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Mas, para o encetar, parece-me metodologicamente essencial, como se verá, aclarar primeiro o que realmente foi a forma-partido comunista no tempo de Lenine e depois aquilo em que se tomou na época de Estaline, e na nossa, a fim de bem identificar as rudes realidades com que se trata de acabar de uma vez por todas. Resumindo uma análise desenvolvida em Communisme, quel second souffle? (pp. 190-98), digamos que o ponto de partida de Lenine, logo no Que fazer? (1902), era, a seus olhos, a radical incompatibilidade entre a revolução proletária como meta estratégica e o espontaneísmo como atitude organizativa. Espontaneamente, o proletariado não pode elevar-se nem à consciência revolucionária, que supõe um estudo teórico de conjunto do movimento da sociedade, que exige um contributo intelectual exterior, nem à organização revolucionária, da qual o combate de tipo sindical é só ainda a escola primária. O que de modo espontâneo domina a classe operária, e por maioria de razão as massas camponesas, é a ilusão ideológica e a inorganização prática. O proletariado só pode portanto conquistar o poder e constituir-se em classe dominante, arrastando a totalidade das forças populares, se uma parte dos trabalhadores mais lúcidos e combativos assumir, com intelectuais inteiramente ganhos para a causa, a tarefa de edificar um partido revolucionário apto a desempenhar um papel de vanguarda, introduzindo no movimento as necessárias clareza de vistas e firmeza de organização. Um tal partido não pode construir-se de baixo para cima, por uma simples federação de círculos preexistentes, com as suas ilusões burguesas e o seu anarquismo de seita; só o pode ser de cima para baixo, a partir de um sólido núcleo organizador. Daí a batalha de Lenine sobre o artigo "um" dos estatutos, para fazer aceitar que ninguém se torna membro do partido por o dizer mas só aderindo a uma das suas organizações de base e, ao mesmo tempo, por se comprometer a respeitar os seus princípios e a sua disciplina como as suas decisões adoptadas por maioria, depois de livre discussão. Há assim estrita subordinação da base à cúpula, mas subordinação prática, já que para Lenine o topo mais não é do que o Congresso, cuja comum vontade deve ser escrupulosamente aplicada por cada um, sob o impulso dos organismos centrais que este institui ao decidir por maioria quer a composição do Comité Central quer a direcção do órgão central do partido. Papel de vanguarda e centralismo democrático são indissociáveis: o primado da parte sobre o todo à escala das massas - papel de vanguarda - e o primado do todo sobre a parte no seio da vanguarda - centralismo democrático - formam em boa verdade um único e mesmo princípio, aquele que tende, em todas as circunstâncias e a qualquer nível, a fazer prevalecer as exigências bem fundamentadas do combate sobre a inconsciência e a incoerência espontâneas.
Entrevê-se desde logo aquilo que toma basicamente hoje inadaptada esta concepção de conjunto, e teremos que voltar a isto com precisão. Mas não é por isso que poderemos julgar-nos dispensados de fazer previamente uma avaliação da sua pertinência nas condições específicas a que respondia no tempo de Lenine, e de nos pronunciarmos por essa via sobre um ponto de ainda grande importância para nós: será que os considerandos gerais deste pensamento organizativo, que são crítica do espontaneísmo e a valorização da centralidade, definem uma atitude de princípio que conserva alguma validade? Ou será necessário considerá-los, de base e em si mesmos, contestáveis ou mesmo detestáveis? Questão fundamental a que os documentos do XXVIII Congresso não dedicam o mínimo espaço. Ora, existe para esta questão uma resposta largamente dominante, e agora sem dúvida também na própria opinião dos comunistas: instaurador na organização toda ela vertical e monolítica, por outras palavras; sem verdadeira democracia, o leninismo seria, em matéria de organização, a irrefutável matriz do estalinismo. Em apoio deste veredicto são citadas célebres tomadas de posição, a começar por aquela, frequentemente considerada profética, de Léon Blum, no Congresso de Tours, em 1920. «Vocês querem, dizia Blum aos maioritários que iam fundar o Partido Comunista Francês, um partido em que deixe de haver liberdade de pensamento, em que deixe de haver divisão de tendência», um partido que fará reinar «a subordinação a todos os níveis» e em «que o poder central pertencerá ao fim e ao cabo a um Comité oculto» designado longe da vossa vista pelo executivo da Internacional. E porquê esta