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O ex-ministro dos Negócios Estrangeiros do Reich, Joachim von Ribbentrop, tinha fraca cara no banco dos réus. O seu ar abatido reflectia às mil maravilhas a sua mudança de condição.
Teríamos dificuldade em encontrar um outro réu cujo nome tivesse tantas vezes como o dele figurado na imprensa mundial de antes da guerra. Os jornalistas gabavam à porfia o garbo de Ribbentrop, as suas belas maneiras, o corte dos seus fatos. Cabeleireiros, massagistas e alfaiates cada qual se esforçava por melhor o servir. Mas isso tinha acabado. E o senhor Reichsminister, desabituado que estava de tratar ele mesmo da sua pessoa, tinha subitamente envelhecido e desleixava-se. Às vezes chegava à sala de audiências mal barbeado, despenteado. Na sua cela reinava uma incrível desordem: burocrata por natureza, tinha juntado ali montões de papelada um pouco por todo o lado...
Bastava observá-lo alguns dias durante o processo para se constatar que a sua atitude diferia nitidamente da de Goering, por exemplo. Ribbentrop tinha um ar modesto, quase obsequioso. Dir-se-ia um cábula que tinha ultrapassado a sua turma e que procurava fazer-se perdoar.
À entrada dos juízes é sempre o primeiro a pôr-se de pé. Responde de boa vontade às perguntas, como se tivesse compreendido bem que o seu único dever, depois da infelicidade que tinha feito do ministro dos Negócios Estrangeiros um réu, fosse o de revelar às futuras gerações do povo alemão os graves erros de Hitler, causa da horrível tragédia da Alemanha.
Ribbentrop está geralmente de braços cruzados: é a sua atitude preferida. Antes da audiência e durante as suspensões conversa com Goering e Keitel em tom animado. Mas logo que o Tribunal recomeça os trabalhos, ele é todo ouvidos. O seu rosto reveste-se de uma máscara de tristeza. Ribbentrop finge estar assoberbado pela infinidade de sacrifícios e provas impostos à humanidade. Poder-se-ia até acreditar que ele próprio era uma dessas inumeráveis vítimas, vinda apresentar queixa ao Palácio da Justiça de Nuremberga.
Tem diferentes caras de reserva, que arvora segundo as circunstâncias. Logo que o procurador, por exemplo, interrompe os desabafos do Reichsminister e lhe recorda a sua culpa terrível, ele assume o ar de um pobre homem caluniado.
1946. Ribbentrop no banco dos réus em Nuremberga (clique na foto para maior resolução) |
Ao ouvi-lo responder às perguntas do seu advogado, eu admirava, a fidelidade da sua memória. Este diplomata hitleriano revivia com uma invejável precisão episódios antigos passados há trinta anos, sabia de cor todas as datas. Mas desde que tivesse de haver-se com o Ministério Público, a memória fugia-lhe.
Nos simples processos de direito comum, acontece com frequência o réu ser o porta-voz do seu advogado. Em Nuremberga o advogado não podia evidentemente desempenhar este papel de inspirador. A sua tarefa reduzia-se, em suma, à recolha das provas de defesa e à qualificação jurídica dos actos do réu. Era geralmente o próprio réu quem interpretava essas provas. Os defensqres tinham-se adaptado a esta «divisão do trabalho» e ligavam bastante bem com os seus clientes. Raros eram os abusos sérios que levavam a Defesa a praticamente se demitir das suas atribuições.
O caso de Ribbentrop é uma excepção. Os seus interesses eram representados, a princípio, pelo Dr. Sauter, advogado alemão de nomeada, que no entanto não tardou a abandonar o seu constituinte. Como eu um dia lhe tivesse perguntado qual a razão e se ele não lamentava isso, sorriu:
— Sabe, senhor comandante, é um alívio. Eu não pedia mais do que cumprir o meu dever profissional e estava à espera que o meu constituinte fosse sensível a isso. Mas garanto-lhe que estou farto deste «homem de Estado». É indeciso, histérico, alarmista... Um dia reclama uma testemunha. Eu dou os passos necessários nesse sentido, a testemunha deve chegar de um momento para o outro. De repente Ribbentrop muda de opinião, pega-se comigo, faz uma cena, acusa-me de irreflectido... De outra vez combino com ele a atitude da defesa em relação a este ou aquele episódio, nomeadamente o discurso que ele pronunciou numa sessão do governo. Ele explica-me minuciosamente o seu sentido. E no dia seguinte, quando lhe exponho o projecto da minha defesa, na qual incluo a menção do seu discurso, ele muda de cor: «Quem lhe disse que eu usei da palavra? Então não vê que esse discurso me compromete?» Não, este homem é indefensável...
Acrescentemos a isto que Sauter nunca teve a impressão de ser o único advogado e conselheiro do ex-ministro. Ribbentrop passava horas a conferenciar com o médico da prisão, com os oficiais de guarda e até com o barbeiro Witkamp, falava-lhes do processo, consultava-os. O médico dizia em tom de brincadeira que se ele fosse um simples sentinela Ribbentrop não deixaria de lhe pedir conselho.
Com efeito, desde que tinha deixado o seu faustoso gabinete ministerial e perdido os seus numerosos conselheiros, Ribbentrop não sabia a que santo se encomendar neste mundo cheio de factos perigosos e de situações imprevistas. Ao «superdiplomata» hitleriano faltavam quase totalmente a presença de espírito e a resolução necessárias. O medo do futuro torturava-o.
Nos primeiros dias de Maio de 1945, esse medo fá-lo safar-se para Hamburgo. Aluga aí um quarto num sexto andar de um prédio qualquer e leva uma vida de pequeno-burguês inofensivo, sob os olhos da administração militar inglesa. Enquanto os serviços de contra-espionagem de vários países, o procuram e difundem a sua fotografia e sinais particulares, Ribbentrop, de casaco assertoado, chapéu preto e óculos escuros, circula sem problemas pela cidade. Depois da sua desagradável entrevista com Doenitz que recusou rotundamente incluí-lo no seu governo, e sobretudo depois de esse «governo» ser detido em massa, o Reichsminister pensa em mudar de profissão. Felizmente que tem outro trunfo na manga: ele é representante em champanha.
Se escolheu para residência Hamburgo foi, entre outros motivos, porque ali habita o seu antigo sócio. Revêem-se a 13 de Junho de 1945.
— Beneficio de uma disposição testamentária de Hitler — segreda Ribbentrop. — Esconda-me. Nisso está o futuro da Alemanha.
O associado não parece muito encantado com este reencontro. Quanto ao seu filho, denuncia de imediato Ribbentrop às autoridades de ocupação.
No dia seguinte bem cedo, três militares ingleses e um soldado belga batem energicamente à porta do apartamento onde ele se esconde. Vem abrir uma linda mulher em roupão. Recebe os intrusos com um grito de pavor, mas eles afastam-na e entram com decisão. O despertar do ex-ministro do Reich não é dos mais agradáveis...
— O seu nome? — pergunta o tenente Adams.
— Vocês bem o sabem — responde Ribbentrop.
Sem dúvida que ele esperava manter-se incógnito por muito tempo. O facto é que foram descobertas na sua mala várias centenas de milhares de marcos em maços cuidadosamente atados.
Logo no primeiro interrogatório ele confessou que tencionava manter-se invisível até ao «apaziguamento das paixões».
— Eu sei — disse ele — que estamos na lista dos criminosos de guerra e sei também que, na presente situação, a sentença só pode ser uma: a morte.
— Queria portanto ficar à espera que a situação mudasse?
— Sim.
Em todo o caso, tinha escrito três cartas: uma para o marechal–de-campo Montgomery, outra para o ministro dos Negócios Estrangeiros, Eden, a terceira para Winston Churchill.
A detenção baralhou-lhe o jogo. O «futuro da Alemanha» já nada significava para ele. Depois de alguns meses de campo de detenção e de prisão, foi transferido para Nuremberga.
Joachim von Ribbentrop ocupa o seu lugar na primeira fila do banco dos réus, imediatamente a seguir a Goering e Hess. Sem ter sido um dos organizadores do partido nazi, ele é sem dúvida um grande de criminoso.
Em 19 de Julho de 1940, quando a Berlim nazi em regozijo festejava as «vitórias do Fuhrer», o nome de Ribbentrop andava em todas as bocas. Era dele que Hitler falava aquando da sessão do Reichstag:
— Não poderia terminar estes louvores sem agradecer ao homem, que, durante anos, guiou a minha política externa, infatigavelmente, lealmente e num espírito devotado. O nome do militante do partido, von Ribbentrop, ficará para sempre ligado ao impulso da política da nação alemã, na sua qualidade de ministro dos Negócios Estrangeiros.
A imprensa burguesa deu durante anos a Ribbentrop o título de «superdiplomata». Mas ao ouvirmos as suas declarações no processo e as de numerosas pessoas chamadas a depor sobre o seu caso, ao observarmos a atitude dos outros réus para com ele, vi surgir uma imagem muito diferente do ministro dos Negócios Estrangeiros hitleriano.
Goering, resumindo os depoimentos de Ribbentrop, disse a Gilbert:
— Que triste espectáculo! Ah, se eu soubesse, ter-me-ia eu próprio imiscuído um pouco mais na nossa política estrangeira. Fiz tudo para impedir que ele se tornasse ministro dos Negócios Estrangeiros...
Hans Frank mostrou-se ainda mais severo.
— É um ignorante, um analfabeto. Mal sabe falar correctamente o alemão, sem contar com a incompreensão que tem dos negócios estrangeiros. Realmente não compreendo como ele pôde sequer vender champanha, para já não falar do nacional-socialismo... Foi um crime fazer de semelhante pessoa ministro dos Negócios Estrangeiros de uma nação de setenta milhões de habitantes...
— Diletantismo criminoso! — declarou von Papen a propósito das actividades de Ribbentrop na Wilhelmstrasse. — Foi por causa do seu diletantismo criminoso que este homem perdeu ao jogo um império.
Seyss-Inquart também não se privou de censurar a ignorância de Ribbentrop no decorrer do interrogatório do «superdiplomata». Quando se abordou a atitude da Bulgária na Primeira Guerra Mundial, ele observou ao doutor Gilbert a sorrir:
— Chiu! Para já não diga nada, mas desconfio que o nosso ministro dos Negócios Estrangeiros nem sequer sabe que a questão búlgara está ligada ao tratado de Trianon.
Poderiam citar-se quantidade de outros comentários desfavoráveis ao «superdiplomata». Mas fica já claro que a sua reputação entre os antigos membros do governo não era brilhante.
O próprio Hitler parece ter ficado desiludido. Antes de se matar fez o testamento onde designa o seu sucessor e o novo governo. Mas Ribbentrop, cujo nome «ficará para sempre ligado ao impulso da política da nação alemã», não figura na lista: Hitler substituiu-o por Seyss-Inquart.
Porquê essa reviravolta? Depois de o terem cortejado, lhe terem agradecido as maiores vitórias da diplomacia alemã, toda a gente concluiu que ele não passava de um vaidoso, um tolo, um diletante, um homem que não sabia nada de negócios estrangeiros.
Quem era pois, em suma, Joachim von Ribbentrop?
No Tribunal Internacional ele teve de depor depois de Goering. Para desmentir a opinião de que era «um novo-rico, um arrivista», gabou-se das suas origens aristocráticas.
A mesma tendência se manifesta nas suas memórias, escritas na prisão de Nuremberga. Tendo indicado o local e a data de nascimento (Wesel, 30 de Abril de 1893), lança-se em explicações fastidiosas sobre os seus antepassados que, no decurso dos séculos, foram magistrados ou guerreiros: um deles teria mesmo assinado o tratado de Vestefália.
