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No seu último livro, Álvaro Cunhal refere brevemente “cinco situações mais graves” na vida interna do PCP. Foram elas o conflito provocado por Carlos Rates em 1923, a luta contra o “grupelho provocatório” (1940-41), a proposta de 1944 para uma “política de transição”, a linha da “solução pacífica” adoptada em 1956-59 e o surgimento de uma oposição maoísta em 1963.
Destes conflitos tira Cunhal como lição que uma atitude ponderada e tolerante permite sempre superar as divergências e manter o partido unido na via marxista-leninista. O que importa, em sua opinião, é “não caracterizar e classificar globalmente um quadro por motivo de opiniões consideradas incorrectas”, “não considerar nem ‘vencedores’ nem ‘vencidos’ depois de um debate que termina por uma decisão colectiva” e sobretudo “tudo fazer para evitar a cristalização de opiniões”(1). Ou seja: a luta no partido vista como uma espécie de disputa filosófica em busca da Verdade.
Com estas notas, tentaremos mostrar que o quadro das lutas internas do PCP (onde avultam não cinco mas nove conflitos principais) forma um encadeamento de lutas políticas através das quais o partido escapou do controle da classe operária e passou para as mãos da pequena burguesia. E já que Cunhal mostra tanta predilecção pelas “lições”, indicaremos as nossas próprias lições, correspondentes a cada uma dessas lutas.
Concluiremos com uma lição geral, oposta à que tira Cunhal: foi por não terem sido completamente cristalizadas as opiniões, definidos os vencedores e vencidos e extremados os campos que o PCP deslizou do projecto revolucionário original para aquilo que actualmente é — o bem comportado campeão da “democracia nacional”. E mais uma vez a caminho de novas lutas internas, apesar das receitas moderadas oferecidas por Cunhal.
Em 1923, com a República a entrar na agonia, o PCP dividiu-se em três correntes, que se constituíram em fracções (ainda que o pudor de Cunhal o obrigue a omitir a palavra escabrosa).
A direcção do partido, chefiada por Caetano de Sousa, tendo como principal apoio a Juventude Comunista, dirigida por José de Sousa, entregava-se a projectos sectários de “purificação” do partido e conciliava com o terrorismo bombista dos jovens comunistas.
Declarou-lhe guerra o sector mais “politizado” do partido, liderado por Carlos Rates, que pretendia suprir a escassez da influência operária do partido com manobras de “grande política”, inclusive apoiando suspeitos pronunciamentos militares.
Finalmente, o sector de maior expressão operária do partido agrupava-se na organização dos Partidários da ISV (Internacional Sindical Vermelha). Interessava-se apenas pela construção de uma corrente sindical revolucionária, independente da CGT anarco-sindicalista, e distanciava-se tanto da fracção de Rates como da de C. Sousa—J. Sousa.
A unificação do partido só podia conseguir-se por um largo debate, promovido pela Internacional, em que fossem superadas as taras oportunistas de cada uma das fracções. Era preciso encontrar, através da luta ideológica, uma estratégia revolucionária que servisse de alicerce a construção do partido, a táctica e a política diária.
Não foi esse o sentido da intervenção da IC. Comportando-se como vice-rei em colónia, o seu delegado, H. Droz, depois de ouvir as partes em litígio, empossou C. Rates na chefia do partido e fez aprovar em congresso, sem debate, a exclusão dos dissidentes da ala esquerda. Resultou daqui, não um mero atraso do PCP para enfrentar a clandestinidade, como refere Cunhal, mas uma profunda convulsão que levou à perda de muitos dos melhores militantes e culminou na deserção de Rates.
A posterior repescagem pela IC dos elementos de esquerda para salvar a situação não resolveu nada porque omitiu a crítica que se impunha a Droz e à própria direcção da IC. O impulso revolucionário que dera nascimento ao PCP dissolvia-se na confusão causada pela manobra oportunista do I Congresso. O partido enfrentou em completa desarticulação o golpe militar do 28 de Maio de 1926 e nada pôde fazer para levantar a resistência operária ao fascismo que despontava.
