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Ao reeditar esse clássico do anti-stalinismo que é Agente de Staline, de Walter Krivitski, a editora Antígona assinala à sua maneira o cinquentenário do pacto germano-soviético que passa este ano. Com efeito, Krivitski, que se entregou aos serviços secretos franceses em 1938 e depois passou para a protecção da CIA, expôs nas suas confissões a tese de que toda a política internacional de Staline ao longo dos anos 30 visava chegar ao entendimento com Hitler.
Mas se já na época era difícil convencer alguém de que a adesão da URSS à Sociedade das Nações, os seus esforços malogrados para se aliar à França e à Inglaterra, a política das Frentes Populares, a ajuda militar ao governo republicano na guerra de Espanha — tudo isto visasse um acordo com Hitler (!), o livro de Krivitski perdeu todo o crédito quando, passado pouco tempo, a URSS de Staline apareceu a suportar o fardo tremendo da guerra antifascista, enquanto a maioria das “democracias” capitulava vergonhosamente. Quando o nazismo por fim caiu, foi preciso reconhecer que, ao acusar Staline de cumplicidade com Hitler, os governos ocidentais tinham procedido como o ladrão que grita “agarra que é ladrão”: procuravam ilibar-se da farsa da “não-intervenção” em Espanha, do acordo de Munique, de toda uma política de “apaziguamento” visando atirar os nazis para Leste. O pacto germano-soviético mais não fora do que uma manobra desesperada de último recurso com que Staline tentara retardar o assalto.
Krivitski ficou assim durante meio século relegado aos arquivos da literatura anti-soviética de cordel. Até porque entremeara no relato das suas actividades de agente da GPU buchas fornecidas pelos seus assessores da CIA, no pior estilo policial, como uma história rocambolesca de dólares falsos que Staline teria espalhado nos EUA com a colaboração dos gangsters de Chicago, o denegrimento das brigadas internacionais como uma fachada para infiltrar os “criados de Staline” em Espanha, a afirmação de que Bukarine e Tukatchevski tinham sido executados para comprazer a Hitler, a acusação fantástica de que a GPU “trabalhava febrilmente para estrangular as instituições do Estado francês” e, duma maneira geral, a apresentação dos movimentos operários, das insurreições e da luta dos comunistas de todo o mundo como meros títeres nas mãos da polícia secreta de Staline. Contudo, a par desta sórdida intoxicação com que Krivitski pagava a sua mudança de campo, o livro continha também um testemunho autêntico sobre a tenebrosa agonia do regime soviético na década de 30. Muitas das suas informações, desacreditadas durante a guerra, vieram a comprovar-se mais tarde como exactas. Os trabalhos forçados para milhões de famílias camponesas, os meandros sinistros do assassinato de Kirov, a paranóica “caça aos espiões e provocadores” em 1936, em que cada um tentava desviar as suspeitas de cima de si acusando o vizinho, as centenas de milhares de execuções sumárias, o mecanismo que levava militantes inocentes a declarar-se culpados em tribunal “para salvar a causa — todos esses horrores eram afinal verdadeiros.
Não foi difícil, sob o choque causado por estas revelações, pôr de novo em circulação as velhas histórias sobre a conspiração Staline—Hitler e inocentar o Ocidente do desencadeamento da guerra mundial e da própria agonia da revolução russa. O relato de Krivitski, com a sua mistura inextricável de verdades e invenções, volta à ribalta e deve ter boa venda assegurada.
Mas não nos parece que a editora anarquista esteja de parabéns, uma vez que se abstém de elucidar o leitor sobre o que no texto foi historicamente comprovado como verdadeiro ou desmascarado como falso. A avaliar pelo anedótico frontispício acrescentado à obra — uma fotomontagem que representa Hitler carregando Staline às costas — o editor optou precisamente pelo lado mistificador do livro. Mas isso talvez se explique pelo tradicional complexo dos anarquistas, ainda hoje com vergonha de reconhecer que quem lutou contra o fascismo não foram eles mas os negregados “stalinianos”.
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Os libertários reivindicando o seu lugar no movimento operário, usurpado pelo marxismo “autoritário” — quem diria que ainda seja possível, neste final do século, voltar à velha polémica? É no entanto o que faz Carlos da Fonseca, na comunicação agora editada pela Antígona Para uma análise do movimento libertário e da sua história, usando porém argumentos duma fragilidade surpreendente num investigador da história do movimento operário.
