Processo de Nuremberga

Arkadi Poltorak


VI - Hjalmar Schacht tem uma Saída Airosa


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«Ele Enganou o Mundo, a Alemanha e a mim»

O Dr. Dix esperava com impaciência o momento de subir à histórica tribuna para pronunciar o seu discurso de defesa a favor de Hjalmar Schacht. Muitos dos seus colegas invejavam-no: ele defendia um homem cuja vida e actividades proporcionavam, do seu ponto de vista, vantajoso assunto. A sorte do seu cliente atraía as atenções dos homens de negócios da Alemanha e de outros países. O mundo do grande business não estava de modo nenhum interessado em entregar Hjalmar Schacht à Temis de Nuremberga.

Dix salbia perfeitamente disso e fazia as coisas o melhor que podia.

Embora antecipando-nos um pouco, digamos que os seus esforços e eloquência não foram esquecidos. Tornou-se um dos mais famosos advogados da Alemanha ocidental e, facto entre todos curioso, soube demonstrar ao regime de Bona que na sua qualidade de jurista ele podia tão bem acusar como defender. Tudo dependia da causa. Alguns anos após o processo de Nuremberga, pronunciou ele um fulminante requisitório, como procurador do governo de Bona, contra o Partido Comunista Alemão...

Mas voltemos a Nuremberga.

Eis portanto chegado o grande momento: o Dr. Dix levanta-se, volta-se para o banco dos réus, percorre-o com um olhar desprendido, pousa os olhos no seu cliente e encara-o em recolhido silêncio. Esta pausa teatral e o ar contricto do advogado parecem dizer: «quero fazer sentir a todas as pessoas aqui presentes a profundidade da tragédia que este homem está a viver, a flagrante injustiça cometida para com ele...»

Dix encetou o seu discurso em termos enfáticos:

— Senhor presidente, meus senhores. A singularidade do caso Schacht surge à primeira vista de modo chocante, se se considerar, por um lado, o banco dos réus e, por outro, a história da sua detenção, e da sua defesa. No banco dos réus estão sentados Kaltenbrunner e Schacht... É um quadro de rara comicidade ver um banco dos réus partilhado pelo grande chefe dos cárceres e pelo seu prisioneiro. Só a mera visão deste espantoso espectáculo devia desde logo fazer reflectir todos os que participam neste processo: juízes, representantes do Ministério Público e defensores.

Dix informa sem pressas o Tribunal Internacional que em 1944, por ordem de Hitler, Schacht foi metido num campo de concentração sob a acusação de ter traído o regime hitleriano.

— A partir do Verão de 1944 tinha eu a missão de defender Schacht perante o Tribunal Popular de Adolfo Hitler; no Verão de 1945 fui solicitado a assumir a sua defesa perante o Tribunal Militar Internacional. Também isto constitui um estado de coisas bastante contraditório. Involuntariamente se é levado a pensar no destino de Séneca. Nero, ao qual eu compararia Hitler, tinha movido um processo a Séneca a pretexto das manobras revolucionárias deste. Depois da morte de Nero, Séneca foi acusado de cumplicidade nos erros governamentais e nas atrocidades de Nero, isto é, de conspiração com Nero.

Dix acha por bem lembrar ao Tribunal que Séneca fora santificado no século IV d.C. ...

Eu escutava o seu discurso ao mesmo tempo que observava atentamente o banco dos réus. O gesticular de Goering, que tanto se virava para Hess e Ribbentrop como para Doenitz e Raeder, e a visível aprovação que estes lhe manifestavam, eram a melhor prova da reles opinião que todos tinham da eloquência do advogado.

Mas o Dr. Dix estava-se positivamente nas tintas para a opinião de um Governo alemão que fora parar ao banco dos réus, de um governo cujo poder estava morto e cujo futuro era desesperado. O que ele procurava era as boas graças daqueles de quem dependia a sorte do seu cliente e foi por isso que concluiu dirigindo-se aos juízes:

— Quaisquer que sejam os declarados culpados da guerra e das atrocidades, dos desumanos actos cometidos enquanto ela durou, Schacht pode, após um tão minucioso estabelecimento das circunstâncias do caso, lançar à cara de cada culpado, como o fez Guilherme Tell em relação ao duque João de Suábia, assassino do imperador: «Levanto ao céu as minhas mãos limpas para lançar a maldição sobre ti e o teu crime».

Hjalmar Schacht estava orgulhoso do seu advogado. Mas estava-se nos últimos dias do processo de Nuremberga e, apesar da eloquência do Dr. Dix, o ex-presidente do Reichsbank era incapaz de esconder a sua ansiedade. Nas suas conversas com Dix, com o doutor Gilbert e com os raros acusados que ele considerava «homens honrados perdidos no meio de bandidos» (Papen, Neurath), exprimia ele cada vez com maior veemência a sua indignação por ter sido posto no mesmo banco que «esses degenerados». Nunca dirigia a palavra a Goering, «esse ladrão, esse assassino». Virava com desprezo as costas a Kaltenbrunner, «esse carrasco licenciado em Direito». Nada queria ter a ver com Ribbentrop, «esse fala-barato oportunista». Pálido e magro, com perfil de abutre faminto, o doutor Schacht afectava ares enjoados na presença de Streicher, o editor meio louco do infame Sturmer, que tinha na consciência o peso da morte de seis mil judeus.

Enfim, que tinha ele de comum com esse bando de assassinos e ladrões!?

Schacht foi um dos raros arguidos que abertamente condenou o regime hitleriano.

Hitler — dizia ele — tinha prometido lutar contra a mentira política e, com o seu ministro Goebbels, nunca fez outra coisa senão espalhar a mentira política... Desprezou e infringiu todas as leis da. República de Weimar, às quais tinha prestado juramento quando foi nomeado Chanceler. Mobilizou a Gestapo para lutar contra a liberdade individual. Tornou inviável toda a livre troca de ideias e de informações. Agraciou criminosos para os tomar ao seu serviço. Fez tudo para não cumprir as suas promessas. Enganou o mundo, a Alemanha e a mim.

Em Nuremberga e também mais tarde, depois da sua absolvição, Schacht tentou convencer o mundo de que a sua transferência de um campo de concentração hitleriano para o banco dos réus do Tribunal Internacional tinha sido um erro e uma injustiça dos mais graves. Nas suas memórias, ao descrever a sua participação no golpe anti-hitleriano de 20 de Julho de 1944, afirma:

«Eu era, a meus próprios olhos, culpado de alta traição. Queria a destituição e mesmo a morte do tirano e agi juntamente com outros em conformidade».

Champetier de Ribes procurador-geral da França
Champetier de Ribes procurador-geral da França
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Por que é que Rudenko e Jackson, Shawcross e Champetier de Ribes não tomaram isso em consideração? Por que se esforçaram eles por demonstrar que Schacht não tinha razão alguma de ter vergonha dos seus companheiros de banco? Sem ele, diziam, não teria havido azo a julgar Goering por «ladrão e assassino», nem o carrasco Kaltenbrunner, e o próprio Hitler não teria tomado o poder.

Schacht, ao ouvir os representantes do Ministério Público, constatava com indignação que eles não tinham em conta o facto de ele próprio ter sido vítima do regime hitleriano. Mais, algumas réplicas de Jackson davam-lhe a entender que o Tribunal lhe reservava a mesma sorte que a Goering e a Kaltenbrunner.

Não obstante, o julgamento de Hjalmar Schacht deu azo a divergências de pontos de vista no decorrer de todo o processo. Na sala de deliberações, os juízes do Tribunal Internacional, que estavam de acordo na maior parte das questões, de modo nenhum o estiveram relativamente a Schacht.

O seu caso era bastante singular. Entre os réus era uma personagem à parte. O vergonhoso fim de Goering ou de Ribbentrop, de Kaltenbrunner ou de Frank aparecia aos olhos da maioria das pessoas como coisa certa. A monstruosidade dos seus crimes era indiscutível. Cada passo das suas carreiras, desde o nascimento do nazismo até à derrocada do Terceiro Reich, estava marcado por odiosos crimes.

Quanto a Schacht, não se tratava da mesma coisa. Os paradoxos que o seu advogado pôs em relevo davam-lhe uma certa originalidade, mas diferenciavam-no muito menos dos outros réus que o carácter das acusações imputadas ao «mago das finanças».

De que eram acusados Goering e Ribbentrop? De terem urdido, durante anos, uma conspiração cuja finalidade era a de precipitar a Alemanha e toda a Europa num conflito sangrento. Que era imputado a Goering e a Keitel, a Doenitz e a Raeder, a Frank e a Kaltenbrunner? Violações monstruosas das leis e usos da guerra, que se traduziram por Auschwitz e Buchenwald, Babi Iar(20) e Treblinka, Oradour e Lídice(21).

E que tinha feito Schacht? Não tinha elaborado os planos de agressão nem ordenado os assassínios e pilhagens durante a guerra. O seu crime era, em resumo, o seguinte: presidente do Reichsbank e ministro da Economia da Alemanha, tinha utilizado as suas relações com os grandes monopólios do país para assegurar a Hitler a tomada do poder e o ulterior rearmamento da Wehrmacht, feita instrumento de agressão do partido nazi.

Será o rearmamento um crime internacional? É sempre feito com a participação de grandes firmas capitalistas. Aos dirigentes dessas firmas deve, pois, ser assacada a sua parte de responsabilidade.

A este propósito, Schacht sabia que tinha outros companheiros de prisão além de Goering e Ribbentrop. Não lhe era escondido que entre os que com ele estava detido figuravam manda-chuvas da indústria de guerra como Krupp, Flick, Ilgner, Schnitzler. A URSS exigia a sua condenação. Os Ministérios Públicos dos outros países representados no Tribunal Internacional apoiavam energicamente essa exigência.

O procurador-geral americano declarou que todos esses Krupp e Flick, Ilgner e Schnitzler tinham contribuído com o seu nome, com o seu prestígio e o seu apoio financeiro para o advento do partido nazi...e do seu programa de retomada da guerra; e logo que, por culpa deles, a guerra eclodiu, levaram a indústria alemã a violar os acordos internacionais e o Direito Internacional.

A ideia da Acusação era o que havia de mais claro: sobre industriais e banqueiros, sem o concurso dos quais os políticos e os generais não teriam podido desencadear a guerra, devia recair também o justo castigo. Esta acusação, absolutamente nova na história do Direito Internacional, incidia sobre Hjalmar Schacht. Visava também outros, e não só os «mercadores de canhões» alemães. Schacht estava bem colocado para saber que laços existiam entre os monopolistas alemães e os de outros países, sobretudo dos EUA. Sabia perfeitamente que o seu destino não era o único em jogo. Os monopólios americanos tinham interesse em que ele não fosse desmascarado até ao fim.

Segundo um plano concertado de antemão, Hjalmar Schacht «calhou» ao Ministério Público americano. Como iremos ver mais adiante, era uma ironia da História. Sobre alguns pontos Schacht só foi interrogado em Nuremberga pelo vogal soviético Aleksandrov.

«Ceda o seu lugar a Hitler»

Desde o início da sua carreira — em princípios do século XX — que Schacht estava decidido a servir a-classe que dominava na economia, os grupos de homens que detinham todas as riquezas da Terra e tiravam proveito de todas as variedades de trabalho humano. A experiência ensinou-lhe que os políticos vêm e vão-se, que os tempos mudam: aos Hohenzollern sucedem os Ebert, os Scheidemarjn, os Bruening, os Stresemann; à monarquia segue-se a república, à república a ditadura. Nada é imutável a não ser o invisível chefe de orquestra cuja batuta com frequência leva a cabo essas metamorfoses: Sua Majestade o Capital.

Traindo todos os regimes, Schacht só se mantém fiel aos interesses dos grandes monopólios alemães. São esses interesses que impõem, no início dos anos trinta, o acesso ao poder de Adolfo Hitler e do seu i bando. Só esses interesses levam o doutor Schacht a desobstruir o caminho da Chancelaria àquele que ainda recentemente não passava de um cabo da tropa.

Por seu lado Adolfo Hitler achou Schacht a seu gosto. Precisava de pôr à frente da economia um homem que tivesse relações e crédito no estrangeiro. Schacht pareceu-lhe a pessoa mais indicada. Não era sem razão que ele gostava de se intitular «cosmopolita».

E dir-se-ia que o cosmopolitismo surge a cada etapa do seu passado. Diz ele, nas suas declarações ao Tribunal de Nuremberga:

— As famílias dos meus pais estavam desde há séculos estabelecidas no Schleswig-Holstein, que até 1864 pertenceu à Dinamarca. Os meus pais ainda tiveram, quando nasceram, a nacionalidade dinamarquesa. Quando esta região foi anexada à Alemanha o meu pai emigrou para a América, onde já estavam três dos seus irmãos. O meu pai tornou-se cidadão americano; eu estudei nas universidades alemãs e em Paris. Depois do doutoramento trabalhei durante dois anos em organismos económicos. Depois entrei na carreira bancária; estive treze anos no Dresdner Bank. Assumi depois a direcção de um banco por minha conta... Em 1923 abandonei essa carreira privada e entrei ao serviço do Estado como Comissário da Moeda (Reichswahrungskommissar). Pouco tempo depois tornei-me presidente do Reichsbank. Tinha e continuo a ter muitos parentes na Dinamarca por parte da minha mãe, na América por parte do meu pai, e até ao momento sempre mantive com eles relações amistosas.

Foi isso que seduziu Hitler. A seus olhos, Schacht era não só um hábil financeiro mas um homem tão bem visto na Breiterstrasse de Dusseldorf — no coração do Rur — como na Wall Street de Nova Yorque e na City de Londres.

Mas quais as qualidades de Hitler que agradaram a Schacht?

Por que é que ele, que tinha tanto faro político, se dedicou de corpo e alma ao cabecilha nazi? Por que fez trinta por uma linha para lhe oferecer o poder e depois popularizar o seu governo nos meios internacionais? ...

Nos anos em que se decidia da questão de saber se Hitler seria, ou não, «Fuhrer do Império Alemão», uma terrível crise económica ameaçava os grandes lucros dos monopólios e até o seu poder no país. Só uma rápida instalação da economia em pé de guerra e uma feroz repressão do movimento operário podiam salvar o reino de Sua Majestade o Capital.

Schacht estudou demoradamente Hitler, o seu partido, o seu programa. E quanto mais lhe aprofundava a natureza, mais se fixava na ideia de que seria esse o chefe que «salvaria» o país do «caos» iminente.

Teve, por sua própria iniciativa, várias entrevistas com o chefe nazi. Eis o que a esse propósito diz nas suas declarações no processo:

— Do ponto de vista social, Hitler tinha muitas ideias interessantes, que tendiam em particular para a supressão da luta de classes, para o fim das greves, dos lock-out... Não pedia a abolição da economia privada, mas que fosse simplesmente exercida uma certa influência na sua direcção, e pareceu-nos a nós que essas ideias eram perfeitamente razoáveis e aceitáveis.

