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Julho de 1945. A divisão de cujo tribunal eu era presidente regressava de Praga em direcção à URSS. Desta vez tratava-se de uma agradável deslocação: os soldados estavam com pressa de rever o seu país.
Mas estavam-me destinadas outras perspectivas. Convocado de urgência à Direcção Central dos tribunais militares de Moscovo, aí me deram conta dos preparativos para a instituição de um Tribunal Militar Internacional com a finalidade de julgar os grandes criminosos da Segunda Guerra Mundial. O processo decorreria em Nuremberga, aonde eu deveria ir com a delegação soviética.
Regresso precipitado à divisão. Passagem da pasta ao meu sucessor. E eis-me de novo em Moscovo.
Primeira entrevista com o meu novo chefe, Jonas Timofeievitch Nikitchenko, general de Justiça. Até então conhecera-o na qualidade de vice-presidente do Supremo Tribunal da URSS. Ei-lo agora membro do Tribunal Internacional. No decurso da nossa breve entrevista informa-me de que em Nuremberga eu me ocuparei do secretariado.
Enquanto estava à espera dos papéis fui trabalhando no Colégio Militar do Supremo Tribunal da URSS. Dois meses se passam. Tomo finalmente o avião para Nuremberga na companhia do procurador militar Vassili Samsonov. Vamos assistir a um processo que irá durar cerca de um ano e que servirá de inspiração a tantos escritos de aprovação ou hostis, sinceros ou mentirosos.
Em breve irei ouvir o acusador inglês Shawcross afirmar que o processo de Nuremberga será
«um documento autorizado e imparcial ao qual os futuros historiadores poderão recorrer como fonte da verdade e os homens políticos de amanhã como um aviso».
Mas após o desfecho do processo lerei no livro do seu compatriota publicista Belgion Montgomery a frase seguinte:
«Se um simples mortal tivesse caído da Lua em Nuremberga... havia de julgar que estava no reino do absurdo total».
Foi lord M. Hankey quem seguidamente deu a explicação desse «absurdo». Viria a qualificar o processo de Nuremberga como
«perigoso precedente para o futuro»
e apressou-se a afirmar que
«quanto mais depressa acabarmos com este processo melhor...»
Está aberto o caminho da Justiça. Lord Lawrence, Presidente do Tribunal Militar Internacional faz sua entrada no Palácio da Justiça (clique na foto para maior resolução) |
Irei ouvir na sala de audiências a judiciosa declaração de Champetier de Ribes, procurador-geral francês:
— Após o depósito dos nossos documentos, depois da audição das testemunhas, depois dos filmes à projecção dos quais nem os próprios réus puderem assistir sem se arrepiarem de horror, ninguém no mundo poderá pretender que os campos de extermínio, os prisioneiros fuzilados, as populações massacradas, as montanhas de cadáveres, os rebanhos humanos mutilados na carne e na alma, os instrumentos de tortura, as câmaras de gás e os fornos crematórios, ninguém poderá pretender que esses crimes só existiram na imaginação dos propagandistas anti-alemães.
Mas alguns anos depois outros franceses se encarniçarão em contradizê-lo. Virei a ler Maurice Bardèche que tenta demonstrar que nem toda a gente aceitou cegamente o veredicto dos vencedores... Virei a saber pelos jornais da digressão que o professor francês Paul Rassigny fez através da Alemanha ocidental fazendo conferências dedicadas ao décimo sexto aniversário do processo de Nuremberga em que garante aos alemães que a sentença do Tribunal Internacional
«se baseou em falsos testemunhos e difamações dos comunistas».
Desde os primeiros dias do processo que o procurador-geral americano Robert Jackson dirá, reclamando um justo castigo para a camarilha hitleriana:
— Os crimes que temos de condenar e punir são prova de tal baixeza e foram tão maléficos que a civilização não poderia permitir-se passar-lhes por cima, porque não poderia continuar a existir uma civilização em que viessem a repetir-se estes crimes.
Sala de Audiências (clique na foto para maior resolução) |
Mas logo após o processo, o homem da rua americano que não se terá esquecido destas palavras, ficará banzado com a declaração do senador Taft sustentando que
«os Estados Unidos lamentarão por muito tempo a execução do veredicto de Nuremberga».
Na noite de 16 de Outubro de 1946 encontro-me no edifício onde se desenrolará o último acto do processo: o encaminhamento da camarilha hitleriana para a forca. Os reaccionários alemães ocidentais qualificarão essa data como «dia negro da história da Alemanha», e a revista Nation Europa verterá uma lágrima pelos condenados que, diz, «nunca violaram nenhuma lei em vigor».
Ainda terei a ler depois as memórias de Alfred Rosenberg, editadas na América e logo traduzidas na Alemanha ocidental. O «testamento político» desse pai espiritual do racismo vem lá reproduzido:
«Do mesmo modo que as outras grandes ideias que conheceram vitórias e derrotas, um belo dia o nacional-socialismo renascerá numa nova geração, que construirá o império dos Alemães sob uma forma nova... Nacional-socialismo, proveniente de raízes sãs, tornar-se-á uma árvore vigorosa que dará os seus frutos».
O veredicto de Nuremberga não podia deixar de irritar os sobreviventes do hitlerismo: generais, funcionários nazis, industriais, banqueiros que enriqueciam e ainda enriquecem com as encomendas de guerra. Não é pois de espantar que eles tentem desacreditá-lo por todos os meios.
O processo de Nuremberga é um fenómeno da história das relações internacionais que será um campo de reflexão durante décadas para os homens de Estado, historiadores, juristas, diplomatas.
Assim, de um tribunal de divisão vim parar ao Tribunal Internacional. Foi no 1° de Dezembro de 1945. Nuremberga era nessa altura, e particularmente o seu «Grande Hotel» onde estávamos hospedados Vassili Samsonov e eu, uma autêntica Torre de Babel: pessoas de todas as partes do mundo, na sua maioria jornalistas, era aí que paravam.
No dia seguinte de manhã, uma verdadeira manhã de Outono brumosa, fomos passear um pouco pelas ruas antes de nos dirigirmos para o Palácio da Justiça. Desagradável impressão. Nuremberga estava em ruínas. Mas mesmo nesse estado se lhe descortinava o carácter medieval da sua arquitectura. As muralhas de uma fortaleza, com as suas maciças torres, tinham ficado de pé bem como algumas casas de empenas. Ruelas tortuosas formavam uma inextricável teia.
Seguimos pela margem do Pegnitz que divide quase ao meio a cidade. O rio tem pontes de quatrocentos ou quinhentos anos. Frente a nós, no meio do entulho, erguem-se duas esbeltas torres, todas em leveza, esburacadas. É o que resta da célebre igreja de S. Lourenço.
E agora uma pracinha no cruzamento de duas ruas nos surge diante dos olhos, com a sua fonte a que chamam «Poço das Virtudes». Um belo gradeamento. Admiráveis esculturas. Mas os muitos repuxos que jorravam na fonte estão secos.
Nuremberga é velha de mais de novecentos anos. Mas foi entre o século XIV e o XVI que o génio alemão nela se manifestou, criando esplêndidas obras de arte, belas realizações de ciência e da técnica. Em Nuremberga viveram Dürer, o pintor, o escultor Krafft, o poeta e compositor Hans Sachs. Esta cidade fornecia para toda a Europa bússolas e instrumentos de medição. E os relógios, os vulgares relógios de bolso, aqui foram pela primeira vez fabricados por Peter Henlein.
Mas a história de Nuremberga não é só, nem mesmo essencialmente, a história do desenvolvimento científico e cultural. Nem todos os seus habitantes eram artistas ou hábeis artesãos. Também lá viviam outras personagens, rapaces, imperativas e Cruéis.
