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Todavia, ao encarar concretamente a tarefa descobrem-se exigências muito para além do que podia parecer de início. É claro que há que inventariar o conteúdo teórico do desígnio comunista, que inventar a prática política correspondente, e isto nas condições do nosso mundo, de que à partida nada nos diz em que medida é ainda o de Marx, ou em que medida se tornou outro, talvez mesmo muito diferente. Por conseguinte, também não basta produzir de novo, e em relação a uma realidade inédita, um trabalho de pensamento análogo ao que o Manifesto Comunista condensava no seu tempo, o que será objecto do próximo capítulo; mais: é necessário que nos interroguemos provisoriamente até que ponto continua hoje válida para nós a própria concepção subentendida naquele trabalho de pensamento. Condição prévia tanto mais obrigatória, quanto o colossal abortar do suposto "comunismo" como regime social no campo socialista, e igualmente ao fim e ao cabo também como movimento político no resto do mundo, impede que nos esquivemos: à interrogação radical sobre a validade da própria teorização marxiana. Já que, com efeito, como sabemos nós que o futuro se chamará comunismo? Nós acreditámos sabê-lo em virtude do que o Manifesto nos fornece como "intelecção teórica do conjunto do movimento histórico"; mas de onde vem a conclusão de que "o conjunto do movimento histórico" seria inteligível e que a sua boa intelecção é aquela que nos é fornecida? Quando as filhas lhe perguntavam qual era a sua divisa preferida, Marx respondia pegando na velha fórmula céptica: "Duvida de tudo". Imperativo muito actual para quem persiste em reclamar-se do comunismo após o desastre. Mas "duvida de tudo" pode implicar para nós "duvida de Marx"? De todo o Marx, não só das teses económicas e visões políticas, mas também do materialismo dialéctico, do método dialéctico, portanto desse filosófico que, por muito que custe aos seus detractores, desempenha nele em todas as áreas um papel primordial. Isto não transforma contudo o radical requestionamento do pensamento marxiano numa pura preocupação de filósofo. Cada um de nós é suficientemente filósofo para ter já revolvido mais do que uma vez no fundo de si mesmo após a emblemática queda do Muro de Berlim esta áspera questão: será que no fundo ser comunista não significou muito simplesmente ter-se colocado numa categoria especial de crentes, os crentes no "sentido da história", nos "amanhãs que cantam", na Internacional em que o "género humano se tornará"? E se assim for, que resta hoje de tal crença?
Compreenda-se que de modo algum cabe neste simples ensaio político fazer um vasto reexame do pensamento teórico marxiano: pela minha parte, tentarei num outro livro, que se intitulará Marx et nous [Marx e Nós], mostrar onde me levaram cinquenta anos de trabalhos sobre o assunto. Mas impõe-se aqui pelo menos a discussão, mesmo com limitações, de uma questão fundamental de prévia e directa importância que é: a da racionalidade da história. Com efeito, a perspectiva do comunismo só faz sentido sob condições de uma certa lógica histórica, dado que implica em todo o caso, até certo ponto, inteligibilidade do presente, previsibilidade do futuro, e portanto plausibilidade dos objectivos a que a nossa acção se propõe. Conceder crédito ao desígnio comunista é considerar que a história ainda está na sociedade de classes - portanto, pode-se enunciar o presente - que as violentas contradições da sociedade de classes na hora da universal financiarização capitalista engendram, elas próprias, "de cabeça para baixo", como diz Marx, muitas pressuposições da passagem a uma humanidade sem classes - portanto não é absurdo enunciar o futuro - e que, consequentemente, há também, pelo menos quanto à escolha de princípio e da sua orientação de conjunto, uma racionalidade histórica do agir comunista. Tudo isto terá sido desqualificado em bloco e sem remissão pelo fim da União Soviética e do movimento comunista internacional. É a capital conclusão a que François Furet acreditou poder chegar; "A história volta a ser aquele túnel em cuja obscuridade o homem se embrenha, sem saber onde conduzem as suas acções, na incerteza do seu destino, desapossado da ilusória segurança de uma "ciência" da sua acção". Para o "indivíduo democrático" "privado de Deus", o comunismo, é claro, não só perdeu todas as probabilidades, como já não faz qualquer sentido. "Tornou-se quase impossível pensar a ideia de uma outra sociedade, e de resto já ninguém no mundo de hoje avança sequer sobre este assunto o esboço de um conceito novo". Expressa neste tom douto e sem réplica, a que se apõe a assinatura de grande costureiro do pronto-a-vestir da ideologia dominante, esta demonstração axiomática do definitivo silêncio comunista fez escola, ao ponto de autores por vezes bem inspirados como Régis Debray, Anicet Le Pors e outros acreditarem poder escrever num artigo comum, como se fosse a mais trivial evidência: "no momento em que o comunismo já não oferece alternativa" (Le Monde, 20 de Dezembro de 1998). Quem tenta pensar o contrário, à margem do Le