Introdução a
Os perigos profissionais do poder
de Christian Rakovski

Marcio Lauria Monteiro

3 de março de 2017


Fonte: Marx e o Marxismo v.5, n.8, jan/jun 2017, págs. 164-174

Colaboração: Marcio Lauria Monteiro

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.

Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.


capa

A intensa luta que foi travada em prol da regeneração democrática da União Soviética é frequentemente deturpada e reduzida a um embate personalista entre Iosif Stalin e Leon Trotski. Nada mais distante da realidade. Tal luta foi travada por milhares de homens e mulheres contra uma poderosa máquina burocrática estatal e partidária que, à altura da morte de Lenin (janeiro de 1924), já havia angariado considerável autonomia relativa perante as massas trabalhadoras que fizeram a revolução. Não à toa, o próprio Lenin dedicou seus momentos finais a uma “última luta” contra o que nomeava “burocratização soviética” (Lewin, 2005). E, ao longo dos anos 1920, essa luta continuou a ser travada por diferentes agrupamentos no interior do Partido Comunista da Rússia (bolchevique) [PCR(b)], dentre os quais o que mais angariou visibilidade histórica foi a Oposição de Esquerda. Ainda que liderado por Trotski e tendo lançado algumas das bases fundamentais da posterior Quarta Internacional “trotskista” (ou “bolchevique-leninista”, nos termos de seus próprios membros), esse agrupamento não é redutível a tal figura histórica.

Dos milhares anônimos que morreram nos gulags siberianos a quadros dirigentes como Ievgeni Preobajenski, Karl Radek e Christian Rakovski, a Oposição de Esquerda era um organismo vivo, no interior do qual abundavam elaborações sofisticadas sobre a então situação e os desafios políticos da revolução soviética, da qual dão conta os materiais publicados pelo seu órgão clandestino, o Biulleten Oppozitsi (“Boletim da Oposição”). Infelizmente, essa existência para lá da figura individual de Trotski foi, em grande parte, apagada da História pela morte anônima no frio siberiano de seus militantes de base ou pela capitulação de parte de seus quadros dirigentes a Stalin, no contexto do seu suposto “giro à esquerda” — a coletivização (forçada) do campo e o começo dos Planos Quinquenais.

Ante o centenário da Revolução Soviética, apresentamos um documento no qual um desses quadros, Christian Rakovski, desenvolve uma análise acerca da chamada “burocratização soviética”, focando particularmente na questão da apatia política das massas proletárias após a tomada do poder e a concomitante formação de um setor administrativo e gestor dotado de interesses sociais próprios e distintos dos daquelas. Esse quadro representava um empecilho para o então objetivo central da Oposição, reformar o partido e o Estado para restaurar a democracia soviética. Espera-se, com isso, cooperar para o resgate da história e da memória da Oposição de Esquerda e de aspectos da história soviética soterrados por anos de falsificações stalinistas e pró-capitalistas. A maior parte das linhas que se seguem, a não ser quando indicado o contrário, é baseada em uma curta nota autobiográfica publicada no almanaque Granat, em 1926 (Rakovsky, [1926] 1980), em uma sintética biografia escrita pelo trotskista inglês Gus Fangan (1980) e na biografia mais detalhada escrita pelo historiador francês Pierre Broué (1996).

Quem foi Chistian Rakovski

Nascido na Bulgária em 13 de agosto de 1873, filho de um bem-sucedido mercador e proprietário de terras, Krastyo Georgiev Stanchev posteriormente mudou seu nome para Krastyo Rakovski — ou “Christian”, conforme é comumente grafado (a transliteração Rakovsky também é comum para seu sobrenome). Seguindo a tradição de sua família materna, envolvida na luta pela libertação contra o domínio turco, desde cedo ele também se envolveu na militância política. Ainda no colegial, em 1887, participou de uma rebelião na cidade de Dobruja, tendo sido preso e banido das escolas búlgaras. Apesar de ter sido readmitido algum tempo depois, deu início à publicação de um jornal clandestino, o que lhe valeu um banimento definitivo quando foi descoberto. Impossibilitado de prosseguir os estudos em seu país, partiu para Genebra, para estudar medicina.

