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Na reunião do Comité Central do PCF, em Argenteuil, em 1966 - cujo vasto objecto, "os problemas ideológicos e culturais", abrangia implicitamente um ainda mais vasto debate estratégico -, Jean Kanapa disse-me na pausa seguinte à minha intervenção, naquele tom cáustico que ainda tenho nos ouvidos e, para mim, o caracteriza como o sorriso do gato ausente em Alice no País das Maravilhas: "Ainda acreditas na filosofia...". Frase na qual senti de repente a profundidade de uma divergência cultural entretanto surgida entre nós. Pensando nessa frase tantos anos depois, quase entrava outra vez em combate.
Eu, "acreditar ainda" na "filosofia"? Ora essa! Quando alguns anos antes tinha publicado um livro atacado por alguns como sendo demasiado feroz para com toda a filosofia francesa contemporânea? Quando, ainda por cima, sustentava nesse livro expressamente a tese marxiana do fim. da filosofia? Acreditava, seguramente; só que eu acrescentava que este fim da filosofia "no sentido tradicional" era o pontapé de saída para uma "nova etapa" do trabalho filosófico, trabalho de consistência "científica" e já não "especulativa", mas científica num sentido completamente irredutível à sua acepção positivista, na qual filosófico soa mais ou menos como inconsequente. Era precisamente o que acabava de dizer na minha intervenção em Argenteuil, contestando nos seus fundamentos as perspectivas de "orientação positivista" sobre "uma pretensa reabsorção da filosofia na ciência, sobre a inexistência de um nível propriamente filosófico da teoria". Daí, o litígio. Kanapa, por seu lado, falava da teoria marxista, de uma ponta à outra, da sua intervenção, exclusivamente em termos de "ciência", de "atitude rigorosamente científica", parecendo deste modo decretar como obsoleto "o nível propriamente filosófico". Aí está o que me fazia ferver por dentro. Como se se pudesse aprofundar e enriquecer a posição materialista, o tratamento dialéctico na teoria e na prática, poupando uma crítica e uma elaboração especificamente filosóficas - hoje diria com mais precisão: categoriais. Como se poupar este trabalho filosófico pudesse conduzir a algo mais do que uma teoria em saldo - e neste saldo haverá ainda teoria? Litígio grande demais para ser dirimido nas poucas conversas do intervalo de uma sessão. Mas esta frase é daquelas contra as quais muito pensei e durante muito tempo, de maneira que, de caminho, ela foi-se carregando de um sentido muito para além da sua letra. "Ainda acreditas na filosofia", tinha-me dito Jean Kanapa. E sob esta sentença, com a qual de modo algum podia pactuar, acabava por perceber polemicamente a inconsciente confissão de uma renúncia de efeitos seguramente terríveis, qualquer coisa do género: "Eu cá já não acredito na teoria".
Será necessário afirmar que poucas vezes este litígio me vem à memória, e ainda menos se fosse caso de esboçar uma apreciação global da personalidade intelectual e do contributo político de Jean Kanapa? O facto do seu papel de primeiro plano junto de Georges Marchais, na renovação estratégica do PCF - O Desafio Democrático em 1973, o Relatório ao XXII Congresso, três anos mais tarde, etc. -, relevar como qualquer outro acontecimento histórico da avaliação crítica, remete-nos para o exame de um conjunto de dados que estão muito para além de episódios como este. Assim, não evoquei aqui este dito de Jean Kanapa para lhe fazer o retrato, nem a minha maneira de reagir para esboçar o meu - o que não teria qualquer interesse para o livro - mas para ir sugerindo através de um exórdio que, como veremos, nos conduz ao âmago do tema, em que estado de espírito me proponho e proponho abordar a nova questão comunista, em que sentido radical aqui se entende a palavra questão, a que nível de exigência se situa o que poderá ser tomado como contributo plausível para a sua resolução: amputada de qualquer uma das suas dimensões teóricas, incluindo a sua dimensão filosófica no sentido marxiano do termo, a questão comunista só poderá, na minha opinião, ser tratada de modo amesquinhante, o que à partida compromete, a meu ver, toda a credibilidade das respostas que lhe quiserem dar nestas condições.
E não se queira ver aqui as manias de um intelectual atraído por conceitos que pouco dizem à comum reflexão política quotidiana - a não ser que se faça uma imagem singularmente simplista de uma política comunista. O nível de exigência que aqui estabeleço não é o meu só pelo facto de ser filósofo, mas porque acontece que, como muitos da minha geração, aprendi a política primeiro com Lenine, depois com Marx, e que fiquei indelevelmente marcado por uma constante presença do teórico nos seus mais fortes requisitos - incluindo os filosóficos - na sua maneira de pensar e de praticar a política. Poder-se-á afirmar que este nível de exigência - o de Marx e de Lenine e ainda, muito mais tarde, o de um Luckács ou de um Gramsci - se terá mantido no fundamental (sob formas mutáveis, é claro) desde o movimento comunista estalinizado do pós-guerra, e depois no seu período pós-estalinista até aos nossos dias? Eu penso exactamente o contrário. Uma regressão teórica cada vez mais espectacular acompanhou, exprimiu, e certamente contribuiu em boa parte para induzir uma decadência política sobre a qual é impossível não nos perguntarmos se, hoje, é ainda realmente reversível. O que entretanto nos dá alguma esperança é o facto de no campo marxiano florescerem, um pouco por todo o lado, as mais variadas investigações teóricas, até as de maior novidade. Investigações que importa pôr em confronto ao mais alto nível e fazer cruzar em grande número, de modo a com elas recompor pouco a pouco, se possível for, um tecido cultural de grande fecundidade política. E penso ser um facto que todos os que mostram curiosidade por um novo comunismo, qualquer militante actual ou virtual desta causa, seja qual for o seu nível de instrução, está hoje mais do que nunca sedento de esclarecimentos teóricos de alto nível, a debater sem inúteis obscuridades, mas também sem simplismos complacentes, por esta simples e evidente razão: depois da derrota histórica sofrida por aquilo a que a linguagem ideológica dominante chama "o comunismo", não há nesta matéria salvação, a não ser que se repense as coisas pela raiz.
[pgs 023_026. Começar pelos Fins - a nova questão Comunista; Lucien Séve; Campo das Letras Editores, S.A, 2001. www.campo-letras.pt. campo.letras@mail.telepac.pt]
Inclusão | 02/08/2002 |