A Doutrina Comunista do Casamento

David Riazanov


Capítulo IV


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Antes de 1846, Marx e Engels desenvolviam sua atividade, sobretudo nos meios intelectuais burgueses, dos quais eles se esforçavam em fazer aderir à sua causa, os melhores representantes.
Depois da primavera de 1846, eles consagraram-se ao trabalho de organização nos meios operários. Entram em contato com numerosos grupos operários da Alemanha, França e Inglaterra; ao mesmo tempo, tomam parte ativa nas discussões acaloradas que surgem nos círculos operários. Ao cabo de dois anos de trabalho, Marx e Engels resolvem unir todos esses círculos e fundar a "Associação dos Comunistas". Marx ficou encarregado de elaborar o programa.

Os principais pontos desse programa já foram estudados em diversos círculos. Alguns processos-verbais do circulo de Londres, chamado "Sociedade operária alemã de Estudos" foram por nós conseguidos. Segundo esses processos-verbais, vê-se que a discussão se desenvolvia segundo toda uma série de questões formuladas à maneira do catecismo. Encontram-se aí duas questões referentes ao casamento e à família. A décima nona questão: "Como organizareis a educação das crianças na época transitória?" segue a resposta:

"Todas as crianças, desde a idade em que possam dispensar os cuidados maternos, serão criadas e educadas nas instituições do Estado".

A vigésima questão está assim resumida: "Abolida a propriedade privada, a posse, comum das mulheres será proclamada?"

A resposta do circulo de Londres declara:

"Em caso algum. Não interviremos nas relações privadas entre homens e mulheres senão na medida em que possam perturbar a nova ordem social. Sabemos perfeitamente que no curso da historia, as relações da família experimentavam modificações que dependiam das fases da evolução da propriedade; eis porque, nós o sabemos, a abolição da propriedade privada exercerá sobre essas relações a mais decisiva influencia".

Não há, duvida que Engels tinha em suas mãos essa coleção de questões, na época em que escrevia o seu conhecido folheto, Os Princípios do Comunismo. Nós encontramos lá a vigésima primeira questão:

"Que influencia exercerá o regime comunista sobre a família?"

Que responde Engels a essa questão?

"As relações entre os sexos" declara ele, "tornar-se-ão um caso privado que só tocará às pessoas interessadas; a sociedade não intervirá. Isso tornar-se-á possível graças à abolição da propriedade privada e à educação das crianças à custa da sociedade; por esse fato, os dois fundamentos do casamento atual serão abolidos; a mulher não dependerá mais do marido, nem os filhos de seus pais (essa dependência só existe hoje graças à propriedade privada). Eis a nossa resposta a todo o alarde feito pela burguesia contra a poligamia comunista. A poligamia é um fenômeno próprio à sociedade burguesa e perfeitamente realizado hoje pela prostituição. Mas baseada na propriedade privada, a prostituição desaparecerá, a organização da sociedade comunista não introduzirá a poligamia; ao contrario, ela a abolirá".

O projeto do catecismo comunista escrito por Engels não foi publicado. Por proposta sua, a forma do catecismo foi repelida e o programa da associação foi elaborado em forma de manifesto. Este foi escrito por Marx, que serviu-se em parte do projeto de Engels. Como no Manifesto Comunista, as idéias de Marx e Engels sobre o casamento e a família na sociedade burguesa e na do futuro, encontram sua expressão mais perfeita. Permito-me citar aqui o paragrafo, em questão, quase completo:

"Abolição da família! Até os mais radicais ficam indignados diante desse desígnio infame dos comunistas.

Sobre que fundamento repousa a família burguesa de nossa época? Sobre o capital, sobre o ganho individual. A família, na sua plenitude, só existe para a burguesia; mas encontra seu complemento na supressão forçada da família para o proletário e na prostituição publica. A família burguesa desvanece-se naturalmente com o desvanecer de seu complemento necessário e uma e outra desaparecerão com o desaparecimento do capital. As declarações burguesas sobre a família e a educação, sobre os doces laços que unem a criança aos pais, tornam-se cada vez mais repugnantes à medida que a grande industria destrói todo laço de família para o proletário e transforma as crianças em simples objetos de comercio, em simples instrumentos de trabalho.

