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Explicarmo-nos agora sobre o definhamento do Estado leva-nos ao próprio cerne da questão comunista. Não há outro domínio em que o pensamento de Marx tenha sido tão denegrido. Ele teria compreendido mal o Estado, teria subestimado tanto o político como o jurídico, quando não passado ao lado do essencial: o poder. Não seria Lenine a dar, sem o querer, a estocada final à quimera de uma sociedade sem Estado, pretensamente legitimada pela efémera Comuna de Paris? Apesar de que acabava de a colocar em posição central no seu O Estado e a Revolução, não lhe bastaram alguns meses de governo para constatar o seu total irrealismo, na sequência do que a União Soviética passou a ser um dos mais despóticos Estados modernos? Impraticável, esse definhamento seria ademais desastroso, já que com ele desapareceriam os príncipes da República, as conquistas da democracia parlamentar, as benfeitorias do Estado-Providência, as garantias do Estado de direito. O seu mais entusiástico apoiante, o que diz tudo, não é hoje o neoliberalismo? Haveria pois que render-se à evidência: subjacente ao Estado, a vontade de poder é a do próprio homem, e contra ela não teríamos outro recurso senão o de uma luta sem fim. Pode-se discutir muito sobre o valor destas teses - inclusive sobre a crença obstinada numa "natureza humana" ávida de dominação, como se os modos de ser históricos da humanidade desenvolvida estivessem inscritos nos genes... - enquanto supostas invalidações das ideias de Marx, dão em todo o caso testemunho de um grande desconhecimento do seu pensamento político. Pensamento político que é uma elaboração complexa com um vocabulário geralmente mal transposto pelas traduções francesas (cf. a este propósito o artigo "Pouvoir" de Étienne Balibar, em Dictionnaire critique du marxisme, dir. G. Labica e G. Bensussan, PUF, 1982 e 1985). Para Marx, e é certamente isto que a alguns custa a admitir, o "Estado político", quer dizer, segundo uma distinção saint-simoniana, o Estado, considerado não como "administração das coisas" mas como "governo dos homens", é um poderio de dominação multiforme historicamente engendrado pelo antagonismo das classes, separado da sociedade e concentrado em aparelho de constrangimento violento ou persuasivo acima dela, continuamente desenvolvido pelas sucessivas classes possidentes enquanto instrumento de conjunto da sua dominação disfarçada de "interesse gera!". Ao que responde nele, Marx, a visão de um processo revolucionário articulado num tríptico: conquista do poder político pela classe operária, condição decisiva para operar a transformação da base económica da sociedade; destruição do aparelho estatal burguês de constrangimento graças à ditadura transitória do proletariado, que instaura a primeira verdadeira democracia para o povo; início, ao mesmo tempo, do definhamento do Estado, em todas as suas dimensões de poderio alienado e alienante: os homens começam, juntos, a tomar-se senhores das suas próprias escolhas. Reter apenas o primeiro momento deste triplo programa, como o fizeram, cada qual à sua respectiva maneira, o socialismo estalinista e a social-democracia, vota a mutação revolucionária a reduzir-se a um revezar político no quadro perpetuado de um estatismo de classe. Mas, se restabelecermos este programa na sua integralidade, que pode, por seu lado, encontrar nele de ainda válido uma cultura comunista de hoje?
Antes do mais, será de considerar operar as transformações radicais a que visa o comunismo, sem conquistar para começar o poder de Estado à burguesia capitalista? É algo que pode parecer absurdo. Mas o que é o Estado, senão um conjunto de formas instituídas em que se concentra uma dominação de classe muito mais ampla, que tem a suas raízes muito para trás dele e estende os seus efeitos muito para além dele? Qualquer mudança social profunda exige pois dos que se batem por ela a capacidade de contestar, reduzir e ao fim e ao cabo inverter esta dominação em toda a sua amplitude. De qualquer maneira, uma suposta "conquista revolucionária" do poder de Estado, sem sequer falar da sua completa inverosimilhança nos países mais avançados da actualidade, não poderia bastar para tanto: apoderar-se do aparelho de Estado não é ainda, e de longe, deter o poder. As forças revolucionárias não podem por isso dispensar-se de conquistar, antes, aquilo a que Gramsci chamava a hegemonia: através de uma "guerra de posições", têm de ganhar democraticamente, pela pertinência das suas ideias, pela eficácia das suas iniciativas e pelo sucesso das lutas assim desenvolvidas, uma influência dirigente, na medida do possível, tanto em todos os campos da sociedade civil como no interior do próprio dispositivo estatal, criando de facto com isso uma dualidade de poderes. Nunca a tomada insurreccional do poder de Estado confere por si mesma a hegemonia. E é precisamente por isso que não põe fim ao recurso à violência que ela pressupõe. Pelo contrário, a formação progressiva de uma hegemonia leva mais cedo ou mais tarde ao poder, nas condições de, uma anuência maioritária. Esta é a única alternativa plausível à ditadura do proletariado. Repousa numa decisiva renovação da política: não mais concorrência tacanha entre aparelhos partidários pelo controlo do Estado, transformada num fim em si, numa alienação em que acaba por não suscitar senão desprezo e desinteresse, mas a mais ampla participação dos cidadãos em tudo o que decide da sua existência social, seja em que domínio for. Por este meio, ao reganhar sentido, ela pode voltar a ser o centro de toda a vida pública (cf. Alain Bertho, Contre l'État, la politique, La Dispute, 1999) [Contra o Estado, a Política]. Da conquista do poder de Estado à construção de uma hegemonia política, condição primeira para dominar a classe dominante: aqui está a primeira remodelação essencial, de uma fecundidade ainda pouco explorada que, no que teve de mais criativo, o pensamento marxista do século XX trouxe já nesta matéria ao conceito de comunismo.