Em Genebra, aproximou-se do grupo de Georgi Plekhanov, considerado pai do marxismo russo, colaborando com seu jornal. Ao longo desse exílio, também teve contato com quadros como Pavel Axelrod e Vera Zasulich e com círculos de exilados de diferentes partidos social-democratas europeus, publicando artigos e ensaios em seus respectivos jornais. Participou ainda de círculos de educação com estudantes russos, nos quais conheceu Rosa Luxemburg. Sua militância, bastante focada na luta contra o czarismo, levou-o a participar da organização do II Congresso Internacional da Juventude Socialista. Paralelamente, organizou também um jornal social-democrata dos emigrados búlgaros, o que o levou a ser uma figura importante na nascente imprensa social-democrata em seu país de origem.

Na década de 1890, Rakovski viveu entre a França, onde começou a estudar direito, e vários outros países europeus, sempre colaborando com a imprensa socialista por onde passava e representando o partido búlgaro nas conferências e congressos internacionais. Em consequência de sua militância revolucionária, foi expulso pelas autoridades locais diversas vezes, acumulando um total de quatorze deportações ao longo da vida — mais aquela à que foi condenado pelo governo stalinista posteriormente. Em 1904, mudou-se para a Romênia e, no contexto de uma forte onde grevista que tomou o país no ano seguinte, ajudou a fundar uma nova organização socialista local, que adquiriu forte base operária e auxiliou na fundação de vários sindicatos. Essa projeção levou-o a se tornar uma importante figura pública em tal país, tendo permanecido, por anos, como Presidente do Partido Social Democrata local, além de membro do partido búlgaro. Lá teve contato com os marinheiros rebelados do couraçado Potemkin e, em 1907, auxiliou a forte revolta camponesa que varreu a Romênia — o que lhe valeu três deportações, sempre acompanhadas de massivos protestos de rua em sua defesa.

Com a crise que atingiu a social-democracia ante a adesão da maior parte de seus partidos à Primeira Guerra Mundial, Rakovski juntou-se ao grupo dos chamados “internacionalistas” — um setor minoritário e heterogêneo, que se aglutinou na Conferência de Zimmerwald (setembro 1915), a qual ele ajudou a organizar. Na Conferência, Rakovski opôs-se à diminuta ala esquerda liderada por Vladmir Lenin, Karl Radek e Grigori Zinoviev, que demandava uma clara condenação do “social-chauvinismo” e do oportunismo nas fileiras social-democratas, além da adoção de diretrizes claras de como se combater a guerra imperialista. Não obstante, antes mesmo de Zimmerwald, ele já havia organizado a Federação Operária Social Democrata dos Bálcãs, um comitê de ligação entre aqueles partidos que não capitularam diante da guerra imperialista.

Um ano depois da Conferência de Zimmerwald, em setembro de 1916, o governo romeno o prendeu, sob acusação de ser um espião a serviço da Alemanha. Ele foi libertado em abril do ano seguinte por soldados russos, após a revolução de fevereiro de 1917, tendo então se dirigido para a Rússia, onde atuou realizando propaganda contra a guerra junto à ala internacionalista do partido menchevique. Todavia, após a tentativa de golpe de Kornilov, Rakovski aproximou-se dos bolcheviques, que o esconderam durante os dias mais críticos da intentona, tendo a eles aderido na virada de 1917 para 1918. Na nova condição de militante e dirigente bolchevique, atuou na frente revolucionária de Odessa, co mo parte do Rumcherod (Comitê Executivo Central dos Soviets do Front Romeno, da Esquadra do Mar Negro e do Distrito de Odessa), órgão de poder soviético que tentou realizar uma revolução no interior da Romênia, mas fracassou.

Em janeiro de 1919, Rakovski foi eleito Secretário do Governo Revolucionário Provisório dos Trabalhadores e Camponeses da Ucrânia, em substituição a Georgi Piatakov, que entrara em conflito com a liderança bolchevique russa por considerar que esta interferia demais no governo local. No mesmo ano, esteve presente na fundação da Internacional Comunista (IC). Reflexo do seu cosmopolitismo e internacionalismo revolucionário, ele acumulou ainda vários outros cargos importantes durante os anos da guerra civil, como na direção da IC, do PCR(b) e dos PCs ucraniano e búlgaro.

