteram: sírios, iranianos, espanhóis, egípcios, tadjiques. Perseguidos pela igreja cristã, os últimos filósofos gregos refugiaram-se nos séculos V e VI no Irã e na Mesopotâmia, onde havia mais tolerância. A ciência e a filosofia árabes atingiram seu desenvolvimento máximo no século IX, sob os califas da dinastia Abasida (anos 750-1258). A ciência árabe conseguiu os êxitos mais consideráveis no campo da matemática e da astronomia, da alquimia e da medicina, da geografia e da história. O intenso trabalho de tradução que os árabes fizeram de uma série das mais valiosas obras da herança antiga teve enorme importância. Os filósofos árabes, geralmente médicos, astrônomos, viajantes, mostravam maior inclinação para as ciências naturais e a experimentação do que para as especulações abstratas.
Um dos filósofos árabes mais notáveis, o tadjique Avicena (anos 980-1037) nasceu em Bukhara (atualmente território da URSS). Aristóteles é o ponto de partida dos trabalhos filosóficos de Avicena, que foi um notável experimentalista-naturalista. O livro mais popular da Idade Média, o "Canon da Medicina", era seu. Embora procurasse ocultar suas verdadeiras tendências materialistas e ateias, a "Difamação de Deus" de Avicena tornou-se popular entre seus contemporâneos. Também na Espanha a ciência e a filosofia alcançaram um desenvolvimento brilhante.
O filósofo árabe de mais projeção e um dos maiores pensadores da Idade Média foi o árabe espanhol Averróis (anos 1126-1198). Sua doutrina baseia-se nas tendências naturalistas de Aristóteles, que Averróis considerava o maior de todos os filósofos.
"A doutrina de Aristóteles é a verdade suprema, porque sua inteligência foi o limite da inteligência humana", escrevia Averróis.
A doutrina de Averróis conduzia a uma série de conclusões "heréticas": a eternidade, a não-criação, e a mortalidade da matéria, a unidade de Deus e do mundo (panteísmo), a negação da imortalidade da alma individual. Ao mesmo tempo, sua doutrina sobre a "verdade dupla" demonstrou que o quê é verdade para a religião pode não ser para a filosofia, e vice-versa. Averróis tentou assim separar a ciência da religião, dando à primeira um papel independente.
Pouco após a morte de Averróis no século XIII, nas condições de decadência e decomposição dos Estados muçulmanos, o clero reacionário maometano conseguiu asfixiar a continuação do desenvolvimento da ciência e da filosofia árabes. Os resultados positivos alcançados pelos sábios árabes foram cultivados, principalmente pelos países da Europa Ocidental.
Pelo mesmo caminho da filosofia e da ciência árabes deslizaram, no fundamental, a ciência e a filosofia judaicas da Idade Média, destacando-se nos países árabes alguns pensadores de primeira linha: Avicebron (século XI), Maimônides (século XII). A filosofia judaica desempenhou um grande papel como elemento que punha os árabes em contacto com a Europa Ocidental.
Sob a influência árabe desenvolve-se desde o século XIII a filosofia europeia. A escolástica europeia atingiu seu florescimento no século XIII, quando o crescimento das cidades e a economia monetária foram utilizados em primeiro lugar, pela igreja católica para alimentar suas riquezas. Aumentou ao mesmo tempo a luta de classes dos cidadãos e dos camponeses contra o regime de servidão. Em relação com essa luta começou a multiplicar-se e ampliar-se a classe de hereges, que se opunha à ideologia feudal. Foi apresentado à igreja, com ênfase, a necessidade de fortalecer a religião com novos argumentos que se baseassem, não só na fé cega, mas também na razão. Fundaram-se em Paris e Oxford grandes universidades que se transformaram em focos da filosofia escolástica.
A Europa começou a conhecer, por meio dos árabes, as obras autênticas de Aristóteles e de outros pensadores da antiguidade. É curioso que em 1209 fosse promulgada uma ordem para "que a seguir ninguém ousasse, sob pena de excomunhão, copiar, ler ou guardar de qualquer outra maneira", livros de Aristóteles sobre metafísica e ciências naturais. Apesar disso, algumas décadas mais tarde, Aristóteles chegou a adquirir a maior autoridade da Idade Média, sendo declarado "o precursor de Cristo no domínio do conhecimento da natureza".
O maior perigo para o catolicismo foi o movimento herético dos Cátaros ("os puros"), que se estendeu aos países mais avançados de então, ao rico sul da França e a uma parte do norte da Itália. A base da doutrina dos Cátaros é o dualismo: afirma uma existência eterna de dois princípios: Deus e o diabo, e seus respectivos mundos antagônicos .
