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Primeira Edição: ABC do Marxismo-Leninismo Série A, N° 4, Editorial Avante!, Lisboa, 1976
Fonte: Partido Comunista Português — Organização Regional de Lisboa
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
A Grande Revolução Francesa teve repercussões profundas em toda a Europa. E isto porque, e apenas porque, estava madura a necessidade de uma transformação revolucionária das condições sociais não apenas em França, mas também no resto da Europa. Um século antes a Inglaterra tinha realizado a sua revolução burguesa. Conhecera já, na sua área de domínio, a vitória da revolução americana, na preparação da qual pensadores franceses desempenharam um papel importante. Por outro lado, a preparação da Revolução Francesa de 1789 não era, de modo nenhum, um assunto que apenas dissesse respeito à França; a par das «Luzes» francesas houve as alemãs; a par da agitação camponesa em França teve lugar, na Rússia, a guerra camponesa chefiada por Pugatchov (1726-1775); a par da vitória da fase manufactureira do capitalismo em França, a Inglaterra desenvolveu a sua revolução industrial(1) a Holanda, a Bélgica e a Irlanda foram abaladas por movimentos revolucionários; em Itália iniciou-se o Risorgimento — isto é, o movimento para a reunificação da Itália; a Polónia lutava pela sua independência, e a estrutura do império austríaco multinacional dos Habsburgos foi abalada por aspirações nacionais de povos submetidos.
Tratou-se, portanto, de um ascenso revolucionário comum a toda a Europa que teve em França o seu ponto culminante numa revolução democrático-burguesa vitoriosa, pois que em França se apresentavam mais favoráveis as condições para o seu triunfo.
O que é válido para a preparação da Revolução Francesa é-o também para os seus efeitos. A Revolução Francesa imprimiu o seu cunho, no sentido mais verdadeiro do termo, a toda a época histórica em que a ordem social capitalista se estabeleceu e consolidou nos países mais importantes. Todo o século XIX decorreu sob o signo da Revolução Francesa. Este século não fez mais do que estabelecer, concretizar parcialmente e levar a cabo, por esse mundo fora, o que os grandes revolucionários burgueses franceses tinham criado.
A Revolução Francesa teve um carácter democrático-burguês, isto é, processou-se sob a direcção da burguesia, que se apoiou, para o efeito, nas amplas massas do povo trabalhador. A revolução dirigiu-se contra a ordem feudal vigente, e substituiu-a pela ordem capitalista. A luta teve causas económicas. No âmbito da ordem feudal vigente haviam-se formado e desenvolvido, tanto na indústria como na agricultura, formas de produção capitalista. De início, estas receberam da monarquia feudal absoluta um estímulo considerável. É que o rei queria para si, por meio de impostos, uma parte considerável dos frutos desta produção lucrativa. A burguesia, suporte desta forma económica capitalista em progresso, ficou a dever ao poder da monarquia absoluta o mercado nacional e, graças às guerras feudais de conquista (conquista de grandes colónias na Índia e na América), também um mercado externo.
Nestas condições, a burguesia fortaleceu-se economicamente. Desenvolveu a indústria e o comércio. Mas acabou por descobrir que, no âmbito da ordem feudal, se erguiam barreiras a esse desenvolvimento.
A França tinha então cerca de 25 milhões de habitantes, dos quais 23 milhões pertenciam à população camponesa. As massas camponesas eram o burro de carga da sociedade. Tinham de pagar grandes tributos ao seu barão, à Igreja, ao Estado. «As pessoas comem erva como as ovelhas e morrem como moscas», lê-se num relatório oficial ao rei. Na província havia uma média de 17% de camponeses sem terra. O protesto dos camponeses contra este regime de fome dos condes e barões assumiu muitas formas. Os camponeses passaram a deixar os campos incultos. Se, apesar de toda a labuta, estavam condenados à fome, o que tinham a fazer era cruzar os braços. Já em 1750 a quarta parte da terra arável deixou de ser cultivada. Além disso, registavam-se com frequência, por todo o país, pequenas e grandes agitações, e até sublevações de camponeses. Uma das mais importantes desenvolveu-se de 1780 a 1783 na região das Cevennes. Para os camponeses, a luta contra o feudalismo tornou-se a luta pela sobrevivência física.
Nas cidades, as peias corporativas tolhiam o comércio e a indústria. Os aprendizes tinham de suportar sete anos de aprendizado. Nada ganhavam em troca, e tinham mesmo de pagar o aprendizado. O direito de acesso ao aprendizado custava verbas consideráveis e muito mais ainda a carta de mestria. O mestre não podia ter mais do que um ou dois aprendizes. Os artigos tinham de ser produzidos segundo modelos rigorosamente determinados. Todas estas regras corporativas impediam o desenvolvimento do comércio e da indústria.