Em 1920, sofreu dura oposição no congresso do Partido Comunista da Ucrânia, no qual um amplo setor criticou duramente a então liderança de negligenciar a autonomia do partido e do país em relação à Rússia. Apesar da liderança não ter sido reeleita, um expurgo foi realizado após o congresso e ela foi reconduzida ao poder. Não obstante, no começo dos anos 1920, Rakovski tornou-se adepto das posições pró-autonomia e entrou em conflito com o projeto de formação da União Soviética, encabeçado por Stalin, uma vez que esse não garantia o direito à autodeterminação das repúblicas partícipes.

Assim, em 1923, no contexto conturbado de disputa do partido e governo georgiano (pró-autonomia) com a liderança do PC russo em torno dessa questão, Rakovski tomou o lado dos primeiros, assim como fizera Lenin (então em minoria contra Stalin no interior do partido russo). Por conta disso, antes mesmo da formação da Oposição de Esquerda, ele já havia se destacado como crítico das crescentes tendências de centralização burocrática do novo Estado soviético, tema que predominou em sua atuação no XII Congresso do PCR(b) (1923) — ao passo que Trotski, que Lenin havia conclamado a tomar o lado dos georgianos em tal Congresso, optou por fazer um acordo com Stalin (Deutscher, 2005; Lewin, 2005).

No mesmo ano, teve início a luta da Oposição de Esquerda contra a troika Stalin/Lev Kamenev/Giorgi Zinoviev, que assumiu a direção do PCR(b) na ausência de Lenin (que então já se encontrava muito debilitado, tendo falecido em janeiro do ano seguinte), com o apoio das alas lideradas por Nikolai Bukharin e Alexei Rikov. A Oposição surgiu da iniciativa da “Declaração dos 46”, um documento dirigido ao Comitê Central (CC) do PCR(b) em outubro de 1923, no qual 46 “velhos bolcheviques” demandavam o retorno da democracia interna do partido, que fora tolhida por uma série de medidas adotadas durante os anos de guerra civil pós-revolução.

Durante os primeiros meses, a disputa foi travada de forma fechada no interior do CC, com Trotski sendo seu principal porta-voz, uma vez que havia expressado posições similares às da “Declaração” pouco antes desta ter sido escrita. Mas, já em dezembro, ela foi levada às bases do partido, formando-se de fato a Oposição de Esquerda (OE), que recebeu a adesão de diversos quadros antigos, além de ter angariado o apoio de membros das antigas Tendência Centralismo Democrático e Tendência Operária (no passado, as principais representantes da ala esquerda do partido). Além das demandas de retorno da democracia ao seio do partido (restituição do direito à formação de tendência e frações) e aos soviets (restituição do princípio de eleições diretas de delegados amovíveis, no lugar da prática então predominante de nomeações verticais), a OE também defendia que era necessário dar início à coletivização dos campos e ao planejamento econômico visando a industrialização do país, em substituição à Nova Política Econômica (NEP), que então demonstrava graves sinais de esgotamento (a chamada “crise das tesouras”).

Lançada em dezembro de 1923, a OE foi derrotada já no ano seguinte, na Conferência do PCR(b) de janeiro de 1924 e no XIII Congresso, de junho — no qual Stalin, fazendo o exato oposto do que Lenin advogara em seu “testamento político”, recrutou uma leva massiva de milhares de operários inexperientes para o partido, aos quais foram garantidos plenos direitos de voto. Leva essa nomeada (sarcasticamente?) de “Leva Lenin”, e que foi a base da troika contra a OE. Mesmo com a OE derrotada e proscrita, Trotski e seus colaboradores mais próximos seguiram ativos e, no começo de 1925, Kamenev e Zinoviev, descontentes com a adesão de Stalin à política de Bukharin, de “enriquecer os kulaks” e de construir o socialismo “a passos de tartaruga” e “em um só país”, formaram um bloco oposicionista, o qual se juntou à OE no ano seguinte, formando a Oposição Unificada.