Alguns cátaros aproximaram-se muito do panteísmo e chegaram a reconhecer abertamente a eternidade da matéria; nas suas doutrinas há reflexos do antigo atomismo. Os cátaros converteram a doutrina cristã da recompensa de além-tumulo na antiga doutrina da transmigração das almas.
"A força dos hereges, escrevia um monge, foi tão grande, que o trigo da fé chegou a converter-se neste país em joio do erro".
Como resultado da "cruzada" empreendida pelo Papa Inocêncio III (ano 1210), o sul da França foi saqueado de um a outro extremo e reduzido a escombros.
Para a luta contra os hereges criaram-se a inquisição e as ordens dos monges pedintes, dos dominicanos e dos franciscanos. Nas filas dominicanas — os "cães do Senhor" (é um jogo de palavras: dominus = senhor, canes = cães) — recrutavam-se os juízes do tribunal da inquisição e os teólogos mais fiéis da igreja.
Os progressos econômicos, a luta de classes e o movimento herético, começaram a corroer a influência do catolicismo, mas a queda do domínio da igreja ainda estava longe. Precisamente no início do século XIII o Poder papal atingiu uma potência insuperável. Esta consolidação da igreja católica refletiu-se na formação de suas doutrinas, na criação dos sistemas escolásticos mais amplos.
O obscurantismo medieval transparece plenamente nesse sistema, dando nova vida à lógica moribunda de Aristóteles, com a doutrina dos demônios, com os manuais para distinguir e exterminar feiticeiros e hereges e com a fundamentação do domínio mundial da igreja romana. A defesa da exploração rapace das massas laboriosas, a justificação da hierarquia feudal, a sufocação dos pensamentos progressistas" constituíam o sentido social da escolástica.
O mais alto expoente da teologia católica e sistematizador da escolástica ortodoxa foi o dominicano Tomás de Aquino (anos 1225-1274). A obra deste "santo", "Summa Theologiae" (resumo dos conhecimentos teológicos), é uma enciclopédia original da ideologia oficial da Idade Média. O catolicismo reconhece até hoje as doutrinas de Tomás como sua "única filosofia verdadeira".
Tomás tentou colocar Aristóteles a serviço do catolicismo. Embora o fato de usar amplamente a doutrina aristotélica em si já significasse um passo indubitável para diante, é preciso não esquecer que
"o obscurantismo clerical matou o que havia de vivo em Aristóteles e eternizou o que havia de morto"(32).
Tomás foi partidário do realismo "moderado". Os "universais" existem "antes das coisas" na "razão divina"; "nas coisas", no mundo corporal; e "depois das coisas" na consciência humana.
A doutrina de Tomás coloca também a natureza na filosofia mas apenas como um pedestal do "reino da graça divina". Na natureza tudo está colocado em estrita hierarquia de grau ascendente, que conduz a fins superiores universais, a Deus. Tal hierarquia e tal teologia são completamente características da doutrina escolástica. Não menos típicas são as opiniões de Tomás sobre os objetos da natureza, como a soma de "formas ocultas" indestrutíveis, incognoscíveis, ou a "natureza". A explicação" reduzia-se a que o ferro é forjável porque tal é a sua natureza"; o ópio adormece "porque" tem uma "natureza" adormecedora; a ação da bomba explicava-se porque a natureza "tem medo ao vácuo".
A "Summa Theologiae" de Tomás foi construída de acordo com um frio esquema de lógica formal. Toda a "Summa" compõe-se de centenas de problemas divididos em subproblemas que formam milhares divisões. Cada divisão, por sua vez divide-se em quatro partes, cujo caráter e cuja formação, está elaborado de uma vez por todas. Todo esse volumoso sistema se entrelaça em definições abstratas prolixas, argumentação casuística e uma cadeia sem fim de raciocínios lógico-formais. Tomás descreve prolixamente os bruxos e feiticeiros, o "reino do demônio" e o poder do diabo, que "põe o tempo a perder, fere os animais, atrai toda a espécie de males para os homens" e até " impede os casados de cumprirem suas obrigações conjugais".
Tomás proclama a superioridade da igreja sobre o Estado e luta pelo poder universal do Papa como "representante de Cristo" na terra. A divisão em camadas populares, a desigualdade social, foi, segundo suas palavras, estabelecida pelo próprio Deus. Tomás exige que os hereges sejam "não só excomungados pela igreja, mas também condenados à morte". E isso foi feito, de fato. Os tribunais eclesiásticos entregavam os hereges ao poder civil com a indicação: "proceder com a máxima brevidade possível e sem derramamento de sangue". Isso significava ordem de queimá-los vivos.