Dez mil artífices não encontravam trabalho nas corporações. Vagueavam pelo país e faziam, acossados pela polícia, «trabalhos proibidos». Finalmente foram construídos asilos e guetos para estes operários nos subúrbios das grandes cidades. Os dois mais importantes eram os subúrbios parisienses de St. Antoine e Temple. Ali habitavam, quando rebentou a revolução, 70 000 destes operários sem direitos. Houve insurreições destas camadas, como, por exemplo, a de 1786 em Lyon, ou a de Abril de 1789 em St. Antoine. Nesta última luta 200 destes operários morreram e 300 ficaram feridos.
«O subúrbio St. Antoine tornou-se o verdadeiro foco da revolução, do seu seio saíram os assaltantes da Bastilha, e foi ele a trincheira contra a qual se quebraram os golpes da contra-revolução», escreveu Franz Mehring [Gesammelte Schriften (Obras Completas), t. 5, p. 77, Berlim, 1964],
Estes proletários nada tinham a perder. Viviam num subúrbio muito populoso, às portas de Paris, eram dos mais enérgicos e dos mais temerários. As batalhas decisivas tiveram muitas vezes de ser travadas de emergência. A burguesia revolucionária não podia ficar à espera de que hostes camponesas, prontas para a luta, acorressem dos campos a Paris. Os combatentes da revolução encontravam-se, numa grande massa, na periferia da própria cidade. Aos operários dos subúrbios coube o papel de se tornarem — com a pequena burguesia — a espinha dorsal da revolução.
A burguesia apercebia-se das peias feudais que lhe tolhiam a bolsa: a miséria dos camponeses e a debilidade corporativa das artes e ofícios impediam o desenvolvimento de um mercado interno, travavam o desenvolvimento da riqueza nacional, que cada vez mais se confundia com a riqueza da burguesia. Ao mesmo tempo, o sistema corporativo impedia os capitalistas de disporem livremente da força de trabalho dos trabalhadores.
Enquanto a burguesia era, deste modo, impedida pela velha ordem social de desenvolver mais rapidamente a produção capitalista e, simultaneamente, a sua riqueza, aumentavam continuamente o luxo desmedido do rei e da alta nobreza e, com ele, as exigências financeiras que faziam à burguesia.
A nobreza, na França pré-revolucionária, contava cerca de 140 000 pessoas. Apenas a camada superior da nobreza levava uma vida faustosa. Eram numerosas as famílias nobres que estavam arruinadas. A sua única saída era o ingresso no funcionalismo público. O número de funcionários tinha, portanto, de ser continuamente elevado, aplicando-se rigorosamente o princípio de que, na medida do possível, todos os lugares do funcionalismo público e da hierarquia militar deveriam ser ocupados por nobres.
O clero englobava cerca de 130 000 pessoas. Destas, 60 000 eram padres e vigários, 23 000 eram monges e 37 000 eram freiras. A camada superior do clero era, portanto, pouco numerosa. Mas a verdade é que explorava continuamente o povo. A Igreja possuía um quinto das terras de cultura, no valor de 4000 milhões de libras. O rendimento destes campos ascendia a cerca de 100 milhões de libras por ano. Do dízimo a Igreja arrecadava anualmente 123 milhões de libras. Cada um dos 131 bispos tinha um rendimento anual de 100 000 libras.
O esbanjamento da corte e da alta nobreza conduziu o Estado à beira da bancarrota. (Quando a Revolução rebentou havia — contra 400 milhões de libras de receitas anuais do Estado — dívidas públicas no montante de 5 000 milhões de libras!) Só a corte empregava 15 000 pessoas. Nas cavalariças havia 1 857 cavalos, para os quais eram necessários 1 400 tratadores. Na província havia uma reserva de mais 1 200 cavalos. Para os seus passeios, o rei possuía 217 equipagens. Só os cães de caça do rei levavam anualmente 54 000 libras, e as velas das tias de sua majestade 216 000 libras por ano. Um décimo das receitas do Estado era despendido anualmente com o pessoal da corte.
Para pagar este luxo feudal a burguesia era cada vez mais sugada pela corte, pela nobreza e pelo alto clero. Assim, enquanto na realidade a nobreza e a monarquia dependiam financeiramente da burguesia, esta não gozava de quaisquer direitos políticos. O descontentamento da burguesia crescia a olhos vistos. Isto só não se aplicava à reduzida camada superior da burguesia, a qual, como financiava o rei e a alta nobreza, estava interessada na conservação do sistema e não visava senão certas reformas, sendo frequentemente agraciada com títulos de nobreza.