A união entre a OE e o bloco liderado por Kamenev e Zinoviev não só se opunha à falta de democracia, mas também a uma série de posições que vinham submetendo a política de PCs fora da URSS aos interesses de “coexistência” da burocracia soviética com o imperialismo — como a conciliação de classes ante a greve geral inglesa de 1926 e a aliança com o Kuomintang na Revolução Chinesa de 1925-27 (encerrada com o massacre dos comunistas chineses) — ainda que a Teoria da Revolução Permanente de Trotski não fosse reivindicada pela Oposição Unificada (e nem mesmo pelo conjunto da OE). Tal bloco foi derrotado no XIV Congresso do partido, em dezembro de 1926, mas se manteve ativo até o XV Congresso, em 1928 (Alexander, 1991; Broué, 1973).

Durante esses anos mais intensos de batalha interna, entre 1923-27, Rakovski foi enviado para o exterior para desempenhar funções diplomáticas. Por mais que ele fosse apto para tal, uma vez que já havia atuado como diplomata nos primeiros anos da revolução, certamente seu envolvimento com a OE contou na designação dessas funções — uma prática que foi usada recorrentemente contra oposicionistas nessa época. Nesses anos, atuou primeiro como plenipotenciário na Inglaterra e depois como embaixador na França, obtendo alguns acordos favoráveis à URSS. Todavia, seu envolvimento com a OE gerou resistência por parte tanto do círculo dirigente stalinista, como do governo francês, tendo sido removido do cargo em 1927, após assinar uma declaração da Oposição na qual se afirmava que, caso países capitalistas entrassem em guerra com a URSS, dever-se-ia conclamar os soldados e trabalhadores estrangeiros à insubordinação e à insurreição.

De volta à URSS, participou ativamente dos planos da oposição para o 10° aniversário da revolução e o XV Congresso do partido, à altura renomeado para Partido Comunista da União (bolchevique) [PCU(b)]. Durante 1927, Rakovski viajou por toda a Ucrânia - um dos principais bastiões da OE -, proferindo palestras não só para círculos partidários, mas também em fábricas nas quais oposicionistas panfletavam clandestinamente. Isso fez parte de uma mudança na orientação da Oposição, para um trabalho entre as massas não partidárias — a qual foi respondida pelo aparato stalinista com dura perseguição, tendo culminado na supressão violenta das colunas da oposição que desfraldaram faixas próprias nos desfiles de comemoração da revolução, em outubro.

No mês seguinte, em novembro de 1927, Trotski e Kamenev foram expulsos do partido e Rakovski e outros oposicionistas foram expulsos do CC do PCU(b). Os três também foram expulsos do CC da Internacional Comunista. Na ausência de Trotski, Rakovski foi o orador principal da oposição no XV Congresso, realizado em dezembro, no qual criticou duramente a linha do Congresso anterior, de priorizar a “coexistência pacífica” com o imperialismo em detrimento do internacionalismo revolucionário. Seu discurso foi interrompido várias vezes por vaias e gritaria, ao ponto de não ter sido possível concluí-lo. Ao fim do Congresso, ele foi expulso do partido, junto a dezenas de outros oposicionistas. Também nesse Congresso, o bloco de Kamenev e Zinoviev capitulou diante de Stalin, deixando a OE novamente isolada — e mais de mil de seus membros foram expulsos do partido nos meses seguintes.

Nesse contexto de perseguição à OE, Rakovski foi exilado em Astracã, no extremo oeste da Rússia, tal qual Trotski em Alma Ata (atual Almaty, Cazaquistão). Lá assumiu o comando das forças oposicionistas da região e tornou-se o elo de Trotski com o mundo ocidental, enviando-lhe regularmente cartas, jornais e livros. Em 1928, foi movido de Astracã para Saratov, por razões de saúde - não sem resistência do aparato stalinista. Com a deportação de Trotski para fora da URSS, tornou-se a principal liderança da OE dentro do território soviético, ainda que sua imagem pública se projetasse muito além de sua efetiva atividade, limitada pelo exílio e pela vigilância. Quando da ruptura de Stalin com Bukharin (1928) e seu suposto “giro à esquerda”, Rakovski criticou duramente aqueles quadros e membros da OE que capitularam diante do primeiro, como Radek e Preobrazhenski.