Conta em pormenor os seus princípios de vida. Ah, como ele queria convencer o Tribunal de que toda a sua existência o tinha preparado para as pesadas tarefas de ministro dos Negócios Estrangeiros da Alemanha!
Ainda muito jovem foi para a Suíça e depois para Londres onde estuda inglês. Em 1910 vai ao Canadá. A Primeira Guerra Mundial surpreende-o nos Estados Unidos. O passado militarista dos seus avoengos vem ao de cima e Ribbentrop apressa-se a regressar à Alemanha para se alistar. Em 1919 acompanha como ajudante de campo o general Seekt a Versalhes, após o que passa à disponibilidade com o modesto posto de Oberleutenant.
Os tempos tinham mudado. O ex-ajudante de campo de Seekt opta pelo comércio. Joachim von Ribbentrop torna-se patrão de uma empresa de importação-exportação de vinhos, casa com Anna Henkel, filha de um grande negociante de champanha. O jovem comerciante enriquece de ano para ano, e as suas frequentes viagens de negócios ao estrangeiro, sobretudo à Inglaterra, abrem-lhe as portas de alguns salões políticos.
É então que começa a sonhar com a diplomacia. Convence-se de ter já adquirido, à força de lidar com contra-agentes comerciais, uma sólida experiência das relações internacionais. Vaidoso por natureza, acalenta a ambição de ornar a genealogia dos Ribbentrop por meio de uma brilhante carreira. Mas a República de Weimar não aprecia os seus talentos. Quanto aos nacionais-socialistas que conspiram pelo poder, testemunham-lhe mais do que amizade. Um antigo camarada de regimento, o conde von Helldorf, apresenta Ribbentrop a Ernst Roehm, após o que os dois conceituados nazis lhe arranjam uma entrevista com Hitler. Ribbentrop certifica-lhe que está em contacto com numerosas personalidades da Inglaterra e da França. Hitler tira daí a conclusão de que esse homem lhe poderá vir a ser útil. Não está disposto, no caso de tomar o poder, a manter na Wilhelmstrasse diplomatas da velha escola. A nova diplomacia que ele projecta inaugurar deverá ser «enérgica e sem preconceitos».
Em 1933 os laços entre o negociante de vinhos e o líder apertam-se: Ribbentrop põe à disposição de Hitler a sua casa de Dalheim para encontros de negócios. É então que começa a carreira política do futuro Reichsminister. Logo após o advento de Hitler, é instituído «Gabinete Ribbentrop», organização especial de política externa do partido.
Muitos bonzos nazis dignos de «mérito» por parte do regime por causa dos longos anos de luta pelo poder, consideravam o diplomata de fresca data um arrivista. Mas isso mais não fazia do que estimular a sua ambição e actividade.
Joachim von Ribbentrop era excessivamente vaidoso. Esse defeito atingiu o seu apogeu quando tomou posse do gabinete ministerial da Wilhelmstrasse. Fazia-se conduzir ao ministério como um deus descido à humilde terra. E no regresso das suas viagens ao estrangeiro o pessoal alinhava-se em fila no aeroporto ou na gare. Para as viagens que Sua Excelência o Ministro fazia em companhia da esposa, tinha sido estabelecido um protocolo especial. Então os funcionários deviam ir com as mulheres, fosse qual fosse o estado do tempo. A mínima infracção ao regulamento era considerada uma falta de respeito por um «homem de Estado altamente colocado», com todas as consequências daí resultantes. Essa vaidade, que se ia tornando uma mania, provocou mais de um escândalo. Um dia proibiu a publicação do comunicado das negociações entre Hitler e Mussolini pela única razão de que no último parágrafo do texto, onde vinham enumeradas as personalidades presentes, o seu nome figurava depois do de Keitel. Uma cena ainda mais grotesca se passou entre Ribbentrop e Goering quando da assinatura do pacto do «Eixo Roma-Berlim-Tóquio». Além das delegações governamentais dos três países, havia na sala dezenas de representantes da imprensa e das actualidades. Os projectores dardejavam os seus feixes ofuscantes. E eis que o Reichsminister tenta arredar o Reichsmarschall: esse indivíduo «arrogante como um pavão», dizia Goering, queria que o «homem n° 2 do Reich» se colocasse atrás dele.
— Que descaramento! — grita Goering, sufocado, relatando a coisa anos mais tarde, numa das suas conversas com o doutor Gilbert.
— E sabe o que eu lhe respondi? Que se posava com ele eu ficaria sentado e ele podia pôr-se de pé atrás de mim...
No seu desejo de assegurar as boas graças de Hitler, Ribbentrop foi talvez mesmo mais longe que Goering. Tinha no séquito do Fuhrer um homem seu que o informava regularmente dos encontros «íntimos» deste último. Ribbentrop adivinhava assim as intenções do ditador e aparecia nos seus apartamentos, com ar solene, para lhe sugerir ideias que o outro já tinha concebido. Parece que Hitler mordia muitas vezes o isco e gabava a «intuição fenomenal» e a «clarividência pouco comum» do seu ministro dos Negócios Estrangeiros.
No início da guerra Ribbentrop tinha à sua disposição um comboio especial no qual seguia Hitler para todo o lado. Esse comboio compreendia uma carruagem-salão para ele próprio, dois vagões-restaurantes e pelo menos oito vagões-camas para a chusma de conselheiros, técnicos, adjuntos, secretários e guarda-costas que respondiam pela segurança do Reichsminister. Tudo isso fazia lembrar um circo ambulante que acampava num sítio ou noutro, consoante as necessidades ou a capricho de Ribbentrop. A falta de instrução e de conhecimentos colocava-o na dependência humilhante de um inumerável pessoal que devia constantemente ficar-lhe ao alcance da mão.
Joachim von Ribbentrop vigiava ciosamente o barómetro político. Sabia que Hitler projectava exterminar, durante e depois da guerra, dezenas de milhões de russos, ucranianos, franceses, polacos, sérvios, para enfraquecer para todo o sempre estes povos, que queria despojar os países vencidos, suprimir todos os judeus da Europa. Foi por isso que, no princípio da guerra, homens como Keitel e Kaltenbrunner passaram para primeiro plano. Ora Ribbentrop não queria de modo nenhum deixar-se ultrapassar nesta corrida à supremacia mundial.
Para agradar ao Fuhrer, envergou a partir de 1933 o uniforme das SS e ficou até um pouco vexado por receber o posto subalterno de Standartenfuhrer. Mas Himmler, consciente dos seus méritos, promoveu-o a Brigadenfuhrer em 1935, a Gruppenfuhrer em 1936, a Obergruppenfuhrer em 1940. Depois, a seu próprio pedido, foi afectado à divisão SS «Totenkopf» (Caveira), altura em que Himmler lhe impôs pessoalmente o anel e o punhal simbólicos. Alguns não faziam caso nenhum destas ninharias, mas Ribbentrop delirava com isso.
Este vaidoso nunca perdia a ocasião de se fazer condecorar. É evidente que, neste particular, era ultrapassado por Goering, cujo dólman parecia a vitrina duma joalharia. Mas quando se vestia na ponta da unha, também o Reichsminister cintilava com todas as cores do arco-íris. O seu apetite por essas coisas, longe de se acalmar, cada vez se tornava mais voraz. E se se esqueciam, numa capital, de lhe oferecer uma condecoração, ele achava sempre meio de o lembrar.
Um dos procuradores soviéticos apresentou em Tribunal um documento muito curioso: o texto de um encontro de von Doernberg, chefe do protocolo do ministério dos Negócios Estrangeiros da Alemanha, com o ditador romeno Antonescu. Von Doernberg exortou demoradamente Antonescu para que este concedesse ao seu chefe a ordem de Carlos I. Este, como estava ao corrente da mania do Reichsminister pediu um preço exorbitante: que Ribbentrop declarasse publicamente a vontade de a Alemanha resolver a questão da Transilvânia em proveito da Roménia. Ora Doernberg estava bem colocado para saber como isso era difícil para Ribbentrop, que acabava de prometer à Transilvânia aos dirigentes húngaros. A situação era delicada. Mas o ministro alemão dos Negócios Estrangeiros tinha um desejo muito forte da condecoração romena. Como resposta às reivindicações de Antonescu, fez-lhe saber que faria «os possíveis» uma vez armado cavaleiro de Carlos I. Amor com amor se paga. Antonescu consentiu em «fazer avançar Sua Excelência o ministro do Reich» com a condição de a coisa só ser tornada pública depois de ele ter feito a declaração requerida. Houve acordo. Antonescu entregou a Doernberg a condecoração mas não o diploma. E, bem entendido, nem um nem outro dos representantes das «partes contratantes» se lembrou de pedir a opinião do povo da Transilvânia, cujo destino serviu de moeda de troca nesta descarada negociata.
Ribbentrop não tinha razão de queixa para deplorar que no século XX os diplomatas já não fossem cumulados de presentes pelos governos estrangeiros. Os que ele recebia do governo nazi bastavam-lhe. O secretário de Estado Lammers, chefe da Chancelaria do Império, disse no decorrer do seu interrogatório que Hitler fez uma doação de um milhão de marcos ao seu ministro dos Negócios Estrangeiros. E Schmidt, intérprete particular do Fuhrer e do Reichsminister, confirmou que Ribbentrop, que apenas possuía uma casa em Berlim antes da sua nomeação para o cargo ministerial, obteve pouco depois cinco grandes domínios e vários castelos. Em Sonnenberg, perto de Aix-la-Chapelle, tinha o senhor ministro uma coudelaria. Nos arredores de Kitibol caçava o gamo. Os soberbos castelos de Fuschl na Áustria e de Puste-Pole na Eslováquia eram também para ele residências de caça. Schmidt fez notar, de passagem, que o antigo proprietário de Fuschl, o senhor von Remitz, fora morto num campo de concentração.
Claro que cada qual tem a sua maneira de adquirir propriedades. Não era sem dúvida por nada que Ribbentrop ostentava as suas divisas de Obergruppenfuhrer SS...
Possuía outras fontes de rendimentos. Antes de se instalar na Wilhelmstrasse tinha acordado com Hitler que continuaria no seu comércio de vinhos. E em troca disso o Reichsminister aceitava generosamente exercer as suas funções «a título gratuito».
Mas voltemos ao «Gabinete Ribbentrop», que desempenhou um considerável papel na formação dos diplomatas nazis de «novo tipo», aos quais pertencia em primeiro lugar o próprio ministro.
Esse «Gabinete» foi a pouco e pouco, suplantando o ministério dos Negócios Estrangeiros. As posições de Ribbentrop achavam-se reforçadas pelo facto de na Primavera de 1934 Hitler o ter nomeado delegado especial para o Desarmamento. Donde resultou uma engraçadíssima situação: o desarmamento estava confiado àquele que devia, pelas vias diplomáticas, abrir caminho à agressão.
Anatole France disse um dia, ao falar das artes, que a ninguém é dado criar obras-primas mas que certas obras o vêm a ser por obra e graça do tempo. Pois bem, esta «obra e graça do tempo», perfeitamente representada na História pela fatídica palavra «Munique», foi talvez um dos principais factores que, independentemente das qualidades individuais de Ribbentrop, contribuíram para os seus êxitos até à agressão contra a URSS. Foi somente em Junho de 1941 que esse factor perdeu a sua eficácia.
