A Doutrina Comunista do Casamento

David Riazanov


Capítulo II


capa

Poderão objetar que essas idéias foram proclamadas por Marx na época em que ele ainda não era comunista e, seguramente, nem "marxista". É verdade que esse ultimo artigo foi escrito por Marx quando ele já tinha abandonado o ponto de vista da burguesia democrata para adotar o do proletariado.

Exponhamos suas idéias, tais como elas têm evoluído, desde a época onde, no seu artigo "Critica da filosofia hegeliana", ele resumiu pela primeira vez a missão histórica do proletariado: abolição da divisão da sociedade em classes; libertação absoluta da humanidade de todas as cadeias que lhe são impostas pela propriedade privada; implantação do regime comunista.

Tudo baseado nos princípios do comunismo cientifico, Marx foi todavia forçado a criticar a doutrina dos representantes desse comunismo que ele chama "grosseiro, inculto e até reacionário". Na sua luta contra a propriedade privada, esses comunistas não aboliam a propriedade privada, mas transformavam-na antes em uma propriedade privada comum. Seu comunismo apresentava uma generalização da propriedade privada. No Manifesto Comunista nós não vemos senão o resultado desta critica. Entretanto, tive a sorte de encontrar um manuscrito de Marx onde ele critica esse comunismo "grosseiro" e "cru" nas suas relações não somente com a propriedade privada em geral, mas também com o casamento. Excuso-me de aprofundar numa longa citação(1):

"Considerando a propriedade privada, na sua geração, o comunismo é na sua forma primitiva a generalização e a abolição da propriedade privada. Em relação a essa abolição, há dois aspectos: de um lado, ele sobrestima o papel e a dominação da propriedade material de um ponto de vista tal que ele quer destruir tudo o que não pode trazer a fortuna e a propriedade privada de todo o mundo; ele quer suprimir pela violência as capacidades particulares, etc. A posse física imediata surge aos seus olhos como o principio único da vida: a forma de atividade do trabalhador não é abolido desse estado, mas estende-se a todos os homens.

A instituição da propriedade privada continua sendo a relação da coletividade no mundo das coisas; e esse movimento que tende opor à propriedade privada a propriedade privada tornada comum, se exprime de uma forma completamente animal, quando opõe ao casamento (que é, evidentemente uma forma de propriedade privada exclusiva) a comunidade das mulheres: quando, por conseguinte, a mulher torna-se uma propriedade coletiva e abjeta. Pode-se dizer que essa idéia da comunidade das mulheres revela o segredo dessa forma de comunismo ainda grosseiro e desprovido de espírito. Do mesmo modo que a mulher abandona o casamento pelo reino da prostituição geral, assim também o mundo inteiro da riqueza, isto é, da essência objetivada do homem, passa do estado de casamento exclusivo com a propriedade privada à prostituição geral com a coletividade. A prostituição não é senão uma expressão particular da prostituição geral do operário, e como a prostituição se estende não somente ao prostituido, mas também ao prostituinte (cuja abjeção torna-se ainda maior), o capitalista também está incluído nessa categoria, etc. Esse comunismo que nega em toda parte a personalidade humana, não é senão uma expressão consequente da propriedade privada da qual ela própria é essa negação.

A mulher considerada como presa e como objeto que serve para satisfazer a concupiscência coletiva exprime a degradação infinita do homem quando só existe para si, pois o mistério entre a relação do homem com o seu semelhante encontra a sua expressão não equivoca, decisiva, franca, nas relações do homem e da mulher e na maneira de encetar essas relações genéricas naturais e diretas.