Os nominalistas, especialmente fortes na Inglaterra, foram adversários da dogmática e do realismo. O desenvolvimento econômico-social da Inglaterra deu um grande passo à frente no curso dos séculos XIII e XIV. Teve lugar então intenso processo de emancipação dos camponeses, as cidades cresceram, rapidamente, o comércio e o artesanato floresceram. A luta pela Carta Magna da Liberdade, a formação e consolidação do Parlamento logo após as revoltas camponesas e urbanas: tudo isso se entrelaça com as lutas contra o trono romano. Este extraiu do país, no século XIII, somas que superavam a renda de Estado da Inglaterra. Também o poder real da Inglaterra insurgiu-se contra o papado, afirmando que a igreja inglesa devia, antes de tudo, subordinar-se ao rei, e que seu chefe supremo não era o papa, mas o rei.
Começaram a crescer, devido a este fato, tendências oposicionistas na universidade de Oxford. Ao mesmo tempo aumentou, não sem influência da ciência árabe, o interesse pelas matemáticas e as ciências naturais. Da universidade de Oxford saíram os adversários de Tomás de Aquino: os nominalistas Duns Escoto, Guilherme Occam e um dos primeiros e mais notáveis representantes da corrente científico-naturalista, Roger Bacon.
Duns Escoto (aproximadamente 1270-1308) foi um dos maiores pensadores de seu tempo. Submeteu o sistema de Tomás de Aquino a uma crítica minuciosa. Os "mistérios" da religião, afirma, não podem ser conhecidos pela razão, mas apenas pela fé. A teologia como ciência da fé é, portanto, inútil, posto que nada pode descobrir. Dessa forma Duns Escoto quebrou a relação existente entre a teologia e a filosofia e, até certo ponto, emancipou esta última. Nas doutrinas de Duns Escoto notam-se claramente tendências empíricas e materialistas, relacionadas com o estudo das matemáticas e das ciências naturais. Admitia, em parte, que o pensar é um atributo da matéria. Se Deus é todo poderoso, raciocinava Duns Escoto, por que não tinha dotado a matéria com a faculdade de pensar?
"O materialismo, escreve Marx, é filho natural da Grã Bretanha. O escolástico britânico Duns Escoto já fazia esta pergunta: "A matéria não seria capaz de pensar?".
«Para tornar possível este milagre, teve que recorrer à onipotência de Deus, isto é, obrigou a própria teologia a pregar o materialismo . Além disso foi nominalista. O nominalismo foi um dos elementos principais do materialismo inglês e é, em geral, a primeira expressão do materialismo"(33).
O protesto contra o saque sistemático ao povo inglês pelo Papa romano refletiu-se na crítica às riquezas da igreja feita por Escoto, em suas palavras sobre a pobreza "primitiva" e também sobre a propriedade comum. As encarniçadas disputas, que duraram muitos anos, entre "escotistas" e "tomistas" favoreceram o abalamento das bases da escolástica. Golpes mais fortes ainda lhe foram assestados pelos pensadores ingleses Roger Bacon e Guilherme Occam, cuja atividade assinala o começo da decomposição da filosofia escolástica.
Roger Bacon (aproximadamente 1210-1294), o contemporâneo mais velho de Duns Escoto, passou 24 anos no cárcere de um mosteiro sob severa vigilância. Com isso se explicam, antes de tudo, seus atrevidos ataques ao trono papal, aos vícios do clero, à opressão e ao roubo do feudalismo.
"Em toda a parte reina a mais completa corrupção, escrevia Bacon; o trono sagrado converteu-se na presa do engano e da mentira. Todo o clero está entregue à soberba, ao luxo, à avidez. Os príncipes, os barões e os cavalheiros oprimem-se e roubam-se mutuamente, e arruínam seus súditos com intermináveis guerras e contribuições".
Bacon criticou severa e mordazmente a esterilidade do método escolástico, que está separado da vida. Há três fontes de conhecimento, diz: a autoridade (além disso Bacon distingue a autoridade "verdadeira" e a "indigna"), a razão e a experiência. A solução verdadeira e definitiva de um problema só se obtém pelo método experimental, "que chega ao conhecimento das causas dos fenômenos".
Bacon cultivava com felicidade as matemáticas, a astronomia, a física, a alquimia, a medicina, a botânica e a zoologia. Projetou a reforma do calendário, que foi efetuada 300 anos mais tarde. Seus trabalhos científico-naturalistas deram-lhe reputação de mágico. Bacon esboçou as ideias de uma série de inventos: óculos, microscópio, telescópio. Escrevia sobre as propriedades da pólvora e seu uso para fins militares. Sonhava com aparelhos para levantar pesos, com "navios sem remadores", com "veículos sem tração animar e até com máquinas voadoras.