Primeira lição: A crise de 1923, que atrasou por uma década a organização do PCP, mostrou a capacidade do oportunismo de direita para tomar posse do partido, em nome do combate ao terrorismo e ao sindicalismo, e apoiado na ala oportunista da Internacional.
A segunda luta interna, não mencionada por Cunhal no seu balanço, deu-se em 1929, quando um grupo de militantes operários, dirigidos por Bento Gonçalves, decidiu numa reunião fraccional encetar a reorganização do partido e destituir a direcção de Augusto Machado.
O que se punha em questão nesse momento era saber se os comunistas se atreviam a desafiar Salazar construindo uma organização clandestina que servisse de armadura à resistência operária ou se iam deixar-se ficar a conspirar pelos cafés, como os republicanos e anarquistas, à espera da “hora” do golpe.
A luta teve um desenlace rápido, devido à dissolução da direcção de Machado, mas revestiu um significado histórico. Pode dizer-se sem exagero que todo o curso da luta política posterior no nosso país ficou marcado por essa reunião de Abril de 1929, inspirada nas orientações do 6° Congresso da IC. Face às fanfarronadas fascistas sobre a “abolição da luta de classes”, só a classe operária se mostrou capaz de se organizar em partido e tornar-se o pólo da resistência.
Isto criava condições favoráveis à revolução. Ficou porém por esclarecer a maioria das questões da estratégia e da táctica do partido, ou seja, das relações entre proletariado e pequena burguesia na luta antifascista. Sob a pressão da clandestinidade e das prisões constantes, o PCP ia buscando o seu caminho às apalpadelas, na marcha da luta diária. Assim, à medida que se ampliava a sua capacidade da intervenção política, começaram a definir-se duas correntes opostas nas suas fileiras, até desembocar numa nova crise.
Segunda lição: a reorganização de 1929 só foi uma meia vitória porque não elaborou um programa comunista, que enquadrasse a luta pelo derrubamento do fascismo na luta pela revolução proletária. Deixou assim a porta aberta à absorção do partido pela democracia pequeno-burguesa.
Em 18 de Janeiro de 1934, o PCP tentou, em colaboração com os anarquistas, levar a cabo uma greve geral insurreccional contra a imposição dos Sindicatos Nacionais fascistas, a qual se saldou por uma pesada derrota. Em torno desta acção, surgiram em confronto duas linhas, lideradas pelos dois secretários do partido — José de Sousa, dirigente da CIS (Comissão Inter-Sindical) e promotor da acção, e Bento Gonçalves, que desde o início se lhe opôs. Por estranho que pareça, também a esta luta interna não se refere o balanço feito por Álvaro Cunhal.
Fá-lo para ocultar a opção política de fundo feita pelo PCP nessa emergência. Com efeito, B. Gonçalves avisara que se iriam queimar esforços numa aventura de antemão condenada ao fracasso, por não haver convicção comunista para um trabalho prolongado de mobilização ampla e paciente das massas. Mas tirou da greve conclusões puramente negativas, esquecendo que ela indicara, embora em esboço infantil, a questão decisiva: a via para o derrubamento revolucionário do fascismo sob a condução da classe operária. Toda a crítica aos erros do 18 de Janeiro que omitisse este aspecto abriria as portas ao oportunismo.
Foi no entanto esta perspectiva que o PCP adoptou. Celebrado oficialmente como uma acção heróica de resistência, o 18 de Janeiro passou a ser condenado internamente como o exemplo máximo de aventureirismo e de sectarismo que havia que banir. Sobre esta crítica, operou-se no PCP uma grande viragem política à direita que marcou toda a sua trajectória posterior.
Ao penitenciar-se pelo fracasso da greve insurreccional e do Soviete da Marinha Grande, o partido orientou-se para a ideia da impotência política do proletariado e de a fatalidade da luta operária se cingir ao papel de força de apoio da democracia burguesa. Começou a tomar forma a lógica que, dez anos mais tarde, daria origem à “via do levantamento nacional” de Álvaro Cunhal.
