Começar Pelos Fins - A Nova Questão Comunista

Lucien Sève


1.09 - O que permite ver os actos até ao seu fim


Há neste vasto conjunto de intimidações, digamo-lo francamente, tanto pó de perlimpimpim histórico lançado aos olhos e, em vários casos, tanta inconsciência filosófica que o difícil é não reagir de modo puramente polémico. O que seria um grave erro, já que, por muito arrogante que seja muitas vezes o tom, há aqui alguns problemas muito reais, a montante de conclusões muito discutíveis. Por exemplo, desde logo a propósito da ilusão histórica. Sim, o "curso da história" tal como o representamos é uma construção, e seria uma grande ingenuidade e alto risco tomá-lo como um dado, por pouco que fosse. Sim, a gloriosa gesta do movimento proletário que vai das primeiras greves do Antigo Regime a 1848, 1871, 1917, 1936, 1945... e mais longe, em direcção aos amanhãs que cantam, teve algo a ver com uma narrativa de autolegitimação ao serviço de partidos e de Estados. Sim, a militância comunista, como muitos comprometimentos históricos, funcionou à base de crença gratificante, e quem se recusar a ir buscar nela mais lucidez, demasiado ocupado a debitar velhas arengas revolucionárias está efectivamente perdido para um comunismo do século XXI. Só que há também outra coisa em relação à qual estes úteis desanimadores fazem um ruidoso silêncio: a calçada das realidades sob a areia das ilusões. Conhece-se a frase de François Miterrand em 1981, que o próprio depressa esqueceu com resultados probatórios: "Não sei se o muro de dinheiro existe, mas sei de quem partiu o nariz contra ele". Interessante variante do famoso pudim que é preciso comer para provar. Para Luís XVI, para os sans-culottes, e para os herdeiros da Declaração dos Direitos do Homem que nós somos, a Revolução Francesa não foi só ilusão, embora seja bem verdade que só podemos revivê-la reconstruindo-a através de batalhas ideológico-políticas sobre as quais o seu bicentenário foi bastante instrutivo. Hoje mesmo, a desumanização cada vez mais universal através da finança capitalista também se não deixa reduzir a um artefacto de metodologia histórica, a uma grande narrativa legitimadora, a uma crença compulsiva. Mais - e aqui as coisas invertem-se: é o escamotear desta casmurra realidade que por sua vez aparece como a mais flagrante das elaborações mistificadoras, das ideologias de justificação, e do wishfull thinking. Há uma ilusão perniciosa da história: grande verdade crítica a reter; há também, e muito mais para os tempos que correm e percolem uma denegação intimidatória da história à qual só se dobrarão os espíritos fracos.