De facto o tempo parecia ser propício a Ribbentrop. A ideia de uma «Alemanha forte» tinha amadurecido em Londres muito tempo antes da aparição desse emissário hitleriano à capital britânica. Este só teve que colher o fruto maduro para o oferecer ao seu Fuhrer. Primeiro foi o acordo marítimo de 1935 que autorizava a Alemanha a construir uma grande frota a despeito do tratado de Versalhes, depois, Munique.
Há que notar que a iniciativa nestas «vitórias diplomáticas» da Alemanha hitleriana pertencia ao «Gabinete Ribbentrop» e não ao ministério dos Negócios Estrangeiros. Hitler sabia, bem entendido, que o acordo marítimo de 1935 não passava da primeira partida do grande «jogo» entre a Alemanha e a Inglaterra. Mas foi Berlim quem a ganhou. E Ribbentrop foi nomeado, como recompensa, embaixador da Alemanha em Londres.
Mal desembarcou na Grã-Bretanha a sua conduta é mais para o desastrado e Goering apressa-se a comprometê-lo aos olhos de Hitler. O Fuhrer toma conhecimento de que Ribbentrop dá aos diplomatas ingleses conselhos despropositados e que chocou o rei... Na primeira audiência oficial ele saudou-o gritando: Heil Hitler!, o que foi interpretado, não sem razão, como um ultraje a Sua Majestade.
Mas de novo o tempo trabalha a seu favor. Rebentou a guerra civil em Espanha. A rebelião de Franco, inspirada e abertamente sustentada por Berlim e Roma, põe o mundo em comoção. Os povos de grande número de países insistem para que se ponha termo à intervenção armada das potências fascistas nos assuntos da Espanha.
Por pressão da opinião pública, é instituído em Londres um Comité de Não-Intervenção. Bela ocasião para Ribbentrop mostrar as suas capacidades de intriguista: esforça-se por transformar este organismo internacional em camuflagem da agressão contra a República Espanhola. O embaixador hitleriano não dissimula o seu descaramento. Quando chega ao Comité vai direito ao seu lugar com ar altaneiro sem cumprimentar nem olhar para ninguém.
Os nazis estão contentes. Ribbentrop é de novo louvado em Berlim. Alguns acham que foi ele quem paralisou os trabalhos do Comité de Não-Intervenção. Mas nem é preciso demonstrar que isso foi mais uma vez, efeito da «obra e graça do tempo». Ribbentrop tinha auxiliares influentes nos meios reaccionários da Inglaterra e da França que adoptaram o lema:
«Mais vale que a Espanha seja governada pelos fascistas alemães do que pelos comunistas espanhóis».
O incremento das intrigas políticas em volta dos Pirinéus faz subir cada vez mais o prestígio de Ribbentrop no Terceiro Reich; Passa a ser visto aí como um «diplomata insubstituível».
Em Outubro de 1936 o conde Ciano, ministro dos Negócios Estrangeiros de Itália, vem a Berlim para negociar e assinar o pacto do «Eixo-Roma». O ministro dos Negócios Estrangeiros da Alemanha continua a ser von Neurath, mas Ribbentrop é chamado de urgência de Londres para as negociações. E é ele quem assinará o pacto.
Em finais de 1936 intensificam-se as conversações sobre a aderência ao pacto de um terceiro parceiro, o Japão. E de novo Ribbentrop é chamado de Londres para resolver a questão em nome do governo alemão.
Tem-se a impressão de que é da embaixada de Londres que emana toda a direcção da política externa da Alemanha.
1938. A Renânia é remilitarizada. A Wehrmacht existe. A nova Marinha de guerra alemã sulca os oceanos. Hitler decide anexar a Áustria. O mundo está alarmado. Goering, ansioso, interroga-se sobre se Ribbentrop conseguirá convencer a Inglaterra a não intervir na «operação austríaca».
Ribbentrop conseguiu uma decisão favorável. A Áustria perdeu a sua independência com o consentimento de Londres.
No decorrer do seu interrogatório no processo de Nuremberga, o ex-embaixador hitleriano em Londres evoca com certo prazer os acontecimentos da época. Informou no momento oportuno Hitler que Chamberlain e Hálifax se mostravam tolerantes em relação aos projectos nazis. Mesmo depois de terem sabido da entrada das tropas alemãs em Viena, os líderes ingleses continuaram a lidar com o embaixador alemão em «termos cordiais». Tão cordiais, que Ribbentrop convidou o ministro britânico a visitar a Alemanha. Este aceitou pedindo-lhe que «preparasse tudo para a caça». Veio a verificar-se ser uma «caça» pouco comum. Desta vez a montaria tinha por alvo a Checoslováquia.
Mas, antes de partir para a «caça», Ribbentrop deixou Londres. Os seus inestimáveis serviços, os seus êxitos diplomáticos valeram-lhe a nomeação para ministro dos Negócios Estrangeiros. Foi já nesse cargo que ele levou a cabo a «operação Checoslováquia».
Vejamos agora que talentos o novo patrão da Wilhelmstrasse teve de desenvolver para apanhar a Checoslováquia na sua rede.
A este propósito vêm-nos à memória os suspiros que soltou então um jornal francês:
«Georges Bonnet que ocupa a poltrona de Talleyrand devia ter vergonha de se ter deixado enganar em Munique».
Mas não há nada mais fácil, é sabido, do que enganar aquele que quer ser enganado. E os réus Nuremberga, há que reconhecê-lo, eram unânimes em sustentar que Londres e Paris tinham dado a Checoslováquia a Hitler de mão beijada.
É verdade que a Alemanha nazi já tinha elaborado, muito antes de Munique e sem consultar as outras potências ocidentais, o «Plan Grun» (Plano Verde) que previa em todos os pormenores o assenhoreamento da Checoslováquia. Mas houve Munique. Hitler teve o seu «presente». E o plano puramente militar da anexação da Checoslováquia revelou-se inútil.
Isso complicou sensivelmente a tarefa dos procuradores ocidentais que interrogavam Ribbentrop. Mesmo a de um magistrado tão competente como o era David Maxwell-Fyfe.
Lembro-me que certo dia de fins de Abril de 1946, quando voltava do gabinete do secretário-geral do Tribunal, notei uma insólita agitação à porta da sala de audiências. Ao entrar fui abordado pelo advogado Servatius (esse mesmo que, anos depois em Jerusalém, defendeu Eichmann e arrastou pela lama o veredicto de Nuremberga). Falou de testemunhas de que tinha necessidade mas que o Secretariado não tinha pressa em convocar. Como ele falava muito bem russo, a nossa discussão ameaçava prolongar-se indefinidamente. Um jornalista inglês salvou-me da situação.
— Não perca tempo, comandante — lançou-me ele ao passar. — O espectáculo começou. Será um osso duro de roer para Sir David!
Apressei-me a entrar na sala. A tribuna da imprensa estava à cunha. Toda a gente entendia que o procurador-geral adjunto britânico, por maior perito que fosse, teria dificuldade em ultrapassar os escolhos de Munique.
O seu duelo com o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros da Alemanha tomou logo de entrada um carácter agudo. Maxwell-Fyfe esforçava-se por desviar Ribbentrop de Munique para o fazer falar unicamente do «Plan Grun», no estudo e realização do qual fora reservado um importante papel ao seu ministério. Mas Ribbentrop, esse, fazia os possíveis por desviar Maxwell-Fyfe do «Plan Grun» e reduzir toda a questão checoslovaca ao acordo de Munique.
David Maxwell-Fyfe, procurador-geral adjunto da Grã-Bretanha (clique na foto para maior resolução) |
Goering, de boca torcida num sorriso sarcástico, inclinou-se sobre a barreira e tocou o ombro do advogado Seidl. Era sinal certo de provocação. Nestes casos Goering dirigia-se geralmente a Seidl e não ao seu próprio advogado, Dr. Stahmer (para quê metê-lo em alhadas!). Seidl, que tinha sido um nazi activo, dado aos golpes de teatro escandalosos, nunca se fazia rogar em circunstâncias destas. Depois de ouvir Goering aproximou-se do advogado de Ribbentrop, o Dr. Horn. O conciliábulo foi breve. Horn levantou-se logo e declarou que era inútil precisar o papel do seu constituinte na execução do «Plan Grun» pela simples razão de que as potências ocidentais tinham homologado aquilo de que Sir David Maxwell-Fyfe fazia um crime.
Esta intervenção encorajou Ribbentrop a prosseguir a luta.
Maxwell-Fyfe pergunta-lhe:
— Sabe perfeitamente, não é verdade, que os planos militares de Hitler e em particular o «Plan Grun» encaravam a conquista de toda a Checoslováquia? Sabia-o?
Claro, Ribbentrop conhece esse plano, contribuiu para o seu estudo, a sua realização, mas contenta-se em encolher os ombros, como quem diz: «Para quê perdermos tempo com o que não aconteceu!» E afirmou sem peias que
«o próprio governo britânico assinou o acordo que dava a este problema uma solução conforme à que a diplomacia alemã sempre tinha procurado obter».
Depois conta com calma olímpica a maneira como Chamberlain e Daladier empurraram a Checoslováquia para o açougue hitleriano.
— O sr. Chamberlain disse ao Fuhrer que agora via bem que algo ia passar-se e que estava pronto a comunicar ao Gabinete britânico esse memorando...que encarava a união do país dos Sudetas ao Reich. Declarou igualmente que sugeriria ao Gabinete britânico, isto é, aos seus colegas, que recomendasse a Praga a aceitação das condições desse memorando.
Ribbentrop relata as entrevistas que ele e Hitler tiveram antes de Munique com os embaixadores da França e da Inglaterra em Berlim, no decurso das quais estes representantes oficiais de Londres e Paris garantiram ao Fuhrer que
«tanto do lado britânico como do francês havia o desejo de solucionar o problema dos Sudetas em conformidade com o ponto de vista alemão».
Ao escutar Ribbentrop eu observava Maxwell-Fyfe e via que este homem habitualmente tão seguro de si mesmo se enervava. Por mais de uma vez ele tinha feito prova de mentiras dos réus. Tinha-o feito em relação a Ribbentrop a propósito de outros pontos de acusação. E conseguia isso melhor que outros. Fazia uma série de perguntas aparentemente inofensivas, mas no meio das quais havia uma que fechava a cadeia e encostava necessariamente o réu à parede. Infelizmente não foi esse o caso enquanto se tratou de Munique. Nem as aquisições profissionais de Maxwell-Fyfe, nem as suas brilhantes qualidades de polemista deram para ir em seu auxílio.
Anos mais tarde houve pessoas que puseram nos cornos da lua os pacificadores de Munique. No vigésimo aniversário do acordo, a imprensa reaccionária inglesa fez soar trombetas e serviu o público uma sensacionalista peta. Os «grandes actores do drama de Munique» teriam sido, parece, «sinceros»... «Acreditavam verdadeiramente ter salvo a paz na Europa». Arthur Beverley Baxter, membro do Parlamento inglês, perguntava no Sunday Express:
«Devemos continuar a ter vergonha de Munique?»
Ao lermos semelhantes coisas somos levados, nem que não queiramos, a repensar nos antecedentes históricos. Após o fim da guerra franco-prussiana de 1870-1871, bem-pensantes historiadores prussianos teriam ido visitar Moltke para o informarem da sua intenção de escreverem a história da guerra vitoriosa contra a França. Esses senhores, evidentemente, muito desejariam que «Sua Excelência» os ajudasse com os seus conselhos e indicações a fazerem uma história digna dos exércitos prussianos. Mas o velho Moltke só manifestou surpresa e indignação:
«Vejamos, meus senhores, de que conselhos, de que indicações precisam? Escrevam a verdade...mas não toda a verdade».