Suponho que é inútil explicar a quem se refere aquele «a nós».

Pessoalmente, Schacht estava encantado por Hitler não ter «por assim dizer, nenhum conhecimento no domínio económico e no da política financeira». Isso vaticinava-lhe, no futuro governo, o monopólio da solução dos problemas económicos.

Perante o Tribunal Internacional, Schacht coloca-se como adversário do fascismo. Iremos ter por mais de uma vez a ocasião, nos momentos críticos dos debates, de ver a sua hipocrisia. Não obstante, ao observá-lo no decorrer dos dez meses do processo e ao ouvir as suas declarações, estava prestes a achá-lo sincero quando ele virou as costas a Kaltenbrunner e recusou cumprimentar Streicher. Esses eram de origem e educação muito diferentes para poderem ser seus amigos. Os clamores sanguinários de Streicher deviam efectivamente ser-lhe repugnantes. Mas estava ao mesmo tempo suficientemente prevenido para compreender que Streicher preparava o terreno para o saque de centenas de milhões de pessoas e que essa lamacenta fonte acarretaria para os cofres-fortes do Reichsbank o ouro puro indispensável ao rearmamento. Foi por isso que o «mago das finanças» tolerou Streicher e os seus crimes.

Entretanto Schacht, essa «respeitabilidade pedante», segundo a expressão de um representante do Ministério Público, tinha assimilado bem uma outra regra não escrita da política burguesa: recorre-se ao serviço dos carrascos mas não se convidam para a nossa mesa. Foi nesse princípio que ele se inspirou nas suas relações com indivíduos como Streicher e Kaltenbrunner.

Diga-se o que se disser, o fascismo sempre tinha tido, a seu ver, inconvenientes. Uma aliança com ele, escancarada aos olhares da opinião pública, comportava riscos. Schacht sabia isso muito bem ao ligar-se a Hitler, e sabia também que a política tem uma cabeça mas não tem coração. Ora a sua cabeça dizia-lhe que Hitler e o seu bando seriam infinitamente mais úteis aos poderosos do país que todos esses parlamentares bem pensantes dos partidos burgueses. Mas, na verdade, as «altas qualidades» do Fuhrer seriam apreciadas unicamente na Alemanha? Nas suas conversas privadas com os outros réus, com os advogados, com o pessoal americano da prisão, Hjalmar Schacht indignava-se por os americanos e os ingleses o censurarem por ele ter apoiado Hitler durante tanto tempo, eles que na mesma altura tinham cumulado Hitler de elogios. Resolveu um dia lembrar ao Tribunal, por intermédio do seu advogado, que em 1934 Lord Rothermere escrevera no Daily Mail um artigo onde podia ler-se esta frase:

«A personalidade mais notável do mundo é actualmente Adolfo Hitler. Hitler coloca-se na linha directa desses grandes condutores de homens que surgem raramente uma vez em cada dois ou três séculos».

E o político americano Summer Welles não afirmava no seu livro Momento da Decisão que

«os meios económicos de cada uma das democracias ocidentais europeias e do Novo Mundo saudavam o advento do hitlerismo»?

Schacht, contudo, dá-se perfeitamente conta que depois de a história sangrenta do hitlerismo ter sido revelada em Nuremberga na sua, horrenda nudez, essas velhas citações não podiam constituir uma boa linha de defesa. Por isso tudo faz para se dessolidarizar de Hitler. Tanto no processo como nas suas memórias, ele sustenta não ter escrito ou pronunciado uma só palavra a favor de Hitler nas eleições de 1932.

Goering, só de o ouvir, perdia o controlo. Odiava Schacht ao mesmo tempo que invejava nele o talento de mentiroso. Ele era, efectivamente, um virtuoso no género, que debitava as suas mentiras com o ar ofuscado de um homem cuja pureza de alma se revoltava ao simples pensamento de que pudessem supô-lo capaz de ter atolado nos crimes nazis.

Mas ao agir desse modo ele estava a subestimar claramente o trabalho titânico levado a cabo pelos oficiais dos exércitos aliados no sentido de encontrarem e estudarem os arquivos do governo alemão. E depois os procuradores de Nuremberga não se deixavam enganar. Como juristas competentes que eram, preferiam os factos indesmentíveis aos exercícios psicológicos do doutor Schacht. O que deu azo a que Aleksandrov e Jackson lhe fizessem passar alguns maus quartos de hora.

Quis o azar que a Acusação estivesse na posse da acta secreta da entrevista de Harzburg, onde foi concluído, com o concurso de Schacht, um acordo entre Hitler e Alfred Hugenberg, magnata da indústria pesada, garantindo ao partido nazi o apoio dos grandes industriais. Bastava a apresentação desse documento para destruir a lenda de Schacht. Mas o Ministério Público tinha ainda outros para apresentar.

Eis o diário de Goebbels. Na segunda metade de 1932, quando os nazis foram derrotados nas eleições para o Reichstag, Goebbels escrevia que a ameaça de uma crise no seio do partido «empurrava o Fuhrer para o suicídio».

O Ministério Público quis conhecer a reacção de Schacht a esses acontecimentos. É que ele sempre tinha repetido com fingida surpresa, quando lhe citavam os seus discursos oficiais do tempo em que fazia parte do governo hitleriano:

— Deus do céus, mas será que isso tira alguma coisa ao facto de eu, no meu íntimo ser antifascista e ter combatido Hitler? Eu tinha de camuflar.

Para definitivamente desmascarar esta mentira, o representante da Acusação confronta o diário de Goebbels com uma carta de Schacht a Hitler. Datava de segunda metade de 1932, quando Hitler brigava pelo poder e pensava no suicídio depois de as eleições lhe terem sido adversas. Nessa época tão difícil para os nazis o doutor Schacht não tinha necessidade de se camuflar. Que escreveu ele a Hitler?

«Do que o senhor talvez tenha hoje necessidade é de uma palavra de simpatia muito sincera. O seu movimento é de inspiração tão forte e verdadeira e responde a uma necessidade tal que a vitória não pode escapar-lhe por muito mais tempo ainda. Onde quer que o futuro me encontre a trabalhar, nem que seja numa fortaleza, pode contar sempre com a minha ajuda mais fiel».

Depois da apresentação deste documento, Schacht, apesar da sua descontracção, ficou embaraçado. E continuaram a chover os golpes. Foi apresentada uma outra passagem do diário de Goebbels, datada de Novembro de 1932. Desta vez tratava-se abertamente de Schacht.

«No decurso de uma entrevista com o doutor Schacht, pude constatar que ele representava plenamente o nosso ponto de vista: é dos raros a estar completamente de acordo com as ideias do Fuhrer».

Os aborrecimentos do ex-ditador económico do Terceiro Reich não tinham todavia a ver apenas com a necessidade de aparar os violentos ataques frontais do Ministério Público. Os seus co-réus por muitas vezes o apunhalavam pelas costas. O que por vezes dava azo a incidentes que não deixavam de ter a sua piada.

A determinada altura Schacht fez recriminações a propósito de certas modificações do regime interno da prisão, que restringiam aos detidos a possibilidade de comunicarem entre eles. Schacht não lamentava ter de ver mais raramente esse «bandido do Goering» ou o «velhaco» do Ribbentrop». O que o afligia era ter de limitar os seus encontros com os cavalheiros von Papen e von Neurath, tão simpáticos.

— Há alguns cavalheiros com os quais eu tenho verdadeiro prazer em lidar — dizia ele ao comandante da prisão, o coronel Andrews..

Mas o mais curioso era que o «cavalheiro» von Papen não partilhava dos bons sentimentos do seu co-réu. Nas suas declarações ao Tribunal Internacional ele diz coisas que não estavam de acordo com as- tentativas de Schacht se colocar como adversário do advento de Hitler. Lembrava-se muito bem dos esforços de Schacht visando correr com o «cavalheiro» von Papen do cargo de chanceler para lá pôr Hitler.

Papen contou que, nos dias decisivos de 1932, Schacht foi a sua casa e disse-lhe depois de uma abordagem do assunto bastante simplista:

— Ceda-lhe o seu lugar, ceda-o a Hitler. É ele o único homem» que pode salvar a Alemanha.

Na mesma altura, a 12 de Novembro de 1932, Schacht e o banqueiro Schroeder redigem, em nome dos directores dos grandes monopólios, uma carta ao presidente Hindenburg impondo-lhe que entregue o poder a Hitler. A carta é também assinada por Krupp, Thyssen, Reingardt e outros industriais. Schacht apressa-se a anunciar a Hitler:

«Não me oferece qualquer dúvida que o actual curso dos acontecimentos o conduz ao cargo de chanceler».

E termina desta maneira a sua mensagem:

«Parece que as nossas tentativas de obter para este efeito um determinado número de assinaturas nos meios de negócios não foram inteiramente vãs, e estou certo de que a indústria pesada faz jus ao seu nome, visto que, quanto a peso, ela tem-no!»

O réu escuta com crescente inquietação o Ministério Público citar estes documentos que estão longe de corroborar, aos olhos do Tribunal Internacional, a sua pretensa reputação de anti-hitleriano. E, bem entendido, ele inveja os políticos do tempo em que só o povo pagava a guerra com o seu sangue e o bem-estar. Nunca até então se tinham lembrado de espiolhar nos arquivos governamentais, de procurar os agressores para os arrastarem para o cadafalso. Só respondiam pelos seus actos perante Deus e perante a história. Ao passo que aqui, em Nuremberga, considera-se caduco o juízo de Deus e da História e considera-se o dos homens um meio mais radical, e sobretudo mais concreto e mais rápido, de castigar os crimes desumanos.

Schacht lamenta também as metamorfoses das pessoas do seu meio, entre as quais ele viveu, agiu, prosperou. Pareciam tão sérios, esses homens de acção que arrecadavam milhões e manipulavam governos inteiros com o à-vontade de um batoteiro manejando um baralho! Depois de tantas entrevistas confidenciais, nunca ele teve de os tachar de deslealdade nem, menos ainda, de indiscrição. Que lhes estava pois a acontecer hoje ali, em Nuremberga? Porquê, de repente, todos têm medo, por que têm tão boa memória quando os interrogam sobre Schacht, sobre o seu papel na fundação do regime hitleriano? É que eles lembram-se dos mais ínfimos pormenores!

Hjalmar Schacht, obviamente, não acredita que essas «honestas pessoas» se tenham emendado, que tenham remorsos. A consciência é uma quimera de que eles há muito se desembaraçaram, graças a Deus! O que se passa é que os seus amigos e colaboradores de ontem se confrontam pela primeira vez, e frontalmente, com a ira dos povos, é que eles pressentem a corda que os espera por causa das suas manobras criminosas e não gostariam de a ter ao pescoço sem o Dr. Schacht.

Infelizmente, como os anos do após-guerra vieram a mostrar, o seu medo era exagerado. Nem sempre um choque é mortal. Mas, neste caso, soltou a língua tanto aos sátrapas de Hitler como aos que lhe abriram o caminho do poder.

Schacht teve, nomeadamente, razão de queixa de Georg von Schnitzler, um dos mais influentes directores da «I.G. Farbenindustrie». Este testemunhou, sob juramento, a propósito de um conciliábulo que decorreu em casa de Goering em fins de Fevereiro de 1933: E para cúmulo do azar era, de entre todos os participantes, do doutor Schacht de quem ele melhor se recordava. Schnitzler não esquecera a presença de Krupp von Bohlen, do Dr. Albert Voegler, de Stein. Mas lembrava-se sobretudo de Schacht, que «parecia ser o dono da casa» e por proposta do qual foram colectados em poucos minutos mais de três milhões de marcos para o fundo eleitoral de Hitler.

Foi assim que Schacht lançou Hitler. E pouco tempo depois o êxito coroou os seus intensos esforços: a 5 de Março de 1933, com a ajuda de chapeladas, de subornos e graças à prisão dos deputados comunistas depois das eleições, Hitler obteve a maioria para o Reichstag. E a 17 de Março Hjalmar Schacht era nomeado presidente do Reichsbank.

«Mas Ouçam Bem, Como Ele Mente!...»

Estas palavras foram pronunciadas com irritação por Hermann Goering no 1º de Maio de 1946, quando o advogado Dix interrogava o seu constituinte. Schacht respondia a todas as perguntas com uma calma olímpica e uma ostensiva segurança. Adivinhava-se que o diálogo tinha sido preparado de antemão.

Jackson e Aleksandrov, que seguidamente iriam submeter o inculpado a um interrogatório cruzado, esperavam tranquilamente a sua vez. De quando em vez, quando o advogado ou o seu cliente iam longe demais na deturpação da verdade histórica, eles molheavam os documentos colocados diante deles ou pediam outros aos secretários.

Schacht falou do seu papel na execução do programa hitleriano de rearmamento. Havia montes de documentos a confirmar que fora precisamente ele quem, no seio do governo hitleriano, realizara esse amplo programa nos mais curtos prazos. Após o que os nazis puderam desencadear uma série de guerras de agressão.

O réu tenta, apesar disso, ilibar-se. A acreditar nele, deveriam não julgá-lo mas erguer-lhe uma estátua pela sua corajosa luta contra o regime hitleriano. Talleyrand foi alcunhado de pai da mentira. Isso em princípios do século XIX. Mais de cem anos depois esse título passou com toda a justiça para o Dr. Schacht.

O «mago das finanças» começa por expor ao Tribunal os motivos da sua entrada para o governo Hitler. Que não se vá imaginar que ele subestimava a delicadeza da situação. Mas sabia também com pertinência que só Hitler corria a risco de perder alguma coisa com isso, ao passo que a humanidade iria ganhar algo…

— A oposição política, indispensável a qualquer governo, era contrariada pela política de terror de Hitler. Havia um único meio de criticar e até de fazer oposição e prevenir as graves e erradas medidas do governo: essa oposição só podia existir no seio do próprio governo. Ciente dessa verdade, entrei para o governo, porque a influência moderadora e controladora apenas podia ser exercida por um dos seus membros.

Era preciso ver nesse momento o banco dos réus, onde justamente estava sentado o governo alemão no qual Schacht dizia ter acedido a participar para lhe «moderar» a actividade! Os arguidos agitavam-se, gesticulavam, trocavam apreciações. Reinava a emoção sobretudo na primeira fila. Não que Schacht tivesse realmente travado a marcha da roda que cada qual empurrava com o suor do seu rosto. Isso nem Goering, nem Hess, nem nenhum outro podiam censurar-lho. Que o «mago das finanças» mentisse descaradamente, com olímpica calma, também não fazia espantar ninguém: a mentira tornara-se desde há muito, na Alemanha, em método de reger o Estado. O que os indignava a todos era a tentativa de Schacht se dessolidarizar dos seus colegas e se fazer passar por aquilo que nunca tinha sido: um adversário de Hitler desde o primeiro dia da ditadura.