Devido a uma declaração endereçada ao CC do PCU(b) e assinada por cerca de 500 quadros oposicionistas, apontando disposição da OE em retornar ao partido, mas estabelecendo condições e demandas para tal, ele foi enviado para Barnaul (Sibéria). Esse exílio para uma região mais distante e erma foi parte de uma nova onda de repressão aos oposicionistas, que confirmou que o suposto “giro à esquerda” de Stalin era apenas superficial. Um segundo manifesto seu foi publicado em abril de 1930, após o qual não mais circularam escritos seus por quase quatro anos. O silêncio foi rompido através de um curto telegrama, publicado na edição de 23 de fevereiro de 1934 do Izvestia (diário oficial da União), no qual Rakovski declarava se submeter “completamente e sem hesitação à linha geral do partido”, como fruto da “escalada reacionária internacional, dirigida em última análise à revolução de outubro” (isto é, o avanço nazifascista) (apud Fangan, 1980, [s.p.]).

Por algum tempo, sob uma atmosfera liberalizante, a Rakovski foi permitido assumir postos de importância em Moscou (como no interior do Comissariado de Saúde), tal qual ocorreu com outros oposicionistas que se “reconciliaram” com Stalin. Mas tal atmosfera durou apenas até 1° de dezembro de 1934, quando o assassinato de Kirov, o principal membro da ala pró-reconciliação do aparato stalinista, serviu de pretexto para uma brutal onda de repressão, que culminou nos infames “Processos de Moscou”. Rakovski foi implicado na segunda rodada dos processos, em 1937 (o “Julgamento dos 21”), tendo sido preso sob a acusação de ser parte do centro dirigente “trotskista”.

Ele permaneceu preso por oito meses, até ter “confessado” ser um espião. Em março de 1938, foi sentenciado a 20 anos de prisão (quase uma pena de morte, considerando sua idade já avançada). Ele foi fuzilado em 1941, quando da entrada alemã em território russo — estipula-se, a mando de Stalin, uma vez que, no contexto da Segunda Guerra Mundial, o aparato stalinista realizou um grande esforço de eliminar seus opositores de esquerda, fossem eles ativos ou não (o que incluiu o assassinato do próprio Trotski, em 1940). Cabe destacar que, em sua declaração na corte, quando de seu “julgamento”, mesmo forçado a “confessar” crimes inexistentes, Rakovski não deixou de se declarar um “soldado da causa da emancipação do trabalho” (apud Fangan, 1980, [s.p.]). Seu nome só voltou a ser “oficialmente” ouvido na União Soviética a partir de 1988, como parte das “reabilitações” de figuras históricas promovidas pela gestão de Mikhail Gorbatchev e sua distensão política, a glasnost.

Os perigos profissionais do poder: a burocratização soviética segundo Rakovski

Foi em seu breve exílio em Astracã que Rakovski escreveu o documento aqui apresentado, o qual era originalmente uma carta ao também oposicionista exilado, Nikolai Valentinov, dialogando com as inquietações (e a surpresa) desse acerca da falta de “espírito de atividade” das massas soviéticas ante escândalos de corrupção e abuso de poder que vieram à tona em 1928. A carta foi enviada em 6 de agosto daquele ano, no contexto da derrota da Oposição Unificada e da capitulação diante de Stalin por parte de seus quadros.

A presente versão desse texto foi traduzida a partir daquela publicada nos Cahiers Leon Trotski n. 18, de junho de 1984 (pp. 81-95). A não ser quando indicado, as notas que o acompanham são do editor de tal publicação, o historiador Pierre Broué. Os Cahiers foram uma importante iniciativa de resgate histórico e estudo do movimento trotskista, publicados pelo Institut Léon Trotsky entre 1977 e 2003. Seus números 17 e 18 foram dedicados a publicar documentos de Rakovski, junto com uma curta biografia em duas partes escrita por Broué. Hoje seus 80 números encontram-se digitalmente reproduzidos em <https://www.marxists.org/francais/clt/>.

