Começar Pelos Fins - A Nova Questão Comunista

Lucien Sève


2.05 - A hominização ao serviço da finança


De entre estas mutações mais impressivas do real, poderíamos claro está considerar em primeiro lugar a extraordinária metamorfose em curso daquilo a que a tradição marxista chama forças produtivas ou, de um modo muito mais amplo, a do conjunto, com doravante tão vastos efeitos, que constituem todos os meios objectivos das actividades humanas. Teríamos então, parece-me, que opor ao comunismo da era industrial, marcado pela disciplina operária de fábrica e a massificação social, que parecia impor-se ao espírito no tempo de Marx, um comunismo da era da informação à medida do novo século, caracterizado pela iniciativa instruída em dinâmicas de rede e pela individuação solidária; o que é já uma mudança em relação aos estereótipos rançosos carreados pelo velho anticomunismo. Mas para nos levar ao coração do problema, ainda há melhor do que as mutações cronológicas que operam na ordem antropológica. Ora, em relação a isso, o novo acto fundamental é sem dúvida alguma a irrupção, ainda muito desigual mas cada vez mais maciça, do capital privado, especialmente na sua forma financeira, na imensa esfera dos serviços mercantis e não mercantis - esfera que, nos países muito desenvolvidos, se tornou largamente a parte principal da actividade económica - nomeadamente nos serviços em que estão em jogo as mais vitais e altas capacidades humanas: saúde, formação, investigação, informação, actividades físicas e desportivas, lazeres e férias, sem esquecer sectores dos quais a própria denominação, a mais de um título perversa sob o seu aspecto anódino, não é estranha a essa tomada de controlo: a cultura, a comunicação... Estes serviços podem, em vários sentidos, ser diferenciados das actividades tão ambiguamente ditas produtivas ou ainda materiais, como se os primeiros não produzissem nenhum efeito de ordem material - o que é já uma visão muito ideológica da questão, visão em que a materialidade se reduz sorrateiramente à coisalidade. A distinção que aqui nos importa é a seguinte: as actividades de serviços de que se tratará aqui são aquelas cujo efeito útil se não concretiza, pelo menos no essencial, em coisas, mas que afectam, directamente o ser humano. São pois e por excelência actividades com um alcance antropológico. E a sua passagem, mais ou menos avançada, para o domínio do capital produz mudanças de primeira grandeza que exigem uma primeira remodelação da maior importância do conceito de comunismo.

O mais imediato destes efeitos consiste muito simplesmente, sem dúvida, em criar novas categorias de assalariados explorados, do técnico de laboratório de análises ao trabalhador eventual da Comunicação. Nisto o processo não traz, em suma, qualquer novidade, excepto no facto de que alargar a estas categorias o conceito de exploração requer alguns esclarecimentos teóricos. Assim, é num terreno muito diferente que a passagem destes serviços para o domínio do capital tem consequências de verdadeiro terramoto: o terreno dos conteúdos de actividade e dos seus fins. Para os submeter à sua lei de rentabilidade, o capital deve recondicioná-los mais ou menos por inteiro, nem que seja alterando-lhes o próprio sentido. Primeiro imperativo: a mercantilização, já que, para produzir um lucro, nada é mais necessário do que a prévia objectivação do valor num produto. Ora, no geral, também nada é mais contrário do que isso à própria essência das actividades de serviço, cujo parceiro directo é o ser humano. O seu domínio capitalista passa por cima disto: tudo tem por vocação transformar-se em "produto", mesmo que com isso se mate a sua razão de ser. É a invasão da venalidade coisificante. Por exemplo, como se sabe, no desporto de alto nível financeirizado tudo se compra e se vende: desportista patrocinado, resultado dopado, vitória mediatizada - até ao momento em que, tendo o produto perdido parte do seu interesse e, logo, a sua capacidade de dar lucro, a finança vai matar para outro lado. Ainda informação cientifica, outro exemplo, não pode ser uma mercadoria já que, tendo-a cedido, continua-se a tê-la. Não seja por isso... organizando o segredo, impondo-o até por contrato ao investigador, e desnaturando assim a patente, em princípio instituída para conciliar protecção e transparência das novas ideias, transformam-nas em produtos vendáveis, sacrificando, é verdade, um pequeno detalhe: o saber, mesmo o saber fundamental deixa de ser um bem público... Segundo imperativo conexo: a confiscação. Uma vigorosa rentabilização dos serviços passa, como é óbvio, pela sua completa submissão aos critérios da eficiência capitalista; Mas, como vergá-los, e com eles os utentes, às desastrosas exigências do lucro máximo a curto prazo e ao dramático sacrifício da sua finalidade operando numa transparente abertura das deliberações? O domínio capitalista sobre os serviços significa pois o funeral de qualquer verdadeira democracia em matéria de escolhas, e sobretudo de escolhas de grande alcance - sanitárias, cognitivas, informativas, culturais... - aquelas em que se decide nada menos do que a nossa humanidade. Não estará aqui em germe algo como o totalitarismo do século XXI?