O distinto Beverley Baxter, membro do Parlamento britânico, como de resto outros historiadores burgueses da Segunda Guerra Mundial, foi além daquele conselho e não escreveu «senão mentiras». O leitmotiv desse artigo era que Munique foi uma derrota dos generais alemães.
«Hoje — afirmava Baxter — ouve dizer-se com frequência: «Fulano segue as pisadas de Munique...» Mas que diziam ou escreviam então os generais alemães? As notas que lhes foram confiscadas revelam que eles consideravam Munique uma catástrofe... Chamberlain, segundo eles, teria engodado o Fuhrer e diferido o Blitzkrieg que este estava a pontos de desencadear».
O processo de Nuremberga pôs os pontos nos is. O único serviço, talvez, que Ribbentrop tenha prestado à história foi o de ter dissipado as dúvidas a propósito de Munique.
Ele de modo nenhum está de acordo com os que tentaram e tentam ainda apresentar Munique como uma catástrofe para Hitler. Refuta isso categoricamente no seu depoimento perante o Tribunal Internacional, pronuncia-se ainda melhor nas suas memórias, escritas na prisão e publicadas depois da sua morte, em Inglaterra. Eis um extracto :
«Quando do interrogatório a que fui submetido, depois da minha detenção, mister Kirkpatrick perguntou-me se «o Fuhrer tinha ficado muito contrariado» por termos chegado a acordo em Munique; de modo ele «tinha ficado privado da sua guerra». Enfim, não tinha declarado que da próxima vez «deitaria Chamberlain com as suas soluções conciliatórias» pelas escadas abaixo?
«Que pode responder-se a semelhantes questões a não ser que nada disso é verdade! Pelo contrário, Hitler estava extremamente satisfeito com o tratado de Munique e nunca o ouvi exprimir o mínimo lamento. Depois de Chamberlain ter partido ele telefonou-me todo satisfeito para me informar de que se tinha encontrado frente à frente com o primeiro-ministro inglês e assinado a adenda que este lhe tinha apresentado. Eu dei-lhe os mais calorosos parabéns... À tarde, na gare Munique, Hitler disse-me uma vez mais o quanto estava feliz por o acordo ter sido assinado.
«Todas as outras versões da opinião de Hitler ou da minha são; inteiramente falsas».
É este um dos raros casos em que o ministro do Reich falou verdade.
Nem sempre, bem entendido, os êxitos de Ribbentrop, são estimados pelo Fuhrer, se explicavam unicamente pela «obra e graça do tempo». Tal como Rosenberg, ele achava decididamente caduca a famosa fórmula de Bismarck: «A política é a arte do possível». «A arte de tornar possível o impossível» era, aos olhos de Hitler e dos seus acólitos, a base da política nazi.
Semelhante concepção já nada tinha a ver com as antigas ideias sobre a diplomacia e os seus métodos. Ribbentrop compreendia isso por mais medíocre que fosse a sua inteligência. Logo que teve conhecimento do programa do partido nazi e da conspiração hitleriana contra a paz, deu-se conta de que as tarefas dos diplomatas do Reich tinham uma finalidade bem definida.
Existe o Estado-Maior-General, cuja missão é a de preparar e realizar os planos de agressão contra os outros países. Mas antes de passar à acção é preciso criar uma situação internacional favorável. Em suma, ele, Ribbentrop, deve pôr todo o aparelho diplomático da Alemanha ao serviço da Wehrmacht. O novo ministro dos Negócios Estrangeiros do Reich só tinha uma preocupação: abrir caminho à agressão por meio da política externa. Em contrapartida, a diplomacia ganhava um belo trunfo: a possibilidade de invocar a força como argumento.
Logo no início da sua declaração no processo de Nuremberga, Joachim von Ribbentrop especificou:
— Compreendi de imediato que iria trabalhar à sombra de um gigante, que teria de me impor restrições, que não poderia fazer uma política externa como ministro responsável perante um parlamento.
Se bem que por gigante ele subentenda Hitler, na realidade tratava-se do Estado-Maior-General da Alemanha nazi.
Um brilhante demagogo, o barão Sonnino, que era outrora o ministro dos Negócios Estrangeiros da Itália, mandou gravar por cima da lareira do seu gabinete: «O que é permitido aos outros não te é permitido a ti!» Ribbentrop conheceu esse aforismo, parafraseando-no da sua maneira: «O que não é permitido aos outros é-te permitido a ti». É este o princípio em que ele se inspirou na sua qualidade de ministro dos Negócios Estrangeiros do Terceiro Reich. Só o conseguiu graças à força militar que apoiava cada um dos seus passos no terreno da diplomacia. Conspirações de agressão e assassínios políticos, chantagem e ameaças, espionagem e quinta coluna, negociatas desavergonhadas com os Quisling e insolentes ultimatos aos legítimos governos dos países vizinhos, eis o arsenal do diplomata hitleriano.
O interrogatório de Ribbentrop durou vários dias. Tal como os outros, ele tergiversava e tentava ilibar-se. Mas contrariamente a Herman Goering, acalentava a esperança de escapar à forca. Por isso não se permitia qualquer excesso perante o Tribunal. Em casos demasiado flagrantes confessava. E toda a sua atitude parecia então dizer: «Vejam, eu não sou um fanático como Goering, não sou intratável». Isso punha Goering fora de si que qualificava o ministro do Reich de papa-açorda e de nulidade. Um dia disse aos seus co-réus que a sogra de Ribbentrop o considerava um imbecil teimoso e perigoso. Teria ela dito por mais de uma vez:
— Foi o mais tolo dos meus genros que se tornou o mais célebre.
Os réus saborearam a piada, salvo Ribbentrop que ficou vexadom a ponto de durante dois dias não dirigir a palavra a Goering.
Quanto à sua «boa vontade» para com o Tribunal, não passava de uma manobra. Ele não era mais sincero que os outros.
Já assinalei que segundo o sistema de jurisprudência anglo-americano adoptado em Nuremberga, os réus não podiam previamente tomar conhecimento de todo o seu processo. Ignorando as provas de que dispunha o Ministério Público, eles tentavam as mais das vezes, à cautela, negar, até que um documento os desmascarasse. Foi também o caso de Ribbentrop.
Quando lhe perguntaram se o Ministério dos Negócios Estrangeiros da Alemanha tinha dirigido a actividade dos nazis checoslovacos, ele negou energicamente, ao mesmo tempo que observava furtivamente a reacção do representante da Acusação. Este pegou tranquilamente num papel e fê-lo passar a Ribbentrop. Era uma directriz secreta do embaixador alemão em Praga, que provava inegavelmente que o ministro dos Negócios Estrangeiros enviava as suas instruções para o trabalho de sapa a efectuar contra o governo inimigo.
Ribbentrop ficou aterrado: que ideia, meu Deus, essa de ter deixado semelhantes rastos! A nota secreta apresentada pela Acusação especificava que
«com vista a uma colaboração futura foi prescrito a Konrad Henlein que mantivesse o mais estreito contacto possível com o ministro do Reich...»
Cada gesto da Sua Excelência o Reichsminister era registado! Só a certeza da impunidade, a certeza de que o Terceiro Reich seria eterno tinha podido levar a essa imprudência. E agora ali estava ele a pagá-la. O Ministério Público multiplicava as surpresas em intenção de Ribbentrop.
A 23 de Agosto de 1938 Hitler e ele faziam um cruzeiro no paquete de luxo «Patria». Tinham convidado os dirigentes pró-fascistas da Hungria: Horthy, Imredy, Kanya. Ribbentrop sabia desde há muito que o Estado-Maior do Reich gostaria de fazer participar a Hungria na execução do «Plan Grun». Por isso aproveita este passeio marítimo para doutrinar os convidados húngaros. Horthy não pede mais do que receber a sua parte da Checoslováquia, mas tem medo da Jugoslávia. Ribbentrop sossega-o: a Jugoslávia, apertada no torno das «potências do Eixo», não ousará mexer-se.
Até o encontro a bordo do «Patria» foi posto preto no branco...
A 21 de Janeiro de 1939 Joachim von Ribbentrop encontra-se com o ministro dos Negócios Estrangeiros da Checoslováquia, Chvalkovsky, e exige dele uma redução do exército checo. Um pouco mais tarde Hitler e Ribbentrop têm uma entrevista com Tiso, um dos dirigentes da Eslováquia. Tendo mencionado os dois factos, o procurador soviético pergunta a Ribbentrop quais foram as suas finalidades e resultados. O réu, que não sabe se a Acusação está na posse de documentos concretos referentes a isso, recorre ao seu truque preferido: ergue os olhos ao tecto para simular um esforço de memória. É pena, mas já não se recorda! O procurador vem em seu auxílio e lê algumas passagens de um estenograma.
Percorro com os olhos o banco dos réus. Os olhos de Goering são uma verruma cravada em Ribbentrop. Tem tanta compaixão por ele como ele tinha tido por Goering alguns dias antes. Neurath fala com Papen. Os seus sorrisos sarcásticos atestam que têm os mesmos sentimentos: «É bem feito para este arrivista!»
Entretanto o representante do Ministério Público continua a ler o estenograma. Ribbentrop não se tinha limitado a persuadir Tiso de separar a Eslováquia e proclamar a sua independência. Pressionava-o! «O ministro dos Negócios Estrangeiros insistiu por seu lado dizendo que, neste assunto, a decisão era uma questão de horas e não de dias». Ribbentrop e Hitler esforçavam-se por intimidar o seu interlocutor: se os eslovacos não «declaravam a sua independência face a Praga, a Alemanha abandoná-los-ia aos cuidados dos húngaros». Ribbentrop, é dito no texto, apresentou ao Fuhrer uma mensagem que ele pretensamente acabava de receber e lhe assinalava movimentos de tropas húngaras na fronteira eslovaca. «Se demoram muito, a Hungria devorará a Eslováquia». E aí, «o senhor ministro do Reich, apesar de toda a sua simpatia pelos eslovacos...já não poderia fazer nada».
Ribbentrop levou a prevenção ao ponto de redigir ele próprio e mandar traduzir o projecto de lei da «independência» da Eslováquia. Na noite de 13 para 14 de Março despediu com gentileza os seus convidados, pondo à sua disposição um avião alemão que os levasse para casa. E no dia seguinte, Bratislava declarou a Eslováquia «independente».
Esse foi um dos numerosos casos em que Ribbentrop ameaçava alguém com um ataque armado por parte de um terceiro que agia às ordens da Alemanha.
Na noite de 14 de Março convidava para Berlim o presidente da Checoslováquia, Hacha, e o ministro dos Negócios Estrangeiros Chvalkovsky. Foi já depois da meia-noite (à 1 h 15 do dia 15 de Março) que Hitler e Ribbentrop os receberam na Chancelaria.
A operação decorre com todo o «brilho» próprio da actividade diplomática do Reichsminister.
Pouco depois os hitlerianos desencadearão a guerra mundial e Ribbentrop vangloriar-se-á dos seus méritos no caso da Checoslováquia. Efectivamente, bastara-lhe uma noite para «convencer» os dirigentes deste país mutilado a assinarem a sua condenação à morte.
Ribbentrop inspirava-se pois num esquema estabelecido de uma vez por todas: enquanto o Estado-Maior-General elaborava o plano de invasão de um país, o Ministério dos Negócios Estrangeiros serenava a opinião pública com a promessa solene de que a Alemanha respeitaria a soberania e a integridade territorial do país em questão. Estas declarações tornavam-se tanto mais espaventosas quanto mais o ataque estava próximo. Depois, imediatamente antes da agressão, o Estado-Maior exigia de Ribbentrop a provocação de um «incidente» susceptível de dar às acções da Alemanha a aparência de uma medida «forçada». Neste domínio, todos os meios eram bons.