Durante séculos Nuremberga simbolizou a política de conquista do Santo Império Romano Germânico. Em 1356, segundo a Bula de Ouro de Carlos IV, todo o imperador recém-subido ao trono era em Nuremberga que deveria reunir a primeira Dieta. Era a cidade favorita de Frederico I Barba-Roxa que toda a sua vida sonhou com o domínio do mundo e morreu ingloriamente nas proximidades da Palestina, durante a Terceira Cruzada.
Os hitlerianos reconheciam três impérios alemães. O primeiro era o Santo Império Romano; o segundo, o que Bismarck fundou em 1871; o terceiro, suposto dever durar mil anos, era o do nacional-socialismo, E foi Nuremberga que se tornou a capital do seu partido, o seu local centralizador.
Lá para os confins da cidade divisávamos o Parteiland onde decorriam os congressos e paradas dos nazis.
Um enorme estádio asfaltado com bancadas de pedra cinzenta.
O conjunto dominado pela enorme tribuna central de vários degraus e bancos. Fendendo ao meio esta massa, uma flecha azul-escura voltada de ponta para cima indicava o lugar de Hitler. Era dali que ele contemplava os desfiles das tropas e dos seus destacamentos de choque. Era dali que aos urros da multidão em delírio ele apelava a que destruíssem os lares dos outros, devastassem as terras estrangeiras, fizessem correr sangue.
Durante o dia ecoava na cidade o barulho de milhares de botas cardadas. À noite ardia como um braseiro gigante. O fumo formava um véu que não deixava ver o céu. Portadores de tochas percorriam aos gritos selvagens as ruas.
Agora o vasto estádio está deserto. Só algumas senhoras de óculos escuros — com certeza turistas americanos — se postam na tribuna central. Vão ocupar à ver o lugar de Hitler e tiram fotografias umas às outras.
Numa das ruas de Nuremberga, a larga e direita Furstenstrasse, ficou quase intacto um quarteirão de casas e é aí, dentro de uma cerca de mau gosto cavada de nichos ovais, com um grande gradeamento de ferro forjado, que se ergue um maciço edifício de três andares com o pomposo nome de «Justizpalast».
Está em ligação com o edifício administrativo vizinho por uma galeria. Do lado do pátio, encostado perpendicularmente à sua fachada interna, encontra-se a prisão, uma construção sobre o comprido também de três andares.
A guerra, por um capricho do destino, parece ter propositadamente poupado esta lúgubre ilhota para que o mais equitativo julgamento da história da humanidade lá se pudesse realizar. Desde Novembro de 1945 que o Tribunal Militar Internacional examinava no Palácio da Justiça os processos dos grandes criminosos de guerra alemães. E os réus, guardados à vista, estavam à espera da sentença na prisão adjacente.
...Passámos pelo primeiro cordão de guarda. É formado por Schutzmann, novos agentes de polícia alemães de fardas azul-marinhas. Põem-se em sentido diante dos oficiais soviéticos.
Somos recebidos pela MP (polícia militar americana). Mostramos o nosso salvo-conduto.
— Okay! — o soldado convida-nos a entrar com um gesto.
Uma das entradas do Palácio da Justiça. Render da guarda para os soldados soviéticos (click na foto para maior resolução) |
À porta do edifício há sentinelas soviéticas. O render da guarda obriga-nos a um compasso de espera. Os nossos soldados passam em marcha cadenciada. São rapagões robustos com o peito constelado de condecorações, com galões amarelos e vermelhos que atestam os ferimentos de guerra.
Subimos ao primeiro andar e entramos na sala reservada à delegação soviética. Depois vamos para a sala de audiência para observar os que, durante tantos anos, tinham aterrorizado a Europa e o mundo, assassinos de milhões de inocentes. Quantas vezes, no decurso da guerra, tínhamos ouvido pronunciar os seus nomes acompanhados de epítetos nada lisonjeiros! Agora, a esses múltiplos e tão expressivos epítetos um outro se juntara, previsto pelos códigos penais de todos os países: o de réus.
Eis nós finalmente na sala que é a sede do Tribunal Militar Internacional. A primeira coisa que salta aos olhos são as janelas hermeticamente fechadas por cortinas.
Eu teria preferido que o sol penetrasse a jorros sala adentro, que através dos amplos vãos das janelas irrompessem os variados rumores do exterior, rompendo o ritmo austero dos trâmites do processo, para que os criminosos sentissem que, a despeito dos seus vãos esforços, a vida continua e é magnífica.
A sala está decorada de mármore verde. Baixos-relevos encastoados nas paredes simbolizam a Justiça. Aqui se revela a política de um Estado e de um Governo, analisada com uma meticulosidade quase médica. Os juízes e toda a assistência escutam atentamente os procuradores, as testemunhas, os réus e seus advogados. As estenógrafas são rendidas de vinte e cinco em vinte e cinco minutos (o estenograma completo de toda a sessão, em quatro línguas, deve estar pronto ao fim do dia). Fotógrafos e operadores de cinema de todos os países estão numa azáfama. As chapas e filmes são obtidos através de aberturas com vidro feitas especialmente nas paredes, para que a solenidade das audiências não seja quebrada.
A comprida mesa dos juízes está em cima de um estrado. Estão a ela sentados, da esquerda para a direita: o general de Justiça J. Nikitchenko, o tenente-coronel de Justiça A. Voltchkov (USSR); lord Birkett e lord Lawrence (Grã-Bretanha); Biddle e Parker (EUA); Donnedieu de Vabres e Robert Falco (França). A um nível inferior à mesa dos juízes e paralelamente a ela é o lugar reservado ao secretariado. Mais abaixo ainda estão as estenógrafas.
À direita estão as grandes mesas dos Ministérios Públicos das quatro Potências, tendo à cabeça: pela URSS, Roman Rudenko, conselheiro de Justiça de segunda classe, na altura procurador da RSS da Ucrânia; pelos Estados Unidos, Robert Jackson, membro do Supremo Tribunal; pela Grã-Bretanha, Hartley Shawcross, procurador-geral de Inglaterra; pela França, François de Menthon, membro do governo francês (em Janeiro de 1946 virá a ser substituído por Champetier de Ribes). Por trás deles, os jornalistas.
À esquerda de quem entra é o banco dos réus. Na primeira fila estão Hermann Goering, Joachim von Ribbentrop, Rudolf Hess, Wilhelm Keitel, Ernst Kaltenbrunner, Alfred Rosenberg, Hans Frank, Wilhelm Frick, Julius Streicher, Walter Funk, Hjalmar Schacht. Na segunda fila, Karl Doenitz, Erich Raeder, Baldur von Schirach, Fritz Sauckel, Alfred Jodl, Franz von Papen, Arthur Seyss-Inquart, Albert Speer, Konstantin von Neurath, Hans Fritzsche. Antes do começo de cada audiência eles são levados um a um. Vêm, debaixo de forte escolta, pelo novo subterrâneo que liga a prisão ao Palácio de Justiça, e sobem para a sala ainda vazia. Uns cumprimentam-se. Outros tomam os seus lugares raivosamente, como lobos acossados, sem olharem para ninguém.
O banco dos réus é rodeado por soldados da polícia militar americana. Frente ao banco é o lugar reservado aos advogados.
No primeiro andar da sala fica a galeria dos convidados...
Neste quadro é que eu iria trabalhar pouco menos de um ano. O processo iniciou-se a 20 de Novembro de 1945 e terminou a 1 de Outubro de 1946. Houve 403 audiências de julgamento. Os autos contavam 16 000 páginas. O Ministério Público apresentou 2 630 documentos, a Defesa 2 700. Foram interrogadas 116 testemunhas e 143 fizeram depoimentos por escrito. Foram além disso examinadas cerca de 300 000 declarações sob juramento.
