XX Congresso do PCUS – Ruptura em Aberto

Francisco Martins Rodrigues

Fevereiro de 2006


Primeira Edição: Política Operária nº 103, Jan-Fev 2006

Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando A. S. Araújo.

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Passam 50 anos sobre o XX Congresso do PCUS. Com as suas críticas ao “culto da personalidade” e aos “graves erros” de Staline, a oferta ao imperialismo de uma “nova era de coexistência pacífica” e o anúncio da “passagem pacífica e parlamentar ao socialismo” nas democracias burguesas, o congresso desencadeou um terramoto no já agonizante movimento comunista.

Kruchov justificava o seu “leninismo criador” com a “nova situação internacional criada pela força do campo socialista e pelo declínio do imperialismo”. Mas o optimismo aparente disfarçava mal a mudança de campo: em busca de uma trégua na “guerra fria” para enfrentar as crescentes dificuldades do seu sistema económico, a direcção soviética vendia ao imperialismo o que restava do movimento comunista.

O efeito não se fez esperar: o antagonismo e a vigilância que até aí animara os comunistas face ao inimigo de classe passaram a ser descartados como “sectarismo”. A agressividade do imperialismo devia ser neutralizada com provas de “boa vontade”. A democracia burguesa não devia ser menosprezada. Os partidos social-democratas deviam ser tratados como aliados.

Uma após outra, as obedientes direcções dos partidos fizeram a autocrítica pelos “erros passados”, sanearam os recalcitrantes e lançaram-se num indigno namoro às forças democráticas burguesas. Era aliás o que a maior parte delas desejavam há muito. Nem os países sob ditadura fascista escaparam às “inovações” do XX Congresso. Foi o caso de Portugal, em que o PCP adoptou nesse ano uma solene e vergonhosa declaração sobre a “possibilidade do afastamento pacífico de Salazar”.

O ano de 1956 marca assim a morte, depois de uma longa agonia, da corrente internacional surgida ao impulso da revolução de Outubro de 1917. Nas décadas seguintes, enquanto na URSS as reformas económicas e as novas teorias do “Estado de todo o povo” e do “Partido de todo o povo” preparavam a libertação final das forças capitalistas, coroada na perestroika de Gorbatchov, no resto do mundo partidos que de comunistas só conservavam o nome afundavam-se no reformismo e na colaboração de classes.

Em revolta contra o XX Congresso, nasceu, no início dos anos 60, uma nova corrente comunista, que alastrou a todo o mundo sob o impulso das críticas do PC da China. A nova corrente nascia contudo estrangulada por uma contradição de fundo: denunciando justamente a traição do PCUS e dos seus seguidores, recusava-se a procurar-lhe a origem, para não ter de questionar a evolução da URSS e da Internacional sob a direcção de Staline. Se Kruchov e comparsas insultavam a memória do líder que tornara a União Soviética poderosa e vencera o nazismo, o dever dos comunistas, dizia-se, era manterem-se-lhe fiéis. A ideia de que a URSS mudara de cor subitamente levou a corrente “marxista-leninista” a defender acriticamente o “património”. Mas esta era uma herança envenenada: exaltava o “socialismo” burocrático e policial, o terror dos anos 30, o partido “monolítico”, os desvios da Internacional, a desfiguração dogmática do marxismo e do leninismo. Aquilo que era essencial para poder avançar – compreender a natureza social das grandes revoluções na Rússia e na China e a base social dos regimes por elas produzidos – continuou oculto.

Enfeudada ideologicamente à China e depois à Albânia, quando esses regimes percorriam uma degeneração em tudo semelhante à que sofrera a União Soviética, a corrente “M-L” perdeu o vigor inicial e foi-se afundando na confusão e no oportunismo. Nem podia deixar de ser quando se recuperavam como “leninismo autêntico” as práticas reformistas e nacionalistas dos velhos partidos, o seu eleitoralismo, o clima interno de arregimentação, o papaguear de fórmulas em lugar do debate, o seguidismo face aos partidos no poder.

O receio de entrar no terreno proibido do questionamento das posições oficiais do MCI, o receio a romper a monstruosa carapaça de preconceitos revisionistas incrustados no pensamento marxista ao longo dos anos, a incapacidade para tirar as conclusões das divergências surgidas e levar a cisão até ao fim, causaram a perda do esforço de milhares de militantes da corrente M-L, como já tinha acontecido com a anterior.

Com a ruptura que iniciámos em 1984 no nosso país, assumimos aquilo que deveríamos ter entendido desde o princípio: uma corrente comunista para o nosso tempo, digna das tradições revolucionárias do passado, não pode ser criada por meio de remendos numa corrente apodrecida.

Porquê então tarda tanto a afirmação de uma nova corrente comunista? Ao contrário do que afirmam por vezes os que criticam o nosso trabalho como “demasiado ideológico”, penso que os obstáculos ao nosso avanço resultam da timidez na crítica ao passsado. Muito resta por derrubar. Para constituirmos uma nova corrente comunista internacional, há que fazer o enterro teórico da velha corrente comunista e da corrente M-L. O que está no centro dos interesses comunistas não são questões tácticas; é saber se existe um caminho para a revolução e a ditadura do proletariado e qual é ele. Só sobre o alicerce de um programa comunista renovado pode construir-se uma estratégia, uma táctica, um partido, e ganhar a direcção do movimento de massas.


Inclusão 06/09/2018