No Tribunal foram-lhe apresentados textos dos seus discursos pronunciados em Varsóvia em que ele tranquilizava a Polónia quanto às pacíficas intenções da Alemanha, e os documentos secretos das reuniões no gabinete de Hitler onde se falava abertamente da conquista da Polónia.
Ribbentrop releu os primeiros documentos com um sorriso encantado. Claro, ele nunca tinha querido a guerra da Polónia, sempre procurou manter boas relações com este país. Estava longe de pensar na guerra. Nunca lhe passou pela cabeça que Danzig valesse um conflito armado.
Impressão totalmente contrária é a que lhe provocam as actas das conferências nos aposentos de Hitler. Aí some-se-lhe o sorriso. Franze os sobrolhos e cala-se.
Mas o procurador mostra-lhe o documento que segue. Trata-se do diário do conde Ciano, ministro dos Negócios Estrangeiros da Itália fascista. Ciano, tal como o seu sogro Mussolini, já não faz parte do número dos vivos, mas não levou com ele o diário. Entre outras curiosas notas, encontramos aí a descrição do acolhimento que o seu colega Ribbentrop lhe fez no castelo de Fuschl a 11 de Agosto de 1939:
«Ribbentrop informou-me, antes de passarmos à mesa, da decisão de desencadear o fogo-de-artifício, tal como me teria prevenido da menor das questões administrativas».
Segue-se depois este diálogo:
«— Que quer, o corredor ou Danzig? — pergunta Ciano.
— Mais nada, agora — responde Ribbentrop, e fitando Ciano com olhos frios: — Queremos a guerra...»
Os dois ministros encararam a eventual intervenção da Inglaterra e da França se a Alemanha atacasse a Polónia. Ribbentrop acreditava que o Ocidente não poria objecções à invasão da Polónia, que permitiria à Alemanha atingir a fronteira russa. Já Ciano estava menos convencido disso. Em todo o caso, escreveu ele no seu diário:
«Eles estavam convencidos de que a França e a Grã-Bretanha assistiriam sem tugir nem mugir à destruição da Polónia. Ribbentrop queria mesmo apostar comigo, num dos lúgubres jantares do castelo austríaco de Salzburg: se os ingleses e franceses ficassem neutros eu devia dar-lhe um quadro italiano, se entrassem na guerra ele dar-me-ia uma colecção de armas antigas».
Ribbentrop tinha efectivamente a certeza de que a «combinação polaca» surtiria efeito à maneira de Munique. As provas disso são numerosas. Mas as mais interessantes, quanto a mim, foram dadas pela testemunha Schmidt.
Este alemão de grande estatura, imponente, bem parecido, tinha sido intérprete particular de Hitler e de Ribbentrop. Chegado à barra, observa o banco dos réus e capta o olhar do seu ex-patrão. Uns olhos suplicantes que Ribbentrop lhe lança. Schmidt atrai também a atenção dos outros réus, sobretudo a de von Neurath ao serviço do qual também estivera. E antes Schmidt tinha trabalhado para os chanceleres Muller e Bruning, assim como para o ministro dos Negócios Estrangeiros Stresemann.
O abalizado intérprete faz o juramento de só dizer a verdade ao Tribunal. E ainda que Ribbentrop já tenha tido a oportunidade de apreciar o que vale a palavra dos hitlerianos, desta vez sente as costas a arder: Schmidt tem conhecimento de muitos segredos.
A 30 de Agosto de 1939, quando a Europa vivia as suas últimas horas de paz, um mandatário do governo polaco é convidado a ir a Berlim para negociar. Hitler fixou intencionalmente um prazo muito curto, para que o enviado chegasse «forçosamente atrasado».
A Wehrmacht está prestes a lançar-se sobre a Polónia. Foram tomadas as últimas medidas de acordo com o «Plan Weiss». Mas Berlim e Londres continuam com a comédia das conversações para garantirem um álibi político e poderem seguidamente declinar a responsabilidade de terem despoletado uma guerra mundial.
A 30 de Agosto, às 24 horas, o embaixador inglês na Alemanha, Henderson, teve uma entrevista com Ribbentrop à qual Schmidt assistiu. Eis o seu depoimento perante o Tribunal:
— O ministro alemão dos Negócios Estrangeiros sentou-se, a cara pálida, a boca dura, os olhos brilhantes, na pequena mesa das negociações e à sua frente estava Henderson. Cumprimentou com uma firmeza ostensiva, tirou da pasta um volumoso documento e pôs-se a lê-lo...
Eram as condições pelas quais a Alemanha teria consentido a «solucionar pacificamente o conflito» com a Polónia. Ribbentrop lia tão depressa que era impossível anotar o texto e até fixar-lhe o conteúdo. O Reichsminister recusou redondamente entregar um exemplar a Henderson.
O próprio Schmidt, que no entanto viu de tudo, está surpreso. Levanta para Ribbentrop um olhar espantado, perguntando a si próprio se o ministro não terá tido um lapsus lingual. Ou então talvez ele tenha ouvido mal? Nem uma coisa nem outra. Ribbentrop repete ao embaixador:
«Não posso dar-lhe este documento».
— Olhei então para Sir Neville Henderson — conta Schmidt — porque estava à espera que ele me pedisse para lhe traduzir o documento, mas não o fez... Se mo tivesse pedido eu teria traduzido muito lentamente, teria quase ditado, para poder dar ao embaixador da Grã-Bretanha a possibilidade de reparar não só na linha geral mas também nos pormenores das propostas alemãs, para que ele pudesse transmiti-las ao seu governo... Mas, apesar dos meus olhares insistentes, Henderson não reagiu, de maneira que a entrevista foi rapidamente concluída e os acontecimentos seguiram o seu curso...
Vinte e quatro horas depois a Alemanha atacava a Polónia. E dois dias mais tarde a guerra germano-polaca transformava-se em guerra mundial... A Inglaterra e a França entraram nela.
Na manhã de 3 de Setembro — continua Schmidt — a embaixada da Grã-Bretanha telefonou entre as duas e as três horas para a Chancelaria do Reich... O embaixador da Grã-Bretanha tinha recebido instruções do seu governo, segundo as quais devia, de manhã às nove horas precisas, fazer uma importante comunicação ao ministro dos Negócios Estrangeiros do Reich... Ribbentrop mandou-lhe dizer que não estava disponível mas que encarregaria um membro do ministério dos Negócios Estrangeiros — neste caso era eu — de o receber.
Ribbentrop, sem dar azo a qualquer dúvida, não fazia caso nenhum destas derradeiras conversações com Henderson e só tentava tapar com uma folha de vide os preparativos já ultimados do Estado-Maior-General para a invasão da Polónia. As suas faculdades mentais eram suficientes para lhe fazerem compreender que Henderson, funcionário consciencioso, procurava unicamente dar a impressão de que a Grã-Bretanha queria evitar a guerra. Foi por isso que o Reichsminister recusou facilmente receber o embaixador de um país que tinha declarado guerra à Alemanha, e o embaixador aceitou, tão facilmente também, dirigir-se...a um intérprete. Foi pela mesma razão que, três dias antes, Ribbentrop tinha recusado entregar a Henderson o texto das propostas alemãs, e Henderson não tinha feito ao intérprete o mínimo gesto para que lhas traduzisse.
Um reincidente é sempre mais perigoso do que um criminoso primário. Mas também é mais fácil de topar. Porque, dir-vos-ão os criminalistas, tem o seu «estilo individual» que o denuncia de cada vez que comete um crime e que ajuda a encontrar-lhe o rasto.
Ribbentrop era um reincidente porque os pérfidos processos da sua diplomacia constantemente se repetiam.
Remontemos a 14 de Março de 1939. Algumas horas depois a Checoslováquia teria deixado de existir como Estado independente. Nestas circunstâncias não custa supor que alguns dos ministros que se mantinham em Praga terão desejado entrar em contacto com o embaixador da Alemanha e, por seu intermédio, com Ribbentrop. Este telefona ao embaixador:
«Peço-lhe, a si e aos outros membros da embaixada, para não estarem disponíveis se o governo checo quiser comunicar convosco durante os próximos dias».
Tratava-se evidentemente dos dois dias incompletos em que decorreram as negociações com Hacha em Berlim para lhe fazer assinar a condenação da Checoslováquia.
Seis meses se passam. A crise polaca atinge o ponto ideal. E de novo a táctica de Ribbentrop consiste em impedir o mandatário polaco de ir negociar antes de a Alemanha atacar o seu país.
A 3 de Setembro de 1939 o embaixador inglês pede audiência ao ministro dos Negócios Estrangeiros do Reich. Ribbentrop sabe perfeitamente que será questão da entrada em guerra da Grã-Bretanha e da França. Mas mantém-se fiel ao seu método: evitar as negociações no momento crítico para impedir qualquer atraso desfavorável ao Estado-Maior-General. É pois ao intérprete que ele confia a tarefa de receber o embaixador.
Transcorrem cerca de dois anos. Estamos no memorável sábado de 21 de Junho... Berlim, Unter den Linden. Embaixada soviética. De manhã tinha chegado um telegrama urgente de Moscovo com a ordem de transmitir ao governo alemão uma declaração importante.
O secretário da embaixada V. Berejkov tenta entender-se com os funcionários dos Negócios Estrangeiros para que arranjem ao embaixador uma entrevista com Ribbentrop. Infelizmente o Reichsminister «não está em Berlim»... Foram essas as instruções que Ribbentrop dera.
Anota Berejkov nas suas memórias:
«Nesse dia telefonaram várias vezes de Moscovo. Pressionavam-nos para que agíssemos... Com o relógio posto à minha frente, decidi ligar para a Wilhelmstrasse de meia em meia hora».
Esforços baldados. Ribbentrop mantinha-se na sua: nem contactos nem conversações susceptíveis de contrariar o Estado-Maior alemão. Mas de repente deu-se uma viragem brusca na situação.
«De súbito — continua Berejkov — tocou o telefone. Uma voz desconhecida berrou que o ministro do Reich, Joachim von Ribbentrop, estava à espera dos representantes soviéticos no seu gabinete da Wilhelmstrasse... Respondi que precisávamos de algum tempo para prevenirmos o embaixador e chamar o automóvel.
— O automóvel pessoal do ministro está à entrada da Embaixada soviética. O ministro espera que os representantes soviéticos venham imediatamente...»
Eram três horas da manhã. O exército alemão tinha investido contra a fronteira da URSS. Os aviões fascistas despejavam toneladas de bombas por cima das cidades adormecidas. Poder-se-iam invocar agora as disposições de Haia. É verdade que estas disposições estipulam que seja declarada guerra antes de abrir fogo. Mas para Ribbentrop isso não passava de um anacronismo. Anunciou ao embaixador que desde há uma hora a Alemanha prosseguia operações militares e tentou apresentar essas acções como uma «medida puramente defensiva». ,
...Ribbentrop, sentado no banco dos réus, vê com inquietação os elementos da sua «actividade diplomática» a juntarem-se formado o odioso retrato de um criminoso de guerra.
Os soviéticos apresentam numerosos documentos que refutam a versão das «medidas defensivas» e provam que Ribbentrop era um dos que desencadearam a agressão.
Aqui surgem também os dossiers dos Negócios Estrangeiros, que contêm os relatórios do conde von der Schulenburg, embaixador da Alemanha em Moscovo, e do general Koestring, adido militar. À leitura destes documentos Ribbentrop torna-se lívido. Como ele gostaria que Schulenburg e Koestring tivessem falado dos preparativos de guerra por parte da URSS, de concentração de tropas soviéticas na fronteira ocidental! Mas nada disso lá consta.