A disposição revolucionária que crescia por todo o pais, entre os camponeses e os artesãos e na burguesia — em todo o povo, portanto —, foi também alimentada pela acção esclarecedora de grandes pensadores franceses das «Luzes» como Voltaire (1684-1778), Montesquieu (1689-1755), Rousseau (1712-1778), Diderot (1713-1784), D'Alembert (1717-1782), Holbach (1723-1789), Helvetius (17151771) e outros. Todos eles submeteram as relações feudais vigentes, o despotismo absoluto, os privilégios da nobreza, a arbitrariedade da justiça, a uma crítica demolidora. Criaram uma nova visão burguesa do mundo e, desta forma, prepararam os espíritos para a Revolução. As suas ideias condensaram-se na palavra de ordem arrebatadora: «Liberdade — Igualdade — Fraternidade!».
Todas as contradições se agudizaram rapidamente no país em consequência das crises da indústria, do comércio, das finanças e da agricultura dos anos 1787-1789, que foram acompanhadas de más colheitas. Depois de as camadas privilegiadas, nobres e eclesiásticas, se terem recusado, apesar dos perigos da situação, a renunciar à mais pequena parcela dos seus privilégios feudais e a ajudar a minorar os perigos da bancarrota do Estado, a monarquia lembrou-se de uma ordenação de séculos anteriores: outrora, da nobreza (primeiro estado), do clero (segundo estado) e da burguesia (terceiro estado) haviam sido constituídos os Estados Gerais, que eram convocados para deliberarem sobre grandes problemas do Estado. Estes Estados Gerais já não eram convocados desde 1614! Em 1788, o rei decretou a sua convocação. À nobreza couberam 300 representantes, ao clero outros 300 e ao terceiro estado, devido às suas proporções (e porque era ele quem tinha de desembolsar) couberam 600 representantes. A questão sobre o modo de votação, por estados ou nominal, ficou em aberto. Quando os Estados Gerais se reuniram, em 5 de Maio de 1789, a burguesia fez aprovar a votação por representantes, e não por estados. Isto foi possível porque nos outros dois estados, mas principalmente no clero, eram evidentes os sintomas de desagregação.
A maior parte dos 60 000 padres vivia na miséria, mas eram eles que tinham de executar todos os trabalhos eclesiásticos. Por nascimento e condição social estavam ligados ao «terceiro estado». Quando os Estados Gerais discutiram o processo de votação, os representantes do clero dividiram-se. Estes eram constituídos por 48 arcebispos e bispos, 35 abades e deões e 208 párocos. Estes últimos, na sua grande maioria, juntaram-se ao terceiro estado, que assim passou a ser o grupo dominante. (Mais tarde, quando a Revolução já tinha rebentado, o exército, por razões idênticas, tornou-se inoperante.)
Assim ruíram suportes decisivos da velha ordem social.
A disputa nos Estados Gerais teve lugar sob a pressão de centenas de insurreições camponesas, e isto apressou a passagem dos representantes da burguesia à acção revolucionária.
Na sessão dos Estados Gerais o rei exigiu da burguesia fundos para o saneamento do Tesouro do Estado. A burguesia apresentou então as suas reivindicações: transformação dos Estados Gerais numa Assembleia Nacional burguesa. Um dos seus oradores, o abade Sieyes, fundamentou esta reivindicação referindo que este estado corresponde a 96% da Nação.
«O que é o terceiro estado? É toda a Nação acorrentada e oprimida. O que foi ele até hoje na ordem estatal? Nada! O que é que ele deseja? Ser alguma coisa.»
A reivindicação da burguesia de transformar os Estados Gerais na Assembleia Nacional foi aprovada em 17 de Junho de 1789 (contra a vontade do rei e dos outros dois estados). Este foi o primeiro acto revolucionário da burguesia. Três dias mais tarde, reuniram-se na Sala do Jogo da Péla os deputados à Assembleia Nacional, dado que o rei tinha mandado encerrar as salas onde se reunia a Assembleia Nacional, e juraram não se separar até que a Assembleia Nacional se transformasse em Assembleia Constituinte («Juramento da Sala do Jogo da Péla»). Em 9 de Julho, os representantes burgueses e o baixo clero, aos quais tinha aderido parte da nobreza liberal — Mirabeau, Lafayette e outros —, formaram a Assembleia Nacional Constituinte. Foi este o segundo acto revolucionário da burguesia.
O rei mandou então cercar Paris por 20 000 soldados. Estes acontecimentos provocaram uma agitação gigantesca. Com gritos de «às armas» o povo concentrou-se em massa nas ruas e praças. Por fim, no dia 14 de Julho de 1789, dirigido pelos proletários de St. Antoine e Temple, tomou a Bastilha, a prisão política da monarquia, ao cabo de várias horas de luta heróica.
