A Revolução Russa e os seus Equívocos

Francisco Martins Rodrigues

2007


Primeira Edição: Inédito, possivelmente de 2007. Título da responsabilidade de Ana Barradas.

Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando Araújo.

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Numa situação revolucionária que estava longe de existir na Europa, o facto de a revolução russa ser conduzida pelos operários não lhe alterava o carácter burguês, etapa essa já ultrapassada na quase totalidade dos países europeus. O imperialismo acarretava na Europa a proliferação em larga escala de forças contra-revolucionárias, levantando entraves imprevistos à revolução socialista.

A revolução russa veio mostrar a entrada do mundo numa época de grandes convulsões populares, a emergência do proletariado como classe em disputa do poder, o papel decisivo de um partido revolucionário marxista apto a conduzir as massas à conquista do poder, sem nada de comum com a velha social-democracia, mas não provava que os comunistas europeus pudessem ter a mesma sorte dos bolcheviques desde que lhes copiassem a estratégia e a táctica. A experiência russa podia servir, e serviu, de modelo aos revolucionários nas sociedades atrasadas do Oriente, em luta pela sua revolução antifeudal e anti-imperialista, mas não tinha termo de comparação com os países capitalistas avançados, particularmente com as metrópoles imperialistas como a Inglaterra, Alemanha, França, Bélgica.

Em 1921, o III Congresso já admitia que “a revolução mundial (…) exigirá um período bastante longo de combates revolucionários” e reconhecia o “elevado grau de organização da burguesia nos países capitalistas desenvolvidos da Europa” mas destacava, nas reivindicações imediatas, as nacionalizações e o controlo operário e continuava a orientar a penetração nos sindicatos e a utilização do parlamentarismo na perspectiva de um levantamento proletário próximo, que poderia ocorrer em primeiro lugar nos Balcãs ou na Itália, ou sobretudo na possibilidade de “unir a Alemanha industrial à Rússia agrícola”.

No Esquerdismo, Lenine atacou o infantilismo “esquerdista” no pressuposto de que amadureciam na Europa situações revolucionárias. Havia que liquidar o isolamento sectário porque a revolução batia à porta. Mas não batia.

Desmentida a expectativa na revolução europeia iminente, os partidos procuraram adaptar-se à situação real de acumulação de forças, mas sem ter a noção de que todas as componentes da táctica leninista só faziam sentido no pressuposto de uma situação revolucionária em gestação, de uma tendência geral de deslocação das massas para o terreno da revolução e do comunismo. Na ausência dessa situação — e era o que se passava na Europa — essas mesmas manobras tácticas tornavam-se no seu contrário, fomentavam o oportunismo.

Assim, os jovens partidos comunistas europeus partiram para a batalha animados dum forte espírito revolucionário, em ruptura com a traição social-democrata, mas desfasados de toda a situação social em que estavam inseridos. A sua tentativa para deslocar rapidamente o proletariado do campo do reformismo para o campo do comunismo tinha que fracassar porque a simpatia espontânea e calorosa do operariado (sobretudo das suas camadas mais pobres) pela revolução dos sovietes não era suficiente para criar uma situação revolucionária; essa dependia de factores estruturais que não estavam reunidos em nenhum país europeu (a não ser nas periferias, a braços com revoluções burguesas atrasadas — Hungria, Espanha, etc.). E nessa situação, a massa do proletariado, mesmo quando radicalizava as formas de luta, tendia a manter-se no quadro do sistema e era avessa a aderir a um partido que lhe trazia a mensagem da revolução e da conquista do poder a curto prazo.

Naufragada, aí por 1923, a esperança na revolução europeia imediata, impunha-se reformular os pressupostos que presidiram à fundação da Internacional. A putrefacção da II Internacional demonstrara já aonde podia levar a crença numa sequência linear capitalismo avançado- socialismo; a constatação marxista de que o imperialismo prepara a passagem mundial ao socialismo, se transferida para a escala do curto prazo e de cada país, pode tornar-se uma fonte de oportunismo e de corrupção imperialista. Contudo, a 1C não trabalhou sobre as lições desses anos de ilusão 1917-23, nem sobre as preciosas indicações marginais de Lenine no Imperialismo. Afundando-se no erro, pôs-se a tentar apurar o impasse, melhorando os métodos de mobilização de massas, na luta em duas frentes, contra o esquerdismo e o direitismo.