A indignação à solta no banco dos réus saltava à vista. Também Schacht era obrigado a vê-la, mas isso pouco lhe importava. Agarrava-se tenazmente à sua táctica. Se Hitler o nomeara presidente do Reichsbank fora, ao que parece, para liquidar o desemprego. (Mais tarde Schacht desenvolveria esta tese nas suas memórias. «Essa tarefa tinha-me penetrado o coração e nele reinava sem partilha», escreveu ele.). Foi portanto para dar trabalho a seis milhões e meio de desempregados alemães que ele terá aceitado financiar a construção de auto-estradas e fábricas de guerra.

Desta vez Goering não aguentou mais.

— Mas ouçam bem, como ele mente! — exclamou virado para os companheiros.

Raeder fez coro com ele:

— Mas quem é que vai acreditar nisso!

Raeder, mais do que qualquer outro, sabia dos esforços do presidente do Reichsbank consagrados ao rearmamento.

Goering achou que o banco dos réus era para ele um auditório demasiado restrito. Debruçou-se na barra para falar aos advogados. Como se veio depois a saber, disse a um deles:

— Ele mente! Eu estava lá quando Hitler declarou que tinha necessidade de mais dinheiro para o rearmamento; e Schacht disse: «Sim, temos necessidade de um grande exército, de uma grande marinha e de uma grande aviação».

Também Hans Frank deu largas aos seus sentimentos. Durante a suspensão da audiência, disse de maneira a ser ouvido pelo «mago das finanças»:

— Se Hitler tivesse ganho a guerra, Schacht iria por todo o lado a clamar: «Heil Hitler!» com mais força do que toda a gente.

Chegou por fim a vez do Ministério Público. Robert Jackson tomou a palavra. Começara o duelo. Não se pode dizer que fosse um combate desigual. Schacht era um adversário de envergadura. Tinha no seu activo uma longa experiência de político sem escrúpulos, de financeiro e economista notavelmente dotado. Mas os procuradores não perderam tempo a elucidar os problemas económicos e financeiros complexos e por vezes propositadamente enredados. Foi isso que decidiu do desfecho do combate.

Quando Jackson citou discursos de Schacht que estavam longe de certificar a sua oposição ao hitlerismo, os outros réus mostraram-se interessados, testemunharam até simpatia pelos esforços do procurador. Outrora tinham aplaudido a habilidade de Schacht gerir as finanças do Reich. «É um verdadeiro alemão», dizia dele Goering com admiração. Mas em Nuremberga, onde Schacht se disfarçara com a vestimenta de «campeão antinazi» para denegrir os chefes mortos ou vivos do Terceiro Reich, esse mesmo Goering e companheiros estavam prontos a aplaudir Jackson que ia «cozinhando» Schacht.

Nessa mesma noite o doutor Gilbert fez o seu giro habitual. As portas das celas iam-se-lhe franqueando uma após outra e os reclusos conversavam com o psicólogo. Gilbert soube muitas coisas interessantes.

— Quando Schacht pretende ter sido inimigo jurado do nacional-socialismo — diz Baldur von Schirach — não posso deixar de sorrir e basta-me recordar certas cenas... Por exemplo, lembro-me de uma recepção na Chancelaria do Reich à qual assistiam a minha mulher, a de Schacht e muitos outros convidados. Sabe o que a mulher dele trazia de enfeite? Uma grande suástica ornada de diamantes... Todos sorrimos e achámos divertido que Schacht, no meio dessa gente toda, quisesse ser um super-nazi. E depois a mulher dele foi pedir um autógrafo a Hitler. Era óbvio que só havia uma razão para que Schacht a mandasse pedir um autógrafo ao Fuhrer numa recepção destas. Ele queria que ela chamasse a atenção de Hitler sobre o super-nazi Schacht...

De qualquer modo, as boas graças de Hitler eram-lhe concedidas. Vimos já quantas esperanças este depositava na nomeação de Schacht para o cargo de presidente do Reichsbank. Schacht tinha os seus acessos tanto aos monopolistas alemães como aos meios de negócios de Nova York. Cabia a ele, dizia Hitler «introduzir os nazis nos salões», obter-lhes a confiança geral e créditos morais e financeiros.

Segundo dados oficiais, a dívida externa da Alemanha ascendia, em 28 de Fevereiro de 1933, a 18 967 milhões de marcos e, com o capital estrangeiro investido na indústria alemã, a 23 300 milhões. A Alemanha tinha de pagar anualmente mil milhões de marcos de juros.

A ambição de Schacht é obter não só a anulação desta enorme dívida mas também novos empréstimos. Explora habilmente a sua posição de membro da Administração Bancária dos regulamentos internacionais e, ainda mais habilmente, os sentimentos anti-soviéticos da oligarquia financeira do Ocidente.

Em Maio de 1933, pouco depois da tomada do poder pelos nazis, Schacht parte para a América. A finalidade da viagem é o alargamento das relações entre os chefes da Alemanha nazi e os dirigentes dos EUA. Schacht é recebido pelo presidente, pelos ministros, pelos grandes financeiros de Wall Street. Garante-lhes com ardor e sem vergonha que «o governo Hitler é o mais democrático do mundo», que o regime fascista é «a melhor forma de democracia». E os Estados Unidos concedem novos créditos à Alemanha nazi.

Junho de 1933. Schacht vai como delegado à Conferência Económica Internacional de Londres. De colaboração com Alfred Rosenberg, escreve o «Memorando Hugenberg» para meter medo à Europa com o «perigo bolchevista» e deste modo a levar a aceder ao rearmamento da Alemanha. Em Londres encontra-se com o director do Banco de Inglaterra Norman, e firma com ele um acordo prevendo um empréstimo de cerca de mil milhões de libras esterlinas.

Ao mesmo tempo, o «mago das finanças» aproveita a benevolência dos bancos ocidentais para reduzir e depois suspender as dívidas antigas.

Em Agosto de 1934 Schacht é nomeado ministro da Economia do Reich. Em 21 de Maio de 1935, como recompensa dos seus méritos, Hitler guinda-o à categoria de Comissário Geral da Economia de Guerra. É investido de poderes ilimitados por meio de um decreto. Irá ter, a partir daí, vários ministérios sob as suas ordens, e a sua tarefa é a de «pôr todas as forças económicas ao serviço da guerra».

Com um pedantismo puramente alemão, elabora até nos mínimos pormenores um sistema de exploração da economia alemã em tempo de guerra, desde a utilização das empresas industriais, das matérias-primas e da mão-de-obra até à distribuição de 80 milhões de senhas de racionamento. Dirige a elaboração de planos económicos para duzentas produções de guerra essenciais.

Não poupa esforços na construção de fábricas de armamento. A percentagem do rendimento nacional destinada aos preparativos de guerra passa de 6% em 1933 para 34% em 1938. E Schacht melhor do que ninguém sabe que isso é feito a expensas dos trabalhadores.

A 3 de Maio de 1935 escreve a Hitler, num memorando secreto, que «o rápido realização de um vasto programa de armamento é o problema essencial da política alemã» e que «consequentemente tudo deve ser subordinado a essa finalidade». Para cobrir as despesas destinadas ao armamento é intensificada a emissão de papel-moeda. Schacht lança «para o monte» do rearmamento da Wehrmacht os depósitos estrangeiros do Reichsbank e gaba-se disso:

«Assim — diz ele — os nossos armamentos são parcialmente financiados com o dinheiro dos nossos adversários políticos».

Schacht estabelece um sistema especial de licenças regulamentadoras da importação: as divisas só serão utilizadas para importar matérias estratégicas. Também neste campo são os preparativos de guerra que imperam.

O ditador económico do Terceiro Reich extraía o máximo da economia alemã para financiar o gigantesco programa dos armamentos. Apesar disso havia falta de recursos. Mas Schacht tinha uma vontade de ferro. Para ele só os fins contavam, e para isso todos os meios eram bons. Perante o Tribunal Internacional declara-se inimigo do anti-semitismo, mas houve tempos em que ia buscar dinheiro a essa fonte impura. Claro que não andava pelas ruas a gritar palavras de ordem anti-semitas como a fazia Streicher, mas contabilizava escrupulosamente os «rendimentos» do Reichsbank provenientes da arianização dos bens judeus e felicitava Goering por este ter tido a boa ideia de aplicar uma multa de mil milhões de marcos à população judia.

Schacht jura uma vez mais que não é anti-semita. Durante longos anos tratou de negócios importantes com os banqueiros judeus e sabe por experiência que «os judeus não são piores jogadores que os cristãos». Talvez seja verdade. Mas os factos não mentem: quando se lhe proporcionou a possibilidade, nos princípios da administração nazi, de encher os cofres-fortes do Reichsbank despojando os judeus, Schacht não hesitou. Apresentou mesmo a proposta de subtrair dinheiro aos parentes estrangeiros dos judeus alemães. Operação que prometia uma soma calada em divisas que tão necessárias eram para o rearmamento. Schacht sugere convocar para Londres uma conferência internacional e aí ditar as condições pelas quais o governo alemão permitiria a saída dos judeus do país. Infame chantagem: se quiseres deixar o Terceiro Reich traz divisas estrangeiras! E como salientava Goering no Conselho de Defesa, essa manigância do «adversário convicto do anti-semitismo» colmatou algumas brechas do tesouro: a «arianização» rendeu-lhe vários milhares de milhões de marcos.

A 25 de Setembro de 1935 Hjalmar Schacht encontra-se com S. Fuller, representante especial do presidente Roosevelt. Trata-se ainda do rearmamento acelerado da Alemanha.

Fuller observa:

— Vocês não podem estar a fabricar indefinidamente armas para não serem utilizadas.

A resposta é tão breve quanto explícita:

— Com certeza.

Schacht sabia bem que a política externa da Alemanha nazi tendia para a guerra. E se se estava a esforçar no financiamento dos armamentos era porque estava persuadido de que as guerras de agressão vitoriosas se tornariam em enormes fontes de rendimentos para os monopólios alemães e para os dirigentes do Terceiro Reich. O que o guiava nas questões económicas e financeiras era isso. E também não temia a inflação. Uma guerra vitoriosa — pensava ele — compensaria largamente as perdas. Essa esperança arrastava-o para as mais arriscadas operações financeiras, como a operação «MEFO», uma gigantesca vigarice na qual todo o aparelho de Estado se viu envolvido.

Era este o princípio do seu financiamento: as facturas de numerosas firmas que produziam armas e munições eram aceites por uma sociedade de responsabilidade limitada, a «Metallurgische Forschungs-Gesellschaft» (daí a abreviatura «MEFO»). Essa sociedade não tinha capitais. Pagava as facturas com letras a longo prazo, a que foi dado o nome de «MEFOwechse». Mas as letras sem provisão eram garantidas pelo Reichsbank e reembolsadas por todos os bancos alemães. O segredo da trucagem estava bem guardado, já que não existiam nos relatórios do Reichsbank nem nos números do orçamento quaisquer dados sobre a «MEFO».

A «MEFO» existiu até ao primeiro de Abril de 1938. Emitira, até essa data, doze mil milhões de marcos de letras. Era um volume de falsos valores em circulação que podia provocar uma catástrofe financeira. Bastava que os bancos privados reclamassem os «MEFOwechsel» para que o Reichsbank fosse à falência. Mas Schacht mantinha a presença de espírito.

Pela norma, o termo de reembolso dos «MEFOwechsel» pelo Estado expirava em 1942. Ora o «mago das finanças», bem informado acerca dos planos de agressão do governo hitleriano, contava nesse entrementes enriquecer o Tesouro em detrimento de outros países.

Estava a enganar os beneficiários? Com certeza. Mas Schacht achava que os interesses gerais dos monopólios exigiam a guerra, o que impunha aos capitalistas, como indivíduos, sacrifícios passageiros.

Em fins de Novembro de 1938 declara Schacht orgulhosamente:

— É possível que não tenha havido nenhum banco emissor que em tempo de paz tenha feito uma política de crédito tão audaciosa como a que o Reichsbank levou a cabo depois da tomada do poder pelo nacional-socialismo. Mas foi graças a essa política de crédito que a Alemanha criou um armamento que não fica atrás de nenhum no mundo, e esse armamento, por sua vez, tornou possíveis os êxitos da nossa política.

Os méritos de Schacht no que respeita ao armamento do Terceiro Reich foram devidamente recompensados. Num artigo do Militärwoche Blatt., saído em Janeiro de 1937, diz-se:

«A Wehrmacht saúda hoje o Dr. Schacht, um dos homens que realizou uma obra imorredoura em prol do exército e do seu desenvolvimento, em conformidade com as directrizes do Fuhrer e chanceler do Reich. A Wehrmacht deve à habilidade e à grande capacidade de Schacht o ter podido, de acordo com o plano estabelecido e a despeito de todas as dificuldades monetárias, atingir o actual número de efectivos partindo de um exército de 100 000 homens».

Na mesma época Hitler agracia-o com a insígnia de ouro do partido nazi. E o «mago das finanças» não se mostrou mal-agradecido: em 21 de Abril de 1937, num discurso por ocasião do aniversário do Fuhrer, exorta os alemães

«a recordarem com respeito e afecto o homem a quem o povo alemão, há mais de quatro anos, confiou os seus destinos e que conquistou a alma do povo alemão».

No processo de Nuremberga todas estas coisas são lembradas a Schacht. Ele porém, por sua vez, faz montes de declarações embaraçosas para os representantes das potências ocidentais no Tribunal. Não esqueceu os serviços que lhe foram prestados por alguns dos compatriotas destes no rearmamento da Alemanha.

Schacht está irritado com os governos dos países que, por pressão das circunstâncias, o deixaram prender e levar a juízo. De quando em vez a sua irritação leva-o a desvendar a verdadeira natureza da política das potências ocidentais em relação à Alemanha hitleriana.

— Devo dizer — declara ele — que não houve reacção por parte dos Aliados ao rearmamento da Alemanha. A notícia dessa infracção, ao Tratado de Versalhes foi recebida com calma, contentaram-se com uma nota de protesto, mas não foi feito o mínimo gesto para retomar a questão do desarmamento... Enviaram à Alemanha missões militares para verem esse rearmamento; assistiram às manobras militares alemãs. Tudo foi feito, mas nada foi tentado no sentido de impedir o rearmamento da Alemanha.

Depois evoca as suas entrevistas com personalidades do Ocidente que se mostravam muito satisfeitas com a situação na Alemanha. O procurador-geral americano Jackson interrompe-o:

— Devo dizer, na intenção do Tribunal, que não concebo que pelo facto de estrangeiros de marca se terem enganado sobre o regime preconizado pelo arguido... se possa justificar os seus actos ou atenuar-se-lhes a gravidade...