O autor recorda que o anarquismo foi, a seguir ao sindicalismo de acção directa, a corrente que mais influenciou o movimento operário português entre 1886 e 1936, registando ao longo desse meio século umas 500 organizações e mais de 5.000 militantes, em grande parte operários de fábrica, perseguidos, presos, deportados, pela sua luta contra a monarquia e contra a burguesia republicana. E pergunta como podem os marxistas falar do anarquismo como uma “ideologia camponesa”.
Será necessário portanto redizer que os marxistas nunca negaram a base operária do anarquismo mas tiraram conclusões do facto de ele ter deitado raízes onde era mais recente a origem camponesa e artesanal dos operários, como era a Rússia e a Europa do Sul. As análises marxistas sobre o anarquismo como expressão da revolta da pequena produção em vias de ser triturada pelo capitalismo, e por isso mesmo incapaz de apreender as suas leis internas e de elaborar uma estratégia revolucionária, foram confirmadas pela história, para além de qualquer dúvida. O anarquismo decompôs-se porque as suas utopias passadistas não tinham nada a oferecer ao movimento operário.
E isso tornou-se evidente com a I guerra mundial. Se é verdade que ela começou por desagregar por igual libertários e social-democratas, levando uns e outros a afundar-se no patrioteirismo, a evolução das duas correntes foi oposta a partir daí: enquanto os marxistas, com Lenine, rompiam com o apodrecimento social-democrata, averiguavam as suas causas e respondiam à guerra com a revolução proletária, os anarquistas, sem nada de novo para dizer, iniciaram uma decadência irreversível.
Tentando minimizar o golpe mortal assestado à influência anarquista pelo exemplo da revolução russa, C. F. alega que “os militantes libertários que aderiram ao bolchevismo depressa se desiludiram”. Devia explicar porém por que é que a massa operária activa trocou, ao longo das décadas 20 e 30, as fileiras anarquistas pelas fileiras comunistas.
Do mesmo modo, justificar a ausência dos libertários da luta antifascista com o argumento de que não dispunham, como os comunistas, duma base exterior de apoio, é verdadeiramente uma desculpa de mau pagador. Os anarquistas deram péssimas provas na luta contra o Estado Novo porque a sua influência operária caía verticalmente e os propagandistas que lhes restavam estavam mais ocupados em atacar o “bolchevismo totalitário” do que o fascismo.
Revelador é por fim o quadro idílico que C. F. traça dos pequenos grupos autónomos libertários, com as suas pequenas tarefas, em contraste com o “gigantismo organizativo” dos comunistas (e dos socialistas), alimentador dos males da hierarquia, das promoções e do carreirismo. Que o movimento operário tenha que aperfeiçoar os mecanismos da sua democracia para impedir a absorção das suas organizações pela pequena burguesia reformista é uma lição central das últimas décadas. Mas só uma corrente politicamente morta como o anarquismo, que se auto-excluiu da luta pelo derrubamento da ordem capitalista, pode idealizar a sua impotência organizativa como uma virtude. Falta saber se ainda consegue convencer operários das vantagens do seu comunismo primitivo.
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De há uns anos para cá, espalhou-se nos meios académicos a opinião de que o Estado Novo teve pouco de comum com os regimes de Hitler e Mussolini. A classificação da ditadura de Salazar como fascista passou a ser considerada exagero só desculpável no calor da luta política da época, mas sinal de mau gosto demagógico nos dias de hoje, quando se exige uma perspectiva histórica reflectida. E argumenta-se que os traços distintivos do fascismo — partido único, chefe carismático, milícias, terrorismo de massa, ideologia racista e imperial — faltaram ou se manifestaram de forma muito atenuada no Estado Novo.
Reagindo contra esta moda, Fernando Rosas faz ver, no artigo “Dois filhos, uma família” (Expresso, 14/1/1989), que as semelhanças profundas (de classe) são neste caso mais importantes do que as diferenças. O regime de Salazar teve, na sua dimensão específica, o partido único, o chefe, as milícias, o terror… E concretamente, quanto à alegada brandura do salazarismo — sempre invocada para duvidar do seu carácter fascista — F. R. recorda a política para com os gentios das colónias, que “um certo ambiente neochauvinista tende a fazer esquecer”. Por fim, põe o dedo na ferida quando pergunta se o que se tem andado a fazer não é “individualizar e excepcionar para desculpabilizar”.
Poderia mesmo dizer, se não fosse a diplomática prudência académica a que se remete, que os doutos papagaios que põem a ridículo a propaganda “redutora” dos marxistas acerca do Estado Novo visam três objectivos, muito pouco elevados:
Inclusão | 25/05/2018 |