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Firmemente mantida, a referência ao comunismo marxiano presta-nos logo um primeiro serviço: sugere-nos um modo profundamente reflexivo de enfrentar a tarefa, de outro modo incontrolável, que consiste em traçar nas suas linhas mais gerais a perspectiva de uma transformação social digna do nosso tempo. Desenvolver o seu conteúdo concreto é um trabalho bem diferente, que requer não só o íntimo conhecimento de uma fabulosa variedade de coisas, mas também a capacidade de reactualizar a sua abordagem em cada conjectura. Projecto que está tão fora do alcance de um, ou mesmo vários indivíduos, como está fora de questão para uma força política realmente curada da tentação de "dirigir as massas" à moda antiga. A atitude programática que pensava poder determinar, antecipadamente e de cima, a lista e a agenda das mudanças a operar está morta e enterrada... os conceptores da transformação social efectiva só podem ser os seus próprios actores. Mas o que aqui se ganha em possível pertinência do movimento (com consequências sociais), em relação à aposta social, corre o risco de se perder em coerência de conjunto, que o mesmo é dizer em eficácia política. Ora uma coerência de conjunto é algo bem diferente da soma empírica dos conteúdos particulares que articula. É a relação orgânica que os unifica, a lógica essencial que os atravessa - trata-se pois de algo mais do que uma série de experiências e saberes: trata-se de um pensamento. É um pensamento teórico. E é esta teorização que hoje falta tão aberta e cruelmente. Daqui decorre a incontornável importância de um retrabalhado conceito do comunismo, fio condutor sem igual para partir em busca da nova coerência susceptível de dar um sentido à empresa de um revolucionar radical. Voltar a partir da herança de Marx e, através do seu confronto, quer com as contradições orgânicas do nosso mundo quer com a janela histórica da nossa época, esboçar a transformada contemporânea do desígnio comunista na sua fisionomia geral: este é o propósito a um tempo extremamente limitado e extremamente ambicioso deste capítulo. Extremamente limitado: trata-se, nas páginas que seguem, de um simples esboço pessoal de que o mais certo é pois ser, em múltiplos aspectos, contestável. Extremamente ambicioso: o que está em jogo é ter sucesso naquilo em que o movimento revolucionário do século XX fracassou - nada menos.
Já atrás lembrámos como procedia Marx para traçar a perspectiva: análise aprofundada das contradições do real, detecção dos pressupostos objectivos da sua superação e, a partir daí, determinação de um objectivo revolucionário plausível. A questão comunista é pois e primeiramente, para ele, uma questão de facto - como é que o próprio movimento do capital prepara a sua negação? - contrariamente a qualquer utopia, quando o sentido da palavra remete não para essas grandes esperanças que Henri Maler quis reabilitar em : Desejar o Impossível, mas para essa grande ilusão na qual Aragon, na sua História da URSS, denunciava um terrível "fura-greves". No entanto, fazer ver o conjunto das contradições principais de que Marx fez, no seu tempo, o levantamento não é nada simples, por causa de uma característica essencial da sua obra: tendo partido de uma das mais englobantes concepções do comunismo, ainda muito presente no Manifesto e que nos fala não só do capital e do trabalho, mas também do indivíduo e da família, do Estado e da nação, do direito e da moral, ele empenhou-se depois numa tarefa colossal de crítica económica, com um campo muito mais restrito - e ainda, do plano de trabalho que a si mesmo se fixava em 1857/59, O Capital só trata uma parte, deixando de fora, com o Estado, o mercado mundial e as crises, com o que se devia concluir a longa marcha das mais simples abstracções da produção mercantil às realidades complexas da economia capitalista - daí advêm aliás terríveis mal-entendidos. Acresce a isto que a leitura dominante de O Capital, desde os militantes operários dos finais do século XIX a Althusser, se restringiu, no essencial, ao Livro I, com enormes consequências teóricas e políticas. Por fim, se se sublinhar que continua em aberto a questão de se saber em que medida o materialismo marxiano não teria padecido de uma subestimação intrínseca do superestrutural relativamente à base e, mais amplamente, do simbólico relativamente à coisa, aderir-se-á sem dúvida a esta importante conclusão de metodologia: ao projectar de modo crítico, o conceito de comunismo sobre as realidades do mundo contemporâneo devemos ter permanentemente em mente tudo aquilo que pode faltar a este conceito, especialmente tendo em conta uma janela histórica para a abertura da qual nenhuma contradição será demais.
[pgs 085_087. Começar pelos Fins - a nova questão Comunista; Lucien Séve; Campo das Letras Editores, S.A, 2001. www.campo-letras.pt. campo.letras@mail.telepac.pt]
Inclusão | 02/08/2002 |