É bastante justo, isto. Hjalmar Schacht fazia o reclame de Hitler. E ajudou-o a tomar o poder. Quanto aos «estrangeiros de marca» que, segundo Jackson, «se enganaram sobre o regime», há que dizer que nunca ninguém quis ser tão enganado em Munique como o quiseram Chamberiain, Bonnet e os encenadores de além-Atlântico. |

Não é de modo nenhum por acaso que o ditador económico da Alemanha se melindra por ser interrogado por um procurador americano sobre o seu papel no desmembramento e saque da Checoslováquia. A simples ideia de que ingleses e americanos se queriam fazer passar por defensores deste país, das suas riquezas naturais, dos interesses do seu povo, o exaspera. Isto porque ele se lembra muito bem de as potências ocidentais terem enviado notas à Checoslováquia, alguns dias antes de Munique, pedindo-lhe para capitular perante Hitler.

Por isso, quando Jackson lhe lembra que ele confiscou todos os valores da banca checa logo após a invasão, ele apara o golpe com habilidade de mestre:

— Peço desculpa. Hitler de modo nenhum tomou a Checoslováquia pela força. Foram os Aliados quem lha ofereceu numa bandeja de prata.

E o fim do diálogo passou-se assim:

Schacht. Não posso responder à sua pergunta porque, como já afirmei, nós não a tomámos, foi um presente que nos ofereceram. Se alguém me dá uma prenda dessas eu aceito-a com toda a gratidão.

Jackson. Mesmo que ela não pertença aos que lha dão?

Schacht. Evidentemente, quanto a isso tenho de conformar-me com o ofertante.

Não insistamos. O cinismo político de Schacht prescinde de comentários. É bem mais importante analisar a generosidade dos que prodigalizavam semelhantes «presentes» a Hitler.

Abstracção feita da odiosa tendência de Schacht utilizar a tribuna que é o processo de Nuremberga para a sua reabilitação, para provar o seu «anti-hitlerismo», há que reconhecer que esse espertalhão de alto coturno tinha uma visão bastante clara da política do Ocidente. Quando Schacht dizia que a República de Weimar desagradava a alguns ocidentais não estava a mentir. Pois não tinha ela firmado o acordo de Rappallo(22) com a Rússia Soviética? E não comerciava activamente com esse país? Isso provocava despeito nos meios reaccionários da Grã-Bretanha, da França, dos EUA e atrapalhava o seu entendimento com os dirigentes alemães.

— Mas quando Hitler subiu ao poder as coisas mudaram completamente. Tomem a Áustria, remilitarizem a Renânia, conquistem a Checoslováquia, deitem a mão a tudo, que nós nem uma palavra diremos. Antes do pacto de Munique, Hitler nem ousava sonhar sequer com a anexação dos Sudetas. Apenas queria a sua autonomia. Mas depois esses patetas do Daladier e do Chamberlain deram-lhe tudo de bandeja. Por que não tinham concedido sequer a décima parte desse apoio à República de Weimar?

Schacht, ao colocar esta questão, obviamente que se não estava a armar em ingénuo. Conhecia a resposta de antemão. Sabia que a política muniquense do Ocidente consistia precisamente em encorajar Hitler e o seu regime, em aguilhoar o apetite dos nazis, depois em incitá-los contra a URSS.

Schacht ou Goering: Qual dos dois sairá vencedor na luta pelo Poder!

À primeira vista a carreira de Schacht parece ter evoluído sem atritos. Mas desde princípios de 1937 que graves acontecimentos se vislumbravam. E a 16 de Novembro desse mesmo ano deu-se a explosão: Hitler destituiu Schacht das suas funções de ministro da Economia e de comissário-geral da Economia de Guerra.

Porquê? Schacht apressa-se a informar o Tribunal que a razão da sua queda em desgraça residia no crescente antagonismo entre a sua política e a de Hitler e de Goering. Hitler tê-lo-ia acusado de praticar uma política demasiado rotineira, que era um mau contributo para a realização do vasto programa de rearmamento, e Schacht ter-se-ia pronunciado por uma redução desse programa. O conflito ia-se agravando de dia para dia, Hitler cada vez acusava mais acerbamente Schacht de sabotar os planos nazis e finalmente, a 16 de Novembro, o ditador económico da Alemanha foi destituído.

É esta a versão de Schacht.

Mas o Tribunal Internacional estava na posse de múltiplas provas que desmentiam completamente essas falsidades…

Teria realmente havido em 1937 dissensões entre Schacht, por um lado, e Hitler e Goering por outro? Sim, houve… E eram divergências de princípio? Nada disso.

De que se tratava então?

Schacht, em 1937, não punha qualquer objecção a que o rearmamento fosse intensificado. O seu desacordo com Hitler e Goering apenas dizia respeito ao modo de financiar o programa. Segundo ele, enquanto a Alemanha não estivesse preparada para assestar o golpe decisivo, era necessário continuar a encarar o comércio externo como a fonte mais segura de cobrir as despesas em divisas necessárias à compra de matérias estratégicas. Quanto a Goering, esse insistia, apoiado por Hitler, numa política de, autarquia, por outras palavras, queria que a Alemanha se bastasse a si própria em todas as suas necessidades.

Schacht sabia perfeitamente, que prestara a Hitler inestimáveis serviços, e não escondia a satisfação quando o secretário lhe trazia obsequiosamente as traduções de artigos da imprensa estrangeira onde ele era qualificado de «ditador económico da Alemanha». No governo de Hitler, composto por típicos bonzos nazis, o «génio financeiro» de Schacht não tinha dificuldade em impor-se. A determinada altura ele começou efectivamente a sentir-se o ditador da economia. Isso durou até que Goering descobriu, subitamente em si próprio grandes talentos de economista. E logo a luta se iniciou. Primeiro subterrânea, dissimulada, depois cada vez mais acesa, entre esses dois homens julgando-se ambos fadados para comandar a economia do país.

Nomeado comissário-extraordinário do Plano de Quatro Anos, Goering começou activamente a imiscuir-se na esfera daquilo que passava por ser o sanctus sanctorum de Schacht e emitiu uma série de ordens que reduziam a nada o papel e os poderes do comissário-geral da Economia de Guerra. A rivalidade entre os dois poderosos ministros ia-se acentuando de mês para mês. A 5 de Agosto de 1937 Schacht escreveu a Goering uma carta na qual o criticava acerbamente. A 22 de Agosto Hermann Goering tirou as coisas a limpo numa missiva de 24 páginas, de que citamos um extracto:

«Lamento tanto mais ter desde há pouco tempo a impressão...de que o senhor cada vez se vem opondo mais ao meu trabalho no Plano de Quatro Anos. É isso que explica o porquê de a nossa colaboração se ter vindo a tornar cada vez menos estreita».

Goering no Tribunal
1946. Goering em Nuremberga
(clique na foto para maior resolução)

No decorrer do julgamento o procurador perguntou a Goering se ele tinha tido divergências com Schacht a propósito do rearmamento.

E Goering respondeu:

— Suponho que o senhor Schacht, como bom alemão, estava pronto a sacrificar toda a sua energia ao rearmamento da Alemanha... Portanto não podíamos ter tido divergências de pontos de vista a não ser nos métodos a utilizar...

O paroxismo do conflito entre os dois «comissários» foi marcado por uma nova troca de cartas, em Novembro de 1937. Tiveram por essa mesma altura um encontro que de algum modo resumiu a sua luta pelo poder. Eis o que acerca disso diz Schacht ao juiz de instrução, em 16 de Outubro de 1945:

— A última conversa que tive com Goering data da altura...em que Hitler se esforçou, durante dois meses, por nos reconciliar e me levar a uma colaboração com Goering e a que me mantivesse no meu cargo de ministro da Economia. No fim dessa entrevista Goering disse-me: «Mas é preciso que eu tenha o direito de lhe dar ordens». Ao que eu respondi: «A mim não, mas sim ao meu sucessor!» Nunca recebi ordens de Goering nem as teria aceitado porque ele era um insensato em matéria de economia...

Assim, o próprio Schacht, para já não falar de Goering, confirmou que o facto de ter caído em desgraça não o foi por oposição aos planos de agressão de Hitler. Só que a antipatia recíproca entre Schacht e Goering era demasiado forte para que pudessem ser atrelados juntos ao mesmo carro.

Uma ocasião, durante o interrogatório, Schacht deu livre curso aos seus sentimentos:

— Descrevi Hitler como sendo um carácter amoral, mas a Goering não posso encará-lo de outro modo que um ser imoral e criminoso... É o ser mais egocêntrico que imaginar se possa. Para ele o poder político não passava de um meio de pessoalmente enriquecer e ter uma vida particular agradável. O êxito dos outros enchia-o de inveja. A sua cupidez não conhecia limites; era inimaginável a sua predilecção pelas pedras preciosas, pelo ouro e pelas joias; não sabia o que era a camaradagem; só se mostrava amigo de alguém na medida em que esse alguém lhe pudesse ser útil, e fazia-o de maneira muito superficial.

Como reagiram à hostilidade entre Schacht e Goering os militarões hitlerianos? Os generais alemães tinham um único critério de avaliação dos ministros: preferiam os que mais generosamente financiassem a Wehrmacht e mais acelerassem o seu desenvolvimento.

Desta vez os meios militares não hesitaram em tomar partido por Schacht. Prova disso é o relatório dirigido a Hitler em 19 de Dezembro de 1936 pelo Estado-Maior Económico do Exército:

«A direcção da economia de guerra no sector civil, em caso de guerra, está apenas dentro das possibilidades daquele que, em tempo, de paz, tomou a plena responsabilidade dos preparativos de guerra... Considerando este facto, o Estado-Maior Económico do Exército não acha compatível com este princípio que o plenipotenciário geral para a Economia de Guerra, Dr. Schacht, seja colocado debaixo da autoridade do ministro-presidente, general Goering».

Mas nem a intercessão de Blomberg e de outros generais pôde levar de vencida o «nazi n° 2». O duelo entre Goering e Schacht pela ditadura económica da Alemanha terminou pela vitória do primeiro. Schacht teve de bater em retirada. E quando a guerra chegou ao se termo, com um resultado totalmente diferente daquele que tanto, Goering como Schacht teriam desejado, este último tentou tirar proveito do seu antagonismo pessoal para se fazer passar por adversário da guerra e do nazismo.

Qual foi na realidade o comportamento de Schacht depois da sua destituição como ministro e comissário-geral? Nem melhor nem pior que antes. Mantendo-se presidente do Reichsbank continuou activamente a preparar a economia alemã para a guerra. Sem o Reichsbank teria sido impossível rearmar a Alemanha em conformidade com o programa e, consequentemente, desencadear as projectadas guerras de agressão.

Se Schacht tivesse querido demonstrar aos olhos do mundo a sua aversão pela política hitleriana de conquista, tinha nessa altura, em 1937, ocasião de o fazer. A Alemanha encontrava-se às portas da Anschluss e de Munique. Mas a verdade é que ele não tinha a mínima intenção de contrariar Hitler. Só em Tribunal ele teve a coragem de sustentar, em resposta às perguntas do seu advogado, que começara a sabotar as medidas do governo nazi em 1936-1937.

Onde estava a verdade?

Mal as tropas alemãs entravam em Viena e já o Dr. Schacht corria para lá. Cada um tem as suas preocupações. Hitler deslocou-se para, anunciar aos austríacos a boa nova de que eles já não eram austríacos e que deviam esquecer o mais depressa possível a existência de um Estado de nome tão anacrónico como o de Áustria. Himmler tinha de «depurar» a cidade dos seus habitantes que teimavam em considerar-se austríacos, sem se deixarem seduzir pelo título de «Reichsdeutsche». Mas que fazia em Viena o Dr. Schacht? Sim, até porque ele já andava de mal com Goering e já não era ministro da Economia.

Hjalmar Schacht correu de imediato ao Banco da Áustria para deitar a mão pesada ao Tesouro. E 400 milhões de schillings-ouro foram transferidos para Berlim, para os cofres-fertes do Reichsbank,

O que seguidamente foi o comportamento de Schacht também não abona mais da sua oposição ao regime nazi. Reuniu numa ampla sala os empregados bancários austríacos e fez-lhes um discurso emocionado. Se ele por um só instante tivesse adivinhado que esse discurso seria citado com abundância num processo especial, com certeza que se teria abstido de o embelezar com os seus protestos de devotamento a Hitler. Mas nessa altura estava longe de prever o que lhe ia acontecer.

Robert Jackson pergunta-lhe se o Reichsbank tinha sido uma instituição política em 1933. Schacht diz que não. Então o coca-bichinhos magistrado pede-lhe o favor de querer escutar uma passagem do seu próprio discurso no banco nacional austríaco:

— «Nunca o Reichsbank será outra coisa que não nacional-socialista; de outro modo deixarei de ser seu presidente».

Schacht, obrigado a reconhecer a autenticidade do texto, deve sem dúvida ter dado inteira razão a Maurice Périgord Talleyrand que achava que o único instrumento de que o rei se deve servir o menos possível é a língua. Mas por azar já era demasiado tarde. Cada vez se foi convencendo mais disso, à medida que Jackson ia apresentando outras pérolas da sua eloquência. Meu Deus, o que não foram eles buscar! Schacht garantia aos empregados austríacos que «Adolfo Hitler tinha criado uma comunhão da vontade e do pensamento alemães». Que «considerava totalmente impossível, para uma só pessoa que fosse, ter o futuro garantido a nosso lado se não estiver de todo o coração com Adolfo Hitler». E ultrapassou, na sua peroração, todos os limites do ditirambo:

— Agora peço-lhes que se levantem. Queremos hoje prestar juramento à grande família do Reichsbank, queremos prestar juramento à grande comunidade alemã, queremos prestar juramento ao nosso Grande Reich alemão no seu recuperado poder, e queremos juntar todos estes sentimentos no reconhecimento ao homem que levou a todas estas transformações. Peço-lhes que levantem a mão e repitam comigo: «Prometo solenemente que serei fiel e obediente a Adolfo Hitler, Fuhrer do Reich alemão e do povo alemão, e que cumprirei as obrigações do meu cargo com consciência e sem egoísmo». Prestastes este juramento. Maldição a quem o renegar. Pelo nosso Fuhrer» três vezes «Sieg Heil!»

Era assim que o Dr. Schacht «sabotava» as medidas do governo em 1936-37.

Depois da Áustria foi a vez da Checoslováquia. Também aí o Dr. Schacht se não manteve neutro. No seu discurso de 29 de Novembro de 1938 declara-se satisfeito por Hitler ter utilizado como argumento em Munique as Forças Armadas alemãs. E na primeira ocasião que se lhe depara, o «mago das finanças» saqueia a banca checa.