Terceira lição: a derrota essencial do PCP no 18 de Janeiro foi a perda de confiança na capacidade revolucionária do proletariado e a abertura à ideia de que só lhe restava conformar-se a ser uma força de choque ao serviço da democratização do Estado.
A luta interna suscitada pelo 18 de Janeiro prolongou-se pelos anos 1936-39, não sob a forma de um confronto aberto entre duas linhas, mas através de uma situação de instabilidade caótica na direcção do PCP. Essa situação, que Cunhal desde há muito explicou pelo atraso nos métodos de defesa face à ofensiva policial, tem contudo na raiz o autêntico terramoto político provocado pela viragem do 7.° Congresso da IC.
As directivas de Dimitrov para a negociação de Frentes Populares com os social-democratas e liberais no quadro da defesa da democracia (directivas que o secretário-geral do PCP naturalmente não se esquece de louvar como muito positivas)(2) deram um poderoso impulso à corrente oportunista que crescia no PCP sobre os escombros do 18 de Janeiro.
Foi criada uma Frente Popular que, embora nunca passasse das proclamações, abriu as portas do partido à ideologia da colaboração de classes. A CIS, considerada um foco de “esquerdismo”, foi dissolvida e a corrente sindical revolucionária extinta. Seguindo instruções da Internacional, o partido traçou como meta da luta antifascista uma imaginária “revolução democrático-popular”, à imagem do governo republicano em Espanha. O Avante adoptou uma nova linguagem democrático-patriótica para sensibilizar a pequena burguesia, não recuando perante os apelos aos “legionários honestos” e as denúncias de que Salazar não defendia as colónias dos apetites do “Eixo”.
A desagregação organizativa do partido, que atingiu o auge em 1938-39, apesar dos esforços desesperados dos comunistas para a deter, era fruto da confusão política desencadeada pela linha do 7.° Congresso. Todos os conceitos leninistas que até aí tinham servido de alicerce à acção comunista — a demarcação dos interesses operários e a luta pela sua hegemonia, a luta contra o oportunismo pequeno-burguês, a crítica inflexível aos restantes partidos “operários” — tinham passado a ser considerados “sectários”. A vanguarda operária já não tinha critérios para se guiar e dissolvia-se na proliferação de ilusões oportunistas. A direcção de Vasco de Carvalho, Cansado Gonçalves e Velez Grilo (o mais tarde chamado “grupelho provocatório”), ao afundar o partido no caos, não fazia mais do que levar às últimas consequências a aposta democrática unitária lançada por Dimitrov.
Quarta lição: a crise de 1936-39, desencadeada pela política de Frente Popular, comprovou que sobre a renegação do 18 de Janeiro florescia no PCP a submissão completa ao democratismo pequeno-burguês.
Com o partido sucessivamente golpeado pela polícia e a desacreditar-se pela sua impotência, os melhores comunistas reuniram-se em torno de uma fracção criada por J. Fogaça, M. Guedes, A. Cunhal, etc., para levar a cabo a segunda Reorganização.
A luta entre as duas fracções, que se estendeu ao longo de 1940-41, com dois comités centrais e dois Avantes concorrentes, trocando acusações de “provocação” e “trotskismo”, foi o conflito mais importante da vida do PCP. Dele saiu cristalizada uma nova concepção de política — aquilo a que se pode chamar o “cunhalismo”.
Cunhal não punha em questão a estratégia oportunista do 7º Congresso; pelo contrário, apoiava-a. Mas o fracasso da Frente Popular em Portugal tornara-lhe evidente que, sem um sólido aparelho clandestino comunista e sem uma acção de vanguarda dos operários e assalariados rurais, todas as esperanças num movimento democrático unitário se desfaziam em fumo. A pequena burguesia era manifestamente incapaz de grandes voos.