Neste processo sem precedentes foram gastos cinco milhões de folhas de papel com o peso de 200 toneladas, 27 000 metros de película de cinema sonoro e 7 000 chapas fotográficas. O estenograma de cada audiência era acompanhado de uma gravação sonora que servia para o cotejo.
No primeiro dia do processo, o presidente anunciou na sua declaração de abertura:
— O processo que vai começar é único nos anais do Direito mundial e de extrema importância para milhões de pessoas de todo o inundo. Por estas razões, a todas as pessoas que participam neste processo incumbe a grande responsabilidade de cumprirem o seu dever sem medo e sem parcialidade, segundo os sagrados princípios do Direito e da Justiça.
Iremos ver mais tarde como alguns participantes no processo reagiram a este apelo, como foi ele encarado pela Defesa, qual o comportamento de numerosas testemunhas, muito diferentes pela sua condição social e pelas suas ideias políticas. Entretanto gostaria de chamar a atenção dos leitores sobre os réus.
Os chefes nazis tentam manter uma boa postura. Há trocas de palavras entre eles, escrevem bilhetes aos advogados, tomam notas bastante circunstanciadas. O mais diligente é Ribbentrop. Submergiu literalmente o seu advogado de «instruções» e deve ter sido em plena sala de audiências que começou as suas «memórias», que pouco depois da sua execução iriam ser publicadas no Ocidente. Com que finalidade? Nenhum homem de Estado burguês teve a possibilidade de contar ao mundo a sua vida e actividades de maneira tão pormenorizada como o fizeram em Nuremberga os antigos membros do governo do Terceiro Reich. Os autos estenografados constituíram uma preciosa recolha de biografias dos políticos nazis. Mas isso era contrário aos seus desejos, às suas intenções. Não, não eram essas as «memórias» que eles teriam gostado de legar à posteridade. E cada um à sua maneira se aplicava nisso. Uns pegaram eles mesmos na pena. Outros preferiram utilizar a de numerosos agentes da imprensa burguesa.
Notei que, desde o começo do processo, um jovem oficial americano com a braçadeira do ISO(2) se encontrava com frequência com os réus. Era o doutor Gilbert, psicólogo de profissão. Em Nuremberga era invejado pelos jornalistas de todo o mundo. Podia, como eles, ouvir e ver o que se passava na sala de audiências. Mas para além disso tinha o direito exclusivo de comunicar com os réus onde quisesse, em público ou a sós.
O doutor Gilbert falava bem o alemão, a sua língua materna, dizia-se. Isso ainda mais alargava as suas possibilidades. Sabia muitas coisas que os outros ignoravam. Os jornalistas andavam atrás dele na esperança de obterem informações sensacionais. Mas Gilbert sabia ter relego na língua. Pouco antes do término do processo ele deu-me conta de que estava a ultimar a redacção do seu diário e que várias editoras ocidentais o pressionavam nesse sentido. Fazia questão de que as editoras soviéticas adquirissem também o manuscrito. Deu-me a ler a primeira parte, e depois li na íntegra o seu livro intitulado The Nuremberg Diary(3). Tinha saído nos Estados Unidos e em muitos países da Europa. É um documento cheio de interesse, sobretudo para quem participou no processo. Gilbert acrescenta ao quadro geral das peripécias de Nuremberga pormenores que os réus lhe tinham confiado nas suas entrevistas privadas. É uma espécie de comentário quotidiano aos factos essenciais do processo, comentário esse, da autoria dos próprios réus e que em certa medida explica o seu comportamento. Gilbert revelou-se um fino observador.
A galeria dos convidados estava sempre cheia de oficiais dos exércitos aliados, na sua maioria americanos. Também lá foi visto o ministro da Guerra dos EUA Patterson, o ex-ministro inglês da Guerra Hore-Belisha, o lord Chanceler da Inglaterra Jowitt, lord Wright, presidente da Comissão Britânica para os Crimes de Guerra, lord Maugham, irmão do escritor Somerset Maugham, os famosos publicistas Harold Nicolson, Walter Lippman, Joseph Alsop.
Um dia, num jantar dos juizes, foi-me apresentado um homem gordo, muito vivo e expansivo. Era Fiorello La Guardia, governador de Nova Yorque.
Por mais de uma vez me foi dado ver na sala senhoras elegantes munidas de salvo-conduto prolongado: eram as mulheres dos réus ou de homens de Estado de países ocidentais. Uma ocasião, por altura de uma suspensão da audiência, vi-me perto de duas dessas visitantes. Um dos acusadores acabava de produzir as provas da agressão hitleriana contra a Áustria mas não tinha tido tempo de terminar todas as explicações. As senhoras estavam pesarosas. Uma perguntou à outra se ela voltaria no dia seguinte. A resposta foi enternecedora:
— Claro, querida, gostava imenso de saber qual foi o desfecho dessa agressão.
A senhora em questão rondava os cinquenta anos, mas infelizmente não tinha podido saber, no momento devido, como é que a Áustria tinha deixado de existir.
Parece que a mulher de Rudolf Hess também foi a Nuremberga. Morando durante o processo na zona americana, ela gabava a quem quisesse ouvi-la os «grandes méritos» do seu marido e falava em escrever o seu próprio diário.
A mulher de Himmler era digna dele. Aproveitava a mais pequena ocasião para informar os jornalistas estrangeiros que o seu marido era «um grande chefe alemão».
Pelo mesmo diapasão afinava a mulher de Quisling que proclamava que o seu marido tinha «morrido como mártir da liberdade nórdica».
Mas deixemos estas damas. Não eram elas, ao fim de contas, quem incarnava o público da galeria dos convidados e dos corredores do Palácio. O que lá havia em muito maior quantidade eram os «homens de negócios».
E aqui vemos dois em animada conversa. Um, cinquentão, de ar respeitável apesar da medíocre estatura, é o representante de uma editora. O outro, grande e maciço, de toga negra, é Thoma, o advogado de Alfred Rosenberg. O doutor Servatius, advogado de Sauckel, observa-os à distância abanando a cabeça com ar entendido. Mais tarde queixar-se-ia de que todos os advogados da Defesa, já sobrecarregada de trabalho, eram quase todos os dias obrigados a discutir com os editores americanos e ingleses que tinham invadido Nuremberga na esperança de se encherem de dinheiro com a publicação das memórias dos réus. Os resultados dessas negociações não se fizeram esperar: as memórias de Rosenberg e de Ribbentrop, escritas na prisão, saíram na América logo após o fim do processo.
Não é sem razão que os americanos dizem que tempo é dinheiro, em Nuremberga foi-me dado ver que muitos deles não recuam diante de nada para realizarem pequenos lucros. Nem sempre pequenos, aliás.
Quando me dirigia um dia para o bar com o advogado soviético Lev Cheinine, fomos abordados por um coronel americano. Salvo erro trabalhava no serviço de intendência da sua delegação. Apresentando-se a Cheinine, perguntou-lhe se era verdade que dentro de alguns dias ele iria tomar o avião para Moscovo. Cheinine confirmou.
— Mas isso é maravilhoso, general! - exclamou o americano encantado. — Tenho uma proposta a fazer-lhe. Um bom negócio.
— De que se trata? — quis saber Cheinine, já na defensiva.
— É muito simples. Se você trouxer de Moscovo um lote de peles da Sibéria, pode estar certo de que as transaccionarei com lucro. Está a ver onde quero chegar?
Traduzi a Cheinine esta tirada e apercebi-me que este ficava rubro de cólera e surpresa. Há muito que o não via nesse estado.