Mas vós comunistas, quereis introduzir a comunidade das mulheres! clamam em coro todos os burgueses. Para o burguês, sua mulher nada mais é que um instrumento de produção. Ouvindo dizer que os instrumentos de produção serão postos em comum, ele conclui naturalmente que haverá comunidade de mulheres. O burguês não desconfia que se trata precisamente de dar à mulher outro papel que o de simples instrumento de produção. Nada mais grotesco, aliás, que o horror ultra-moral que, a nossos burgueses, inspira a pretensa comunidade oficial das mulheres entre os comunistas. Os comunistas não precisam introduzir a comunidade das mulheres, pois ela quase sempre existiu. Nossos burgueses, não contentes em ter à sua disposição as mulheres e as filhas dos proletários, sem falar da prostituição oficial, encontram um prazer singular em seduzir as mulheres uns dos outros. O casamento burguês é, na realidade, a comunidade das mulheres casadas. No máximo, poderiam acusar os comunistas de querer substituir uma comunidade de mulheres hipócritas e dissimulada, por outra que seria franca e oficial. De resto, é evidente que, com a abolição das relações de produção atuais a comunidade das mulheres que deriva dessas relações, isto é, prostituição oficial e não oficial, desaparecerá."

Vemos que onde Marx se serve do projeto de Engels, ele dá aos argumentos deste um caráter mais decidido. Na sua polemica contra os pensadores burgueses, ele não repete a sua critica do comunismo grosseiro e inculto, mas no Manifesto também acentua fortemente o traço distintivo do regime comunista no que se refere à situação da mulher: é somente este regime que criará as condições onde a mulher não será mais um simples instrumento de produção e de gozo, e onde desaparecerá toda prostituição oficial ou não.

O programa exposto no Manifesto Comunista serviu de base ao do nosso partido comunista. Apesar de algumas diferenças, que entretanto foram afastadas, no decorrer do trabalho comum, não encontrareis nem em Marx nem em Engels nenhuma razão para estabelecer, hoje, a questão: as relações sexuais desordenadas ou "comunismo sexual" serão compatíveis com a sociedade comunista? Essa questão vem demonstrar que os que a estabelecem sobre o plano do comunismo grosseiro e inculto que se julga ingenuamente um ser superior ao burguês que clama contra a "socialização das mulheres", porque se pronunciou "categoricamente" por todas as formas do comunismo sexual. Toda poligamia demonstra o grau cultural inferior das suas "causas" e dos seus "fins". Na sua forma corrente de bigamia, a poligamia demonstra somente que o reino da falsa formosura continua, que a mulher torna-se por sua própria vontade uma estúpida e que as relações entre "marido" e "esposa" são regidas por uma hipocrisia não menos abjeta do que "a existência equivoca, inconveniente e hipócrita" da família polígama da sociedade burguesa.

Nada mais irrisório que os nossos pequenos cantores do "direito ao amor" que, no seu êxtase poético ou politico, supõem que "cantam" qualquer cousa de novo. Marx e Engels já conheciam a experiência da "União dos livres" na qual Engels participava diretamente. No seu Estado e Anarquia, Bakounine observa que os membros desse "ultimo circulo de niilistas alemães ultrapassou no seu cinismo os niilistas russos os mais "ardentes".

Marx e Engels conheciam perfeitamente as idéias extremistas de alguns saint-simonianos que proclamavam a teoria dos "constantes" nascidos para a monogamia, e dos "inconstantes" que não podiam adaptar-se senão a um casamento "de pouca duração". Marx e Engels compreendiam perfeitamente que essa paixão intelectual de Eros alado não apresentava senão uma revolta natural, embora pouco sinfônica, contra o casamento burguês e todos os seus obstáculos. Mas eles concebiam também que o desenvolvimento da civilização e o triunfo da humanidade sobre a bestialidade terminariam pela criação de novas formas de comércio sexual, condicionado pelo desenvolvimento geral do homem, bem como da mulher, e excluindo todo elemento de bestialidade e de prostituição.


Inclusão 10/09/2011