Daqui a ideia afirmada no 3º Congresso (1943) de que o PCP e o proletariado tinham de disputar à pequena burguesia republicana o lugar de primeiros combatentes na luta comum pela Democracia. Com ela, Cunhal iniciou uma nova época de expansão do PCP.
Para os operários que acolhiam com entusiasmo a nova linha do partido e a sua nova prática combativa, espicaçar a Oposição e tomar a cabeça da luta aparecia como prova suficiente de ruptura com o oportunismo. Que essa luta se cingisse apenas ao objectivo de restaurar a democracia parecia-lhes uma questão de habilidade táctica: “Para já, não assustar os republicanos; depois ajustaremos contas”. A verdade é que se dera um gigantesco passo atrás desde os tempos do 18 de Janeiro.
Quinta lição: com a crítica ao “grupelho provocatório”, a direcção de A. Cunhal mistificou a verdadeira causa da crise do partido — o oportunismo da política de Frente Popular. A subordinação política do proletariado aos interesses da pequena burguesia democrática tomou uma forma mais activa e eficaz — o seu fundo não mudou.
Em 1945, a direcção do partido entrou em luta com J. Fogaça, que propunha, à frente de um grupo de militantes no Tarrafal, uma nova política, “de transição”, como mais adequada para o que se julgava ser a queda iminente da ditadura de Salazar. Segundo Cunhal, este novo conflito teria sido superado sem prejuízos de maior, com a autocrítica dos comunistas em divergência.
Na realidade, a luta teve implicações muito profundas. Primeiro, porque a “transição” não era uma mera diferença táctica — era um passo aberto para a liquidação do partido. Embriagados pela esperança na democracia parlamentar a curto prazo devido à derrota do nazismo na guerra, os comunistas no Tarrafal propunham que se acabasse com os apelos à insurreição popular contra o regime, que se tirasse o símbolo da foice e do martelo do Avante e que se oferecesse uma saída “doce” para a ditadura.(3) Segundo, porque este oportunismo liquidador surgia em contraponto à nova onda de radicalismo operário que despontava no partido sob o impulso das grandes greves de 1943 e 1944 e da crise política do salazarismo. A tendência de Alfredo Dinis (Alex) para dar à greve de Maio de 1944 uma dinâmica insurreccional revelava que o espírito do 18 de Janeiro podia renascer das cinzas.
Álvaro Cunhal, que criticara Alex em privado, rejeitou ostensivamente a “política de transição” no 4.º Congresso (1946). Pareceria que se distanciava mais da ala direita do que da ala esquerda do partido. Foi porém o contrário que se passou. Desde 1944, logo após o início da polémica, a direcção do partido começou a censurar a linguagem “demasiado de classe” do Avante, mandou dissolver os GACs (Grupos Antifascistas de Combate), que ensaiavam os preparativos para uma insurreição popular, e centrou os esforços do partido na criação de um grande consórcio unitário da Oposição (o MUNAF, depois o MUD), para reivindicar eleições livres.
Entre as duas vias que se desenhavam para a luta operária e popular no fim da guerra — a via revolucionária e a via reformista — Cunhal escolheu a segunda. A mola real da “política de transição” — a saber, a garantia aos militares, aos liberais e aos fascistas hesitantes, à Inglaterra e aos Estados Unidos, de que o PCP renunciava a derrubar o regime fascista por uma acção revolucionária de massas — foi adoptada e consagrada no 4.° Congresso do partido, através da perspectiva de um “levantamento nacional” futuro, conseguido pela “Unidade de todos os portugueses honrados e dos militares patriotas”.
Sexta lição: ao rejeitar a “política de transição”, a direcção do PCP incorporou a sua lógica oportunista na linha do partido.
Em 1945, o verdadeiro derrotado foi Alex e não Fogaça. O PCP orientou-se definitivamente para o desgaste do regime através da acção eleitoral e reivindicativa, esperando que ela criasse condições para um levantamento nacional-militar.