E isto não é tudo, há ainda o pior: sob esta mercantilização e esta confiscação está a implacável inversão das relações entre os fins e os meios. Não que alguma vez tenha sido diferente com o capital. Como Marx sem cessar o sublinha, é preciso ser muito ingénuo para acreditar que ele possa prosseguir outros fins para além da sua própria valorização: o seu objectivo não é satisfazer necessidades, é obter lucros. A necessidade só o interessa enquanto procura solvente. É por isso que tem uma constante tendência para sacrificar a qualidade efectiva do produto à taxa de lucro. Mas aqui a "qualidade do produto", tendencialmente sacrificada na sua transformação em simples meio, é tão só o próprio fim humano da actividade de serviços. Está assim em marcha uma lógica de desumanização cujos efeitos são já assustadores e que tenderá para a maior monstruosidade se não se conseguir

desfazer esta inversão. É o que se passa com a "revolução biomédica" em curso e sob tantos aspectos tão prometedora: na medida, por sorte ainda pouco efectiva, em que constitui um "ramo de negócios", a finança deixa de ser um meio para a investigação e é a investigação que se toma um meio para a finança. Os resultados estão à vista em todo o lado, e antes do mais nos Estados Unidos, onde está por exemplo muito desenvolvida a venda por catálogo de crianças a nascer a partir de embriões congelados e com características repertoriadas, ou os testes de doenças genéticas, hoje sem cura possível, mas que dão aos serviços de pessoal e às companhias de seguros a inquietante possibilidade de se ingerirem na vida pessoal, para não falar de eventualidades como a clonagem reprodutiva de multimilionários suficientemente estúpidos para acreditarem que podem reviver nos seus clones. Isto quando falta tragicamente o dinheiro para a luta - não rentável - contra dramas tão imensos como a sida em África... O capitalismo dos serviços iniciou assim, nas actividades mais altamente humanas, uma hemorragia de sentido que já tornou exangues numerosos aspectos da existência culta, no verdadeiro e amplo sentido da palavra cultura. Isto é por exemplo o que se passa com esse extraordinário novelo de possíveis que a televisão representa, e da qual tantos e tantos programas, bem contra a vontade de muitos realizadores, já não são mais do que meios de vender um público a anunciantes, enquanto que o ecrã publicitário mostra o eterno rosto exaltante da banca privada e do papel higiénico. Imagem perfeita de uma total perversão: o sentido morre à força de servir de meio ao não-senso. A esta cancerização liberal que hoje ameaça directamente todos os serviços, e a própria escola (cf. Samuel Joshua, L 'École entre crise et refondation, La Dispute, 1999) [A Escola Entre Crise e Refundação], só esforços desmesurados conseguiram até agora pôr algumas barreiras - campo reservado da bioética, excepção cultural, excepção desportiva... O que simultaneamente sublinha que é possível ganhar batalhas e a urgência de as travar a um nível superior.

O devir civilizado do mundo tendo como piloto automático a possibilidade de lucro da finança... que tenhamos aqui um novo e importante capítulo do livro do capital é coisa que não deixa dúvidas, mas em que é que ele exige um conceito reconfigurado do comunismo mais do que outros também importantes e que eu nem sequer evoco? Exige-o na medida em que, diferentemente de qualquer forma de exploração, e segundo a análise desta questão que em outro local propus, a alienação que opera aqui não faz das suas vítimas uma classe, transbordando assim espectacularmente do quadro marxista tradicional. Tratar-se-ia pois na minha opinião de um processo de alguma maneira "fora das classes"? De modo algum, num sentido: a irrupção do capital nesses serviços é a mais clara das apropriações de classe, e lutar contra ela entronca sem equívocos na luta anticapitalista. Mas, se há efectivamente uma classe num dos pólos da contradição, o facto desconcertante é que não há classe no outro pólo: o que a alienação fere aqui é muito mais do que os interesses de uma categoria social determinada, é a finalidade humana de actividades para todos. Dissimetria de um profundo alcance: trata-se de travar uma batalha de classe já não em nome de uma classe mas pela própria humanidade dos homens, e isto sem deslizar minimamente para um qualquer "humanismo mole", muito pelo contrário, no mais áspero pôr em causa da desumanização pelo capital. Não teremos aqui algo como uma nova etapa desse processo histórico de que Marx via já uma expressão no desenvolvimento da classe operária que tudo produz sem nada possuir: a "dissolução de todas as classes" (A Ideologia Alemã), prefiguração em negativo de uma futura relação desalienada dos homens com a sua riqueza social? Vemos aqui desenharem-se, tal como em certas lutas em que a parada é das maiores, por exemplo a luta pela paz, mas tendo aqui por objecto directo a superação do capitalismo, possibilidades muito originais de união entre parceiros que conservam, aliás, grandes diferenças. Não, certamente, uniões universais - a alienação afecta todos, mas cada um enquanto indivíduo, na sua singularidade pessoal e, por conseguinte, na sua imprevisível reacção: não somos, cada um de nós, forçosamente contrários à escolha do sexo do filho a nascer ou à publicidade televisiva - mas pelo menos uniões muito plurais. Com até, aqui e ali, superação emergente de clivagens ancestrais, como as de gente "de esquerda" e "de direita" que consegue entendimentos - por exemplo em matérias sanitárias ou escolares, ecológicas ou bioéticas - sobre valores fortes, como a alta exigência de respeito pela pessoa humana sob todos os seus aspectos, e que por isso mesmo oferecem oportunidades realmente sem precedentes de criar relações de força maioritárias, ou até irreversíveis, para impor mudanças que dêem início a desalienações essenciais. Humanidade civilizada contra economia de lucro desumanizante: nesta posição ético-política da questão, simultaneamente de classe e fora de classe, não se entreverá já no horizonte o fim das lutas para nos fazer sair da nossa pré-história, num começo de visibilidade de uma futura sociedade sem classes?

[pgs 105_110. Começar pelos Fins - a nova questão Comunista; Lucien Séve; Campo das Letras Editores, S.A, 2001. www.campo-letras.pt. campo.letras@mail.telepac.pt]


Inclusão 02/08/2002