Teve de responder por todos esses actos em Nuremberga. Os outros réus observavam muito atentamente as suas tentativas de refutar as demolidoras provas. Uns compadeciam-se com o seu destino, outros invejavam-no, ou então regozijavam-se com os seus fracassos. Poucos, deles se podiam gabar de terem vivido episódios tais como uma destituição oficial ou um conflito aberto com Goering. Aparentemente, isso dava boa impressão no processo. Mas os seus co-réus sabiam que por detrás da «oposição» do senhor Schacht mais não havia do que uma acesa luta pelo poder no regime hitleriano, regime tão querido a Hermann Goering comò a Hjalmar Schacht.

A asserção de Schacht, de que teria matado Hitler com as suas próprias mãos se o tivesse podido, desencadeou uma tempestade de indignação no banco dos réus. Todos a entenderam como uma grande pantomimice: Goering lançou-lhe uma olhada, abanou a cabeça com ar reprovador e escondeu a cara entre as mãos, como se tivesse vergonha de ouvir o ex-ministro do Terceiro Reich confessar a sua alta traição. Como se ele próprio também não tivesse traído, na última fase da guerra, o seu «Fuhrer bem-amado».

Cenas destas eram tudo, menos sinceras. Os antigos sátrapas hitlerianos tinham desde há muito perdido toda a noção da honra, da fidelidade, da verdade. Revoltados com a impudência de Schacht, invejavam no entanto a manha dessa velha raposa que tinha sabido servir Hitler de modo a conservar, em caso de derrocada do Tercei Reich, hipóteses de se dessolidarizar do «Fuhrer bem-amado».

Jogo Duplo

Sim, Schacht ultrapassava, de longe, em matéria de dissimulação, todos os Goering e Ribbentrop. A esses faltava-lhes a escola, a educação. Tinham imaginado que podiam fazer a sua descoberta. Mas Schacht percebia efectivamente da coisa e soubera ver muito mais longe.

Schacht jogava em grande. Tudo fizera para abrir o caminho do poder a Hitler. Ajudara a criar uma poderosa força armada. Conhecia a fundo os seus planos de conquista e foi por isso que se ligou a ele. Era nesses planos que assentava a aliança dos monopólios do Ruhr com os nazis.

Schacht sabia melhor que ninguém que a guerra constituía um excelente negócio. Entretanto o seu faro financeiro, de economista e homem político dizia-lhe que o programa de agressão se baseava em cálculos arriscados. Ele próprio, como vimos, não recuava diante da aventura no domínio das finanças e da economia. O que o não impedia de ser presa de inquietações. O Terceiro Reioh sobrestimava de tal modo as suas forças que ao mínimo advento infeliz de circunstâncias (a guerra é a guerra!) todos os planos de Hitler corriam o risco de se volverem em catástrofe.

Em suma, Schacht mais não desejava do que acreditar na vitória da Alemanha, que teria sido também a sua vitória. Mas o destino é caprichoso. Já na Primeira Guerra Mundial ele teria desejado que a Alemanha saísse vitoriosa. E como terminou essa guerra? Pelo Tratado de Versalhes, que reduziu a Alemanha a uma potência de terceira categoria. Na altura só se pensava em julgar os Hohenzollern. E agora?

É certo que o pessimismo de Schacht foi fortemente abalado por Munique e pelas guerras-relâmpago de 1939 e 1940. O incrível acontecera. Os meios dirigentes da Inglaterra, da França e dos EUA, cegos pelo seu ódio à URSS, estavam prontos a oferecer a vitória a Hitler numa bandeja de prata, em detrimento dos seus próprios interesses políticos. A fórmula de Bismarsk: «A política é a arte do possível» chegou por momentos a parecer caduca, suplantada que foi pela do pretensioso e grandiloquente Alfred Rosenberg que destinava à política do século XX a tarefa de «tornar possível o impossível»!

Quanto ao Dr. Schacht, esse tinha a cabeça bastante sólida para não se deixar contaminar pela vertigem dos primeiros êxitos formidáveis de Hitler. Ainda havia em perspectiva a guerra contra a URSS. Schacht detestava esse país, gostaria de vê-lo destruído. Não concebia como era possível um Estado moderno manter-se sem propriedade privada, sem iniciativa privada, essas bases da civilização. E como todos os mistérios, o mistério da URSS assustava-o. Que aconteceria às colunas de blindados hitlerianas nos imensos espaços da Rússia? Qual seria a moral dos seus cidadãos? Estas questões eram para ele uma preocupação constante.

Schacht tinha assimilado de uma vez por todas a regra essencial do comércio: tomar precauções. Por isso existiam as companhias de seguros. Só era pena que os seus estatutos não fossem universais. Não se pode, por exemplo, fazer seguro contra a bancarrota, mesmo pagando os encargos mais elevados. Aliás, a política não é uma cópia exacta, do negócio. Por que não tentar um seguro contra a falência neste domínio? Sobretudo quando se está ciente de estar metido numa aventura perigosa...

Lembro-me da cara de Schacht. Tinha expressão sempre ambígua, como aliás toda a sua maneira de ser e toda a sua vida. Ei-lo a olhar para alguém de frente com uns bondosos olhos de avô. Os seus traços são doces, um tanto gastos pela idade. Não havia dureza na linha da sua boca nem na forma do queixo. Bela cabeleira branca penteada para trás. Os vidros dos óculos deixavam ver uns olhos de brilhante vivacidade que pareciam captar os mínimos pormenores do seu campo, visual.

Um velhote como tantos outros. Mas não se tirem conclusões precipitadas. Agora está de perfil e, se de novo o observarmos, a metamorfose é chocante. Os traços acentuaram-se-lhe, endureceram. Das linhas cuja suavidade há pouco nos encantou, nem traço. O desenho da boca como que mudou bruscamente: os lábios, finos e apertados, descaem nitidamente nas comissuras. Parecia estarmos a vislumbrar, através daquele invólucro corpóreo, a verdadeira natureza do Dr. Schacht: crueldade, egoísmo, vontade férrea. Tem alguma coisa do ar das aves de rapina.

...Schacht decidiu, pois, fazer um seguro de vida. Com essa finalidade, joga ele um jogo perigoso, procura de antemão testemunhas e protectores. O «mago das finanças» convive com personalidades dos países ocidentais e, depois de preâmbulos vagos, diz-lhes coisas que lhe poderiam ter custado caro se tivessem chegado aos ouvidos dos dirigentes da Alemanha hitleriana.

George S. Messersmith, cônsul geral dos EUA em Berlim de 1930 a 1934, conta:

— O Dr. Schacht sempre se esforçou por fazer jogo duplo. Disse-me, e sei que o fez a outros representantes americanos e britânicos em Berlim, que não estava de acordo com praticamente nada do que faziam os nazis. Depois da tomada do poder pelo partido nazi, disse-me que se os nazis não fossem travados acabariam por arruinar a Alemanha e com ela o resto do mundo. Insistiu, lembro-me muito bem, no facto de os nazis irem inevitavelmente mergulhar a Europa na guerra...

E Schacht dizia estas coisas na época em que abria a Hitler o acesso ao poder e se aplicava no financiamento dos arriscados projectos do governo nazi recentemente formado! Tão dúbio era que faria inveja a um Talleyrand e a um Fouché.

Schacht não descurou também a abordagem do embaixador americano William Edward Dodd. Este professor de ideias liberais foi em Berlim o primeiro representante do governo Roosevelt. Conhecia bem a história da Alemanha, a língua alemã e não tinha repugnância em conviver com os grandes do Terceiro Reich. Talvez o seu interesse não fosse apenas o de embaixador, mas também o de historiador... Dodd recebia Goering, Hess, Neurath, Rosenberg e fazia-lhes também frequentes visitas. Mas ninguém parecia tão ligado a ele como o Dr. Schacht, que tinha família na América e relações com os homens de negócios americanos. Sem falar do facto de Dodd, com as suas ideias liberais, o achar menos odioso que os desenfreados nazis como Goering, Hess, Rosenberg ou Frank.

Schacht não tardou a convencer o embaixador dos Estados Unidos de que estava em oposição ao regime hitleriano. Isso ressalta de numerosas notas do diário da embaixada. E era só nas alturas em que Schacht ia longe demais no seu jogo que Dodd, desenganado, acabava por duvidar da boa-fé do seu agradável interlocutor. Mas nesse caso ainda mais ele apreciava a coragem de Schacht que, no entanto, nada arriscava, pois estava absolutamente seguro de o embaixador o não denunciar a Himmler.

Eis uma das características notas de Dodd a respeito de Schacht, datada de 21 de Junho de 1935:

«...Na Alemanha, como aliás em toda a Europa, haveria poucas possibilidades de encontrar um homem tão inteligente como esse «ditador económico». A sua posição é delicada e por vezes perigosa. Quando o vi no princípio de Junho de 1934, a primeira coisa que me disse foi: «Ainda estou vivo». Esta frase parece-me bastante arriscada».

O mais curioso é que Schacht, nas suas circunstanciadas declarações no processo de Nuremberga, nunca disse ter tido, em 1935, dissensões com Hitler ou Goering. Pelo contrário, afirmava ter estado nas melhores das relações com a cúpula nazi até 1936-1937. Que quer isso dizer? O facto é que entre eles nunca houve um desentendimento propriamente dito. Schacht, para usarmos a linguagem militar, arranjava uma via de retirada, só isso. Já a partir de 1933 sabia o que valia a camarilha a que se tinha ligado e achava por bem, como político que se preza, garantir um seguro o mais cedo possível.

Schacht agarrou-se teimosamente a esta táctica. Mal foi destituído das suas funções de ministro da Economia informou logo Dodd. Não se enganou acerca do efeito que a notícia produziria. Lemos num diário de embaixada que Dodd «perguntou confidencialmente a Schacht se este não aceitaria o lugar de presidente de um banco americano». O «mago das finanças» não hesitou.

— Sim — respondeu — ficaria encantado por ver com frequência o presidente Roosevelt...

«Pobre Schacht — constata Dodd. — É o financeiro mais capaz da Europa, mas não faz o que quer e está ameaçado por um grande perigo se houver rumores da sua intenção de fugir para os Estados Unidos».

Claro que o banqueiro Schacht é tão cosmopolita como o capital ao qual consagrou a vida. Não temos dificuldade em imaginá-lo a mudar de país para ligar o seu destino ao capital americano. Mas só em teoria. Porque na prática, tanto em 1937 como mais tarde, até ao fim da guerra, já não era questão disso. Evidentemente que ele teria ficado contente ao ler então as notas de Dodd. Elas provavam que ele desempenhava bem o seu papel e tinha conseguido fazer-se passar por anti- hitleriano!

Dodd, entretanto, depressa compreendeu que Schacht estava longe de solicitar um visto americano. Voltou a encontrá-lo em 21 de Dezembro de 1938, e o que dessa vez lhe disse o presidente do Reichsbank de modo nenhum dava a entender a sua intenção de empreender tão longa viagem. Falaram dos destinos de numerosos países e dos seus povos, das condições necessárias à salvaguarda da paz. Schacht definiu essas condições em termos bastante lacónicos:

— Se os Estados Unidos...quisessem deixar o pulso livre à Alemanha na Europa, teríamos a paz mundial.

Toda a liberdade de manobra para a Alemanha na Europa, eis o que desejava o Dr. Schacht, esse «adversário» de Hitler. Que o Ocidente aprove a política de agressão de Hitler, que lhe permita apoderar-se dos pequenos países vizinhos, atacar a URSS...Dodd concluiu com estas significativas palavras:

«Por mais que deteste a ditadura de Hitler, Schacht, como a maioria dos alemães mais eminentes, deseja a Anschluss, se possível sem guerra; e com guerra se os Estados Unidos não se intrometerem. Admiro a sua audácia, mas se ele emigrasse para os Estados Unidos não faria um bom americano, tenho esse receio».

Dodd não tinha nada a temer. Não que Schacht fosse pior que os «bons americanos» de Wall Street. Mas não tencionava emigrar. Com certeza que não estava de acordo com tudo o que fazia Hitler. Em muitos casos teria agido de modo diferente dele e, sobretudo, de modo diferente de Goering. Mas no seu conjunto ele apoiava a política de agressão. Sem o que não teria dispensado tanta energia e habilidade para financiar o rearmamento da Alemanha.

Schacht sabia que grandes acontecimentos se iam produzir. E estava à espera deles ao mesmo tempo que tomava as suas precauções.

Nova Destituição

A Alemanha hitleriana estava febrilmente a armar-se. As fábricas de guerra funcionavam a pleno rendimento, eram construídos aeroportos por todo o lado. A essa cadência podia ser preparada uma grande guerra de invasão em cinco anos.

Durante esse período a política aventureirista de Hitler assentava em grande parte nas finanças aventureiristas de Schacht. Mas enquanto o primeiro tomara o freio nos dentes, o segundo sentia uma crescente inquietação perante a deterioração catastrófica das finanças do Império.

Em fins de 1938 já não havia dinheiro líquido no Reichsbank. O ministro das Finanças, von Krosigk, informava Hitler de que se a dívida corrente do Estado tinha sido de 12,5 mil milhões marcos em 31 de Dezembro de 1932, em 30 de Junho de 1938 ela atingira 35,8 mil milhões de marcos. Não obstante tinham sido investidos no mesmo ano, mais cerca de 11 mil milhões no programa armamentista.

A 7 de Janeiro de 1939 Schacht dirige a Hitler um relatório no qual expressa os seus receios perante a ameaça da inflação. Propõe diversas medidas para limitar os orçamentos das outras instituições, exige que todas as despesas sejam rigorosamente controladas pelo Reichsbank. Depois de uma tempestuosa discussão com o Fuhrer, o presidente do Reichsbank pede a demissão.

No processo de Nuremberga, Schacht tentou apresentar esta demissão como um testemunho mais da sua «oposição» ao regime hitleriano. E anos mais tarde tentou fazer dela a prova da, «oposição» dos monopólios alemães aos projectos de guerra de Hitler.

Mas, bem entendido, nem num caso nem noutro, isso é verdade. O seu sucessor, Emil Puhl, explicou a coisa com bastante clareza no Tribunal Internacional:

— Quando Schacht viu que a situação perigosa de que ele era responsável se estava á tornar insolúvel (a inflação era iminente — A. P.), começou a ficar cada vez com mais impaciência para dela sair.

O depoimento de von Krosigk faz igualmente luz sobre os verdadeiros motivos da demissão de Schacht:

— Eu pedi a Schacht para avançar ao Estado, para além do prazo do fim do mês, uma soma de cem ou duzentos milhões. Era um procedimento corrente que desde há anos utilizávamos. Dessa vez Schacht recusou e disse que não avançaria nem um pfenning, para mostrar claramente a Hitler que o Reich estava a cair na bancarrota.