Foi o sinal que desencadeou a Revolução. Paris tomou a iniciativa e o resto do país seguiu-lhe o exemplo, expulsando as autoridades feudais locais e destruindo os castelos dos nobres.
Na Revolução Francesa houve três etapas, distintas e caracterizadas pelo poder de diferentes camadas da burguesia e que corresponderam a diferentes objectivos.
Esta etapa caracterizou-se pelo domínio político da grande burguesia e de nobres liberais aburguesados como Mirabeau ou Lafayette. Dominava a fracção da burguesia que, devido às suas ligações económicas com o Estado feudal e com o rei (que financiava), ainda defendia a monarquia. Era por um compromisso com a nobreza. Todas as medidas tomadas por estas forças limitaram-se portanto, no que tinham de antifeudal, ao reconhecimento na lei da situação já alcançada pela actividade das massas. Na sessão nocturna da Assembleia Constituinte de 4 para 5 de Agosto, por exemplo, a célebre «noite dos milagres», não se fez mais do que consagrar na lei aquilo que as massas já tinham conquistado. Não foi, portanto, no Parlamento que a nobreza perdeu uma parte dos seus privilégios, foi, sim, na acção das massas em Paris e no campo; foi nesta acção que caíram também certas peias corporativas e algumas barreiras alfandegárias internas. Todas as outras medidas dos novos senhores, da grande burguesia, serviram apenas para travar a intervenção das massas populares na criação das novas relações. A Constituição, aprovada em Setembro de 1791 e ratificada pelo rei, correspondia totalmente aos objectivos da grande burguesia: a monarquia permanecia. É certo que a França passava a ser uma monarquia constitucional. Foi introduzido o direito de voto — mas só podia votar quem tivesse determinadas posses. As mulheres não tinham direito de voto. De 25 milhões de franceses apenas 4 milhões podiam votar. A Guarda Nacional, isto é, as forças armadas do povo, podia ser recrutada apenas nestas camadas possidentes. Nestas condições, os famosos Direitos do Homem e do Cidadão, proclamados em 1789, não passavam, na realidade, de privilégios burgueses especiais. Marat (1742-1793), um dos mais destacados dirigentes da Revolução, a quem as massas trabalhadoras chamavam o amigo do povo, caracterizou esta legislação da burguesia do seguinte modo:
«Haveis alicerçado a propriedade na lei, haveis colocado a propriedade sob protecção da Constituição, mas as disposições legais têm tão pouco valor para um homem que não possui uma propriedade para administrar e que não têm interesses a defender! O que é que a propriedade em si significa para os pobres?
«[...] Até aqui, a nova ordem das coisas que hoje vigora favorece inteiramente os ricos e os intriguistas. [...] A vossa famosa Declaração dos Direitos do Homem não passou de um logro ridículo [...] pois se a analisarmos mais atentamente ela visa dar aos ricos todas as vantagens e todas as honras do novo regime.» (Marat, Discursos da Revolução, t. 2, pp. 62-67.)
Mas os insucessos e as traições na guerra que as monarquias feudais da Europa moveram à França a partir da Primavera de 1792 vieram mostrar, mais claramente do que qualquer outro acontecimento, que a defesa da Revolução pressupunha que esta fosse consequentemente levada a cabo. O rei francês apoiou esta guerra mais ou menos secretamente. O povo de Paris dirigiu-se então, no dia 10 de Agosto, às Tulherias, residência do rei, para o prenderem.
Com o 10 de Agosto de 1792 terminou o domínio político da grande burguesia monárquica e abriu-se uma nova etapa.
Esta levou ao poder os Girondinos (assim chamados porque alguns dos seus dirigentes eram oriundos do departamento da Gironde), que representavam a grande e a média burguesia mercantil e industrial. A França tornou-se uma república que instituiu mais algumas liberdades burguesas, mas que de modo nenhum satisfez todas as reivindicações das massas populares. Mas, a par disto, também a comuna revolucionária de Paris — isto é, o conselho da cidade constituído pelos representantes revolucionários de todos os bairros parisienses, que surgira nos dias do derrube da monarquia — alcançou uma grande influência, e esta influência crescia continuamente.
A Gironde, uma vez no poder, concentrou a sua atenção no «perigo» da esquerda, que ameaçava levar a Revolução mais longe do que convinha aos seus interesses burgueses. Assim fazendo, porém, os Girondinos perderam a capacidade de organizar consequentemente a defesa nacional, que não podia prescindir do apoio entusiástico das massas populares.