— Não compreendo, coronel. Você não sabe que eu sou magistrado e não um peleiro.
— Eu também sou jurista — retorquiu o americano. — Mas diga-me, general, acha que os juristas são mais estúpidos que os outros?
— Acabemos com esta conversa imbecil, de acordo? — disse Cheinine irritado. — Admira-me, coronel, que você tenha a coragem de me vir propor semelhante especulação.
— Especulação? — responde o americano estupefacto. — Mas trata-se de um negócio normal. Não estou a ver por que ficou vexado.
Tinha falado com tanto ardor e olhava para Cheinine com um espanto tão cândido que este acabou por desatar a rir.
— Nunca havemos de nos entender, coronel.
O americano afastou-se murmurando desculpas. Mas no dia seguinte voltou a falar-me do incidente tentando dar-lhe um ar de brincadeira.
Outros americanos, de posição menos elevada, especulavam activamente em relógios. Faziam a Genebra viagens sobre viagens e vinham de lá carregados de relógios, como contrabandistas inveterados. Esses não deixavam ninguém em paz: iam ter com as pessoas nos corredores e chamavam-nas de lado para lhes proporem a mercadoria.
Contaram-me um caso muito curioso passado com o escritor soviético Boris Polevoi. Um jovem americano que andava na venda afanosa dos seus relógios, agarrou o escritor no corredor e pôs-se-lhe a fazer o reclame da mercadoria. Polevoi mostrou-lhe o relógio dele e disse que já lhe chegava. Então o americano mergulhou um dos seus relógios dentro de um copo de água por alguns segundos e de seguida encostou-o ao ouvido de Polevoi. Continuava a trabalhar normalmente. Mas Polevoi mantinha-se renitente. Então o americano atirou com toda a força o relógio contra uma coluna de mármore. Depois voltou a metê-lo no copo de água e a encostá-lo ao ouvido do romancista. Subjugado, Polevoi acabou por lhe comprar o relógio que, aliás, não lhe fazia falta nenhuma.
A presença dos SS prisioneiros dava um ar pitoresco aos corredores do Palácio. Metiam-nos a fazer todo o trabalho de faxina: transporte de móveis, arrumações. Chegavam todas as manhãs num camião de carroçaria tapada. Mas um belo dia deixámos de os ver. Foi por essa ocasião que os compridos corredores se encheram de abrigos com soldados americanos armados de metralhadoras e pistolas-metralhadoras. Foram também instalados postos de DCA nos telhados e toda a guarda americana estava em estado de prevenção.
Perguntei ao coronel Andrews que perigo ameaçava o Tribunal Internacional. São os prisioneiros SS, disse ele. Evadidos do campo, teriam pegado em armas e marchavam sobre Nuremberga. Corriam os mais díspares boatos a propósito da finalidade dessa campanha. Uns sustentavam que os SS queriam libertar os chefes nazis; outros garantiam que eles se preparavam para os linchar por eles terem perdido a guerra. Mas em breve se veio a saber que esses rumores eram exagerados. Os abrigos foram levantados. Quanto aos jornalistas burgueses, estavam radiantes por terem uma nova informação sensacionalista a comunicar de Nuremberga.
Outro inolvidável episódio. Urna manhã tinha entrado na sala do tribunal com Cheinine, uns vinte minutos antes do início da audiência. Estávamos de pé a conversar perto do banco dos réus. Trouxeram von Papen e vi que este estacava ao cruzar o seu olhar com o de Cheinine. Este encarava-o com uma expressão divertida. Quando esta escaramuça visual acabou e von Papen foi ocupar o seu lugar, saímos para o corredor e eu não pude deixar de perguntar ao meu companheiro a razão daquele interesse recíproco.
— Não é nada — disse ele trocista. — É que somos velhos conhecidos.
E, contou-me como tinha sido delegado do governo soviético na Turquia em 1942, por motivo do atentado contra von Papen atribuído sem razão a dois cidadãos soviéticos, Pavlov e Kornilov. Cheinine devia encarregar-se da sua defesa. Mas o Ministério dos Negócios Estrangeiros turco resolveu pregar-lhes uma partida para ver qual era o mais esperto. Cheinine e Vinogradov, então embaixador da URSS em Ancara, foram convidados para um festival desportivo e sentados ao lado de von Papen. Foi aí que houve o primeiro «contacto» entre o diplomata e espião nazi e o distinto juiz de instrução e homem de letras soviético. Acabavam de se encontrar de novo em Nuremberga e von Papen tinha com certeza reconhecido Cheinine.
O processo era, todos os dias, rico em impressões. De modo nenhum era por acaso, aliás, que tantos escritores e publicistas afluíam «o Palácio de Justiça. A imprensa soviética estava representada por Konstantin Fedine, Leonid Leonov, Ilia Ehrenburg, Vsevolod Ivaliov, Vsevolod Vichnevski, Boris Polevoi, Lev Cheinine, os caricaturistas Kukriniksi, Boris Efimow, Nikolai Jukov, etc.
Sabe-se desde há muito que nos diferentes países a arrumação interna das prisões — celas, equipamento — e o próprio regime destas têm muitos pontos comuns. Foi o que levou o escritor Ilia Ehrenburg a notar com espírito, pela boca de Julio Jurenito, que o cacete, esteja em que mãos estiver é sempre um cacete; não será nunca um bandolim ou um leque japonês.
A prisão de Nuremberga não é excepção à regra. É uma construção de vários andares repleta de celas de cerca de três metros e meio por quatro metros. Cada uma dessas celas tem, à altura de um homem, uma janela que dá para o pátio. A porta é munida de um postigo constantemente aberto, para vigiar o recluso e passar-lhe a comida. A um canto são as retretes.
O mobiliário consta de uma tarimba, uma poltrona não estofada, uma mesa presa ao soalho. Na mesa podem ter-se lápis, papel, fotografias da família, tabaco e objectos de higiene. Tudo o resto é confiscado.
Quando o recluso se deita na tarimba deve ficar com a cabeça e as mãos visíveis. Quando tenta desobedecer é imediatamente chamado à ordem pelo guarda.
Todos os dias os detidos são barbeados com uma navalha americana por um barbeiro escolhido entre os prisioneiros de guerra. Também este serviço é feito sob vigilância.
A instalação eléctrica está fora da célula para não dar possibilidades de suicídio por electrocussão. Os óculos são entregues só por tempo limitado e obrigatoriamente, recuperadas antes do anoitecer.
Uma ou duas vezes por semana é efectuada uma vistoria. Os detidos ficam a um canto enquanto a polícia militar revista a cela com minúcia. Todas as semanas vão ao banho sendo inspeccionados num quarto especial.
Encontrei-me muitas vezes com o comandante da prisão, o coronel Andrews. Grande, largo de ombros, imponente, com uns óculos que davam à sua expressão grave um ar ainda mais distante, ele velava activamente pelo bem-estar dos réus, para que o seu estado de saúde fizesse com que eles não faltassem a uma única audiência. Transmitia a impressão de um funcionário zeloso, consciente de ter sob a sua responsabilidade, criminosos de um género especial. Um dia disse-me ele mostrando-me o banco dos réus: «VIP». Como eu não compreendesse, ele explicou:
— Very important persons.
Estes «VIP» por muitas vezes fizeram queixa dele. O mais curioso é que mesmo no banco da infâmia muitos deles continuavam a considerar-se homens de Estado! Toda e qualquer restrição os indignava. Schacht, por exemplo, ficava raivoso por não poder frequentar na prisão cavalheiros como von Papen e von Neurath (considerava os outros como forçados das gajés e regozijava-se por não os ver com frequência).