denegação de democracia? Para dispor de «pequenas vanguardas disciplinadas, homogéneas, submetidas a um comando rigoroso», «bem controladas» para «acções decisivas» de destruição do capitalismo. Aqui está o que com efeito corresponde exactamente «à concepção revolucionária que se encontra no próprio cerne do comunismo», a seus olhos parente chegado do "blanquismo" ou até do anarquismo: quem recusa uma tal maneira de representar o objectivo político não pode deixar de rejeitar o seu meio organizacional, e vice-versa. Não será de reconhecer alguma perspicácia a esta crítica? Aliás, se se pensasse poder desvalorizá-la simplesmente porque vem de Léon Blum, que se poderia opor à análise bastante semelhante que já em 1904 fazia, numa resenha de Um passo em frente, dois passos atrás, de Lenine, uma insuspeita revolucionária como Rosa Luxemburgo? Também ela se elevava já contra a «tendência ultracentralista» e denunciava o perigo de dar ao Comité Central um «poder por demais absoluto», com o perigo, segundo ela, flagrante, de abafar o dinamismo militante com a disciplina do aparelho. Antes mesmo de a reconhecer obsoleta, não seria então necessário dizer muito claramente que a concepção leniniana da organização tem algo de inadmissível no seu princípio?
Podemos, no entanto, opor as maiores objecções ao veredicto estabelecido. Análise premonitória de Léon Blum? Sem contestar que era em parte certeira, particularmente quanto ao poder sem controlo que o executivo da Internacional ia arrogar-se em todo o mundo sobre as suas secções, não seria ela mais convincente se o seu autor se não tivesse prudentemente abstido de se explicar sobre o que, logo após a Primeira Guerra, era justo considerar como a falência da social-democracia internacional? E não poria esta falência directamente em causa, ao mesmo tempo que a sua orientação política, a sua prática organizativa? Será a estrita submissão leniniana do partido aos seus congressos perigosa para a democracia? Pelo contrário, não seria a violação dos compromissos solenes de lutar contra qualquer guerra imperialista, abandonados em favor da participação, nos dois campos, na «União Sagrada», que constituía a mais monstruosa infracção à democracia - democracia que, precisamente naquelas circunstâncias, só o partido de Lenine tinha respeitado? Nem uma palavra, na intervenção de Blum, sobre aquela que era então a questão nevrálgica em matéria de organização dos partidos operários. A história que se seguiu, nem que seja só a da SFIO e das suas atitudes tão antidemocraticamente adoptadas - da não-intervenção em Espanha ao envolvimento nas guerras coloniais e depois à capitulação perante o golpe de força gaullista de 1958 - não nos autorizará hoje a reler as palavras de Léon Blum em 1920 com uma enorme reserva crítica? E esta mesma história não nos ensinou o que realmente vale a especiosa retórica que opõe a democracia ao centralismo, sem nada compreender à pergunta simples de Lenine: há alguém que ache mais democrático que prevaleçam nos actos e nas direcções do Partido posições minoritárias no Congresso? Vamos considerar a crítica de Rosa Luxemburgo mais bem fundada? De qualquer modo não poderíamos fazê-lo sem conhecer primeiro a resposta de Lenine, muito polémica mas com argumentos bem concretos (Oeuvres, tomo 7, pp. 494-506), que a Neue Zeit, órgão da social-democracia alemã em que tinha sido publicado o artigo de Rosa Luxemburgo, recusou publicar. Aliás, será que se sabe que, pouco depois, Rosa Luxemburgo, cuja resenha na realidade retomava as acusações dos Mencheviques contra Lenine, descobriu por ocasião da Revolução Russa de 1905 aquilo que acabou por chamar «a pesporrência desses cretinos», ao mesmo tempo que a sua renúncia ao combate revolucionário? Após o que ela deixa de lhe fazer as críticas de 1904, que bem pelo contrário vira contra o burocratismo caracterizado da social-democracia alemã. Não é no entanto menos verdade que ela não deixa de pôr em relevo - nomeadamente nas suas notas de prisão sobre a Revolução Russa - a cardeal importância da democracia na relação do partido com as massas, de um modo que se pretende uma advertência dirigida aos bolcheviques. Mas, como o mostrou Gilbert Badia, tendo-se ela, depois de sair da prisão, informado melhor sobre a situação real na Rússia, fica quase totalmente de acordo com a atitude concreta de Lenine. Que sobeja finalmente de todo este processo de acusação? Para um julgamento válido exige-se que, pelo menos, nos abstenhamos previamente do antileninismo militante, quando não atrevido, que hoje tão frequentemente se impõe.