Em segundo lugar, será justo afirmar: só existe o singular? Não há dúvida que aquela velha recusa dos "seres de razão" - "o cavalo, vejo-o bem, dizia um famoso nominalista, "a cavalidade" é que não" - conserva as suas virtudes profilácticas contra as entidades especulativas que também atravancaram a história, e é válida, por exemplo, contra aquele marxismo vulgar que substantifica "a burguesia" e mitifica a "classe operária", sem analisar com a atenção requerida as bem mais complexas realidades e atitudes concretas abrangidas por estas abstracções. Pensar em termos de generalidades fixas: pode-se imaginar algo de mais antitético a uma dialéctica materialista? A lição continua válida e vai muito longe, exigindo, por exemplo, que numa concepção da história que se queira marxiana, seja reavaliado, face às necessidades de ordem geral, o papel do acontecimento singular, com o que o seu carácter aleatório tem contudo de determinante quanto ao curso ulterior das coisas. Vasta questão com um aspecto crucial a que havemos de voltar. Mas como não dizer também quão débil é a redução do singular unicamente à sua singularidade? Cada homem é único, mas sendo homem é também universal: o universal como tal não existe, o que não o impede de existir no singular. Assim, "a cavalidade" está materialmente presente em cada cavalo: no seu genoma, original em cada um, e no entanto comum a todos. A lógica de classe do capital existe concretamente tanto em cada plano de despedimento como em cada especulação bolsista, onde se pode ver ao pormenor o primado universal do interesse privado. Do mesmo modo, a racionalidade histórica existe em cada acontecimento: na causalidade e na legalidade gerais que o subtendem de maneira particular. A ideia de um singular exclusivamente singular é tão credível quanto a de um acaso que escape às leis do acaso, ou de um indivíduo biológico estranho a toda e qualquer espécie: patetice elementar que nada melhorou ao passar pelo individualismo metodológico da cultura histórica e sociológica anglo-americana. Não é realmente a Marx que é preciso ensinar que qualquer entidade abstracta é em certo sentido uma visão do espírito, ele que passou o tempo todo a repetir, mais de um século antes de Veyne e Foucault, que o trabalho, por exemplo, é sempre "um trabalho determinado (Misére de la philosophie, Ed. Sociales, 1972, p. 68). Mas num certo estádio de desenvolvimento económico, como o demonstra soberbamente a Introdução aos Manuscritos de 1857-58 (Grundrisse), o próprio "trabalho em geral" "torna-se verdade prática". Só a dialéctica materialista capta este devir-singular do universal, processo capital de racionalidade histórica que, em contrapartida, escapou inteiramente a esse nominalismo já não metodológico mas doutrinal que Althusser tão imprudentemente apresentou como sendo o cume do materialismo, quando de facto encerra um caracterizado idealismo do universal, isto é, das relações e lógicas essenciais. Prova de que a dialéctica, esta lógica do pobre segundo Michel Serres, nos permite compreender uma topologia do tempo histórico que parece ter-lhe escapado.