Mas os mais frequentes e ruidosos protestos partiam de Hermann Goering. O coronel Andrews tinha para com ele especial solicitude e o máximo de precauções, o que muito desagradava à natureza «independente» do ex-marechal do Reich.
Numa reunião do secretariado-geral o comandante da prisão deu explicações a propósito da última queixa apresentada pelos reclusos contra ele. Andrews falava de Goering:
— Esse gordo Hermann é um monstro de ingratidão, vocês sabem. Livrei-o da maléfica mania de engolir mãos-cheias de comprimidos narcóticos. Quando mo trouxeram, de modo nenhum ele se queria separar da mala cheia de para codeína. Confisquei-lha. Barafustou mas teve de aceitar. Fiz dele um homem, salvei-o de uma morte certa e ignominiosa ...
Nos princípios da sua reclusão Goering tinha tentado convencer Andrews de que ele era o «réu n° 1» mas de certeza que não era o mais perigoso. Quando verificou que essa táctica não dava resultado, o «gordo Hermann» tentou outra: o processo de Nuremberga era, dissesse-se o que se dissesse, um processo histórico e funcionários como Andrews com certeza que não ficariam contentes de verem o seu nome associado à humilhação de grandes homens de Estado em desgraça. Andrews contou que um dia Goering gritara para ele com uma ênfase fingida:
— Não se esqueça de que aqui você está a tratar com personagens históricas. Qualquer que tenha sido a natureza dos nossos actos, nós somos personagens ao passo que você não é nada!
Ninguém na Alemanha, nem mesmo os familiares de Goering, sequer desconfiava que ele tinha o gosto pela história e literatura. Mais adiante veremos como era preenchido o dia da «segunda personagem do Império». Sem dúvida que ele se preparava desde há muito para o papel de «primeira personagem» e daí a obsessão que sobre ele exercia a carreira de Bonaparte. Ele encontrava tempo para estudar a vida e o triste fim do imperador. Mas Goering não teve nada de Napoleão. Nem sequer uma ilha exótica semelhante àquela em que o grande corso acabou os seus dias lhe foi reservada. Este era mais um dos estúpidos sonhos em que se deixara embalar. Meteram-no numa vulgar prisão de criminosos de direito comum, com um lavatório, sob a vigilância de guardas americanos não muito batidos em história.. Ele não tinha mais do que tentar colmatar pelos seus próprios meios essa lacuna na instrução dos guardas:
— Não esqueça, coronel —, dizia ele sentenciosamente a Andrews — a sorte do carcereiro de Napoleão. Permitiu-se maltratar o seu prisioneiro. Pois bem, saiba que de seguida teve de escrever dois volumes para se justificar.
Andrews ouvia estas tiradas com um perfeito sangue-frio.
Lembro-me de uma outra reunião em que foi analisada, entre outras, uma nova queixa dos reclusos da prisão de Nuremberga.(4)
Desta vez eram os marechais de campo e os generais. Uns quinze ou vinte ao todo, entre os quais Keitel, Jodl, Rundstedt, Guderian, Halder.
O que mais os revoltava era terem de varrer as células. Todas as manhãs um simples prisioneiro de guerra alemão entregava a esses cavalheiros uma vulgar vassoura para que eles dela se servissem pessoalmente.
Reclamando contra esta humilhação, eles citavam abundantemente a Convenção de Genebra de 1929 sobre o regime dos prisioneiros de guerra. Recusavam obstinadamente admitir que não eram prisioneiros mas sim criminosos de guerra e que o regime da sua detenção relevava do código penal.
O coronel Andrews reagiu a esta queixa com o seu laconismo habitual:
— O diabo que cita as Santas Escrituras...
Todos os dias os réus saíam para o recreio da prisão. Tinham o direito de falar durante o passeio. Mas nem todos usavam desse direito. Alguns preferiam isolar-se. A maioria evitava ostensivamente Streicher. A atitude geral a seu respeito foi resumida por Funk com perfeita clareza:
— Já me sinto bastante castigado por ter Streicher como vizinho no banco dos réus.
Os réus podiam levar todos os livros que quisessem da biblioteca da prisão. Ribbentrop lia pouco, de preferência Júlio Verne. Tinha esperanças de vir a ser um dia libertado: nos romances de Júlio Verne havia situações mais extraordinárias que a sua. Sádico e vicioso, Streicher, um dos «teóricos» e práticos do anti-semitismo, era um apaixonado da poesia alemã. Baldur von Schirach, antigo chefe da Juventude Hitleriana, traduzia para alemão versos do poeta inglês Tennyson. Parece que não se saía nada mal e suponho que lamentou sinceramente não se ter dedicado antes a essa tarefa. O ex-chanceler Franz von Papen absorveu-se na leitura de obras piedosas; este velho sabotador e aventureiro político estendia os braços para Deus, do fundo da sua enxovia. O ex-ministro do Interior Frick não lia nada, gostava sobretudo da boa comida. Engordou de tal maneira que já não podia enfiar os casacos. Andrews contou-me depois que cinco minutos depois de ter ouvido a sentença que o condenava à morte, ele comeu com bom apetite.
Se nos desse para confrontar a lista dos nomes mencionados na nota de culpa com os letreiros pendurados nas portas das celas, aperceber-nos-íamos de que faltava o nome de Ley. Como é isso possível?
Quando a derrocada do regime hitleriano se tornou iminente, Robert Ley achou que era ainda muito cedo para desesperar. Havia tantos que se tinham salvado do navio em naufrágio! Também ele o conseguiria, também ele teria, como toda a gente, possibilidade de salvar a pele.
Robert Ley refugia-se nos Alpes Bávaros e ali espera com paciência, com nome falso, que os Aliados se esqueçam de o procurar.
Mas não tem sorte. O comando da 110ª divisão aerotransportada americana foi posto na sua peugada pela população. E a 16 de Maio de 1945 os soldados dessa unidade foram prendê-lo.
Robert Ley detido, a caminho de Nurembrega (clique na foto para maior resolução) |
Eles, aí estão, à porta de uma casinha perdida na montanha. Sentado na cama de madeira está um homem barbudo, num quarto mal iluminado. Está a tremer de medo.
— Vocé é o doutor Ley?
— É engano — replica o barbudo. — Eu sou o doutor Ernst Dostelmaier.
— Okay, acompanhe-nos!
O prisioneiro foi levado para o estado-maior da divisão, em Berchtesgaden. Novo interrogatório, nova negação obstinada: ele não era o doutor Robert Ley. E invocava os seus papéis de identidade em nome de Ernst Dostelmaier. Os argumentos de um oficial do Serviço de Informações americano, que o conhece bem porque durante anos o espiou, não surtem efeito. A resposta é sempre a mesma:
— É engano!
— Está bem — diz o oficial e faz um sinal aos soldados.
Logo a seguir é trazido um velho octogenário, Franz Schwartz, ex-tesoureiro do partido nacional-socialista. Mal viu o prisioneiro gritou:
— Doutor Ley?! Que faz aqui?
Só quando o filho de Schwartz por sua vez o reconheceu é que
Ley desistiu de fazer aquele teatro.
— Vocês ganharam — diz ele, despeitado, ao oficial.
Foi assim que o antigo chefe da «Frente do Trabalho» foi detido e depois preso na prisão de Nuremberga e incluído na lista dos réus. Há que dizê-lo que bem o mereceu. Foi ele quem, por ordem de Hitler, liquidou os sindicatos livres na Alemanha, confiscou os seus recursos e bens, perseguiu sem piedade os seus dirigentes. Sob a sua direcção, a famigerada Arbeitsfront tomou-se um instrumento de feroz exploração dos operários. Nomeado general das tropas SA e chefe da Inspecção Central dos Operários Estrangeiros, Robert Ley foi o mais feroz torcionário de milhões de trabalhadores deportados na Alemanha.