Em que é que isto torna credível que o Estado deva e possa definhar? Normalmente ele é-nos apresentado como tão pouco superável como o mercado - e mais vale então dizer que o comunismo seria por inteiro um mito. Mas, antes de se pronunciar sobre a verosimilhança ou não deste definhamento, não será necessário questionar-se sobre o que é que ele incide precisamente na perspectiva marxiana? Ora há duas coisas basicamente distintas sob a unidade da palavra Estado, embora de facto sempre entrelaçadas. Neste poder à parte e acima da sociedade civil, o poder dos homens sobre a sua vida social objectiva-se em administração pública, ao mesmo tempo que se aliena em dominação política. A ideologia vulgar escamoteia, por detrás do primeiro, este segundo lado das coisas, suscitando assim a ficção de um Estado neutro. Ao desmascarar este engano, a crítica marxiana não implica nenhuma redução simétrica. Pelo contrário, visa emancipar o primeiro do segundo: a partir do momento que o carácter de classe do Estado se apaga, pode ser ultrapassada a cisão entre a sociedade civil e o seu poder de organização, de que os cidadãos se reapropriam: é o fim da alienação política. A um correspondente que lhe perguntava como traduzir a fórmula "supressão do Estado", Marx responde sem ambiguidade (Carta a W. Bloss, de 10 de Novembro de 1877) que se trata do Estado de classe (Klassenstaat). E na sua Crítica do Programa de Gotha aparece explicitamente que, para ele, "na sociedade comunista", certas "funções sociais" do Estado continuarão "análogas às funções actuais". Assim, não faz sentido opor a Marx que nem tudo do que é hoje o Estado poderia desaparecer: esta é a sua própria tese. Mas esta falsa objecção esconde o verdadeiro problema: pode-se, sim ou não, superar o capitalismo e todas as grandes alienações históricas deixando subsistir este instrumento de dominação sobre os homens que é por excelência o Estado de classe? Esta é a questão crucial a que tendem a fugir as actuais apologias da República. Que este sistema político possa, sob muitos aspectos, ser o mais favorável aos esforços de emancipação, essa é também a posição de Marx e de Engels. Resta, como se vê bastante bem na França contemporânea, que um Estado de autêntica democracia, mesmo que dirigido por socialistas, não deixa por isso de ter uma vincada marca de classe em todos os domínios da sua acção: da economia ao ensino, da Segurança Social à televisão pública, da ordem interior à política estrangeira. Querendo-se trabalhar já numa real desalienação política, é pois necessário encetar o definhamento deste Estado também.
Mas como encetá-lo sem estar no poder? Se a tarefa é árdua, a resposta de princípio é fácil: o Estado de classe é, para o dizer numa palavra, a alienação do poder político; tudo o que desaliene a política faz regredir, ipso facto, esse poder. A chave do processo começa por não se encontrar algures no aparelho de Estado, mas sim em toda parte na sociedade civil, onde se trata de multiplicar essas reapropriações de poder efectivo, de que muitos movimentos sociais actuais dão, pelo menos, uma antevisão, até tornar inevitáveis mudanças no próprio aparelho estatal. A extinção do Estado é pois o exacto contrário do definhamento da política: o futuro não reside numa administração sem horizontes das coisas, reside antes num autogoverno orientado dos homens. Também aqui tudo começa hoje, com o que desenvolve a consciência crítica e a iniciativa contestatária em todos os domínios, com o que aumenta, para a tornar hegemónica, a exigência a todos os níveis de uma democracia não confiscada, com o que constrói, para os cidadãos, poderes directos descentralizados e verdadeiros meios de controlo central... Uma desestatização do Estado pode, hoje, tanto mais facilmente começar quanto a fuga para a frente do capital o põe gravemente em crise. Ao mesmo tempo que o pressiona para acentuar a sua orientação de classe, o liberalismo reinante contesta-lhe a realidade do poder em múltiplas direcções: nas dos mercados financeiros, com as sua universais pretensões reguladoras; na das supranacionalidades e das suas decisões sem recurso; na das redes ocultas, em que proliferam os piores cinismos. Mas a crise de eficácia e de credibilidade que daí advém para os poderes instituídos - com a frequente excepção do nível municipal - é tão grande que transformações estruturais profundas se tornam cada vez mais inadiáveis.
À escala internacional, por exemplo, a crescente aspiração a um reconceber da ONU ou a forçada demissão da Comissão de Bruxelas, em Março de 1999, dão uma ideia .das possibilidades. À escala nacional, enquanto soa para os partidos políticos a hora de uma autêntica refundação, admitam-no eles ou não, vai-se precisando a consciência da necessidade de uma nova Constituição que inaugure uma República com um outro e bem maior conteúdo democrático. O definhamento do Estado pode passar também, sem paradoxo, pela sua reforma, que o faça contribuir para o seu próprio definhar em benefício de uma nova idade da política, de uma muito diferente articulação dos poderes, de uma democratização fundamental da função pública, de um fervilhar inovador de toda a vida cívica. Em suma, na questão do Estado, como na do mercado, tudo muda conforme nos resignamos à partida à sua perenidade, o que limita estreitamente qualquer ambição transformadora, ou se aponta desde logo para a sua progressiva superação histórica.
[pgs 129_134. "Começar pelos Fins - a nova questão Comunista"; Lucien Séve; Campo das Letras Editores, S.A, 2001. www.campo-letras.pt. campo.letras@mail.telepac.pt]
Inclusão | 02/08/2002 |