Neste espírito sem preconceitos, coloquemos de novo a questão no duplo terreno dos princípios e dos factos: não sofreria o centralismo leniniano de um défice constitutivo de democracia? Não seria este o inevitável preço dessa original desconfiança da espontaneidade de que decorre? Esse risco existe, como o mostram várias derrapagens na própria época de Lenine: indicação que tem para nós a maior das importâncias. Mas não se acredite que o desprezo do espontâneo está necessariamente contido na recusa do espontaneísmo: o espontâneo é antes do mais o dinamismo do povo, o motor de qualquer combate revolucionário. Lenine sabe-o tão bem que, para ele, a vanguarda deve permanentemente instruir-se no interior do movimento espontâneo, tanto quanto deve esforçar-se por nele introduzir de fora a consciência e a organização, de que aliás nele se encontram formas embrionárias: o partido mais não é do que «o intérprete consciente de um processo inconsciente». Pelo que o centralismo democrático não implicava nos seus princípios nenhuma relação de sentido único entre organização e espontaneidade: ponto não menos importante. Em segundo lugar, quando Lenine advoga uma rigorosa subordinação da base à cúpula, não se poderia fazer pior contracenso do que identificar o segundo termo com um qualquer aparelho autocrático: para ele, a cúpula é antes de mais o Congresso, emanação fiel da base - e haverá algo de mais democrático que os debates e as decisões de uma tal instância? Esta é a teoria, mas o que se passa com a prática? Os factos falam por si: uma vez libertado do czarismo e dos seus entraves, o POSDR, depois PC(b), realizou, de 1917 até à morte de Lenine, em Janeiro de 1924, um congresso por ano - sete congressos em sete anos, mesmo nas piores conjunturas. E não essas grandes missas cantadas, escritas antecipadamente, em que se tornarão as assembleias rituais de um PCUS estalinizado, antes congressos vivos em que delegados em número razoável - frequentemente uma centena - fazem as mais francas discussões sobre projectos de teses precisos e com implicações claras. Eis o que era para Lenine a cúpula, num partido que fez a revolução, será necessário lembrá-lo(?), sem Comissão Política nem Secretário-Geral, unicamente com um Comité Central onde - meça-se bem isto - Lenine se viu mais do que uma vez em ... minoria, e isto precisamente quando se tinha tornado Presidente do Conselho dos Comissários do Povo... Será esta a imagem de um partido vertical e monolítico? O confronto público entre orientações estruturadas ia mesmo tão longe, pondo em perigo a coerência de direcção num momento muito difícil, que, em 1921 - só em 1921! - o X Congresso decidiu proibir a organização em tendências. Uma medida muitas vezes apresentada como pré-estalinista. Mas será que se tem em conta que, mesmo nessa altura e nomeadamente por impulso de Lenine, foi conservado o direito de, em caso de discordância grave numa questão importante, submeter ao Congresso vários textos concorrentes, ao mesmo tempo que era tomada a decisão de publicar com regularidade uma folha de discussão que permitisse prolongar o debate sobre princípios mesmo para além do Congresso? Será que aqueles que querem ver no centralismo leniniano o esquisso já identificável dos métodos estalinistas têm em consideração o que dele dizia uma testemunha tão capital como Boukharine quando, na sua mensagem póstuma «A futura geração dos dirigentes do partido» (cf. Oeuvres choisies, Librairie du Globe, Paris-Moscou 1990, p. 518), nas vésperas da sua execução, fala da época leniniana nos seguintes termos: «Eram outros tempos, em que reinavam outros costumes. O Pravda publicava uma tribuna de discussão, todos debatiam, todos procuravam caminhos, desentendiam-se e reconciliavam-se, e juntos avançavam.»
[pgs 158_164. Começar pelos Fins - a nova questão Comunista; Lucien Séve; Campo das Letras Editores, S.A, 2001. www.campo-letras.pt. campo.letras@mail.telepac.pt]