Os que o conheceram de perto afirmavam que só o tinham visto sóbrio na prisão. Aliás o alcoolismo não era coisa rara entre a camarilha hitleriana. Schacht declarou num dos seus depoimentos:
— Devo dizer que só havia uma coisa que a maioria dos chefes do partido tinham em comum com os antigos germanos: o amor pela bebida.
Mas Robert Ley praticava o culto da divina botelha com tanto fervor como perseverança. E como na prisão de Nuremberga não se serviam bebidas espirituosas, ele ficou logo cheio de medo. Foi talvez isso que o pôs de humor filosófico. Aceitou de bom grado a proposta do médico da prisão, doutor Kelley, de formular por escrito as suas ideias sobre o poder e as perspectivas da Alemanha.
Talvez não valesse a pena reproduzir aqui passagens das suas profecias políticas, se o endurecido nazi não tivesse esboçado um quadro bastante fiel das futuras relações entre os EUA e a Alemanha ocidental.
É certo, raciocina Ley, que a União Soviética conseguiu esmagar a Alemanha, mas não se deve esquecer que se trata de uma vitória do marxismo que é perigosa para o Ocidente... E partindo daqui ele recorre aos já batidos meios de intimidação: o perigo do «bolchevismo», da «ofensiva asiática» contra a Europa: «o Ocidente sempre encarou a Alemanha como um dique oposto à torrente bolchevique. Esse dique está hoje destruído e o povo alemão não é capaz de o reconstruir sozinho».
E quem seria capaz disso, segundo o doutor Ley? É, evidentemente, «a América que deve refazer o dique se tiver amor à vida», e o povo alemão tem por dever secundar os americanos. «Ele e a América — proclama Ley — não têm outra solução».
Preconizando uma futura aliança germano-americana, ele compreendia evidentemente que as actividades do nacional-socialismo tinham implicado «certos excessos» que «repugnam» à honesta sociedade. E assim terá ele tentado persuadir os americanos de que, pessoalmente, nunca tinha aprovado esses excessos. Para prolongar a sua existência e tornar-se aliado dos reaccionários americanos, o nacional-socialismo, segundo ele, tinha apenas precisão de um certo condimento democrático.
«A ideia nacional-socialista, depurada do anti-semitismo e com o acrescento de uma democracia razoável — escrevia Ley — seria o mais precioso contributo da Alemanha para a obra comum».
De que obra se trata? Que obra será comum aos reaccionários da Alemanha e dos EUA?! O anticomunismo, claro.
Ley aceitava modificações, aperfeiçoamentos ao sistema nacional-socialista, mas na globalidade achava que a aliança germano-americana devia começar «com Hitler e não contra Hitler»... Punha a reacção americana em guarda contra a depreciação do aparelho partidário nazi e de todos os que tinham governado a Alemanha hitleriana:
«Os mais activos e respeitáveis cidadãos eram os que exerciam as funções de Gauleiter, de Kreisleiter e de Ortsgruppenleiter. Quase todos estão hoje detidos. Ora, eles devem ser utilizados nos nobres fins de uma reconciliação com a América e da transformação da Alemanha em sua aliada».
São estes os pensamentos que perseguiam Robert Ley na sua cela. Ele previu, provavelmente sem disso se dar conta, a política do após-guerra dos Estados Unidos na Alemanha: a Zona Bipartida, a Zona Tripartida, a NATO, a nova carreira de Globke, de Heusinger, de Speidel, de Foertsch e de tantos outros. Mas a sorte não quis que o doutor Ley verificasse por si próprio a concordância absoluta das suas ideias com as ideias e a política das autoridades americanas.
Para terminar com as recomendações de Ley, vou limitar-me a citar o conselho verdadeiramente comovente que ele deu aos americanos. Ao mesmo tempo que salientava a necessidade de libertar os dirigentes nazis e os generais hitlerianos com vista a utilizá-los em condições novas, ele previa que isso iria desencadear em todo o mundo uma tempestade de indignação e especificava com sensatez:
«A acção deve ser efectuada no maior segredo. Suponho que é do interesse da política externa americana não revelar demasiado cedo o seu papel».
Sim, o ex-chefe da Arbeitsfront do Reich previu o desenvolvimento das relações entre os meios dirigentes dos EUA e a Alemanha ocidental. Sem dúvida que ele sobrestimou a sugestão de Kelley de pôr preto no branco as suas ideias sobre o futuro. No mais fundo da sua alma alimentava a esperança de que ainda podiam ter necessidade dele: as novas relações entre a América e a Alemanha seriam mais bem edificadas com o seu concurso. Talvez abafassem o caso... Não o tinham já feito para os chefes alemães depois da Primeira Guerra Mundial? À cautela enviou uma carta particular a Henry Ford, bem conhecido pelas suas tendências pró-fascistas, na qual lhe fala da sua experiência na construção de fábricas de automóveis e lhe pede para lhe dar trabalho depois da sua libertação.
De súbito tudo se esbarronda. A leitura da nota de culpa fulmina-o e destrói as suas doces ilusões fazendo-o regressar à mais dura das realidades. À medida que lhe aprofunda os termos implacáveis, vai perdendo confiança nos seus quiméricos projectos. Compreendeu finalmente que a reacção americana será capaz de concretizar o seu programa sem ele. O programa é bom, mas o autor está de facto comprometido demais. Essa cartada não mais fará parte do jogo político.
A sorte que o espera pela primeira vez lhe surge diante dos olhos com todo o seu horror. Com os nervos completamente em franja, ele palmilha a cela para trás e para diante durante todo o dia. O doutor Gilbert vai vê-lo e diz no seu diário que ele tinha «um olhar demente».
...Era a noite de 25 de Outubro de 1945. O histórico processo de Nuremberga, onde Ley tinha o seu bem merecido lugar, iria começar dentro de vinte e cinco dias.
Nessa noite houve o último diálogo entre o ex-chefe da Arbeitsfront e a sentinela. O americano, um rapaz simples, pergunta-lhe por que é que ele não dorme. Ley aproxima-se do postigo, fita o soldado e titubeia:
— Dormir? Dormir? ... Eles não me deixam dormir... Esses milhões de operários estrangeiros... Meu Deus! Esses milhões de judeus... Massacrados. Exterminados. Massacrados! Todos. Como é que eu posso dormir? Dormir...
Será que de súbito ele foi invadido de piedade por essas vítimas inocentes? De modo nenhum. O carrasco está com medo do castigo. Piedade só a tem de si próprio. O resto não passava do fundo psicológico da desordem de um mesquinho egoísta, cobarde e vil. Ele tinha a clara visão do nó corredio e da imensa multidão em farda de prisioneiro que o arrastaria para a forca. Atraído por um indescritível terror, ele próprio passou a corda à volta do pescoço...
O soldado que fazia a ronda das celas deu uma olhadela para a de Ley e não o viu. Olhou com mais atenção e viu-o agachado na retrete. Enfim, nada de anormal.
Passam os minutos e Ley não se mexe. A sentinela começa a inquietar-se.
— Eh, doutor Ley! — grita o homem pelo postigo.
Nenhuma resposta.
Logo a seguir quatro militares americanos precipitam-se para a cela e depara-se-lhes um triste espectáculo: o chefe da Arbeitsfront do Reich, debruçado para o assento da sanita, está dependurado de uma corda feita com tiras do cobertor rasgado. Foram vãos os esforços para o reanimar. Os médicos certificam o óbito.