O período seguinte de luta interna, também omitido no balanço de Cunhal, desenrolou-se em 1950-53, quando a direcção chefiada por José Gregório teve que encetar uma rectificação geral da política do partido, para responder ao desaire eleitoral de 1949 e às graves perdas infligidas pela PIDE, que voltavam a ameaçar a sobrevivência do PCP.
Embora não tenha ficado assinalado por uma luta aberta entre linhas opostas, este foi um dos períodos de mais aguda luta no PCP, estimulada pelo endurecimento da política do Cominform face à campanha norte-americana da “guerra-fria”. A exacerbação dos conflitos pode medir-se pelo grande número de expulsões e despromoções de representantes da corrente moderada (Gilberto Oliveira, Gabriel Pedro, João Rodrigues, Cândida Ventura, etc.).
Na base desta viragem estava a constatação de que o partido fizera demasiadas cedências à burguesia liberal, permitindo-lhe apoderar-se da direcção do MUD, abrira-lhe demasiado as portas, na esperança de ser reconhecido como “um grande partido nacional”, desperdiçara as condições favoráveis do fim da guerra.
Uma vez mais, porém, faltou firmeza de classe para fazer uma crítica completa ao oportunismo. O partido rompeu com os liberais e procurou, com o MND, apoio nos sectores democratas radicais mas não desautorizou a linha da Unidade do 4.° Congresso. Exigiu-se a Fogaça a autocrítica pública que nunca fizera pela sua “política de transição” mas não se pôs em causa a via do “levantamento nacional” de Cunhal. Tentou-se imprimir um cunho mais independente à luta do proletariado e ao partido, como se isso fosse possível sem sair do quadro estratégico reformista em que ele se deixara aprisionar.
Esta inconsequência estreitou cada vez mais o campo à direcção de J. Gregório, imobilizou-a no sectarismo e permitiu à ala direita do partido (Fogaça, Pires Jorge, O. Pato, etc.) voltar ao contra-ataque assim que as condições nacionais e internacionais abriram novas esperanças à reconstituição da Unidade democrática. Em 1955, o PCP iniciava nova e mais impetuosa viragem à direita, desta vez quase sem encontrar resistência.
Sétima lição: o sectarismo e o dogmatismo do PCP em 1950-53 não resultaram de pretensões revolucionárias “excessivas”, mas, pelo contrário, da vacilação de se pretender virar à esquerda sem romper com o curso oportunista tradicional.
Em 1960, regista ainda Cunhal, o PCP venceu um desvio de direita (a “solução pacífica para o problema político português”) e uma tendência anarco-liberal no trabalho de direcção. Também esta luta teria sido satisfatoriamente resolvida pela boa vontade de todos os intervenientes, vindo a culminar no “ulterior desenvolvimento da linha revolucionária do partido”.
Na realidade, o que se passou em 1956-59 foi uma explosão de oportunismo desencadeada pela tese do 20.° Congresso do PCUS sobre a “possibilidade de passagem pacífica ao socialismo”. Desta vez numa escala muito mais vasta do que a vertigem de direita detonada vinte anos antes pela política das Frentes Populares do 7° Congresso da Internacional.
Deslumbrados pelas novas perspectivas de colaboração de classes legitimadas pelo 20° Congresso e correspondendo às orientações de Krutchov para que os comunistas dessem sinais de boa-vontade, os dirigentes do PCP traduziram-nas de imediato pela “possibilidade de afastamento pacífico de Salazar”. O eixo da política do partido foi deslocado para a rápida construção de um movimento unitário tão amplo como nunca se vira, capaz de englobar até os fascistas descontentes. Já não era preciso pensar em derrubar Salazar porque a Oposição iria roubar-lhe toda a base de apoio…
Com este oportunismo extremo, Fogaça esquecia a lição já tirada pela ala de Cunhal: só um PCP sólido na classe operária, capaz de se defender, podia impor-se ao respeito de toda a Oposição e empurrá-la para a luta.