O procurador pergunta-lhe:

Schacht alguma vez lhe disse alguma coisa a propósito do seu desejo de rescindir as suas funções porque estava em oposição ao programa de rearmamento?

— Não, nunca o disse formalmente — confessa von Krosigk.

Quanto a Goering mostra-se ainda mais categórico. À pergunta:

Schacht foi exonerado por Hitler das suas funções no Reichsbank por ter recusado participar por mais tempo no programa de rearmamento?

Responde ele:

— Isso não tinha qualquer relação com o programa de rearmamento.

Podíamos ter insistido menos na segunda queda em desgraça de Schacht se ela não tivesse contribuído para desmascarar este indivíduo. Neste caso parece que ele se mostra a nossos olhos sob um outro ângulo e nos desvenda um novo traço do seu carácter.

Ele podia fazer, e fez realmente, os possíveis e impossíveis para ajudar Hitler na preparação da guerra. E estava pronto para recolher os frutos da vitória. Mas quando a máquina financeira por ele posta em marcha com audácia de aventureiro chegou à beira do abismo e quando já não existiam senão duas soluções — franquear o abismo por cima dos carris de uma guerra vitoriosa (coisa de que ele não tinha a certeza) ou cair no seu bojo e para sempre ganhar aos olhos do mundo dos negócios a fama de obreiro de bancarrotas — Schacht não hesitou em ceder a direcção do Reichsbank a Emil Puhl. Hjalmar Schacht sempre tinha associado o seu nome às companhias e aos homens prósperos.

Esta nova queda em desgraça era mais um elo na cadeia da sua política de seguro de vida. Em caso de derrocada, ele lavava daí as mãos. Em caso de êxito mantinha o seu cargo de ministro sem pasta. Não tinha dúvidas de que no momento da partilha do bolo (se Hitler conseguisse minimamente cozê-lo) ele teria a sua fatia e providenciaria por que fosse grossa!

Mas Hitler tirou as suas próprias conclusões. Quando Schacht se demitiu, deparou-se-lhe toda a gravidade da situação. O único meio razoável de evitar a catástrofe era reduzir as despesas com o armamento, equilibrar o orçamento. Mas isso tê-lo-ia obrigado a renunciar inteiramente à sua política, sem a qual não teria havido nem fascismo nem Hitler. Escolheu por conseguinte uma outra via: a aceleração dos preparativos de guerra, na esperança de endireitar as finanças do Reich a expensas dos países invadidos.

Isso não podia escapar aos diplomatas estrangeiros que estudavam atentamente a situação na Alemanha. A 6 de Abril de 1939 Forbes, conselheiro de embaixada britânica em Berlim, fazia chegar a Londres, no seu relatório:

«Em caso algum poderemos excluir o facto de Hitler recorrer à guerra para pôr termo à intolerável situação resultante da sua política económica».

E Henderson, embaixador da Grã-Bretanha, levantava, na sua carta de 6 de Maio a Halifax, questões que nada tinham de retóricas:

«Poderá ela (a Alemanha fascista. — A. P.) viver um Inverno mais sem ser atingida pela derrocada? Se não, será que Hitler não preferirá a guerra a uma catástrofe económica?»

O Dr. Schacht na Encruzilhada

A guerra estava, pois, iminente. Schacht esperava a sua chegada. Tinha feito todo o necessário para financiar o rearmamento. A Wehrmacht existia já nas proporções previstas pelo plano. E se até à data Hitler tinha hesitado, a instâncias de Goering, em destituir Schacht, aceitou de ânimo leve a sua demissão em 1939. A última palavra já não pertencia ao financeiro, mas à Wehrmacht e aos seus generais.

Hitler dava-se perfeitamente conta da importância das relações de Schacht com os meios financeiros da Europa ocidental e da América. Tinham proporcionado à Alemanha bastante créditos. Era um facto. Mas Hitler sabia também que esses créditos não eram concedidos por mera simpatia a Schacht ou por ele próprio. Esperava-se da Alemanha actos concretos: a agressão à URSS. Era esse o sentido da política de Munique. Hitler disse um dia aos seus íntimos que teria de manter em respeito as «potências de Versalhes» por meio do fantasma do bolchevismo, «levando-as a acreditar que a Alemanha era o último dique para travar a vaga vermelha».

«Para nós, disse ele, é esse o único meio de sobrevivermos ao período crítico, de anularmos o Tratado de Versalhes e de nos rearmarmos».

Neste jogo prestou grande auxílio a Hitler um homem como Hjalmar Schacht. Mas nenhum jogo pode durar indefinidamente. Chegou a hora de cumprir a promessa de «marchar para Leste», de aniquilar a União Soviética.

Apesar do seu gosto pela aventura, Hitler via a imprudência que era lançar uma Wehrmacht recém-formada contra o mais poderoso Estado da Europa. Em 1939, antes da submissão das potências de Versalhes, uma guerra contra a URSS comportava demasiados riscos. Foi por isso que Hitler e os seus generais pensaram começar a agressão pelo Ocidente.

Schacht sabia isso? Com certeza. Estava ao corrente de todas as tendências da política externa da Alemanha. A «variante Ocidente» do desencadeamento da guerra satisfá-lo-ia? Claro que não! Ele tomava a sério os interesses do Ocidente capitalista. Estava em estreito contacto com os monopolistas dos EUA e da Inglaterra, com grandes firmas alemãs como a Thyssen, que sempre tinham apostado na «variante Leste». Essa nova orientação da estratégia militar alemã, com a qual não estava de acordo, levou-o a fixar-se na decisão de provisoriamente se pôr de lado e acautelar os seus interesses.

Hitler, por seu lado, ao queimar-se a Ocidente, dava-se perfeitamente conta de que devia entregar noutras mãos a política económica de Schacht. É o que também explica, em certa medida, a facilidade com que o ditador político da Alemanha se separou do seu «ditador económico».

Mas Schacht não se foi embora de vez e completamente. Continuou membro do governo. E para sermos fiéis à verdade devemos dizer que, ao mesmo tempo que se mantinha na expectativa, não perdeu nunca a ocasião de ser útil a Hitler. Até porque ainda se não podia prever o rumo que as coisas iam tomar.

Até Setembro de 1939 Schacht dá provas no terreno diplomático. Em Março vai à Suíça para aí se encontrar com os seus amigos ingleses e os incitar a uma aliança com Hitler. Os contra-agentes sabiam dos desígnios de cada um. Caminhava-se irreversivelmente para uma guerra da qual uma das partes beligerantes seria a Alemanha. Mas onde é que a Wehrmacht carregaria? Schacht informou um emissário do governo britânico que a Polónia não escaparia aos golpes da Alemanha, mas que Hitler «também queria a Ucrânia». Não se podia ser mais explícito! Isso só podia ser entendido num sentido: se vocês, ingleses, deixarem Hitler manobrar como no ano passado em Munique, a Alemanha levará a cabo a sua grande «corrida para Leste».

Para estabelecer o «entendimento» com a Inglaterra (com fins anti-soviéticos, claro) Schacht multiplica as viagens de Berlim a Zurique e utiliza as suas relações com o Banco dos Regulamentos Internacionais. Depois o infatigável ministro sem pasta tenta por reiteradas vezes contactar os meios dirigentes dos EUA. Aí está a contar com o director de um dos grandes bancos de Nova Yorque, Leon Fraser, que estava relacionado com Roosevelt. Schacht pede ao banqueiro que lhe obtenha um convite oficial aos Estados Unidos.

Não consegue fazer-se convidar, mas os seus esforços não foram completamente baldados. Em Março de 1940, quando a guerra já fazia furor na Europa, Sumner Welles, secretário de Estado adjunto dos EUA, foi a Berlim. Teve entrevistas com Hitler, Goering, Ribbentrop. E ninguém se espantou por o enviado de Washington fazer questão de também se encontrar com o ministro sem pasta. Continuava a considerar Schacht um homem muito influente e foi a ele que deu a entender que «os EUA não tinham interesse em ver a Alemanha derrotada».

No Verão de 1940 a Wehrmacht derruba outros países. A Noruega, a Dinamarca, a Bélgica, a Holanda são esmagadas. A França, traída pelos seus políticos reaccionários e pelos seus generais, cai em cinco ou seis semanas aos pés do vencedor. Schacht pavoneia-se nas salas da Chancelaria: é que ele tinha contribuído bastante para essa sequência de triunfos. Encantado com a vitória sobre a França, ostenta a sua satisfação. Capricha em convencer Hitler do seu devotamento. Quer ser aos olhos do Fuhrer tal como tinha sido nas memoráveis jornadas de 1933, Está pronto a esquecer a sua briga com Goering: a guerra é a guerra, unamos esforços! Desde o princípio do ano que se oferecera para levar os Estados Unidos a não ajudarem mais a Inglaterra...

A Acusação apresenta ao Tribunal Internacional uma quantidade de documentos comprovativos de que Sua Excelência o ministro sem pasta fazia jus aos seus emolumentos. Primeiro foram os textos. Depois foram apagadas as luzes e projectadas num ecrã, montado desde essa manhã, as ruas de Berlim ornamentadas de panos e bandeirolas. As fanfarras tocam marchas empolgantes. A capital nazi recebe Adolfo Hitler no seu regresso de Paris, depois da capitulação da França.

A objectiva imparcial da câmara captou, junto a Hitler, o seu séquito: Goering, Himmler, Goebbels... Entre eles está também o ministro sem pasta que felicita calorosamente o Fuhrer pelo êxito da sua última agressão.

O cinema pregou uma boa partida a Schacht. A mostra desse documentário no processo deprimiu nitidamente o «mago das finanças», enquanto Goering se agitava no banco para chamar a atenção dos outros senhores réus para as imagens que ele achava divertidas.

Verão de 1941. Foram levadas a cabo operações tão rápidas quanto brilhantes e que quase lançaram aos pés do conquistador toda a Europa.

A 22 de Junho de 1941 a Alemanha ataca a URSS e Schacht, uma vez mais, mostra-se zeloso. Escreve em Outubro ao ministro da Economia e presidente do Reichsbank, Walter Funk, sugerindo-lhe os melhores meios de explorar os territórios ocupados. Mas os primeiros êxitos do exército alemão na União Soviética não o iludem. Tem dúvidas quanto à campanha da França se repetir nas planícies da Rússia.

Os finais do ano de 1941 alimentam-lhe o pessimismo: o Exército Soviético repeliu o inimigo para centenas de quilómetros de Moscovo. É a primeira etapa da vitória sobre o fascismo, a primeira riposta séria, de grande importância tanto militar como política e moral.

Ao mesmo tempo, Hjalmar Schacht observa com inquietação a crescente amizade do povo soviético com os povos americano e inglês. Compreende muito bem o perigo que representa para a Alemanha a coligação anti-hitleriana da URSS, dos EUA e da Grã-Bretanha.

Finalmente fica completamente desmoralizado com as bandeiras tarjadas de negro que enlutam as ruas de Berlim no Inverno de 1943. A gigantesca batalha do Volga terminou com um desastre para o Terceiro Reich.

Schacht tem doravante a certeza de que a causa de Hitler, à qual consagrou tantos esforços, está perdida. É chegado o momento de virar a casaca. Quanto mais os acontecimentos da frente Leste se precipitam, tanto mais se lhe impõe a necessidade de encontrar uma outra via. E o ministro sem pasta decide abandonar o navio que começa a afundar-se.

Ainda ninguém, no séquito de Hitler, partilhava das sombrias previsões de Schacht. O membro soviético do Tribunal Internacional nota muito justamente, na sua declaração de voto, que

«Schacht, tendo sentido antes de muitos outros que o regime hitleriano fatalmente se desmoronaria, pôs-se em contacto com os meios da oposição, sem no entanto nada empreender no sentido de derrubar o regime existente».

Em 1943 Schacht de novo se revelou um diplomata inteligente que sabe que em política internacional, como em tudo, o que é preciso é maleabilidade. A raposa, com os seus rodeios, escapa por vezes a uma morte que parecia inevitável. E o tigre ferido que estupidamente enfrenta o caçador prestes a desferir-lhe o tiro de misericórdia, solta em vão o seu agónico rugido.

Em 1938 Schacht exortava os bancários do Banco austríaco a prestarem juramento a Hitler, dizendo: «Maldição a quem renegar o juramento. Pelo nosso Fuhrer, três vezes «Sieg Heil!» E ei-lo agora pronto a gritar: «Maldição ao Fuhrer que conduziu a Alemanha a este beco sem saída!» Obviamente que ele pensava antes de mais na Alemanha dos banqueiros, dos industriais e dos grandes proprietários fundiários.

Ele quer, mas ainda não pode. O que ele fez, ao empreender uma secreta luta contra Hitler com o concurso do inimigo, chama-se e linguagem jurídica alta traição.

E é mesmo de traidor que os réus de Nuremberga o qualificam quando ele se vangloria de ter participado na conspiração. Mas à socapa ri-se deles. Goering e Ribbentrop, Kaltenbrunner e Frank, todos esses degenerados podem chamar-lhe o que lhes der na gana. Serão esses pigmeus capazes de compreender um verdadeiro político, um homem de largos horizontes? Talleyrand também passou por traidor quando entrou em relações secretas com Alexandre em 1807. Mas não encontrou logo defensores? Eis o que acerca de Talleyrand escreve um publicista alemão da época.

«Nunca pude conceber por que é que homens de todos os tempo se recusaram a compreendê-lo! Censuraram-no, o que está bem, m mole, virtuosa, insensatamente: essas censuras honram a humanidade mas não os homens: reprovam-no por ter traído sucessivamente todo os partidos, todos os governos. É exacto: ele passou de Luís XVI para a República, desta para o Directório, deste para o Consulado, do Consulado para Napoleão, deste para os Bourbons, dos Bourbons para Orléans e talvez tivesse passado, antes de morrer, de Louis-Philippe para República. Mas nunca traiu os seus patrões, simplesmente os deixou aquando das suas mortes. Ele estava à cabeceira de todas as épocas, de todos os governos doentes, tomando-lhes o pulso e apercebendo-se, antes dos outros que os seus corações tinham deixado de bater. Então abandonava o defunto e corria de encontro ao herdeiro, enquanto outros continuavam, por algum tempo ainda, a servir o cadáver. Será isso traição?»

De Schacht poder-se-ia ter dito mais ou menos a mesma coisa. Se ele tinha aceitado sem pena a queda da República de Weimar, para a qual encontrara um «sucessor forte», outra coisa diferente se passava quanto à destituição de Hitler. Schacht e os que estavam por trás dele não tinham pressa em deitá-lo abaixo, se bem que a História lhes desse pouco tempo. Tratava-se de preparar com cuidado a sucessão do chefe comprometido. Estava-se em guerra com o Leste, a URSS ganhava terreno. No interior da Alemanha as redes antifascistas mostravam-se cada vez mais activas, com o partido comunista alemão à cabeça. Quanto a Schacht e aos outros conjurados, esses pensavam, uma vez afastado Hitler, salvar o capitalismo alemão, o domínio dos monopólios, e em caso algum ceder o poder.