Vista interior da prisão. Guardas vigiam dia e noite o comportamento dos réus nas celas (clique na foto para maior resolução) |
Este suicídio alarmou a guarda prisional. Em vez da sentinela por cada quatro celas que havia antes, foi posta uma em cada porta: A vigilância pelo postigo começou a partir daí a ser feita dia e noite. Era tão cansativa que o render dos guardas teve de ser encurtado.
A notícia do fim vergonhoso de Ley não tardou a chegar a os outros réus. Goering foi o primeiro a reagir:
— Deus seja louvado! — disse com dureza. — Esse não ia fazer outra coisa senão desonrar-nos.
E o Reichsmarschall desenvolveu o seu pensamento numa conversa que teve com o doutor Gilbert:
— Mais vale que esteja morto, porque eu tinha dúvidas quanto à maneira como ele se iria comportar no processo. Ley sempre teve um espírito difuso, fazia discursos extravagantes e enfáticos. Tenho a certeza que no processo iria armar espectáculo. Enfim, não estou admirado que ele já não exista, porque apanhava borracheiras de morte.
Foi este o epitáfio de um dos dirigentes do Terceiro Reich, tanto mais precioso quanto proveniente do nazi n°2.
O chefe da Arbeifsfront hitleriana morreu antes do seu julgamento. O «marechal-de-campo da batalha contra a classe operária» como um dos acusadores o tinha alcunhado, respondera com o suicídio à nota de culpa.
Heinrich Himmler também tinha morrido antes de ser julgado, mas o seu nome foi quase todos os dias pronunciado no processo de Nuremberga.
Foram ordens de Himmler ...
— A esse respeito tínhamos directrizes do Reichsfuhrer Heinrich Himmler...
— Só Himmler poderia testemunhar sobre isso ...
Era o que todos os réus diziam quando era questão dos horríveis crimes do nazismo.
Por mais de uma vez juízes e procuradores tiveram de lamentar o erro dos oficiais ingleses do exército de ocupação, que tinham posto o Tribunal Internacional na impossibilidade de interrogar o Reichsfuhrer SS. É sem dúvida supérfluo insistir no serviço que este erro irritou a Hermann Goering que com tanto cinismo exprimiu a sua satisfação pela morte de Ley.
Himmler, é certo, não era um histérico como este último. Mas ninguém podia garantir que ele tivesse a generosidade de se arcar com toda a culpa para ilibar os seus co-réus. Isso não estava no seu carácter nem nos seus hábitos. Era o contrário que muito mais facilmente se poderia imaginar caso a porta da sala de súbito se abrisse dando passagem a Himmler, escoltado por soldados. Infelizmente não podia contar-se com isso!
Nos últimos meses de guerra, Goebels e Fritzsche continuavam a clamar ao microfone que a Alemanha estava cheia de forças e que em breve, por ordem de Hitler, se lançaria para o prato da balança uma arma secreta que faria pender a encarniçada luta para o lado do Vaterland. Em todo o caso, nem eles nem Himmler tinham dúvidas que o Terceiro Reich perdera a partida e que o regime hitleriano estava em vésperas de uma esmagadora derrota.
O grande torcionário do Reich estava cada vez mais inquieto sobre a sua própria sorte. Ele, que sempre fora tido como realista, perdeu de súbito o sentido da realidade ao julgar-se designado para encetar conversações oficiais com os Aliados. Mas não, por cima dele se espargira muito sangue, o nome desse carrasco, desse inquisidor, chefe dos SS, organizador dos campos de extermínio e das câmaras de gás era demasiado conhecido para que mesmo certos meios do Ocidente pudessem considerá-lo «Alta Parte Contratante».
Não obstante, ele teimou na sua cegueira. Nos meses que antecederam a derrota teve ele entrevistas com o conde sueco Bernadotte que no seu entender era o mediador indicado para estabelecer contacto com as potências ocidentais. A sorte dos prisioneiros de guerra dinamarqueses e noruegueses serviu-lhe de pretexto.
«Quando Himmler apareceu à minha frente com os seus óculos de tartaruga, de uniforme SS verde, sem condecorações — escreve Bernadotte nas suas memórias — deu-me de imediato a impressão de um funcionário subalterno. Se o tivesse encontrado na rua nem reparava nele...»
E no entanto tratava-se do homem a quem a Europa votava um ódio de morte.
Desde há muito que Himmler se não preocupava com os prisioneiros de guerra e muito menos com prisioneiros dinamarqueses e noruegueses. Teriam eles ao menos sobrevivido? O que o preocupava era a sua sorte. Se bem que o império alemão estivesse condenado, ele ainda se sentia poderoso e queria entrar em conversações com Eisenhower por intermédio de Bernadotte e propor-lhe a capitulação das tropas alemãs a Ocidente, para poder continuar a resistir no Leste.
O principal executor do plano de exterminação de povos inteiros estrebucha em busca da sua salvação. Tenta negociar com toda a espécie de organizações e pessoas, e nos últimos dias da guerra inclina-se humildemente diante de Hilel Storch, delegado de Estocolmo ao Congresso Mundial Judeu. Em consequência disto o delegado Norbert Masur vai de avião da Suécia a Berlim para obter a libertação dos últimos judeus que ainda estão vivos nos campos de concentração.
A entrevista entre Himmler e Masur efectuou-se a 21 de Abril de 1945 no gabinete do chefe da Gestapo. Himmler esforça-se por demonstrar que os crimes contra os judeus foram cometidos contra sua vontade. No que lhe diz respeito, ele sempre esteve pronto a ajudá-los, e mesmo agora ele estaria de acordo com as mais arriscadas combinações para salvar esses infelizes. Aqui ele passa a Masur ordem por ele assinada para libertar mil mulheres judias do campo de Rawensbruck. Mas pede que a imprensa não o divulgue. Os documentos oficiais falarão de mulheres polacas.
E por fim mostra a Masur a sua última instrução:
«A ordem do Fuhrer de suprimir todos os campos de concentração, juntamente com os internados e a guarda, é abolida pela presente. À aproximação do exército inimigo será içada a bandeira branca. Os campos de concentração não serão evacuados. Doravante é proibido matar judeus».
Seis milhões de judeus já tinham sido massacrados. Restavam muito poucos nos campos. Foi nessa altura que o abominável assassino decidiu metamorfosear-se em anjo-da-guarda.
Himmler sabe que se Hitler for informado das suas negociações, o «Fuhrer adorado», mesmo a pontos de se suicidar, não deixará de antes ajustar contas com ele. Por isso procura esconder o jogo. Prepara uma conjura com a cumplicidade do seu auxiliar, o SS, Schellenberg.
Himmler confia a este último que Hitler está cada vez mais em baixo, que as costas se lhe curvam, que a sua apatia está em progressão, que o tremor das mãos se lhe acentua. A entrevista passa-se na floresta (para que ninguém os surpreenda!).
Discutem os meios de afastar Hitler do poder. Himmler é a favor da prisão, Schellenberg propõe ao seu chefe que vá ter com Hitler para lhe explicar que a Alemanha está numa situação desesperada e o aconselhar a pedir a demissão.
— Isso está fora de questão — responde Himmler. — O Fuhrer, acometido de um ataque de raiva, manda-me matar.
— Pode-se tomar precauções — replica tranquilamente Schellenberg. — Você tem oficiais superiores SS à sua disposição que o prenderiam se fosse necessário. Enfim, se ele não se deixar convencer, falamos com os médicos...
Pela mesma altura já eles encaram o modo como Himmler procederá quando tiver sucedido a Hitler.
— Dissolver imediatamente o partido nacional-socialista e fundar outro — sugere Schellenberg.
— E que nome daria a esse novo partido? — pergunta Himmler.