Tal como vinte anos antes, o sacrifício do partido à Unidade revelou-se arriscado e improdutivo. Incapaz de tomar uma atitude independente na grande agitação popular em torno do general Delgado, o partido perdeu a capacidade de mobilização operária, o seu aparelho clandestino tornou-se mais e mais vulnerável aos golpes da PIDE, a sua autoridade como parceiro das forças liberais foi abalada.
A dinâmica da “solução pacífica”, ao buscar uma liberalização do regime a curto prazo e por qualquer preço, arrastava o PCP para concessões sempre maiores. Em 1960, quando Cunhal retomou funções na direcção, após a fuga da cadeia, o PCP estava em risco de perder o papel de motor da Oposição, que se tornara a razão da sua vitalidade política. Não foi difícil a Cunhal obter plenos poderes de uma direcção em crise e restabelecer o partido na rota do oportunismo cauteloso, vigilante e esforçado de que fora desviado pelas fantasias da “solução pacífica”.
Ao triunfar mais uma vez sobre os seus opositores internos, Cunhal não se limitou a restabelecer “a via do levantamento nacional”. As suas concepções acerca do caminho para derrubar Salazar sem revolução amadureceram na linha do 6.° Congresso. O reformismo português, estimulado pela experiência de 1956-59, elaborou a cúpula estratégica que lhe faltava. Mas para isso teve que derrotar primeiro uma nova dissidência que lhe surgiu desta vez pela esquerda.
Oitava lição: o traço característico da “solução pacífica” foi o seu elevado apodrecimento oportunista. O traço característico da luta contra a “solução pacífica” foi a consolidação do oportunismo em torno da estratégia da “revolução democrática e nacional”.
Em 1963-64, segundo o secretário-geral do PCP, alguns membros abandonaram o partido a fim de formarem grupos maoístas. Também isto é quase verdade; só lhe falta o “quase”.
A cisão de 1963 não foi uma bagatela, mas o culminar de uma luta de tendências gerada no interior do partido como ressaca da luta anterior. Ao criticar o oportunismo da “solução pacífica”, Cunhal não podia evitar que se rompesse a lógica oportunista reinante e que surgissem perguntas novas: como pudera o partido rebaixar-se ao ponto de oferecer uma saída pacífica a Salazar? porque tinha que se subordinar o partido às exigências da Unidade? o que se fizera afinal para dar independência política à classe operária? por que se tinha esquecido os camponeses pobres como primeiro aliado da classe operária?
A polémica China-URSS, a insurreição em Angola, o reacender da agitação popular em 1961, deram uma envergadura inesperada à nova polémica que se iniciava. Acompanhar Krutchov na denúncia do “estalinismo”, na via pacífica e na coexistência pacífica, ou atrever-se a dizer que isto já nada tinha a ver com a revolução russa? Fazer a condenação moral da guerra em Angola ou ir à luta pela derrota do governo nessa guerra, enfrentando a acusação de “traição à Pátria”? Continuar a oferecer aos democratas a luta operária e popular como força de choque ao serviço dum levantamento nacional-militar, ou jogar a fundo nas perspectivas novas para a insurreição popular?
Nunca desde a sua fundação enfrentara o PCP uma opção de tal envergadura, que enfeixava na mesma polémica todas as questões sucessivamente acumuladas em decénios de compromissos e cedências. Virar mais à direita ou virar finalmente para a esquerda?
A resposta estava de antemão traçada. Sob a condução de Álvaro Cunhal, o PCP transpôs o umbral que lhe faltava para entrar na maioridade reformista: travou uma luta sistemática contra a ala esquerda e teorizou-a nos documentos do 6.° Congresso. O facto de esta ala esquerda, então agrupada no Comité Marxista-Leninista Português, ser numericamente insignificante e estar ela própria amarrada, através do maoísmo, a muitas das tradições oportunistas do movimento, não diminuiu a importância da opção feita pelo PCP. Activou-se a sua dinâmica para se integrar de forma mais completa e consciente nos destinos da sociedade burguesa.