Resta a objecção, para muitos certamente a mais impressionante de todas: já não se pode, sobretudo depois do grande naufrágio do "comunismo", acreditar por um segundo que seja na bela lenda de uma história que progride continuamente em direcção a um futuro melhor... objecção que seria tanto mais forte se admitisse tomar como ela é a tese que contesta, evitando assim dela só refutar uma medíocre falsificação. Qualquer entendido em Marx sabe como ele recusava a tolice, antidialéctica ao máximo, do desenvolvimento linear e do progresso regular. O que ele defende é uma coisa completamente diferente. Em primeiro lugar, que na história humana como na evolução natural há processos - demográficos, tecnológicos, económicos, cognitivos... - duravelmente cumulativos seguindo uma mesma direcção. É o caso típico do crescimento da força produtiva no capitalismo que leva a isso com uma permanente rudeza, a fim de diminuir o tempo directo de produção e maximizar a taxa de lucro do capital adiantado. No mesmo movimento ganham corpo imensas contradições motoras de todo o movimento histórico, de que um exemplo cardeal é o crónico antagonismo entre a acumulação de riquezas no lado do capital e a acumulação de miséria do lado dos assalariados. Esta pauperização tendencialmente crescente, de que era moda falar com derisão nos anos cinquenta, entra hoje pelos olhos dentro de quem quer que seja, tanto à escala nacional como planetária, sob uma multiplicidade de formas relativas e absolutas, desde o desemprego maciço aos salários de miséria, da precariedade à regressão dos direitos do trabalho e à recusa generalizada de dignidade, enquanto os índices bolsistas disparam. O terceiro ponto - o mais decisivo, o menos conhecido - é que o desenvolvimento não linear destas vastas contradições tende a produzir pressupostos negativos e positivos da sua própria superação, mesmo que seja apenas em virtude destas dialécticas simples e fortes que exigem, por exemplo, que quando se puxa uma corda se acaba por parti-la, ou que quando se escava uma mina se levanta ao lado um monte de escórias. Assim, prosseguindo na sua lógica cega, o capital privado engendra inexoravelmente, através das piores contradições, as devastações que suscitam o seu controlo público, os indivíduos que poderiam vir a impô-lo, a produtividade que permitirá no futuro dar "a cada um segundo as suas necessidades". E aqui está porque o comunismo é algo de diferente de uma cantiga de embalar para adormecer a miséria humana. Desta argumentação, aqui resumida em extremo, poderá vislumbrar-se um mínimo de refutação tópica em Lévi-Strauss, Veyne, Lyotard, Serres? Não me parece. Quando Marx escreve no Prefácio da Contribuição... (enunciado que nenhum dos nossos críticos tem coragem de enfrentar): "... a humanidade só impõe a si própria tarefas que pode resolver" (sigo à letra o texto original), Paul Veyne tem a audácia de lhe imputar uma estúpida versão "a humanidade resolve todos os problemas que a si coloca"!), para melhor gratificar Nietzsche com uma variante inteligente: eis o que ainda hoje alguns se permitem fazer a Marx. Todavia, estas desqualificadas maneiras de agir são preciosíssimas confissões: a racionalidade histórica tal como Marx tentou pensá-la é um osso muito duro de roer para os dentes dos nossos Michel, François, Paul e os outros. Desde que a partir dos anos setenta foi anunciado o fracasso definitivo do marxismo, tudo, mas absolutamente tudo o que Marx considerava como leis de desenvolvimento do capitalismo, se desenvolveu continuamente diante de nós com um potencial expansivo sem igual: revolucionar compulsivo dos modos de produzir e de viver, mundialização concorrencial do mercado, acumulação do dinheiro-capital num pólo da sociedade, proliferação da miséria social noutro pólo, esforços devastadores da finança para contrariar a baixa tendencial da taxa de lucro, incessante e cada vez mais profunda inversão das relações entre pessoas e coisas, fins e meios, ao ponto de, sob vários aspectos, pôr em perigo directo o nosso futuro como humanidade. E quando isto salta aos olhos da maioria, ainda nos vêm dizer: renunciem de vez aos vossos mitos, consciencializem-se de que a história é um jogo de aparências onde não é possível observar qualquer continuidade, identificar qualquer sentido, e onde por consequência não é possível uma qualquer iniciativa reflectida! Neste recalcamento caracterizado do que nos manda e comanda um tão sangrento presente, não vejo só, quanto a mim, aberração intelectual, mas também defecção cívica, demasiadas vezes acarinhada pela lisonja mediática. Portadora inconsciente de racionalidade através das suas deambulações singulares, a história nem é sequer aquele "puro processo sem sujeito nem fim", a que a reduzia Althusser: não sem grande limitações e regressões até ao presente, também nela se produz, como se pode, sujeito e finalidade. Propósitos axiológicos de longo alcance formulados mais ou menos judiciosamente, inseridos em tendências históricas mais ou menos bem identificadas, não deixaram de dar nascimento a grandes causas políticas e humanas cujas virtudes mobilizadoras, transcendendo as fronteiras de gerações e de nações, permitiram construir contra ventos e marés a parte civilizada do nosso mundo: por exemplo, a luta secular e as conquistas probatórias, embora frágeis, desta República laica que já inflamava Spinoza; a longa marcha inacabada rumo a esta descolonização exterior e interior de que Nelson Mandela será para sempre uma figura emblemática; a irreprimível, embora tão dificultosa emergência de uma individualidade humana autónoma, hoje dinamizada pelo combate por uma autêntica igualdade das mulheres. Tenham coragem de nos dizer na cara que os frutos destas batalhas e de tantas outras não passam de Grandes Narrativas efabuladoras, e só existem na imaginação porque, é evidente, "a República", "a soberania", "a igualdade" não existem...

[pgs 072_077. Começar pelos Fins - a nova questão Comunista; Lucien Séve; Campo das Letras Editores, S.A, 2001. www.campo-letras.pt. campo.letras@mail.telepac.pt]


Inclusão 02/08/2002