Mas a verdade é que o derrube da monarquia deu um novo impulso ao exército popular revolucionário. Este conseguiu, em Setembro de 1792, na batalha de Valmy, mudar a feição da guerra contra os exércitos feudais de intervenção. Os Girondinos, porém, faziam esta guerra sobretudo para se enriquecerem, para desviarem as massas da luta política interna e para as enfraquecerem na frente de batalha. Os Girondinos não foram, portanto, capazes de resolver os problemas da Revolução. Pelo contrário, o seu domínio punha até em perigo a continuação da Revolução. O facto de a revolta contra-revolucionária na Vendeia (na Bretanha) não ter sido imediatamente liquidada, o facto, mais importante ainda, de o celebrado general girondino Dumouriez (1739-1823) se ter passado para o inimigo, a breve trecho evidenciaram a necessidade de por fim também ao domínio dos Girondinos para que a Revolução triunfasse.
Os Jacobinos (assim chamados porque o seu clube político se reunia no Convento de S. Jacob) defendiam uma política de guerra revolucionária e lutavam sob o lema «Paz para as cabanas, guerra aos palácios». Foi sob a sua direcção que 30 000 operários dos subúrbios de Paris, de 31 de Maio a 2 de Junho de 1793, avançaram armados contra a Convenção (Assembleia Nacional reformada), obrigando-a a ordenar a prisão de 29 destacados deputados girondinos. O poder passou para os Jacobinos. Entrou-se, assim, na terceira etapa da Revolução.
Esta caracterizou-se pela ditadura dos Jacobinos. O carácter democrático da revolução em ascenso está comprovado pelo facto de todas as etapas terem tido o seu início numa insurreição popular. Por detrás dos Jacobinos estavam sobretudo a pequena burguesia e os camponeses, uma e outros interessados em liquidar completamente o feudalismo.
Também nesta etapa do desenvolvimento da Revolução se verificou, à medida que o tempo corria, o aparecimento de uma oposição de esquerda, cujo principal suporte estava nos plebeus que nada possuíam, no que viria a ser o proletariado. Foi seu cérebro dirigente Gracchus Babeuf (1760-1797). Sobre estas camadas do povo já não se exercia só a velha forma feudal da exploração, sobre elas pesava já a sua moderna forma capitalista. Por isso, as suas reivindicações iam muito além do que a revolução burguesa mais consequente podia realizar. Por isso, os seus representantes acabaram na guilhotina. Os Jacobinos lutavam precisamente, como Karl Marx observou,
«apenas pela concretização dos interesses da burguesia, embora por meios diferentes dos da burguesia. O Terror francês foi, todo ele, apenas a maneira como os plebeus eliminaram os inimigos da burguesia, o absolutismo, o feudalismo e o filistinismo». (Marx/Engels, Werke, t. 6, p. 107.)
Foi esta a tarefa histórica que a ditadura jacobina levou a cabo. Todos os direitos feudais foram suprimidos sem indemnização. A Constituição aprovada em 1973 foi a mais democrática de toda a Revolução. Ao fazerem dos camponeses proprietários rurais livres, os Jacobinos despertaram na retaguarda e na frente de batalha um entusiasmo que assentava no interesse real do povo. E deste modo conseguiram, apoiados num grande esforço das massas populares, derrotar o inimigo estrangeiro. Com a vitória de Fleurus, em 26 de Junho de 1794, ficaram definitivamente asseguradas em França as conquistas da revolução burguesa. Os Jacobinos tinham cumprido a sua missão histórica. O terror jacobino tinha agora de dar lugar a uma política de solução construtiva dos problemas internos do pais. E foi aqui que se revelou que, em última análise, era burguês o carácter da ditadura dos Jacobinos.
Para superar as dificuldades internas e externas da República, os Jacobinos enveredaram por uma política que cada vez mais provocava desilusão e descontentamento entre as massas trabalhadoras.
No campo, os pobres foram obrigados a trabalhar para os camponeses abastados. Aqueles que se recusavam a trabalhar por ganharem uma miséria iam parar ao Tribunal Revolucionário como «suspeitos».
Os Jacobinos trataram com a mesma dureza os operários em greve, mantendo em vigor a Lei de le Chapelier, lei anti-operária de 14 de Junho de 1791, que proibia as associações de operários e as greves. Deste modo, a sua aliança com as camadas laboriosas da cidade e do campo, que era a base da sua força, foi-se desfazendo aos poucos.
Fizeram-se porta-vozes das camadas descontentes os Enragés [enraivecidos] e, mais tarde, os Hebertistas [deputados que apoiavam Hebert (1759-1794)], grupo radical formado nas próprias hostes jacobinas. A liquidação impiedosa destes dois grupos pela Convenção fez aumentar o descontentamento entre as massas populares pobres.