Nona lição: na luta de 1963-64 teve o seu coroamento a guerra confusa, arrastada, mas nunca interrompida desde 1921, para decidir se o PCP seria um partido operário ou um partido pequeno-burguês para operários. O PCP estabilizou-se como um partido de reformas democráticas no quadro do capitalismo.
As lutas internas no PCP não são acidentes ou o resultado de “erros”. Formam uma sequência coerente através da qual o partido se deslocou, numa série de ziguezagues, do campo da revolução, para o campo do reformismo. Passadas as lutas iniciais, que preenchem o processo de formação do partido, estende-se entre o 18 de Janeiro e a teoria da “revolução democrática e nacional” um período de 30 anos de conflitos, reajustamentos e sobressaltos, que correspondem à tomada do partido pela pequena burguesia e à sua transformação num partido pequeno-burguês para operários.
É pois completamente insustentável a tese, defendida pelo PC(R), de um brusco “assalto da camarilha revisionista à direcção do velho PCP revolucionário de Alex, Militão e Gregório”, na sequência do 20° Congresso. Difundida para tentar capitalizar em benefício da corrente marxista-leninista o passado do PCP e facilitar a atracção da sua base operária, esta tese só serviu para empobrecer a crítica ao revisionismo e transferir para o PC(R) tradições oportunistas herdadas do “velho PCP”.
Pelo mesmo motivo, é igualmente destituída de fundamento a tese preferida dos meios social-democratas e liberais, que interpretam as lutas internas do PCP como meros ecos das viragens da política externa da URSS. As lutas internas no partido surgem em geral sob o influxo de viragens na política do movimento comunista. Mas correspondem a conflitos de classe nas fileiras dos comunistas portugueses, impulsionam ou dificultam uma luta de classes interna — a disputa da direcção do Partido Comunista Português entre a classe operária e a pequena burguesia.
O traço mais característico das lutas internas no PCP é a fraqueza extrema da sua corrente de esquerda, privada de perspectiva estratégica e por isso eivada de preconceitos putschistas e sindicalistas. Sempre minoritária no partido, a corrente de esquerda revelou, além disso, uma consciência muito imperfeita dos seus objectivos. Só na cisão de 1963, uma esquerda já reduzida à ínfima expressão foi capaz de formular uma plataforma de ruptura que deu origem à corrente marxista-leninista.
Esta fraqueza da esquerda é que explica que os saltos, as viragens, as lutas de fracções (cuidadosamente esbatidas pela historiografia oficial do PCP) raramente tenham sido obrigadas a definir-se com rigor e a pôr plataformas antagónicas em confronto. A polémica girava em regra em torno de questões tácticas e organizativas, que ocultavam as opções políticas de fundo.
Foi nestas circunstâncias que o PCP pôde deslizar gradual e quase insensivelmente do objectivo revolucionário para o alvo da democracia burguesa sem romper a fidelidade formal ao leninismo.
Esta evolução, que não foi mais afinal do que uma parcela da grande viragem internacional do movimento comunista ao longo do último meio-século, foi afastando cada vez mais a prática do partido da sua teoria. Em teoria, partido leninista para a luta contra o oportunismo no movimento operário, pela conquista do poder, pela revolução socialista. Na prática, partido para articular a luta económica dos operários na luta política de toda a Oposição, pela conquista da Democracia. Em teoria, instrumento da hegemonia do proletariado. Na prática, instrumento da hegemonia pequeno-burguesa, sob o argumento de uma política “leninista” de alianças.
Foi neste quadro que a luta interna no PCP evoluiu basicamente para uma luta entre duas correntes oportunistas e que nessa luta se formou o “cunhalismo” como expressão acabada daquilo que se pode chamar o “menchevismo” português. O traço mais evidente do “cunhalismo” é a sua prudência perante as inovações oportunistas extremas, o que lhe granjeou uma imagem radical e leva os críticos burgueses a classificarem-no como “estalinista”. Isto não é resultado do temperamento de Cunhal mas das condições da luta de classes em Portugal. A. Cunhal aprendeu na dura escola da luta antifascista a não acreditar em concessões fáceis. A experiência ensinou-lhe que só o motor da luta operária consegue dinamizar e empurrar para diante as forças “democráticas e patrióticas” da burguesia. A sua mensagem de meio-século pode resumir-se nesta ideia: “As reformas ninguém no-las dará se não formos nós a lutar por elas”.