A relação direta, natural, necessária dos seres humanos é a relação entre o homem e a mulher. Nessa relação genérica natural, a relação entre o ser humano e a natureza representa diretamente a relação do homem com o homem, do mesmo modo que a relação entre os homens representa diretamente a relação do homem com a natureza, atributo natural do homem. Por conseguinte, essa relação manifesta de uma maneira sensível, exteriorizada, a maneira pela qual a essência humana tornou-se natureza para o homem e como a natureza tornou-se a essência humana do homem. Eis porque, baseando-se sobre essa relação, pode-se julgar o grau geral do desenvolvimento do homem. O caráter desta relação nos mostra até que medida o homem tornou-se um ser genérico, até que medida ele tornou-se homem, e até que ponto ele o o compreende. A relação entre o homem e a mulher é a mais natural entre seres humanos. Por conseguinte, vê-se até que ponto o comportamento natural do homem tornou-se humano, e até que ponto a essência humana tornou-se para ele a essência natural, até que ponto sua natureza humana tornou-se natureza para ele. Essa relação lembra também a que ponto a necessidade do homem tornou-se uma necessidade humana, isto é, até que ponto um outro ser humano tornou-se para ele uma necessidade, como homem. Lembra que na sua existência individual é ao mesmo tempo um ser social. Assim, a primeira forma positiva da abolição da propriedade privada, o comunismo grosseiro, não é senão uma forma onde se manifesta a abjeção da propriedade privada que quer afirmar-se ela própria como maneira de ser social positivo".

Numerosos são os comunistas que ainda hoje não compreendem que os seus discursos quase radicais sobre a poligamia não representam senão um eco daquele "comunismo grosseiro" que adotava automaticamente a sociedade do futuro, as concepções criadas pela sociedade fundada sobre a propriedade privada.

"A propriedade privada tornou-nos tão

"estúpidos e tão acanhados que um objeto só é nosso quando o possuímos, quer dizer, quando ele existe para nós como capital, quando nós o temos como posse imediata, quando o comemos, bebemos, vestimos, vivemos nele, etc., numa palavra, quando o consumimos...

Eis a razão porque o lugar de todos os sentimentos físicos e morais foi ocupado pela simples alienação de todos esses sentidos, para o sentido da posse. A essência humana deveria cair nessa pobreza absoluta para poder fazer surgir dela a sua riqueza interior!" (Marx).

Segundo a teoria que proclama o homem um ser superior para o homem, que demonstra a necessidade da abolição de todas as condições sociais que humilham o homem e transformam-no em objeto de humilhação, de exploração e de satisfação das necessidades de outrem; segundo essa teoria, toda tentativa de colocar num mesmo plano uma necessidade tão natural como a da alimentação e como a do instinto sexual, demonstra somente um nível cultural extremamente baixo. O objeto que satisfaz a primeira dessas necessidades não passa de uma coisa; o que satisfaz a segunda é um ser humano, um ser que age, e que pode sofrer, um ser social.

No curso da historia humana, da transformação da besta em homem, nas necessidades tornaram-se cada vez mais humanas.

"Não somente os cinco sentidos ordinários, mas também os sentidos morais, os sentidos práticos (a vontade, o amor) numa palavra, o sentido humano, a humanidade dos órgãos dos sentidos não nasce senão graças à existência do seu objeto, gradas à natureza humanizada. A formação dos cinco sentidos é um produto da historia universal. Os sentidos cativos da grosseria necessidade pratica não tem senão uma significação limitada. Para um homem esfomeado a forma humana da alimentação não existe, ele não tem senão sua existência abstrata como alimentação; ela teria tido o mesmo fato sob a forma mais grosseira, e é impossível de se dizer em que esta maneira de satisfazer a necessidade se distingue da do animal". (Marx).

Do mesmo modo, no curso da historia universal, o instinto sexual toma uma série de metamorfoses, segundo a maneira animal de satisfazê-lo até "o maior progresso moral" atingido pela humanidade, segundo Engels: até o amor sexual individual de hoje.


Notas de rodapé:

(1) O novo manuscrito de Marx foi publicado no terceiro livro dos arquivos de Marx e Engels. Ele foi traduzido do russo e anotado por Albert Mesnil no n.° 4 da Revista Marxista. (retornar ao texto)

Inclusão 04/09/2011