Conforme mencionado na nota de introdução feita por Broué ao documento (p. 81, nota 1), Rakovski enviou uma cópia da carta a Trotski, que fez com que ela viesse a público em órgãos ligados à OE. E assim ela apareceu primeiro em francês, em Contre le Courant (França) n. 27/28, de 12 de abril de 1929, sob o título “Transformações operadas pelo poder no proletariado russo e no partido”, e depois em russo, no Biulleten Oppozitsi n. 6, de outubro de 1929. Ela ainda foi republicada por órgãos de grupos “trotskistas”, em inglês em The New International (EUA) n. 4, de novembro de 1934, sob o título “Poder e os trabalhadores russos”, e em francês em IV Internationale (França) v. 6, de outubro/ novembro de 1948, sob o título “Os perigos profissionais do poder”, pelo qual se tornou mais conhecido.

Apesar da visibilidade que angariou através dessas publicações, o texto de Rakovski certamente manteve-se conhecido ao longo das décadas seguintes (especialmente para além dos círculos oposicionistas e “trotskistas”) por conta da referência a ele feita por Trotski em sua obra de 1936, A Revolução Traída — O que é e para onde vai a URSS?. Nela, Trotski refere-se às “linhas indignadas” de Rakovski como mais do que uma carta pessoal, considerando-as “um curto estudo sobre a burocracia” e “o que de melhor se escreveu sobre o assunto” — e isso mesmo quase uma década depois de escritas (Trotsky, 2005, p. 115). Mais ainda, Trotski afirmou, considerando a posterior “reconciliação” do autor com Stalin:

É verdade que Rakovsky, esmagado pela repressão burocrática, negou mais tarde as suas críticas. Mas também o septuagenário Galileu foi obrigado, sob as tenazes da Santa Inquisição, a abjurar o sistema de Copérnico, o que de modo algum impediu que a Terra continuasse o seu movimento. Não acreditamos na abjuração do sexagenário Rakovsky, pois ele próprio fez mais de uma vez a análise implacável de abjuração deste gênero. Mas a sua crítica política encontrou nos fatos objetivos uma base bastante mais segura que na firmeza subjetiva do seu autor (Trotsky, 2005, p. 116).

Aqui cabe lembrar que a análise trotskiana sobre o processo de burocratização soviética, consagrada através dessa obra de 1936, só foi efetivamente formulada em meados de 1933, no contexto da vitória do nazismo na Alemanha e da incapacidade da Internacional Comunista de elaborar uma linha política capaz de detê-la. Foi só nesse contexto que Trotski concluiu que a “reação termidoriana” na URSS — a qual, segundo ele antes julgava, iria ter como agentes os elementos pró- -propriedade privada — já havia ocorrido muitos anos atrás, e teria tido o “stalinismo” como seu agente (McNeal, 1999).

Stalinismo deixou, então, de ser compreendido como a “ala centrista” do partido, e passou a ser descrito como “um regime de crise”: a forma proletária do bonapartismo em uma formação social de transição entre capitalismo e socialismo, que havia sido devastada pela guerra civil e isolada pela derrota da onda revolucionária internacional de 1917-24. E stalinismo esse cujas posições políticas seriam, em última instância, “a expressão dos interesses sociais da burocracia”, a qual teria encontrado na rude figura de Stalin o seu Bonaparte. Trotski passou então a encarar ser necessário derrubar tal burocracia através de uma violenta “revolução política”, que restaurasse a democracia nos soviets e no interior do partido, não sendo mais possível manter a estratégia de reforma do aparato estatal e partidário que até então a OE preconizava (Trotsky, 2005).

Rakovski, por outro lado, já em 1928, no documento aqui apresentado, afirmava ser “utópica” qualquer tentativa de reforma na qual a burocracia partidária e estatal tivesse algum papel a cumprir ou mesmo fosse permitida a continuar existindo. E apontava a constituição de dita burocracia em grupo social com interesses próprios e distintos daqueles do proletariado como sendo um processo de “diferenciação sociológica”, no qual setores de uma nova classe dirigente, especializados no exercício do poder, passaram gradualmente da diferença formal de função para a diferença social de função. Uma análise que Trotski acabou por absorver, em grande parte, em suas novas análises dos anos 1930.