A luta das facções nas hostes dos Jacobinos manifestou-se também no facto de o jacobino Danton (1759-1794) e os seus seguidores, que se tinham tornado porta-vozes dos «novos ricos» e dos especuladores, exigirem o aumento dos preços. Para eliminar esta oposição, Robespierre (1758-1794), o dirigente dos Jacobinos, mandou executar Danton e os que o seguiam. Em resposta, as forças descontentes com o grupo jacobino dirigente que gravitava em volta de Robespierre uniram-se para derrubar este último.
Com o derrube da ditadura jacobina, em 27 de Julho de 1794, terminou o período ascendente da Revolução. Começou o período da restauração e consolidação do domínio da grande burguesia, que não tinha qualquer interesse no prosseguimento da Revolução.
O que se seguiu na França ao 27 de Julho de 1794 — data da queda dos Jacobinos — foram apenas formas diferentes do domínio sem restrições da grande burguesia, disposta a colher os frutos da Revolução que as massas populares haviam feito e a privar deles, sem contemplações, essas mesmas massas populares. A Revolução tinha acabado, sem dúvida, com a exploração feudal, mas não com toda a exploração. Os grandes objectivos da Revolução, Liberdade, Igualdade e Fraternidade, iam-se esfumando, transformando-se cada vez mais em ideais «inatingíveis».
Embora no plano interno a grande burguesia não tivesse, como é evidente, prosseguido uma política revolucionária, a verdade é que, perante as forças feudais europeias, ela continuava a encarnar o progresso social. O facto de a Revolução ter perdido o seu movimento ascendente e ter entrado na sua fase descendente não afectou a relação da França com o resto da Europa. Enquanto a França travava uma guerra defensiva revolucionária contra a coligação militar dos países vizinhos dirigidos por forças feudais, o lema «Paz para as cabanas, guerra aos palácios» continuava a ter um significado profundo. Este lema apelava para os povos oprimidos dos Estados que faziam guerra à França como possíveis aliados desta, permitia-lhes a libertação.
Contudo, uma vez asseguradas as conquistas burguesas da Revolução, tanto contra o inimigo interno como contra o externo, a guerra da classe exploradora burguesa tornou-se cada vez mais uma guerra de conquista. Por fim, sob o comando do Imperador Napoleão (1769-1821), a conquista passou a constituir a essência das guerras francesas, pelo que os povos subjugados acabaram por se sublevar para defenderem, ou para restabelecerem, a sua independência nacional em guerras justas de libertação. Mas apesar de ser um conquistador — e é isto que tornava a situação tão extraordinariamente complicada —, Napoleão continuava a ser, em certa medida, um instrumento do progresso histórico, limitado pelo interesse contraditório da burguesia, que aspirava, por um lado, a uma Europa moderna — isto é, antifeudal, capitalista — e, por outro lado, a criar no continente europeu condições de exploração colonial.
A Revolução Francesa teve um efeito transformador sobre a situação na Europa que durou muito mais tempo do que ela própria. A sua influência variou consoante as diversas etapas e as diversas guerras, e dependeu também, naturalmente, da capacidade dos diferentes povos para assimilarem as doutrinas revolucionárias.
A notícia do início da Revolução foi um rastilho que percorreu todos os países da Europa. A burguesia, tendo à frente os intelectuais das «Luzes» — que eram a sua camada intelectual dirigente —, saudou a Revolução com um entusiasmo trasbordante. Na vizinha Alemanha, Hegel (1770-1831), Holderlin (1770-1843) e Schelling (1775-1854) louvaram o «magnífico nascer do Sol»; o poeta Klopstock (1724-1802) escreveu «tivesse eu cem vozes, eu celebraria a liberdade da Gália»; Goethe (1749-1832) pôs na boca do Juiz, em Hermann e Dorothea, estas palavras sobre a Revolução Francesa:
«Pois quem há-de negar que o coração bem alto lhe pulou no peito, [...]
Ao ouvir falar no Direito dos Homens, que a todos é comum,
Na liberdade exaltante e na Igualdade tão digna de louvor.»
Em Inglaterra, o líder da oposição, Fox (1749-1806), caracterizou a Revolução como «de longe o maior, de longe o melhor acontecimento que o mundo jamais conheceu».
O poeta italiano Vittorio Alfieri (1749-1803) saudou a tomada da Bastilha num poema entusiástico. Na Rússia, Radichtchev (1749-1802) publicou em 1790 o seu livro A Viagem de Petersburgo para Moscovo, o que lhe custou o desterro para a Sibéria, por causa do «contágio da epidemia francesa». Todos estes homens viram na Revolução Francesa um acontecimento histórico de importância mundial que não podia deixar de ter uma poderosa influência no desenvolvimento dos seus países, ainda que diferente de uns para os outros.