Eis os relatórios de 4 e de 6 de Junho de 1941. Num, escreve o embaixador:
«O governo russo faz os possíveis por prevenir um conflito com a Alemanha».
No outro especifica:
«A Rússia só se baterá se a Alemanha a atacar».
Um outro documento; o memorando de Schulenburg, do conselheiro de embaixada Hilger e do general Koestring. Este trio prevenia o seu governo, em termos prudentes mas categóricos, dos perigos aos quais se exporia a Alemanha ao atacar a URSS.
Hitler e Ribbentrop convocaram von der Schulenburg a Berlim. A 28 de Abril de 1941 este conseguiu uma audiência do Fuhrer. Mas foi um encontro mais que breve. Hitler debitou alguns lugares comuns e Schulenburg compreendeu que o seu memorando fora rejeitado. O Fuhrer despediu-o sem o deixar acabar e lançou ao «baixar do pano»:
— Não tenho a intenção de fazer guerra à Rússia.
Era notório que desconfiava de Schulenburg, se bem que este último se opusesse a uma guerra germano-soviética não por amizade pela URSS mas porque estava bem colocado para conhecer o seu imenso potencial económico, a sua capacidade de defesa e as qualidades morais do seu povo.
Estes documentos, uma parte dos quais emanava de Schulenburg, confundiram totalmente Ribbentrop.
Os diplomatas alemães acreditados na URSS estavam seriamente preocupados com os acontecimentos que estavam a preparar-se. Sucedia até com frequência evocarem nas suas entrevistas a campanha da Rússia de Napoleão, cujas consequências foram trágicas para a França. Aconteceu que Caulaincourt, ele também embaixador na Rússia, fora então a única pessoa das relações do imperador a pô-lo em guarda contra os perigos de uma guerra com este país.
Deixou-nos as suas memórias cujas mais interessantes passagens dizem respeito às suas entrevistas com Napoleão antes e durante a campanha da Rússia, até e inclusive à inglória retirada do exército francês, com o soberano à cabeça. Esse volumezinho andou pelas mesas do Estado-Maior hitleriano durante o estudo do «Plano Barbarossa». Os presunçosos generais limitaram-se a rir-se dele e puseram-no desdenhosamente de lado. Mas na Embaixada alemã de Moscovo houve, na Primavera fatal de 1941, pessoas lúcidas que detectaram em Caulaincourt coisas dignas de interesse. O conselheiro de embaixada Hilger escreveu seguidamente:
«Ao ler as memórias de Caulaincourt fiquei impressionado com a passagem em que o autor se esforça por convencer Napoleão a propósito da Rússia e lhe fala da necessidade de boas relações franco-russas. Isso recordou-me vivamente o ponto de vista de Schulenburg, que ele sempre exprimiu de cada vez que pôde informar Hitler sobre a União Soviética. E eu quis aproveitar esta coincidência para pregar uma partida ao embaixador.
«Um dia que ele veio ter comigo disse-lhe que tinha recebido uma carta confidencial de um amigo de Berlim, com informações de grande interesse acerca da última entrevista do embaixador com Hitler. O conde von der Schulenburg ficou surpreendido porque tudo levava a supor que a sua entrevista apenas era conhecida em Berlim por um pequeno número de pessoas.
«Seja como for — repliquei — aqui está o texto.
«E ao dizer isto li um fragmento do livro de Caulaincourt que eu tinha cuidadosamente escondido de Schulenburg num cartão. Não acrescentei nem cortei uma única palavra, apenas substituí os nomes de Napoleão e de Caulaincourt pelos de Hitler e de Schulenburg. O embaixador ficou atónito.
— Isso não é evidentemente o que eu anotei depois de ter falado com Hitler, mas é tão semelhante!... Mostre-me a carta, peço-lhe.
«... Estendi-lhe as memórias de Caulaincourt. A semelhança era na verdade impressionante. Ambos vimos nisso um mau presságio».
Quanto a Ribbentrop, esse não acreditava em presságios e de modo nenhum duvidava do êxito. Mimado pela «obra e graça do tempo», estava pronto a levar a sério a ironia de Anatole France que dizia que a dúvida era uma faculdade monstruosa, amoral, contrária ao Estado e à religião.
Na noite de 22 de Junho de 1941, o conde von der Schulenburg foi despertado quando batiam as três horas. Entregaram-lhe uma mensagem cifrada de Ribbentrop.
Alguns minutas depois um «Mercedes» preto desembocava na rua Gorki vindo da travessa Leontievski: o embaixador alemão dirigia-se ao Comissário do Povo para os Negócios Estrangeiros.
O conde conhecia bem o aforismo em voga no mundo diplomático: «O embaixador é um homem honesto enviado ao estrangeiro para mentir em proveito do seu país». No decurso da sua longa carreira, Schulenburg não tinha provavelmente mentido menos do que qualquer outro diplomata burguês. Mas ao fazê-lo devia estar convencido de que servia a Alemanha. Ao passo que desta vez, dentro do automóvel que seguia a boa velocidade pelas ruas desertas de Moscovo, ele não estava mesmo nada certo de que assim fosse.
Não obstante, o velho diplomata «cumpriu o seu dever até ao fim». Ao achar-se em presença dos dirigentes soviéticos no Kremlin, transmitiu-lhes escrupulosamente o que Ribbentrop queria que ele dissesse:
«A concentração das tropas soviéticas na fronteira alemã atingiu proporções que o governo alemão não poderia tolerar. Por isso tomou as consequentes contramedidas».
Essas «contramedidas» incarnavam-se na guerra. A mais selvagem das guerras que a Alemanha jamais movera até essa altura. No momento em que Schulenburg cumpria a sua missão, as bombas devastavam as cidades soviéticas, matando, estropiando milhares de civis.
Schulenburg foi breve. Ribbentrop tinha-lhe proibido entrar em discussão. O próprio ministro se encarregou de comentar os acontecimentos da noite. Na manhã de 22 de Junho usou da palavra numa grande conferência de imprensa em Berlim, apelando aos jornalistas de todo o mundo para que considerassem as operações militares da Alemanha contra a URSS como um acto puramente defensivo, como uma guerra de «protecção».
Joachim von Ribbentrop tinha na altura própria assinado o pacto germano-soviético de não agressão. O que não impediu a Alemanha de atacar a URSS, e o negociante de vinhos da Wilhelmstrasse foi um dos mais activos cúmplices da violação premeditada desse pacto. Fez tudo o que podia para que na hora da vitória ninguém ousasse contestar o mérito do senhor Reichsminister neste assunto. Mas quando os doces sonhos de vitória se dissiparam em fumo e à orgia sangrenta se seguiu a expiação de Nuremberga, ele pretendeu fazer crer que só teve conhecimento dos preparativos de guerra contra a URSS alguns dias antes do ataque.
Entretanto o Ministério Público ajuda-o a «recordar-se» que desde Janeiro de 1941 já ele, Keitel e Jodl (avalizados assistentes da maior parte das negociações diplomáticas!) tinham persuadido Antonescu a deixar entrar as tropas alemãs na Roménia para que pudessem apanhar os soviéticos pelo flanco. Na Primavera de 1941, aquando de um novo encontro com Antonescu, Ribbentrop propôs-lhe tomar parte na campanha contra a URSS. Em troca disso propôs-lhe a Bessarábia, a Bukovina, a bacia soviética do Dniestr e Odessa.
Ribbentrop diz nada saber dos preparativos da agressão, mesmo em Maio de 1941. O procurador faz a leitura da sua carta de 20 de Abril a Alfred Rosenberg, nomeado para o posto de Reichscommissar dos territórios ocupados do Leste. Nesta mensagem, o ministro indica o nome do funcionário que ele delega para o estado-maior de Rosenberg como representante do Ministério dos Negócios Estrangeiros...
Depois da agressão da Alemanha contra a URSS começa uma outra etapa, muito mais difícil, da carreira diplomática de Ribbentrop. Pode considerar-se que as negociações com o Japão marcam, em certo sentido, o seu início. Desta vez o Reichsminister já não pode contar com a «obra e graça do tempo» nem com a terrífica força da Wehrmacht. Com os japoneses era preciso agir por meio da persuasão e não já da imposição.
Ribbentrop conferencia com o ministro dos Negócios Estrangeiros do Japão, Matsuoka, a 29 de Março de 1941 em Berlim. A fim de atirar o mais depressa possível o Japão contra a URSS, pronuncia um discurso pomposo, citando as palavras de um notório militarista japonês que tinham ecoado em 1904 em vésperas do ataque contra a Rússia: «Abri fogo e unireis a nação». Matsuoka dá provas de grande amabilidade mas abstém-se de se comprometer.
Logo após a invasão do território soviético pelas tropas fascistas, a Alemanha intensifica a sua pressão diplomática sobre o seu parceiro do Extremo Oriente. Ribbentrop incita de novo o Japão a «golpear a URSS pelas costas». A 10 de Julho de 1941, Ott, embaixador da Alemanha em Tóquio, recebe da Wilhelmstrasse o seguinte telegrama:
«Peço-lhe para usar de todos os meios ao seu alcance...para que o Japão declare o mais depressa possível guerra à Rússia... O nosso objectivo final deve ser o de nos juntarmos antes do Inverno no Transiberiano».
Mas o agressor oriental tinha as suas intenções próprias. Cobiçava as possessões dos EUA no Pacífico e preferia abster-se de momento de entrar numa guerra perigosa contra a URSS. O Estado-Maior japonês já tinha tido a triste experiência dos combates na Sibéria e no Khalkhin-Gol, na Mongólia. Apesar do seu espírito aventureirista, os militaristas japoneses sabiam que para atacar simultaneamente as possessões das potências ocidentais no Pacífico e a URSS faltavam forças ao seu país. Decidiram, pois, apenas apostar numa das variantes. E escolheram naturalmente a primeira, que parecia dar-lhes mais vantagens.
De 1941 a 1943 Ribbentrop continua com teimosia de maníaco a excitar os japoneses contra a União Soviética. Mas em vão. O Japão tem já as suas forças dispersas por numerosas frentes. A situação da Alemanha agrava-se de dia para dia: derrota às portas de Moscovo, esmagamento das tropas alemãs no Volga, derrocada no sector de Kursk...
Ultrapassado pelos acontecimentos, o «superdiplomata» hitleriano perde o sentido da realidade. Não se pode explicar de outro modo o facto de ter invocado o pacto «Roma-Berlim-Tóquio» num encontro com o embaixador Japonês Oshima. Este líder da política externa fascista ultra-agressiva, que sempre considerou os acordos internacionais como pedaços de papel, lembra-se de repente da velha fórmula diplomática: «Os acordos devem ser respeitados». Lembra-se de uma coisa de que tanto ele como o seu colega japonês desdenharam. Atingiu o cúmulo do ridículo ao especificar com voz lacrimejante que
«não seria bom que uma parte tivesse de combater sozinha».
O embaixador comunica-lhe o parecer de Tóquio com toda a cortesia própria da sua raça:
«O governo japonês reconhece absolutamente o perigo constituído pela Rússia e compreende perfeitamente que o seu aliado alemão deseje que também o Japão entre em guerra contra a Rússia. Todavia não é possível ao governo japonês, dada a actual situação militar, entrar em guerra. Por outro lado, o governo japonês nunca perderá de vista o problema russo».