Seria demasiado simples atribuir um tal fenómeno de cegueira colectiva à falta de estudo do marxismo e do leninismo. A resposta não pode ser encontrada meramente em termos de conhecimento teórico. A situação real do capitalismo europeu e o carácter da sua luta de classes estavam ocultos pelo choque gigantesco, ainda fresco, do primeiro massacre interimperialista; era natural que, pela sua atrocidade desmedida, fosse interpretado como anunciador do fim iminente do sistema. A nova situação ficava oculta sobretudo pelo dilema dramático trazido pelo triunfo do novo regime na Rússia: a URSS não era socialista nem caminhava para o socialismo mas erguera-se sobre uma gigantesca revolução operário-camponesa, expropriara a sua burguesia e proclamava como alvos, num mundo subjugado ao capital e à propriedade privada, o socialismo e o comunismo. A hostilidade rancorosa de todos os regimes burgueses, dos democratas como dos fascistas, ao “bolchevismo”, mais acentuava a onda de solidariedade à União Soviética como pedra de toque da identidade revolucionária do proletariado.

Mas se para os operários avançados este antagonismo com a sua própria burguesia era a base da sua existência como classe autónoma, nem por isso ele deixava de assentar nestes dois equívocos — o mito do socialismo soviético e o mito de uma situação revolucionária na Europa. Os partidos da 1C caíram assim numa armadilha histórica que os conduziu à ruína.

Ao fazer o balanço deste período, não podemos esquecer porém que a crença dos comunistas na revolução a curto prazo e o seu seguidismo perante Moscovo partiam de uma postura acertada no essencial: abominação da sua própria ordem burguesa, rejeição do colaboracionismo social- democrata, solidariedade aos povos oprimidos da colónias, fidelidade ao que julgavam ser o “mundo novo”. Foi isso que esqueceram, com um pânico indecente, os comunistas cor-de-rosa que, desde os anos 70 e sobretudo depois da queda do “Muro”, se sentiram obrigados a dar a mão à palmatória à social-democracia e trataram de converter-se em “socialistas democráticos” ou “comunistas populares”.

Não há pois motivo para estranheza perante a trajectória seguida pela 1C e por cada um dos seus partidos: a convicção de que se lhes exigia e era possível a conquista a breve prazo da maioria do proletariado colocou-os à partida num trilho errado. À “doença infantil do esquerdismo” sucedeu, quase sem transição, a “doença senil do direitismo”. Dos pseudo-sovietes, dos “sindicatos vermelhos”, do boicote às eleições, do agitativismo frenético, que apostavam numa radicalização inexistente e fechavam os comunistas em seitas impotentes, passou-se à penetração paciente nos órgãos de massas, à política de “frente única”, à transformação dos PCs numa força eleitoral, legal… que selou a esterilização burguesa-progressista dos partidos nos anos 30, a sua degeneração em social-democratas de esquerda nos anos 50, e por fim em social-democratas, sem mais, nas últimas décadas.

Pode assim dizer-se, em balanço final, que a acumulação de forças promovida primeiro, na passagem do século, pelos partidos social-democratas, depois pelos partidos comunistas europeus, foi uma acumulação reformista, negativa do ponto de vista da revolução. O proletariado melhorou a sua condição material, elevou a sua capacidade organizativa, mas não avançou um passo no caminho da subversão da ordem do capital.

Foi uma evolução geral, regular, inelutável, que não pode ser atribuída a esta ou àquela circunstância, às manobras geoestratégicas defensivas de Staline, ou às propensões reformistas de um Thorez ou um Togliatti. Tudo se passou como se não houvesse alternativa ao fracasso do projecto comunista na Europa.

O pior foi que os PCs europeus (e o dos EUA) irradiaram o seu reformismo intrínseco para as regiões periféricas, cederam à tendência para as subordinar às suas conveniências estratégicas de colaboração de classes, e bloquearam em muitos casos a marcha das revoluções nacional- democráticas, essas sim, possíveis a curto prazo no “Terceiro Mundo”.

Era este fracasso inevitável? Podemos admitir que existia uma alternativa para a luta revolucionária na Europa, mas só se os comunistas tivessem adoptado uma perspectiva estratégica e tácticas adequadas ao estádio ascensional do capitalismo no continente e à real correlação das forças sociais, se tivessem encetado um trabalho de conquista a longo prazo do proletariado. Isso ter-lhes-ia evitado tanto o desespero “esquerdista” como a degeneração oportunista.