Monde, sente-se pequenino... Mas, já que aí é colocada sem seriedade uma questão muito séria, examinemo-la seriamente, embora rapidamente. Terá Marx hiper-racionalizado a história não certamente à maneira idealista de Hegel - para quem no seu decurso universal ela "não é mais do que a manifestação da razão" segundo as suas próprias palavras - mas como pensador materialista da necessidade, e que portanto, para retomar uma fórmula requentada, a concepção que dela ele tem é do domínio do determinismo? Cem vezes agitada, cem vezes tratada, esta questão já não oferece dúvidas, para quem pelo menos se queira informar de boa fonte. Como escreveu, por exemplo, Michel Vadée (Marx penseur du possible, Klincksieck, 1992, p. 494), "falar de um determinismo estrito e rigoroso a propósito das concepções de Marx é um contra-senso". Claro que Marx sustenta com firmeza que existe uma causalidade e mesmo uma legalidade do movimento histórico. Em particular aí se manifesta, segundo ele, uma conexão imbuída de necessidade entre o carácter geral das forças produtivas em cada época, homens incluídos, e a estrutura global das relações de classe destes, como de modo mais alargado e menos estrito, com as outras estruturas e superstruturas. Cada formação social é assim uma totalidade orgânica, não evoluindo mais ao acaso do que um ser biológico. Estudando bem as suas lógicas de funcionamento, pode-se mesmo prever com segurança o aparecimento de uma mutação no seu desenvolvimento e nos grandes traços do seu conteúdo. Assim, o próprio modo de produção capitalista, onde se acham levadas ao extremo as contradições características das anteriores sociedades de classes, produz de modo não fortuito muitas das condições da passagem a uma formação sem classes, onde se apagarão os antagonismos milenares do que se pode considerar como sendo a pré-história da humanidade social. A história, para Marx, não é aquela noite negra em que os humanos não poderiam saber o que quer que seja sobre o que fazem, nem por conseguinte, empreender o que quer que seja do que pretendem. Por isso, entre esta visão das coisas e do que se chama determinismo propriamente falando, existem diferenças tão fundamentais que se desacredita quem as confundir.
Antes do mais, esta teorização materialista inclui a viva consciência de que, em relação ao modelo genérico que ela nos propõe, as formações sociais concretas apresentam inesgotáveis singularidades, acentuadas pela infinita variedade das suas trajectórias históricas sobre um fundo de lógicas gerais de desenvolvimento. Cada formação capitalista apresenta um certo ar familiar com todas as outras, encontrando-se destinada ao mesmo repertório de atribulações de conjunto - pensemos, por exemplo, hoje no caso da Coreia do Sul -, o que não impede o caso russo de ser muito diferente do alemão, ou o francês do dos Estados Unidos. E mais, a história está saturada de acasos, sem o que, de resto, escreveu Marx a Kugelman em 1871, "ela seria de natureza bastante mística", e nesta medida é imprevisível, o que também não impede de nela se reconhecer uma direcção global, tal como os incessantes estados do tempo não fazem abolir a sequência regular das estações ou a lenta evolução do clima. Depois, a necessidade que reina na história, como na natureza, nunca foi unívoca, mas dialéctica: ela inclui contradições e assim abre sem cessar leques de possíveis, tal como o "ou... ou" das crises agudas. As leis de evolução exprimem portanto, essencialmente, tendências que suscitam contratendências, em dinâmicas em que pode sempre surgir uma inesperada bifurcação. Portanto, nenhuma evolução é linear, nenhum processo é mecânico, nenhum desenvolvimento é igual a si próprio e aos outros, nenhuma história está escrita à partida. Se é possível entrever grosso modo a rota a longo prazo só o charlatão se pode vangloriar de predizer as for- mas, os episódios e os prazos. Ao que se acrescenta ainda, e não é menos essencial, que diferentemente do processo natural, o acontecimento histórico não se produz sem nós: "Os homens fazem a sua história", repetem Marx e Engels, embora não nas condições por eles escolhidas. Sendo ela própria produto histórico, a sua liberdade não vem suspender a necessidade, mas orientar o sentido no qual esta se cumpre. O avião não contraria a lei da gravidade, mas joga com ela de maneira inédita. O futuro nunca é fechado. Portanto, existe uma racionalidade da história, até certo ponto inteligível e dominável, embora nela seja grande a parte do acontecimento imprevisível, da reviravolta possível, da intervenção livre. Assim, o fracasso do comunismo não era fatal, e contudo, tendo em conta o que se disse mais atrás, é ao mesmo tempo lógico. É precisamente a partir da experiência desta necessidade aberta, igualmente afastada do determinismo cientista e do contigencialismo obscurantista, que os actores da história, para que todos temos vocação, podem tirar lições teóricas e práticas.
[pgs 062_066. Começar pelos Fins - a nova questão Comunista; Lucien Séve; Campo das Letras Editores, S.A, 2001. www.campo-letras.pt. campo.letras@mail.telepac.pt]
Inclusão | 02/08/2002 |