O carácter desta conspiração da burguesia monopolista e dos junkers foi posto em relevo no processo de Nuremberga pelo interrogatório da testemunha Gisevius, alto funcionário da polícia alemã e agente secreto americano. Os conjurados, em busca de uma via que lhes permitisse conservar o poder depois de se terem desembaraçado de Hitler, tinham entrado em contacto com o serviço de informações americano na Suíça, dirigido na altura por Allen Dulles. Os poucos patriotas sinceros comprometidos na conspiração, como o coronel von Stauffenberg, não lhe podiam mudar a orientação. Era uma conspiração de feras unidas contra uma fera mais poderosa, um entendimento dos reaccionários alemães com os reaccionários dos EUA e da Grã-Bretanha.

Mas Schacht, uma vez caído no banco dos réus, esforça-se por dar a volta, em seu proveito, ao testemunho de Gisevius. Como ele gostaria que o Tribunal lhe atribuísse um dos principais papéis na conspiração, papel que ele teria assumido desde antes da guerra.

Isso enerva naturalmente os seus co-réus. Não a tentativa de Schacht salvar a pele, claro, mas a pena de não terem tido a ideia, nem que fosse nos últimos meses de existência do Reich, de arranjarem um álibi como o dele. Essa raposa matreira tinha-se esforçado por servir a Hitler de maneira a que em caso de vitória esta parecesse ser fruto dos titânicos esforços do doutor Schacht e que, em caso de derrota, acontecesse precisamente o contrário, que viesse ao de cima que ele tinha sido o mais encarniçado adversário da tirania. Esta diabólica táctica de fundo falso suscitava os seus ciúmes, e quem diz ciúmes diz ódio.

...Durante uma suspensão de audiência, Baldur von Schirach recita aos seus colegas o discurso de defesa que teria, pronunciado Schacht no caso de Hitler, vitorioso, lhe pedir contas. Schacht teria com certeza declarado:

— Como podem pensar que eu conspirei contra Hitler, eu que sempre fui um dos seus mais fervorosos adeptos? Unicamente com base, na palavra de Gisevius? Mas esse é um traidor que trabalhou para o inimigo durante a guerra. Não viram nas actualidades a cordial recepção que eu fiz a Hitler em Anhulter-Bahnhof, no seu regresso de Paris, em 1940? E não esqueçam que fui eu quem organizou a colecta entre os grandes homens de negócios para as eleições de 1933. E os meus titânicos esforços para financiar os armamentos? Não tenham ilusões: nunca teriam ganho a guerra sem mim. E os meus discursos depois da Anschluss e em Praga? Podem, depois disto, duvidar da minha fidelidade ao Fuhrer? ...

Os que assistiam a este improviso riam. Só Schacht se mantinha, imperturbável. Deixá-los rir, desde que Gisevius dissesse em Tribunal, o que Schacht dele esperava.

Mas o depoimento de Gisevius nem sempre foi conforme aos seus desejos. Ei-lo que declara, por exemplo, que um dos conjurados, o general Halder, se tinha encontrado com Schacht antes da guerra para organizar um golpe. Mas logo põe uma reserva:

— Devo especificar que queimei os miolos sobre o problema que era Schacht. Não só eu, mas todos os meus amigos. Para nós ele foi sempre uma questão em aberto e um enigma.

Schacht escuta com um sorriso cáustico. Enigma? De modo nenhum! Só que o barómetro político ainda não indicava o momento de desencadear o mecanismo da conspiração, só isso. Em 1938 fora posto em marcha um outro mecanismo, designado pelo lacónico nome de «Munique». Essa conspiração não tinha como alvo Hitler e sim a URSS, com o concurso de Hitler. Quanto à conspiração contra Hitler essa só viria a ser urdida depois do estrondoso fiasco do belo projecto de Munique, quando os soldados do Leste estivessem às portas de Berlim.

Nessa etapa Schacht aderiu efectivamente à conjura. Mas ainda aí ele arranjou maneira de não arcar com os estragos: deixando Himmler ajustar contas com os azarentos conjurados, ele manteve-se são e salvo num campo até ao fim da guerra.

Em Nuremberga ele sustentou, naturalmente, ter preparado juntamente com os outros o atentado contra Hitler. Mas Gisevius, interrogado pelo Ministério Público, teve de reconhecer que Schacht ignorava até a data marcada para o dito atentado.

O Dr. Dix negligenciou esse «pormenor», preferindo mergulhar nas profundezas da História. Pergunta a Schacht:

— Conhece casos históricos de dignitários de um Estado que tivessem tentado derrubar o chefe ao qual tinham jurado fidelidade?

— Penso que existem desses exemplos na história de qualquer país — Responde Schacht com doçura.

O réu está pronto para se lançar num longínquo devaneio, mas o presidente corta-lhe a palavra. Lembra a Schacht e ao seu advogado que o Tribunal passará muito bem sem os exemplos históricos.

Não obstante, o Dr. Dix voltou ao tema na sua defesa, isto aparentemente com duas finalidades: primeiro provar que os panegíricos outrora pronunciados em louvor de Hitler não passavam, em suma, da camuflagem de um conjurado; depois, conseguir a reabilitação moral do seu cliente entre os alemães que teimavam em rejeitar toda e qualquer justificação de um alto funcionário que entrou em contacto com o inimigo durante as hostilidades e que qualificavam o ex-ministro sem pasta de traidor.

— A História ensina — reata o advogado — que o conjurado que faz parte do número dos eleitos e que desaprova o chefe do Estado, se esforça sempre por ser obsequioso.

A este propósito o Dr. Dix refere-se a uma impressionante peça de Neumann que desvenda a história do assassinato de Paulo I da Rússia pelo seu primeiro-ministro, o conde von Pahlen. O czar sempre tinha acreditado no seu ostentatório devotamento. E no entanto...Numa mensagem que o conde enviara ao embaixador russo em Berlim pouco antes do assassínio ele intitula Paulo de «nosso mui ilustre imperador».

O advogado conclui a sua informação nestes termos:

— O mais característico é que a peça tem por título «O Patriota». Os famosos pregadores de moral que existem hoje às chusmas e que reclamam uma firmeza de aço na observância dos princípios, esquecem que o aço tem duas propriedades: à resistência junta a maleabilidade.

Não sei dizer se alguma vez as palavras de Dix convenceram os alemães. Mas os juízes ocidentais deram um bom acolhimento ao argumento defensivo de Schacht e do seu advogado baseado na participação do «mago das finanças» na conspiração de 20 de Julho de 1944. Por isso o veredicto de sentença do Tribunal Internacional faz fé de uma «hostilidade não camuflada» por parte da camarilha hitleriana para com Schacht e da sua prisão pretensamente motivada pela hostilidade de Hitler que tinha suspeitas da sua cumplicidade no atentado.

Por muitas vezes Schacht pôde constatar que tinha representado as últimas cenas do drama do Terceiro Reich infinitamente melhor que os seus companheiros de banco em Nuremberga.

Por que não se punham os juízes de acordo

Qualquer pessoa objectiva que tivesse assistido ao julgamento de Schacht não podia ter a mínima dúvida sobre o rigor do castigo que o esperava. Mas para o final do processo começaram a manifestar-se sintomas favoráveis ao réu.

Ele próprio começava a ter esperanças. Via-se isso pelo seu humor, pela sua atitude.

Uma ocasião, um oficial americano da guarda apercebeu-se que o réu Speer, antigo arquitecto, desenhava algo com entusiasmo.

— Que faz o senhor? — perguntou severamente o oficial.

— Quer saber o que estou a desenhar? — retrucou este. — É o projecto de uma vivenda que Schacht vai mandar construir depois do processo.

Com um gesto de cabeça Schacht confirmou ter feito a «encomenda» a Speer.

E alguns dias depois houve na sala de audiências um característico diálogo entre Schacht e o procurador-geral americano Jackson. Colocando-se uma vez mais como adversário do nazismo, Schacht invocou a sua demissão do cargo de presidente do Reichsbank e declarou que o título de ministro sem pasta era puramente nominal e que as suas funções eram inexistentes. Jackson lembrou-lhe muito a propósito que para esse título «nominal» Hitler continuava a pagar-lhe cinquenta mil marcos por ano.

— E então isso não era normal, senhor procurador? — replicou desavergonhadamente o réu. — Espero, vir ainda a receber a minha pensão de reforma, senão de que é que vou viver?

A réplica de Jackson foi mordaz:

— As suas despesas de manutenção talvez não sejam muito pesadas, doutor.

Depois desta troca de amabilidades, os autos registam: «Risos na sala». A estenógrafa não fez a precisão de quem era que as pessoas se riam, aliás ela não podia sabê-lo. O autor do presente texto lembra-se do ambiente que reinava durante o interrogatório de Schacht. O público era heteróclito: magistrados competentes, turistas americanos ricos, jornalistas influentes como Hearst e McCormic... Não era fácil saber se eles se riam da audácia de Schacht ou se do ingénuo optimismo de Jackson.

Não demorou a constatar-se que Schacht tinha algumas razões para estar seguro de si. Sabia que além do Dr. Dix tinha outros advogados muito mais poderosos. E houve uma altura em que Schacht os tinha ajudado a atestarem os seus cofres-fortes. Agora era a vez de eles o socorrerem.

O «mago das finanças» passara a sua vida na agitação e no tumulto. Era esta a primeira vez que ele podia dispor do seu tempo. As longas noites de solidão na prisão de Nuremberga eram propícias à introspecção retrospectiva, à análise. E, dissesse-se o que se dissesse, bom número dos que tanta influência tinham agora na América lhe deviam favores.

Não fora ele quem assistira Morgan e Dillon na criação do «Plano Dawes» que proporcionou centenas de milhões de dólares aos banqueiros americanos? Não fora ele quem permitira que os banqueiros americanos se enriquecessem com os armamentos da Wehrmacht? E, bem vistas as coisas, ele não tinha sido o único a pronunciar-se a favor da instauração do hitlerismo. Aquando da sua viagem aos Estados Unidos não teve dificuldades em convencer a Bolsa de Nova Yorque e os funcionários de Washington de que só a entrega do poder nas mãos de Hitler garantiria a «ordem na Europa» e a «cruzada contra a URSS». Schacht procurava obter novos créditos americanos para a Alemanha. Sabia às mil maravilhas que os homens de negócios de Nova Yorque não eram indiferentes à natureza daqueles que governavam a Alemanha. Estavam investidos na indústria alemã enormes capitais americanos e só Deus sabe quanto a «Ford» e a «General Motors» tinham ajudado, por intermédio das suas filiais no Terceiro Reich, a criar as unidades motorizados do exército hitleriano; Morgan tinha contribuído para o equipamento da aviação de Goering.

Poder-se-ia esquecer que em 1942-1943 Schacht multiplicou os encontros com banqueiros americanos em Basileia para lhes propor a paz a Ocidente? Os potes de dinheiro de além-Atlântico reagiram favoravelmente e tudo corria às mil maravilhas até os conquistadores nazis terem «encalhado no trágico escolho de Stalinegrado». A derrota dos hitlerianos na batalha do Volga repercutiu-se gravemente nas possibilidades de Schacht nas negociações.

Incansável na defesa dos interesses dos EUA, Schacht propôs a conversão da indústria da Alemanha em propriedade comum dos monopólios americanos e alemães, em troca de concessão da possibilidade de a Wehrmacht prosseguir a guerra contra a URSS depois de acabadas as hostilidades a Ocidente. Os seus amigos americanos não queriam outra coisa. Allen Dulles tentou até pôr Schacht à cabeça da Alemanha. Mas as respostas desmancha-prazeres do Exército Soviético abalaram, quebraram e reduziram a cacos o palco de feira para onde Schacht se aprestava a subir.

Lembra-se de tudo isso e custa-lhe a crer: estarão os americanos verdadeiramente interessados em que ele faça declarações «sinceras» perante o Tribunal? Por que permitem eles que os homens de leis vasculhem no sanctu sanctorum dos bancos e dos consórcios? Teria o procurador-geral americano Jackson sido enviado a Nuremberga unicamente para profanar as relações entre a «I.G. Farbenindustrie» e o consórcio americano «Standard Oil» e iniciar os simples mortais no grande mistério do nascimento dos conflitos armados?

No decorrer do processo Schacht seguia atentamente a imprensa americana e de quando em vez encontrava nela uma resposta às perguntas que o afligiam. Mas não era isso o essencial. Schacht soube pelos jornais que as molas do mecanismo que o podia defender tinham entrado finalmente em acção. À cautela decide no entanto lembrar publicamente aos juízes americanos (não o tivessem eles esquecido a existência de uma garantia por ele recebida mesmo antes da guerra:

— O encarregado de negócios dos Estados Unidos, Mister Kirk antes de deixar o seu posto em Berlim mandou-me dizer que depois da guerra contavam comigo, com um homem sem mácula.

E numa noite de Maio, conversando na cela com o doutor Gilbert, declarou:

— Garanto-lhe que seria uma eterna vergonha para este tribunal? E para a justiça internacional se eu não fosse absolvido.

No 1º de Outubro de 1946 o Tribunal Internacional faz a leitura da sentença. Schacht, Papen e Fritzsche são absolvidos. O presidente Lord Lawrence, ordena que o oficial afecto ao Tribunal os ponha em liberdade logo que a sessão seja encerrada.

Todos os outros réus se viram para a esquerda, onde estão sentados os três felizardos. A audiência é suspensa. von Papen está exultante e confessa a sua surpresa.

— Estava esperançado, mas no fundo não estava à espera que fosse assim.

Depois tem um último gesto espectacular: tira do bolso uma laranja que guardava para o almoço e pede a Gilbert que a dê a von Neurath! Fritzsche dá a laranja dele a Schirach. Quanto a Schacht, come ele próprio a sua.

A absolvição dos três hitlerianos revoltou a opinião pública. Sobre-tudo a de Schacht. O juiz soviético Nikitchenko fez declaração de voto contra.

A sequência dos acontecimentos está reflectida nas memórias de Hans Fritzsche. Como os criminosos de guerra absolvidos iam sair da prisão, o Dr. Dix veio dizer-lhes que o Palácio da Justiça estava cercado pela polícia alemã e que com certeza seriam presos logo que os americanos os libertassem.