Ribbentrop, louco de raiva, já não se controla. A 13 de Abril de 1943 volta a encontrar-se com Oshima e tenta uma vez mais convencê-lo de que «a Rússia com certeza que nunca virá a ser mais fraca do que neste momento». Que insensatez dizer isso numa altura em que as tropas alemãs recuavam por pressão das ofensivas do Exército Vermelho, abandonando centenas de quilómetros de territórios conquistados!
E os resultados? Pois bem, revelaram-se desastrosos para Ribbentrop. A «operação japonesa», a primeira acção diplomática importante que o «superdiplomata» nazi tentou levar a cabo sem poder utilizar as suas armas preferidas — a chantagem e as ameaças —, falhou.
À procura de uma saída (clique na foto para maior resolução) |
Os actos de Ribbentrop vão sendo cada vez mais uma demonstração de que a Alemanha caminha para a derrota e que a diplomacia do Reichsminister se está a tomar quimérica. Os seus dourados já perdem o brilho. O uniforme de diplomata descai-lhe lamentavelmente pelos ombros abaixo, a esse desafortunado negociante de vinhos.
No seu depoimento no processo de Nuremberga, Ribbentrop balbucia que se esforçara por pôr termo à guerra. Quando a derrota se tornou iminente, ele deu evidentemente alguns passos. Os seus emissários partiram para Madrid, Berna, Lisboa, Estocolmo, antes de mais para proporem uma paz separada às potências ocidentais.
Estes trâmites fracassaram a despeito dos ecos favoráveis que despertaram em certos meios. Os mais contumazes reaccionários não podiam ignorar a imensa força das massas populares em luta contra a dominação do hitlerismo.
Ribbentrop tenta então uma outra manobra.
«Disse ao Fuhrer — escreve ele nas suas memórias — que estava pronto a tomar o avião para Moscovo com a minha família. Assim, Staline ficaria convencido da nossa sinceridade: ter-nos-ia a nós como reféns».
Antes de 22 de Junho de 1941 Ribbentrop não quis dar ouvidos ao conselheiro de embaixada Hilger que, tal como o embaixador von der Schulenburg, o tinha posto de sobreaviso quanto aos perigos de uma guerra contra a URSS. O Reichsminister voltou a lembrar-se de Hilger na Primavera de 1945. Eis o que escreve este último nas suas memórias:
«Em fins de Março de 1945 ele propôs-me seriamente que fosse a Estocolmo para tentar tomar contacto com a delegação soviética e avaliar as hipóteses de uma paz separada. Tive dificuldade para o dissuadir deste projecto demente».
Ribbentrop convoca de novo Hilger em princípios de Abril.
— Hilger — começa ele — tenho uma pergunta a fazer-lhe e peço-lhe para responder com toda a franqueza... Acha que alguma vez Moscovo aceitará negociar connosco?
— Não sei bem o que dizer-lhe. Se disser o que penso corro o risco de lhe desagradar. Você ia ficar zangado.
Ribbentrop interrompe-o com impaciência:
— Sempre quis que você fosse franco.
— Pois bem — diz Hilger — já que tanto insiste, a minha resposta é esta: não há nenhuma esperança de Moscovo negociar com o governo alemão actual...
O ministro dos Negócios Estrangeiros, no dizer de Hilger, teria achado a pílula amarga.
«Tinha o rosto congestionado e os olhos saíam-lhe das órbitas». «As palavras que tinha na ponta da língua abafavam-no».
Nesse momento a sua mulher entreabriu a porta:
— Levanta-te, Joachim — gritou ela. — Desce para o abrigo! Ataque aéreo maciço sobre Berlim...
Nos derradeiros dias do Terceiro Reich Ribbentrop perde a cabeça. Entre duas entrevistas com Hilger, dá audiência ao conde sueco Bernadotte. Gostaria de o utilizar como mediador para negociar com o Ocidente e acha bom, para esse fim, «meter medo aos suecos».
Relata Bernadotte nas suas memórias:
«Ele certificou-me de que, se a Alemanha perdesse a guerra, os russos, antes de passarem seis meses, bombardeariam Estocolmo e fuzilariam a família real, eu incluído».
Simultaneamente, Ribbentrop usa de lisonja. Jura por tudo que Hitler
«sempre foi amigo da Suécia e vota uma estima sem par ao seu rei».
Que intelecto! Que argumentos! Que fertilidade de imaginação! Não há qualquer necessidade de comentários.
Maio de 1945. A derrocada da Alemanha está próxima. Hitler e Goebbels suicidaram-se. A Ribbentrop, sobejam razões para lhes seguir o exemplo. Mas o ex-patrão da Wilhelmstrasse não tinha pressa de partir para o outro mundo.
Consagrou anos ao culto do seu ídolo, a que ele retribuiu com a ingratidão. O leitor está já ao corrente de que o nome de Ribbentrop não figurava na lista do governo destinado a ser formado após a morte do Fuhrer. O «superdiplomata» ultrajado lamenta-se: então não foi ele que telegrafou a Hitler, a 27 de Abril, para lhe pedir autorização de ir morrer a seu lado?! A sua única consolação é supor que a sua substituição por Seyss-Inquart não é obra só de Hitler: Bormann e Goebbels devem ter algo a ver com isso. Esses miseráveis aproveitaram-se com certeza de uma perturbação mental do Fuhrer para o fazerem assinar esse testamento.
Fosse como fosse, Ribbentrop por muito tempo guardou rancor a Hitler. Na prisão de Nuremberga queixava-se ele ao doutor Kelley:
— Isso enche-me de amargura. Sacrifiquei tudo por ele... Sempre tomei partido por ele... Suportei o seu carácter. E no fim ele correu comigo...
Mas Ribbentrop não é dos que se deixam pôr assim no olho da rua. É tenaz. Espera manter-se no poder e apressa-se por alcançar Flensburg onde o grande-almirante Doenitz, sucessor de Hitler, está a formar a governo.
Doenitz desejava, também ele, entender-se com o Ocidente e procurava um ministro dos Negócios Estrangeiros à altura. Mas via bem que Ribbentrop, cujo nome estava ligado à entrada da Alemanha em guerra, não convinha. Inquiriu junto do próprio Ribbentrop, com um ar ostensivamente polido, quais os candidatos a ter em conta.
Ribbentrop prometeu pensar nisso. No dia seguinte, o «superdiplomata» destituído anunciava ao novo Fuhrer que no tocante a candidaturas não estava a ver outra senão...a sua. Doenitz pô-lo na rua sem cerimónias. Já tinha nomeado para o cargo de ministro dos Negócios Estrangeiros o ex-ministro das Finanças Schwerin von Krosigk.
Assinalei atrás que aquando da detenção de Ribbentrop lhe foi encontrada uma carta endereçada a Churchill. Era suficientemente ingénuo para pensar que esse velho tubarão da política ia acreditar nas suas lágrimas de crocodilo. Depois do que se passou durante a guerra, escreveu ao primeiro-ministro inglês que ele próprio e Hitler sempre desejaram a aproximação com a Grã-Bretanha. Mais, Ribbentrop considerava esse país como uma «segunda pátria».
A leitura desta missiva em Nuremberga provocou risos e um espanto sincero. Era inconcebível que em 1945, depois da guerra, depois de conhecidos os crimes do bando criminoso de Hitler, ainda houvesse alguém que tentasse convencer Churchill de que «Hitler tinha sido um grande idealista». Pois bem, eram expressões deste jaez que ilustravam a carta de Ribbentrop.
A carta terminava com esta frase:
«Entrego a minha vida nas suas mãos».
Goering não era, pois, o único a tomar-se por Bonaparte feito prisioneiro no seu «Bellérophon». Ribbentrop tinha cobiça por esse mesmo papel. Mas se o «herói de Hamburgo» tivesse tido uma noção mínima do que era a História, lembrar-se-ia que o Império Britânico nunca tinha sido sentimental na maneira de tratar os seus inimigos. Quanto a Winston Churchill, esse era a última das pessoas que poderíamos incluir no rol dos liberais frouxos.
Sabe-se que Churchill comunicou a Moscovo o conteúdo da carta logo após a sua recepção. Era uma maneira de dar a entender que W. Churchill nada tinha a esconder ao seu valoroso aliado!
O pânico tinha privado Ribbentrop de toda a capacidade de julgar. Esse torpor que o tinha invadido no decurso da derrocada do Terceiro Reich persistiu durante os longos meses do processo de Nuremberga.
Foi, de súbito, tomado pelo desejo de fazer apelo ao maior número possível de testemunhas. Pediu que fosse citada a sua mulher, a sua secretária particular, vários estadistas ingleses que ele tinha conhecido quando era ministro. Queria nomeadamente a comparência de Winston Churchill. Segundo ele, Churchill deveria contar ao Tribunal uma curiosa entrevista que eles tiveram, confessar publicamente que ele, Churchill, teria no decorrer da entrevista feito o elogio do chanceler Adolfo Hitler. Nem mais nem menos!
O raciocínio era simples: já que o próprio Churchill fazia caso de Hitler, quem poderia censurar a Ribbentrop o ter colaborado com ele? Mas Sir David Maxwell-Fyfe contentou-se em replicar, sem examinar o fundo da questão, que no tempo em que o réu era embaixador em Londres Churchill «não ocupava qualquer cargo oficial». E disse em conclusão:
— O Ministério Público tem a honra de considerar que a relação entre essas entrevistas e as questões em debate neste processo é não só duvidosa mas também inexistente.
Ribbentrop chama logo o Dr. Horn e fala-lhe ao ouvido. O advogado pede de imediato a palavra e declara com um ar de estar a assestar um golpe de misericórdia:
— É o seguinte o que gostaria de responder às asserções de Sir David: o primeiro-ministro Winston Churchill era na época o chefe da oposição de Sua Majestade Britânica. E nessa qualidade recebia honorários.
O procurador-geral adjunto inglês subiu tranquilamente à tribuna e passou a mão por baixo das costas. Era um sintoma que nada de bom pressagiava para Horn. Já se notara que Maxwell-Fyfe fazia assim quando ia deitar ao tapete o seu adversário. E o knock-out não se fez esperar.
— Estou convencido de que o Dr. Horn seria a última pessoa a defender um ponto sobre o qual foi tão mal informado...
N. Zoria, vogal da URSS (clique na foto para maior resolução) |
Depois desta introdução, explicou claramente a Ribbentrop e ao seu advogado que dos dois grandes partidos de Inglaterra — conservador e trabalhista — um está no poder e o outro na oposição. Na época em que Ribbentrop era embaixador, os conservadores detinham o poder e Chamberlain estava à cabeça do governo. Churchill era já também conservador mas não ocupava qualquer cargo. Sendo membro do partido dirigente e simples delegado ao Parlamento na fracção deste partido, ele não podia estar na oposição e muito menos dirigi-la. Para satisfazer inteiramente a curiosidade do ex-ministro dos Negócios Estrangeiros do Império alemão, Maxwell-Fyfe disse que «era Attlee quem estava então à cabeça da oposição».
Mas não é da crassa ignorância de Ribbentrop que se trata. O senhor Reichsminister tinha dela dado outras provas! Bem mais espantosa era a certeza do réu de que Churchill correria a Nuremberga para salvar o antigo embaixador alemão.
A lista das testemunhas inglesas a citar elaborada por Ribbentrop incluía o duque de Windsor, o duque de Buccleuch, Lord e Lady Astor, Lord Beaverbrook, Lord Derby, Lord Kemsley, Lord Londonderry, Lord Simon, Lord Vansittart, etc., etc. Inútil é debruçarmo-nos sobre cada um destes nomes. Tomemos, a título de exemplo, Vansittart, que era então, em permanência, ministro-adjunto dos Negócios Estrangeiros da Grã-Bretanha.