A ciência é força, exclamava Bacon.
"Não há maior perigo que a ignorância. Nada há mais digno que o estudo da ciência, que desterra as trevas da ignorância; disso depende o bem-estar do mundo".
O desenvolvimento ulterior das correntes científico-naturalistas está ligado ao florescimento do nominalismo, cujo representante de mais projeção foi o inglês Guilherme Occam (aproximadamente 1300-1350).
O século XIV se caracteriza pela continuação do desenvolvimento da economia monetária, pela desagregação das relações feudais e pelo aumento das revoltas camponesas (Jacob Peyt, na França, o levante de Wat Tyler na Inglaterra) e os movimentos das cidades. Surgem poderosas confederações de cidades comerciais (de Hansa, do Reno); as cidades repúblicas mais ricas, Veneza, Florença, Gênova. O poder dos papas entrou então em completa decadência. Os reis franceses transferiram os papas de Roma para Avignon, cidade limítrofe da França ("o cativeiro avignonense", 1309-1377). São também característicos desses anos os graves conflitos entre os papas e os imperadores e entre os primeiros e a ala radical da ordem franciscana, que guerreava contra as riquezas da igreja e as pretensões seculares do papado.
Para salvar-se da perseguição de que era objeto por parte do Papa, o franciscano Guilherme Occam refugiou-se sob a proteção do imperador Luiz da Baviera. "Defende-me com a espada e defender-te-ei com a pena", dizia ao imperador. Em seus tratados políticos Guilherme Occam combatia o poder secular da igreja, a qual, segundo achava, devia ocupar-se somente de assuntos religiosos. Considerava que o ponto de partida do Poder do Estado eram as necessidades dos homens e as exigências do bom senso e não dos preceitos divinos. Ao separar a filosofia da teologia, abriu caminho ao pensamento filosófico livre. A teologia como "ciência" deve ser posta de lado, uma vez que suas conclusões não podem ser demonstradas pela razão.
Só as coisas isoladas, singulares, são reais. Existem objetivamente, fora da consciência. Os "universais" são abstrações, denominações, "termos", que fixam as características semelhantes nos objetos particulares. O conhecimento começa na experiência sensível e termina no pensamento. Não há provas experimentais nem racionais da imaterialidade da alma.
Não obstante todas as perseguições, Occam teve muitos adeptos. A esse respeito é especialmente característico o círculo dos occamistas de Paris, onde ressuscitou o atomismo de Demócrito, se incitava ao estudo da natureza pelo método experimental e se cultivavam com êxito as matemáticas, a mecânica e a astronomia.
A corrupção da escolástica marchou também por outro caminho: o da mística. Os místicos, tomando como ponto de partida o neoplatonismo, afirmavam que o conhecimento direto da verdade é a "iluminação" da alma pela luz divina. A oposição ao regime feudal nas condições originais da Idade Média tomou, durante certo tempo, a forma mística. Os místicos recusavam à igreja o papel de "intermediária entre o homem e Deus". Achavam que a "salvação" era resultado da fé e não das "boas ações", pelas quais a igreja entendia as dádivas em seu proveito. Os místicos não escreviam em latim mas no idioma do povo, fulminando assim a erudição eclesiástica oficial.
Por outro lado, o caráter reacionário da mística não necessita explicações especiais. A mística ou refuta completamente ou rebaixa o conhecimento logico. Isto refere-se não só à escolástica como também ao conhecimento racional em geral.
A escolástica continuou existindo, entretanto, durante muito tempo, mas seu papel estava definitivamente terminado, mesmo antes do século XV. O fim da escolástica reflete a decomposição do feudalismo. A burguesia em ascensão exigia o desenvolvimento de uma ciência experimental e de uma filosofia, necessárias para facilitar o crescimento das novas forças produtivas.
Notas de rodapé:
(29) Stalin. Sobre o materialismo dialético e histórico. "Questões do Leninismo", versão espanhola, Moscou 1941, páginas 659 e 660. (retornar ao texto)
(30) Lenin. O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia. Obras, tomo III, edição russa, página 141. (retornar ao texto)
(31) Marx e Engels. A sagrada família. Obra, tomo III, edição russa, página 157. (retornar ao texto)
(32) Lenin. Cadernos Filosóficos, edição russa, página 331. (retornar ao texto)
(33) Marx e Engels. A Sagrada Família. Obra, tomo III, edição russa, página 157. (retornar ao texto)
Inclusão | 13/11/2015 |