«Aconselharam-nos — conta Fritzsche — a não sairmos enquanto a situação se não aclarasse. O coronel Andrews propôs-nos que passássemos a noite na prisão e fez-nos assinar um papel em como nós lá ficávamos de livre vontade. No dia seguinte, cerca da meia-noite, dois camiões americanos entraram no pátio. Schacht instalou-se num, eu noutro».

Os dois camiões franquearam o portão a coberto da noite e arrancaram a grande velocidade, cada qual para seu lado. Schacht breve foi descoberto e preso. Um pouco mais tarde von Papen teve a mesma sorte.

Que significava isso? Por que é que esses homens que a polícia do seu país perseguia como criminosos tinham sido absolvidos pelo Tribunal Internacional? Os juízes representantes dos EUA, da Inglaterra e da França tinham no entanto escrito no veredicto:

«É evidente que Schacht ocupou uma situação importante no programa de rearmamento da Alemanha, e que as medidas que ele tomou, em particular nos primeiros dias do regime nazi, causaram a rápida ascensão do regime nazi como potência militar».

O próprio Schacht poderia ter acrescentado que tinha por trás dele os tubarões do Ruhr, atraídos pelos enormes lucros que lhes prometia o armamento da Wehrmacht e as vastas perspectivas de saque abertas por uma grande guerra. O que não tinham conseguido através da luta concorrencial dos mercados europeus, os nazis comprometiam-se a conquistá-lo pelas armas.

Schacht teria podido descrever a enérgica contribuição dos monopólios do Ruhr para os preparativos de guerra. Ele ou os seus representantes participaram em todas as conferências importantes dos grandes industriais com Hitler e Goering. Esses potes de libras aplaudiram Hitler em 1936 quando ele dizia:

«a economia alemã deve estar pronta para a guerra dentro de quatro anos».

Schacht podia evocar os inúmeros acordos entre o Alto Comando Alemão e os grandes monopólios sobre a participação destes últimos no serviço de informações no estrangeiro: organismos especiais, instituídos pela «I.G. Farbenindustrie» e outros consórcios deviam fazer espionagem económica nos países que estavam destinados serem atacados.

Schacht, que foi membro do governo hitleriano até 1943, poderia ter dito como esse governo cumulou de benesses os magnatas do Ruhr após ter cometido uma série de agressões. Não teria então certamente esquecido a longa rivalidade que opôs, nos mercados europeus, a «I.G. Farbenindustrie» ao trust químico austríaco «Pulwerfabrik» e que culminou numa solução muito simples após a Anschluss (o trust austríaco foi engolido pelo polvo da química alemã).

Esta foto terrível foi tirada em Praga
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E as fábricas «Skoda»? Quantos aborrecimentos não tinham elas causado a Krupp ao fazerem-lhe concorrência no mercado mundial! Também neste caso o problema foi solucionado num instante, quando a bota nazi espezinhou Praga.

Schacht tinha boa memória. Ter-se-ia lembrado sem dificuldade de uma quantidade de casos em que os chacais do Ruhr que seguiam as tropas hitlerianas se apoderaram de centenas de fábricas e oficinas na Europa. Que alegria no Ruhr em 22 de Junho de 1941, quando a Wehrmacht expôs à sua voracidade os territórios soviéticos; e que contentamento terão sentido ao lerem a directriz segundo a qual

«no fim de contas os territórios ocupados do Leste serão explorados como colónias».

Até porque era bem isso o que Schacht lhes prometera ao exortá-los em 1932 a que desembolsassem algum em proveito de Hitler. E o prazo de cobrar a factura chegara. Eram fundadas à pressa novas sociedades monopolistas: a «Continental Oil AG» , para a extracção do petróleo soviético, a «Berg-und-Huttenwerke Ost» para a exploração e desmontagem das empresas mineiras e metalúrgicas da URSS...

Centenas de comboios carregados de matérias-primas, de produtos manufacturados e de material soviéticos rolavam para Ocidente. E em sentido inverso eram transportados os «administradores» das fábricas soviéticas açambarcadas. A «I.G. Farbenindustrie» teve a audácia de nomear de antemão o seu «administrador» para as empresas de borracha sintética de Iaroslavl e de Voronej e até de Erevan e de Sumgait, de Kazan, de Tcheliabinsk, de Novossibirsk, de Aktiubinsk. Não era sem razão que nas suas cartas comerciais o dito consórcio tinha a audácia de chamar ao nosso país «antiga União Soviética».

E o trabalho escravo! Milhões de braços postos gratuitamente à disposição dos monopólios pelos nazis! Não foram apresentados em Nuremberga os «acordos» entre os consórcios do Ruhr e Himmler para a construção de fábricas em Auschwitz e noutros campos da morte? Centenas de milhares de homens tinham aí perecido. Schacht assumiu um ar desgostoso quando o Ministério Público apresentou um documento comprovando que a «I.G. Farbenindustrie» enriquecera graças ao massacre de milhões de seres humanos ao fornecer aos SS o veneno «Ciclone B». E fingiu violenta indignação quando o vogal soviético Lev Smirnov apresentou a correspondência da firma alemã «Topf e Filhos» que propunha ao comando das SS fornos crematórios «aperfeiçoados» para Auschwitz e Treblinka.

O ex-ditador económico da Alemanha sabia perfeitamente que isso eram os frutos da política que durante anos ele praticara. Haveria pois toda a razão para ficarmos surpreendidos por os juízes ocidentais do Tribunal Internacional terem de súbito dúvidas quanto à sua culpabilidade. Porque, no fim de contas, Schacht não podia ignorar que a sua política de armamento da Wehrmacht tinha só uma finalidade: uma guerra de agressão e de rapina.

Pois bem, os juízes ocidentais defenderam precisamente o contrário. Ao mesmo tempo que reconheciam que ele fora «a personagem central do programa de rearmamento da Alemanha», faziam a seguinte reserva:

«Mas o rearmamento, de per si, não constitui um crime nos termos do Estatuto. Para o considerar um crime contra a paz, nos termos do Artigo 6 o do Estatuto, seria necessário provar que Schacht levou a cabo esse rearmamento porque isso fazia parte dos planos elaborados pelos nazis com vistas a uma guerra de agressão».

Por outras palavras, Schacht teria armado a Wehrmacht sem saber que Hitler contava utilizá-la na guerra. Teria «tomado parte no programa de rearmamento só porque queria construir uma Alemanha forte e independente».

Já vimos no entanto que muitos documentos reveladores, estudados com cuidado pelo Tribunal Militar Internacional, desmentiam formalmente tais argumentos. Aliás não teria havido necessidade de processo para se saber que os planos de agressão de Hitler não eram mais secretos do que a bíblia do nazismo, Mein Kampf, com uma tiragem na Alemanha de seis milhões de exemplares.

A 19 de Setembro de 1934, num encontro com Dodd, embaixador americano em Berlim, Schacht reconhecia que o partido de Hitler estava decidido a fazer a guerra, que o povo também a queria e que ele estava preparado para ela.

A 27 de Maio de 1936 Goering declarou na presença de Schacht, numa reunião do Conselho de Ministros:

— Todas as medidas devem ser consideradas do ponto de vista da guerra que há de vir.

Não seria isto suficiente para compreender que uso iria fazer Hitler dos armamentos?

De resto, os próprios juízes ocidentais devem ter ficado impressionados com as acusações que impendiam sobre Schacht; de outro modo, como explicar esta afirmação do veredicto:

«Schacht, graças ao seu profundo conhecimento das finanças alemãs, estava particularmente apetrechado para compreender o verdadeiro sentido do frenético rearmamento empreendido por Hitler e para entender que a política económica que tinha sido adoptada só tinha uma única finalidade: a guerra».

Mas por que o absolveram então?

A eloquência e os aforismos do Dr. Dix em nada contribuíram para isso. Trata-se de outra coisa.

Enquanto o grande processo decorria em Nuremberga, os Aliados faziam a instrução de outros casos, nomeadamente o dos chefes dos monopólios alemães. Krupp, Flick, Schnitzler e seus pares eram acusados de terem ajudado Hitler a tomar o poder, de o ter armado para as guerras de agressão no decurso das quais eles saquearam os países ocupados e cometeram crimes.

Schacht, interrogado a esse propósito, compreendeu sem dificuldade e relatou seguidamente, nas suas memórias, que os organizadores do processo de Nuremberga se propunham

«imputar a toda a indústria alemã e aos meios financeiros o facto de os industriais e financeiros terem abastecido Hitler de instrumentos de guerra».

Mas perguntava a si mesmo por que é que os americanos se ocupavam de coisa tão fútil e que não deixava de constituir um certo perigo para eles. Num dos seus encontros com o doutor Gilbert, riu alto e resumiu em poucas palavras o que tanta vontade lhe dava de rir:

— Se vocês, americanos, querem inculpar os industriais que ajudaram a rearmar a Alemanha, então também será preciso inculpar os vossos.

Como Gilbert não percebia aonde ele queria chegar, Schacht logo clarificou as coisas:

— Os «Opel Werke», por exemplo, que só trabalharam nas produções de guerra, pertenciam aos vossos «General Motors».

Schacht podia ter citado muitos outros casos. Podia ter dito, nomeadamente, que Morgan financiou durante toda a guerra a produção dos aviões «Focke-Wulf», que a «Standard Oil Company (New Jersey)» associada num cartel à «I.G. Farbenindustrie» abasteceu a Alemanha nazi de gasolina de avião e de lubrificantes indispensáveis à Wehrmacht. Schacht facilmente calcularia os lucros que esses acordos fizeram arrecadar aos EUA.

Quereria realmente o Ministério Público americano que Schacht rebuscasse lembranças na sua memória e contasse da boa colaboração entre os homens de negócios de Nova Yorque e os de DusseIdorf, antes e durante as hostilidades?

Schacht fazia mal em preocupar-se. A imprensa americana cada vez publicava mais artigos reprovando o levantamento de processos aos industriais alemães. Certos meios ocidentais começavam a preocupar-se pela sorte do próprio Schacht. A imprensa americana declarou de súbito, como por encomenda, que entre os réus de Nuremberga ele era uma ave rara.

Schacht foi absolvido pelas razões que expõe nas suas memórias:

«Se o Ministério Público tivesse conseguido a minha condenação no processo de Nuremberga, muitos outros chefes da indústria alemã podiam ser amarrados ao pelourinho».

E prossegue, desenvolvendo o seu pensamento:

«A Acusação ficou decepcionada com a minha absolvição, depois da qual era extremamente difícil assacar ao mundo financeiro e económico da Alemanha a responsabilidade pela guerra».

Com efeito, ilibando Schacht, eram inocentados todos os chefes dos monopólios alemães. Esses não tiveram de comparecer perante um tribunal internacional. Não que o seu processo «tivesse sido oneroso», como mais tarde escreveu Jackson. O procurador mostrou-se bem mais franco com Martin Poppel, secretário-geral da Confederação Nacional dos Advogados Americanos, ao dizer-lhe que a opinião pública

«exigia a revelação completa das relações entre esses industriais e certos dos nossos patrões de cartéis».

Foi por isso que Washington fez os possíveis por salvar os magnatas do Ruhr.

O ponto de vista dos dirigentes dos EUA nesta questão foi cristalizado definitivamente numa carta confidencial de Byrnes ao general Taylor, procurador-adjunto em Nuremberga. Era aí dito:

«Os Estados Unidos não podem opor-se oficialmente à organização de tal processo... Mas se o projecto falhar, seja por causa de um desentendimento entre os três outros governos, seja porque um ou mais desses governos terão rejeitado as condições e as exigências conformes aos interesses dos Estados Unidos, tanto melhor».

A despeito dos acordos interaliados, os Estados Unidos, que tinham em seu poder a maioria dos monopolistas alemães, sabotaram o projecto de os fazer comparecer perante um tribunal internacional. As autoridades americanas decidiram substituir o processo internacional dos monopolistas alemães por processos particulares onde só haveria juízes americanos. Esses tribunais receberam de imediato a ordem de Washington de «se inspirarem no veredicto nos termos do qual Schacht foi absolvido».

Daí a absolvição de todos os directores dos grandes monopólios alemães pelo mais grave ponto de acusação: participação no desencadeamento e prosseguimento da guerra de agressão. E para os outros crimes foram-lhe infligidas penas tão leves que em breve eles se acharam em liberdade e puderam retomar o seu funesto ofício. Esses inimigos jurados da paz tinham escapado a um justo castigo.

Quanto a Schacht, ainda teve de viver dias desagradáveis depois do processo de Nuremberga. Como já atrás dissemos, foi preso pela polícia alemã e julgado por um tribunal alemão que o condenou a oito anos de prisão

«por ter tomado parte na criação e nas actividades do Estado nacional-socialista cuja tirania causou desgraças a milhões de homens na Alemanha e em todo o mundo».

Mas a sentença não tardou a ser revista e, algum tempo depois, Schacht foi declarado não culpado e libertado. A brusca mudança de clima político na Alemanha ocidental foi proveitosa para as pessoas do seu jaez.

Nos anos cinquenta Schacht tornou-se um zeloso caixeiro-viajante dos monopólios alemães. Visita a Índia, a Indonésia, o Paquistão, o Irão, o Iraque e o Egipto para aí abrir caminho à exportação alemã e aos investimentos de capitais alemães. E ao fazê-lo não esquece os seus próprios interesses. Já passante dos oitenta anos, dirige em Dusseldorf o banco «Schacht e Cia» que fundara depois da sua soltura.

Em 1959 o «mago das finanças» firmou um acordo com o financeiro italiano Enrico Mattei para a construção do pipeline Génova-Munique. Claro que agora já não pertence à elite financeira da Alemanha, mas esta continua a considerá-lo o seu homem de confiança.

Foi somente no 1º de Abril de 1963 que a agência France-Presse informou de Dusseldorf:

«O doutor Hjalmar Schacht, antigo ministro da Economia e antigo presidente do Reichsbank retirou-se dos negócios com a idade de 86 anos. Cedendo ao seu sócio as acções do banco que possuía e a direcção deste estabelecimento, fixou-se na Baviera».

Foi este o fim da carreira de Hjalmar Schacht. Este homem, que não gostava das luzes da ribalta, foi praticamente, durante anos, um dos encenadores dos acontecimentos e dos cataclismos mundiais.


Notas de rodapé:

(20) Localidade dos arredores de Kiev onde os invasores fascistas fuzilaram numerosos civis soviéticos. (retornar ao texto)

(21) Aldeia checa, perto de Kladno, completamente destruída em 1942 pelos bárbaros fascistas, que fuzilaram todos os seus homens, atiraram as mulheres e crianças para campos de concentração ou submeteram-nas a outras represálias. (retornar ao texto)

(22) Este acordo, firmado na cidade italiana de Rappallo, resolvia os diferendos e estabelecia relações diplomáticas normais entre os dois Estados. (retornar ao texto)

Inclusão 16/09/2015
Última atualização 05/04/2016