Ivan Maiski, antigo embaixador soviético em Londres, assinala que ele é um dos raros estadistas ingleses a ter a lucidez suficiente para desejar o estabelecimento de boas relações com a URSS. Durante a guerra Ribbentrop foi o único a ignorar que Vansittart estava à cabeça do movimento germanófobo da Inglaterra e que nas suas intervenções ia até ao chauvinismo declarado. Toda a gente sabia que Vansittart, não contente em exigir o castigo dos criminosos de guerra alemães, insistia para que todo o povo alemão fosse considerado responsável pelas atrocidades cometidas.
Recusou naturalmente ir a Nuremberga, mas teve a civilidade de responder por escrito às perguntas que interessavam ao Tribunal e ao senhor Ribbentrop. Na sua carta a Vansittart o ex-ministro referia-se aos seus encontros passados. Vansittart respondeu sem demora. Eis o resumo desta mais que singular correspondência:
Pergunta. Essas entrevistas deram à testemunha a impressão de que Ribbentrop desejava ardentemente uma duradoira amizade anglo-alemã?
Resposta. Sempre me esforcei por cumprir conscienciosamente os meus deveres diplomáticos, observando as regras da boa educação. Por isso ouvi um bom número de estadistas e embaixadores. Quanto a acreditar no que eles me diziam, isso não estava dentro das minhas atribuições nem fazia parte de meu carácter.
Pergunta. Von Ribbentrop tentou convencer a testemunha da necessidade de converter essas boas relações em aliança entre a Alemanha e a Inglaterra?
Resposta. Lembro-me ainda menos da proposta de erigir essa pretensa amizade em «aliança».
Pergunta. Adolfo Hitler pronunciou-se no mesmo sentido aquando de um encontro particular com a testemunha em Berlim em 1936?
Resposta. Tive efectivamente uma entrevista com Hitler durante os Jogos Olímpicos. Ou mais exactamente, escutei o seu monólogo. Ouvia distraidamente, achando mais interessante observar o homem do que tomar sentido à sua tagarelice que devia corresponder à fórmula habitual. Não me recordo dos pormenores.
Pergunta. A testemunha acha que Ribbentrop dedicou anos a esta tarefa (o estabelecimento de uma amizade anglo-alemã duradoura — A.P.) e que via nela, como por mais de uma vez o repetiu, a sua razão de ser?
Resposta. Não. Não penso que essa fosse a sua razão de existir...
Contaram-me mais tarde que no dia em que foram lidas as respostas de Vansittart em audiência, os réus estavam de muito bom-humor ao almoço. No refeitório da prisão, o único lugar onde cada um podia dizer o que queria, Ribbentrop serviu de alvo às piadas.
E como reagiu ele próprio à mensagem de Vansittart? Na sua última declaração queixava-se da «secura de coração» e da «malevolência» do respeitável lorde:
— Durante mais de vinte anos da minha vida dediquei o meu tempo a eliminar a hostilidade entre a Inglaterra e a Alemanha, com os resultados de políticos estrangeiros que o sabiam dizerem hoje nas suas declarações sob juramento que não me acreditavam.
Mas no meio dos muitos dissabores sofridos por Ribbentrop no decurso do processo há algumas alegrias. É verdade! Aí vem o Dr. Horn com o New York Herald Tribune na mão. O advogado vira as costas a Ribbentrop de modo a ele poder ler as últimas notícias. Ribbentrop descontrai-se. Dá até uma cotovelada a Goering. Este por sua vez absorve-se na leitura, sem esconder o contentamento. Que entendimento!
Estava-se em Junho de 1946, quando a imprensa mencionou o discurso anti-soviético do secretário de Estado americano James Byrnes, de imediato apoiado por Bevin na Câmara dos Comuns.
Ribbentrop parece que se transfigurou. Nas suspensões de audiência comentou as reflexões de Bevin e de Byrnes. E à noite, na sua cela, perguntou a Gilbert em tom cáustico:
— Será que a América não veria qualquer inconveniente em que a Rússia devorasse toda a Europa?
Tinha vislumbrado nas apreciações do secretário de Estado uma fenda em que todo o processo de Nuremberga se poderia afundar. A sua pouca inteligência bastava no entanto para lhe fazer compreender que a América imperialista não era indiferente à direcção que tomaria o desenvolvimento da Europa do após-guerra. Mas o que ultrapassava já o seu entendimento era a total indiferença dos meios dirigentes americanos pela sorte que a Témis de Nuremberga reservava a Ribbentrop. Podia muito bem passar-se sem pessoas do seu género, mesmo fazendo na Europa a política que depois foi feita.
Joachim von Ribbentrop não tinha razão de queixa quanto à falta de atenção do Tribunal para com a sua pessoa. O Tribunal examinou escrupulosamente, em todos os pormenores, as etapas da sua carreira, sem esquecer uma só que fosse.
Ribbentrop era extremamente vaidoso. Mas em Nuremberga teria preferido que o Tribunal não perdesse tempo a estudar aquelas das suas actividades que se prendiam mais com o seu elevado posto de SS e, antes, se fixasse na sua condição de ministro dos Negócios Estrangeiros.
Negava ele com obstinação ter conhecimento da existência dos «campos da morte». Ora, para se dirigir às suas propriedades de Sonenburg e de Fuschl ele devia obrigatoriamente passar pela zona de um desses campos. Mostraram-lhe o mapa e ele concordou.
— Então aquilo não eram asilos para judeus idosos? — perguntou ingenuamente o antigo Reichsminister e Obergruppenfuhrer SS, quando qualquer SS de patente sabia que os detidos só de lá saíam transformados em fumo das chaminés do forno crematório.
E muito menos pretendia Ribbentrop confessar que tinha contribuído para fornecer vítimas a esses campos. Garantia que não era anti-semita, que tivera «muitos amigos judeus». Sustentou mesmo ter defendido nos seus encontros com Hitler que o anti-semitismo não se justificava. Teria persuadido o Fuhrer de que a Grã-Bretanha tinha entrado na guerra contra a Alemanha
«sem que os judeus tivessem algo a ver com esse estado de coisas»; «a preocupação de os imperialistas ingleses manterem o equilíbrio europeu estava na origem do conflito».
— Eu disse a Hitler — declarou Ribbentrop — que a Inglaterra tinha combatido encarniçadamente o imperador Napoleão, numa época em que a influência judaica era aí praticamente nula...
Infelizmente o Ministério Público não se deixou enternecer por esta declaração e apresentou uma quantidade de documentos que provavam que Ribbentrop executou activamente o plano racista de Hitler.
Eis o estenograma oficial da conferência de Hitler e Ribbentrop com o regente Horthy, a 17 de Abril de 1943. Hitler e Ribbentrop exigiam que Horthy «levasse a bom termo» as medidas tomadas na Hungria contra os judeus.
«Em resposta à questão levantada por Horthy a propósito do que deveria ele fazer com os judeus, agora que lhes tinha retirado quase todas as possibilidades de ganharem a vida — de qualquer modo não os podia matar a todos — o ministro dos Negócios Estrangeiros do Reich declarou que os judeus deviam ser ou exterminados ou levados para campos de concentração. Não havia outra alternativa».
E é deste modo que o senhor Reichsminister tenta resolver muitos outros «problemas». Chama a atenção do embaixador de Itália sobre a moleza do seu governo na luta contra os guerrilheiros e recomenda expressamente o extermínio
«desses bandos de resistentes: homens, mulheres e crianças porque a sua existência põe em perigo a vida dos homens, das mulheres e das crianças alemães e italianos».
Também não hesita em exigir represálias contra os aviadores anglo-americanos abatidos: é a favor da linchagem sem contemplações. Ribbentrop esperava que o Tribunal se interessasse unicamente pela sua carreira diplomática. Mas os Ministérios Públicos das potências aliadas pensavam antes que o retrato deste criminoso político ficaria incompleto se não fossem reveladas as suas acções como SS.
O processo de Nuremberga durou tanto quanto foi necessário para que todas as provas fossem analisadas a fundo.
Chegou finalmente o momento em que os réus puderam fazer a sua última declaração.
Tal como os outros, Ribbentrop dispôs para isso de todo o tempo de que precisava. Falou demoradamente mas nada mais tinha já a dizer. Debitou a fábula do seu pacifismo, da sua aspiração em consolidar a paz na Terra: não tinha culpa de ser um incompreendido!
No dia 1 de Outubro de 1946 Ribbentrop foi informado que o Tribunal o declarava culpado segundo todos os pontos de acusação. No dia seguinte foi traçado o último risco: o presidente anunciou que pela sua longa actividade dirigida contra a paz e a segurança dos povos, pela sua cumplicidade em crimes monstruosos de lesa-humanidade, o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros do Terceiro Reich era condenado à morte por enforcamento.
Lívido, de lábios apertados, Ribbentrop escutou a sentença. Nesses breves instantes deve ele ter revisto toda a sua vida como numa fulguração. E pôde uma vez mais lamentar o ter trocado a sua calma existência de negociante de vinhos pela actividade transbordante, cheia de imprevistos trágicos, de ministro hitleriano dos Negócios Estrangeiros.
Pronunciada a sentença ainda lhe restavam treze dias de vida, mas ele não o sabia. Gilbert vinha vê-lo de vez em quando à sua cela. O pastor também o visitava, o que não era coisa que o regozijasse.
Ribbentrop interpôs recurso de perdão e disse a Gilbert que tinha a intenção de escrever para proveito da posteridade vários volumes sobre os erros e equívocos do regime nazi. Tentava convencer o doutor de que a América tinha todo o interesse em fazer o «gesto histórico» de interceder a seu favor no sentido de lhe conseguir uma redução da pena ou, pelo menos, um adiamento que lhe permitisse redigir a obra projecta.
Breve jorrou um raio de esperança: Ribbentrop soube que um americano lhe queria falar. Tinha atravessado toda a Ásia e a Europa, vindo de Tóquio onde decorria o processo dos grandes criminosos de guerra japoneses.
Era Cunningham, advogado no processo de Tóquio. A sua viagem a Nuremberga tinha uma única finalidade: conseguir a prova de que os governos do Japão e do Terceiro Reich «não tinham colaborado» nas suas políticas de agressão. Consciente do estado de espírito da «testemunha», adiantou-lhe o trabalho submetendo-lhe um texto já pronto. Ribbentrop assinou logo, na esperança de que esse serviço prestado a um representante dos EUA seria devidamente recompensado. Mas logo a partir do dia seguinte ele podia constatar que tinha sido logrado. A «testemunha» apenas sobreviveu um único dia ao seu depoimento.
Na noite de 16 de Outubro a fechadura da cela fez pela última vez ouvir o seu estalido. O ex-ministro dos Negócios Estrangeiros da Alemanha foi levado através do corredor da prisão. Era o caminho do cadafalso. Tinham-lhe comunicado, algumas horas antes, que o seu recurso tinha sido indeferido.
Tal vida, tal morte, é costume dizer-se. Ribbentrop, completamente prostrado, era arrastado em braços.
Outrora lia sem estremecer os comunicados da Gestapo sobre os suplícios dos patriotas que tinham combatido o fascismo. Eram homens de ideias generosas que viveram e morreram corajosamente. Ribbentrop, esse político sem princípios, como vivera assim morrera.
Notas de rodapé:
(15) Rua de Berlim onde se situava o Ministério dos Negócios Estrangeiros da Alemanha. (retornar ao texto)
Inclusão | 16/09/2015 |