A corrente ML

Sc o movimento comunista criado pela III Internacional se afundou no pântano da rendição à ordem burguesa, a pretensa renovação “marxista-leninista” dos anos 60-70 ainda durou menos tempo. O percurso particularmente abjecto das “estrelas” esquerdistas de há 20 anos não pode ser posto apenas à conta de degenerescência pessoal; indica algo sobre a natureza dúplice desse movimento.

À partida, a aposta era difícil. Ao levantar-se em crítica contra o bloco maioritário “socialista”, na esteira das críticas chinesas, os “ML” tornavam-se, especialmente na Europa, um foco de atracção para o anticomunismo pequeno-burguês que assim encontrava um canal renovado de expressão de esquerda, a somar ao trotskismo e ao anarquismo. Só à custa dum rigor total em matéria de teoria, de estratégia, de táctica, podiam os “ML” demarcar o seu terreno próprio, afirmar-se como uma corrente comunista renovada e sacudir a parasitagem do radicalismo pseudocomunista.

Mas não foi isto que aconteceu. Como se tornou evidente, nem a direcção da China nem a da Albânia admitiam que a crítica à direcção soviética recuasse para além do XX Congresso. Criticavam a degeneração soviética, a sua aproximação ao imperialismo, mas consideravam intocável o período staliniano, que justamente lhes servia de modelo e que legitimava o seu próprio poder de Estado. Numa palavra: denunciavam a podridão do capitalismo de Estado decadente, do ponto de vista do capitalismo de Estado ascendente que ainda era o seu nesse momento.

O movimento ML ergueu-se assim sobre um compromisso esterilizante. O facto de ter ligado o seu destino aos “socialismos” dissidentes, da China e em menor escala da Albânia, fez simultaneamente a sua força expansiva e o seu desastre posterior. O inicial movimento de redescoberta do leninismo e um tímido esboço para o implantar no mundo moderno depressa foram afogados pela triturante fidelidade à política de regimes que seguiam, com algumas décadas de atraso e certas variantes, as pisadas da União Soviética na construção do capitalismo de Estado. Ainda aqui, a solidariedade com regimes que eram efectivamente, nesse momento, a oposição mais radical ao imperialismo, funcionou como uma armadilha e o declive foi ainda mais rápido que o dos “comunismos” oficiais.

Mas não só. A crítica à degeneração russa e dos PCs, se levada às suas consequências, implicaria, nas condições europeias dos anos 60-70, um isolamento político total, talvez ainda mais difícil de suportar do que o da primeira geração comunista dos anos 20. A corrente ML caiu assim presa de uma luta de tendências, com uma ala esquerda cujas audácias não iam além da aspiração a fazer reviver a “justa política” da 1C, da URSS e de Staline até ao XX Congresso, enquanto a ala direita deitava pontes para a social-democracia em nome da luta contra o “social-fascismo” e o “social-imperialismo”. Forçado a passar, depois da vitória de Deng Xiao-ping, da órbita da China para a da Albânia, o movimento ML europeu encontrou-se sem “guia” quando neste último país se apagaram os últimos vestígios de radicalismo anti-imperialista. A partir de fins dos anos 80, os destroços do que fora a corrente ML acolheram-se ao desmantelado exército do revisionismo ou incorporaram-se no trotskismo, no anarquismo ou, mesmo, os menos escrupulosos, na social-democracia. Se atendermos a que o movimento justificara a sua existência justamente pela denúncia dessas correntes como traidoras ao proletariado e à revolução, vemos que se tratou de um autêntico hara-kiri.

Luta de classes na Europa

Característico das duas tentativas de arrancar com um movimento comunista inspirado no leninismo é o facto de se apoiarem de forma esmagadora na autoridade de partidos comunistas no poder, primeiro na Rússia, depois na China (e acessoriamente na Albânia). Isto em si não seria mau se o movimento comunista europeu não tivesse manifestado através desta busca de apadrinhamento a sua menoridade ideológica. A ausência de uma sólida base proletária revolucionária europeia é que explica a dependência.

A partida em falso do comunismo europeu pode ser hoje compreendida nas suas limitações históricas mas define-se por duas incapacidades, que retratam em si mesmas a imaturidade revolucionária do proletariado no continente: incapacidade para entender a natureza da revolução russa, incapacidade para traçar o quadro da luta de classes na Europa.


Inclusão 16/11/2018