Ademais, para Rakovski, esse processo de autonomização da burocracia soviética teria sido fruto, primordialmente, daquilo que ele nomeou de “perigos profissionais do poder”, inerentes à ascensão de uma classe à condição de dirigente e à necessidade do conjunto dela aprender a exercer seu poder político. E, assim como Trotski fez posteriormente, Rakovski também buscou na Revolução Francesa paralelos para o processo de burocratização soviética. Mas destacou que a passividade das massas revolucionárias após a conquista do poder e a autonomização da nova burocracia, fatores determinantes para o “termidor” francês, tinham primordialmente a ver com a ausência de incentivo (“educação”) para que a classe revolucionária exercesse o poder diretamente — combinada, é claro, com fatores de ordem econômica (escassez) (Rakovsky, [1928] 1984).

Essa conclusão removia o caráter de “peculiaridade russa”, que predominava então na explicação de Trotski e da OE, como se a burocratização tivesse mais a ver com a conjuntura internacional desfavorável e as bases (econômicas, culturais e políticas) “atrasadas” da sociedade. Por isso sua conclusão, já em 1928, da impossibilidade de reforma do regime e, especialmente, de que a tarefa central da oposição seria a de educar as massas proletárias para o exercício democrático do poder, e não apenas remover os dirigentes stalinistas e alterar os estatutos. Rakovski preconizava, portanto, um projeto de longo prazo. Conforme destacou o mencionado Gus Fangan, em sua curta biografia de Rakovski:

Para Trotski, a degeneração burocrática do partido e do Estado tinha a ver primordialmente com o atraso russo, com a fraqueza numérica da classe trabalhadora, com o isolamento e com o cerco capitalista. Para Rakovski, o perigo da burocratização era inerente à própria classe trabalhadora, em sua situação enquanto nova classe dirigente. O perigo da burocratização e da indiferença política “continuaria a existir [...] mesmo se supuséssemos que o país fosse habitado apenas por massas proletárias e que o exterior fosse composto apenas de Estados operários”.

Ao colocar o problema em um contexto mais abrangente do que aquele das peculiaridades russas, ele foi capaz de desenvolver um profundo olhar sobre esse fenômeno histórico, e as profundas implicações de suas análises ainda precisam ser desenvolvidas pelo próprio movimento marxista (Fangan, 1980, [s.p.]).

Sem mais delongas, cabe apenas ressaltar que, além do documento aqui apresentado — muito mais rico que a breve síntese dos parágrafos anteriores —, uma seleção de outros escritos “oposicionistas” de Rakovski foi compilada por Fagan e publicada em 1980, sob o título Christian RakovskySelected Writings on Opposition in the USSR 1923-30 (Fangan, 1980), hoje disponível online gratuitamente no Marxists Internet Archive (marxists. org). Às vésperas do centenário da Revolução Soviética, em que ainda persistem leituras que buscam naturalizar o stalinismo e a burocratização soviética, como se fossem “consequências diretas” do projeto comunista (Monteiro, 2015), resgatar reflexões críticas como a de Rakovski é imprescindível para a reabilitação do socialismo revolucionário.

Leia o texto de Rakovski


Referência bibliográfica:

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BROUÉ, Pierre. El Partido Bolchevique. Madrid: Ayuso, 1973.

_____ Rakovsky ou la Révolution dans tous les pays. Paris: Fayard, 1996.

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FANGAN, Gus. “Biographical Introduction to Christian Rakovsky”. In: RAKOVSKY, Christian. Selected Writings on Opposition in the USSR 1923-30. Edited by Gus Fagan. London & New York: Allison & Busby, 1980, [s.p.]. Versão digital disponível em <https://www.marxists.org/archive/rakovsky/biog/index.htm>. Acessado em julho de 2016.

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MONTEIRO, Marcio Lauria. “Revolução Russa e revisionismo historiográfico: o retorno neoliberal da 'tese da continuidade’”, Revista História e Luta de Classes ano 10, n. 19, de março de 2015, pp. 23-29.

RAKOVSKY, Christian. “Les dangers professionnels du pouvoir” [1928], Cahiers Leon Trotski n. 18, junho de 1984, p. 81-95.

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TROTSKY, Leon. A Revolução Traída [1936]. São Paulo: Sundermann, 2005.

Inclusão: 25/06/2020
Última alteração: 17/10/2023