Esta vigilância reformista, que o levou por duas vezes a entrar em conflito com a escola moderada de J. Fogaça, permitiu ao PCP conservar todos os seus trunfos perante os aliados democrático-burgueses incertos e poltrões e dinamizar o “levantamento nacional” tal como Cunhal o sonhara: com os militares, com os democratas, com o povo, com o PCP — e sem revolução.
Foi também ela que poupou ao PCP os desaires que, a partir do 20° Congresso, engoliram tantos outros partidos. Hoje, Carrillo e Prestes, em tempos delfins da audácia oportunista, definham na falência, enquanto o “dogmático” Cunhal chefia um dos mais influentes partidos revisionistas. A sua prudência e senso de equilíbrio permitiram-lhe conduzir o PCP para o campo do parlamentarismo e da defesa da ordem sem deixar abrir nenhum espaço significativo à sua esquerda no movimento operário. A “dureza” do cunhalismo foi a forma necessária para conduzir o movimento operário português em bloco para o reformismo.
A segunda característica notável do ‘’cunhalismo” é a sua vocação para absorver as contradições internas, fundir as posições opostas numa linha comum, “ter em conta o lado justo mesmo das criticas erradas”, “não pôr rótulos nos camaradas em divergência”, “tudo fazer para evitar a cristalização de opiniões”. Cunhal conseguiu assim atenuar o ritmo e a violência das lutas internas e fazer evoluir o partido para a direita através de um longo período de pacificação interna.
Esta sabedoria centrista, como todo o centrismo, não é neutra. A paciência unitária demonstrada pela corrente dominante no PCP face às propostas abertamente capituladoras, como a “transição” e a “solução pacífica”, teve a sua contrapartida na inflexibilidade com que foi combatida a ala esquerda do partido. O que se compreende: a polémica com os capituladores era uma luta entre camaradas, susceptível de ser harmonizada numa plataforma comum; a polémica com os chamados “esquerdistas”, pelo contrário, era uma luta contra inimigos, representantes de outra corrente, estranha à trajectória reformista do partido.
A ideologia cunhalista da superação pacífica das contradições no PCP encobre uma política de fusão com a ala direita do partido e de eliminação da sua ala esquerda.
Estas características do cunhalismo permitiram-lhe integrar o PCP nas instituições, sem rupturas no movimento operário e com relativa estabilidade interna. Contudo, a marcha lenta mas incessante da luta de classes, marcada pelos abalos da crise revolucionária de 1974-75, dita o envelhecimento progressivo do cunhalismo. O PCP caminha para novas crises internas, em que vai ser elaborado um novo sistema de ideias e um novo estilo, mais adequados ao passo seguinte da sua trajectória: tornar-se um partido de governo.
É talvez pressentindo a aproximação desse conflito que Álvaro Cunhal se ocupa no seu último livro em extrair das lutas do passado uma lição moderadora e unitária. Não parece que possa com isso poupar o PCP à sua décima luta interna.
Notas de rodapé:
(1) Álvaro Cunhal, O Partido com paredes de vidro, Ed. Avante, 1985, pags. 238-241. (retornar ao texto)
(2) Idem, pág. 253. (retornar ao texto)
(3) A “política de transição já tivera precedentes na proposta de “política nova”, formulada também no Tarratal por Bento Gonçalves pouco antes de morrer, e que consistia na oferta de cooperação a Salazar, caso este desse garantias de defender a independência de Portugal contra as ameaças de absorção pela Espanha franquista. A “política nova” e a “transição” foram os ramos nacionais da tendência liquidadora internacional do “browderismo”. (retornar ao texto)
Inclusão | 23/05/2018 |