Só uma parte da burguesia entusiasmada, porém, soube passar da adesão intelectual à acção política. Na Alemanha, o entusiasmo inicial da intelectualidade burguesa foi-se gradualmente transformando, em especial durante o domínio jacobino, num repúdio que chegou mesmo a uma hostilidade frontal. O atraso económico e a fragmentação política não tinham ainda permitido na Alemanha o aparecimento de uma burguesia que pudesse colocar-se na vanguarda das massas populares descontentes e levar a uma mudança nas relações sociais vigentes. A burguesia alemã estava interessada em reformas, mas esperava que elas viessem dos poderes constituídos, dos apelos que fazia à inteligência desses poderes. Esta burguesia era ainda fraca de mais para uma revolução. Aos vários levantamentos populares que se verificaram na região do Reno, perto da fronteira francesa, em 1789, na Saxónia, em 1790, e na Silésia, em 1793-1794, faltou, por conseguinte, a imprescindível direcção burguesa. Estes levantamentos não ultrapassaram as fronteiras regionais de origem, e foram facilmente reprimidos. Mas as coisas já se passaram de modo diferente na região entre Landau e Bingen, em 1792-1793: aqui os revolucionários burgueses, entre os quais se distinguiu Georg Forster (1754-1794), ousaram passar da teoria a prática revolucionária, e instituíram a república de Mainz. Mas a verdade é que as condições desta acção eram radicalmente diferentes: ela processou-se sob a protecção das tropas revolucionárias da França vitoriosa.
Em Inglaterra verificou-se uma mudança semelhante à da Alemanha, mas em condições completamente diferentes. A burguesia inglesa, que já há muito tempo fizera a sua revolução, limitou-se, influenciada por este acontecimento tão importante na história mundial, a desenvolver um movimento político que visava uma reforma parlamentar na base das relações burguesas já conquistadas e rejeitava o radicalismo francês. Além disso, para a burguesia inglesa a República francesa, com os seus êxitos militares, constituía um concorrente capitalista perigoso que era necessário combater implacavelmente. O jacobinismo inglês, que o havia, apoiava-se, por isso, em larga medida em círculos da população que, não indo ainda além do âmbito de um programa democrático-burguês, sofriam já na carne a exploração capitalista.
O eco entusiástico que a Revolução Francesa encontrou na Irlanda, na Polónia, na Bélgica, na Hungria e na Itália estava intimamente ligado ao esforço que estes países desenvolviam para alcançar a independência nacional. Em alguns destes países, o caracter patriótico da luta trouxe a esta mesmo círculos da aristocracia que se serviam de consignas francesas e que nem sempre defendiam as ideias que estavam na base delas. Foi o caso, por exemplo, das ordens privilegiadas da Bélgica, da Hungria ou da Boémia, que protestavam contra a dominação austríaca. Mas mesmo sem atendermos ao facto de que existia, a par deste movimento austríaco, uma corrente burguesa, mais ou menos bem vincada, que lutava por objectivos claramente progressistas na perspectiva social, temos de reconhecer que a própria oposição aristocrática ao jugo austríaco foi um contributo positivo para o progresso histórico, na medida em que também reivindicava a soberania nacional necessária ao desenvolvimento da burguesia.
Nos países em que as ideias francesas foram seguidas de perto pelas baionetas francesas a influência daquelas assumiu um carácter contraditório. Por um lado, as forças progressistas tinham motivos para saudar este apoio poderoso na luta contra a reacção interna; por outro lado, as tropas invasoras encarnavam também, e cada vez mais, as tendências de conquista da burguesia que, a partir de 1794, dominava absolutamente a França. Este duplo carácter fez-se notar logo em 1794-1795, na conquista da Bélgica e da Holanda. Na Itália, Napoleão Bonaparte começou por apoiar as aspirações republicanas. Acabou com o domínio dos Habsburgos, no Norte, dos Bourbons espanhóis, no Sul, do Estado eclesiástico, em Roma, e de várias dinastias feudais. À destruição da fragmentação estatal ligaram-se transformações sociais que já não tinham, de facto, qualquer carácter democrático, mas que mesmo assim favoreciam inequivocamente o desenvolvimento da burguesia. O preço que a Itália pagou por este desenvolvimento foi ter de suportar o jugo estrangeiro de Napoleão, que degradou o pais, tornando-o um mercado para os produtos franceses, e dele retirou o dinheiro e os homens para as suas sucessivas guerras. A Suíça, que em 1798 tinha derrubado por si própria os seus senhores feudais, teve um destino semelhante.
O caso da Alemanha foi diferente, na medida em que não conheceu, enquanto esteve ocupada pela França, nenhuma fase republicana, excepção feita à região da margem esquerda do Reno que se uniu à França e usufruiu plenamente de todas as vantagens da revolução burguesa. As aspirações republicanas que se manifestaram, por exemplo, no final dos anos 90 no Sul da Alemanha, e que depositavam na França as suas esperanças, foram por esta atraiçoadas sem quaisquer escrúpulos, porque a política burguesa da França em relação a Alemanha visava conseguir uma aliança com "os médios principes alemães contra a Prússia e a Áustria, aliança que veio a concretizar-se, em 1806, na Liga Renana. O resultado desta política acabou por ser benéfico: o mapa político da Alemanha ficou limpo de um sem-número de minúsculos Estados feudais e começaram a ser legisladas algumas reformas modestas — conquistas que mais se desvaneciam à medida que se prolongavam os sacrifícios em vidas e bens para as guerras napoleónicas, pelo que a luta contra o domínio estrangeiro acabou por se tornar uma questão nacional de vida ou de morte.
O que é espantoso — e característico da poderosa influência exercida pela Revolução Francesa — é o facto de as guerras de libertação desencadeadas contra a dominação francesa, nas várias partes da Europa, na última fase da era napoleónica, terem tido de fazer apelo, necessariamente, aos frutos essenciais da Revolução para triunfarem. A Espanha, até então impermeável a todas as influências revolucionárias por força do grande poder do seu clero, realizou com a guerra de libertação iniciada em 1808 e durante ela a sua primeira revolução burguesa, coroada em 1812 com a promulgação de uma Constituição. Quando a Áustria se levantou contra Napoleão em 1809 e conseguiu vencê-lo pela primeira vez numa batalha, o seu triunfo ficou a dever-se às reformas militares, cujo modelo foram as guerras da Revolução Francesa. Os preparativos da insurreição prussiana, a que estão ligados homens como Stein (1757-1831) e Scharnhorst (1775-1831), fizeram-se paralelamente a uma legislação reformadora que Engels caracterizou como sendo o início da revolução burguesa na Prússia. Todavia, o ano de 1813, que trouxe a libertação final do domínio estrangeiro, não levou por diante este desenvolvimento, antes o interrompeu. Os governos aliados não combatiam em Napoleão apenas o conquistador, combatiam nele sobretudo o herdeiro da Revolução Francesa. E depois da queda final do Corso todos eles quebraram as promessas feitas aos seus povos, restaurando no Congresso de Viena a Europa pré-revolucionária.
Mas a sua tentativa estava votada ao fracasso, pois a Revolução Francesa tinha dado à roda da história uma direcção nova que era irreversível, tinha transformado a Europa tão radicalmente que esta não podia continuar a ser o que fora anteriormente. Logo no início dos anos 20 do século XIX a Itália, a Espanha e Portugal foram sacudidos por movimentos revolucionários. Entre os povos dominados pela Turquia na península balcânica ganharam novo ímpeto os esforços visando a independência nacional, em 1825 rebentou na Rússia a revolução dos Decabristas, em 1830 a França escorraçou os Bourbons que lhe tinham sido impostos, a Polónia ergueu-se contra os opressores estrangeiros em poderosas insurreições, a Bélgica libertou-se da união forçada com a Holanda ordenada por Viena, a América do Sul viveu uma era de guerras de libertação nacional. E logo em 1848 a onda revolucionária inundou de novo quase toda a Europa. Em todos estes levantamentos e revoluções foi poderosa a influência das ideias da Revolução Francesa, que apenas perderam a sua vitalidade na medida em que a burguesia, edificando o seu domínio nos diferentes países, começou a negar, pelo medo que tinha da classe operária em ascenso revolucionário, o seu próprio passado revolucionário. Por isso, só a classe operária, no nosso século, soube apreciar plenamente a grandeza histórica da Revolução Francesa, reconhecendo embora, ao mesmo tempo, os limites próprios desta Revolução. Os grandes lemas de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, que então só puderam ajudar a nascer a nova sociedade de classes, a sociedade burguesa, foram assimilados pelo movimento operário na sua visão do mundo.
Notas de rodapé:
(1) Veja-se A Origem do Capitalismo (A Revolução Industrial na Inglaterra), ABC do Marxismo-Leninismo, Serie A, n.° 3, Edições «Avante!», 1976 (Nota das Edições «Avante!».) (retornar ao texto)
Inclusão | 20/07/2018 |