— Partido de unidade nacional — responde o SS inveterado.
Mas as Forças Armadas soviéticas baralharam as cartas de Himmler. Cada golpe por elas assestado, cada quilómetro do seu avanço em direcção às portas de Berlim torna os seus projectos cada vez mais ilusórios.
Não obstante volta a encontrar-se com Bernadotte ao qual pede uma vez mais para lhe conseguir uma entrevista com Eisenhower. Himmler está de tal modo certo dessa possibilidade que chega a consultar paralelamente Schellenberg sobre a atitude a tomar perante o comandante das Forças Armadas americanas.
— Devo apenas fazer-lhe a saudação militar ou estender-lhe a mão?
Schellenberg, mais lúcido, pergunta por sua vez:
— E que fará você se a sua proposta for rejeitada?
— Tomarei o comando de um batalhão da frente Leste e far-me-ei matar em combate — declara solenemente Himmler.
Estava a mentir, sem dúvida alguma. De modo nenhum isso estava nas suas intenções.
Himmler sabia atirar areia para os olhos, usar de manha, dissimular. Porém, apesar das suas precauções, as conversações que mantinha com Bernadotte chegaram aos ouvidos de Hitler. Se nessa altura Himmler se tivesse apresentado na Chancelaria do Reich deixava lá a pele. O Reichsfuhrer preferiu manter-se longe do covil de Hitler. Circulava entre Lubeck e Flensbourg, sempe à espera de se tornar chefe de Estado, se bem que Hitler o tivesse já qualificado de traidor no seu «testamento».
A 30 de Abril Doenitz recebeu um telegrama cifrado cujo conteúdo era o seguinte:
«Descoberta nova conspiração. Segundo a rádio inimiga, Himmler faz diligências por intermédio da Suécia cora vistas à capitulação. O Fuhrer espera que ajais sem demora e com inflexível firmeza contra os conspiradores. Bormann».
Doenitz ficou algo embaraçado. Que significava «agir sem demora e com inflexível firmeza» contra Himmler que continuava a comandar a polícia e as SS? O almirante pediu educadamente uma entrevista a Himmler. Efectuou-se num quartel da polícia de Lubeck na presença de oficiais superiores SS.
Conta Doenitz que o Reichsfuhrer não o recebeu de imediato. Devia sentir-se já na pele de chefe de Estado.
O almirante perguntou-lhe se era verdade que Himmler tinha tentado estabelecer contactos com os Aliados por intermédio de conde Bernadotte. A resposta foi negativa e os interlocutores separaram-se amigavelmente.
Mas no fim desse mesmo dia, 30 de Abril de 1945, Doenitz recebe uma outra mensagem rádio:
«Grande-almirante Doenitz, o Fuhrer designa-o como seu sucessor em lugar do ex-marechal do Império Goering. Os documentos vão a caminho ao seu encontro. Queira tomar imediatamente todas as medidas que a situação impõe. Bormann».
Desta vez foi Doenitz quem convocou Himmler. Ignorando o modo como este reagiria à decisão de Hitler, o almirante tomou as suas precauções. A guarda do seu estado-maior foi reforçada e provida de canhões pesados. Um cordão de guardas rodeava a sua residência.
O encontro realizou-se numa atmosfera de desconfiança e suspeita. Falaram sem testemunhas, mas eis o que relata Doenitz nas suas memórias:
«Encontramo-nos a sós no meu gabinete. À cautela pus a minha browning em cima da mesa para a ter ao alcance da mão, escondida debaixo de papéis. Entreguei o telegrama a Himmler para que o lesse. Empalideceu e embrenhou-se nas suas reflexões».
O chefe dos torcionários do Reich deu-se finalmente conta da sua situação quase desesperada. Mas não perde tempo a torturar-se. Levanta-se, felicita Doenitz e diz-lhe:
— Permita-me que seja chefe de Estado em segunda posição.
O novo Fuhrer recusa categoricamente.
«Falámos cerca de uma hora — escreve ele nos seus memoriais.
Expliquei-lhe as razões por que queria formar um governo tanto quanto possível apolítico».
Claro, Doenitz, que alimentava ainda algumas esperanças, não tinha nada a fazer com este sangrento aliado. A Gestapo não era precisamente a organização na qual alguém se pudesse filiar nos últimos dias do Terceiro Reich.
Heinrich Himmler só já quer uma coisa: fazer-se esquecer. Mas é afanosamente procurado pelos serviços de contra- espionagem dos Aliados. A região em que se esconde com dois dos seus acólitos está cercada.
O Reichsfuhrer SS cortou o bigode, pôs uma pala preta no olho esquerdo, traz com ele um cartão da Polícia Militar secreta, em nome de Heinrich Hitzinger. O espírito policial de Himmler busca a salvação numa reles mascarada.
Viviam-se os agitados tempos em que multidões heteróclitas calcorreavam as estradas da Alemanha: refugiados alemães, operários estrangeiros libertados, prisioneiros de guerra. Misturados na vaga humana, Himmler e os dois companheiros atingiram os arredores de Bremerwerde. Deram de caras com uma patrulha. Por ironia da sorte, tratava-se de prisioneiros russos que se tinham oferecido como voluntários para ajudar no serviço de ordem do exército britânico.
O ex-Reichsfuhrer SS apresentou o seu cartão de identidade: um documento novinho em folha, impecável, de tal maneira que mais ninguém na chusma de pessoas tinha outro que se lhe comparasse. E esta excessiva previdência foi-lhe fatal. A patrulha olhou para o papel com ar de suspeita e deteve à cautela o senhor de pala no olho.
Foi entregue às autoridades inglesas. Estas enviam-no de um campo para outro. De momento é apenas um suspeito. Mas ao cabo de alguns dias o serviço de contra-espionagem britânico começa a desconfiar da verdade. O próprio Heinrich Himmler se dá conta que já não pode aguentar por muito mais tempo o papel de Hitzinger.
Decide jogar o último trunfo e pede para ser recebido por Tom Selvester, comandante do campo.
Ei-los frente a frente. Hitzinger tira lentamente a pala negra, põe os óculos e apresenta-se com voz clara, apenas um pouco velada:
— Heinrich Himmler.
O capitão Selvester, um tanto atónito, recompõe-se de imediato:
— Muito bem. Que quer você?
Himmler está satisfeito com o efeito produzido. Volta a ganhar esperanças.
— Gostaria de falar com o marechal de campo Montgomery — responde ele.
O comandante prometeu fazer o seu relatório a quem de direito. Mas o Reichsfuhrer SS não tarda a convencer-se que ninguém pensa em «negociar» com ele e que a única pessoa que está à espera dele é o juiz de instrução.
Himmler é devidamente revistado, despido. Numa algibeira do casaco descobrem-lhe uma pílula de cianeto de potássio. Os oficiais do serviço de informações ficam descansados. Acham suficientes as precauções tomadas para evitar um suicídio do criminoso desmascarado. Himmler é encerrado numa cela.
Pela noite o coronel Murphy, do estado-maior de Montgomery, chega ao campo. Quer interrogar Himmler, mas primeira pergunta se lhe encontraram veneno.
— Sim, tinha uma pílula no bolso. Foi confiscada.
Murphy pergunta se viram bem a boca do prisioneiro. Não, ninguém se lembrou disso. O coronel dá ordem para colmatar esse erro.
— Acho que a pílula no bolso era só para desviar as atenções - diz ele.
Trouxeram Himmler para de novo ser revistado. Mandaram-lhe abrir a boca. Os olhos do Reichsfuhrer SS franziram-se. Cerrou com força as mandíbulas. Soou um estalido e Himmler caiu redondo no chão.
Uma outra pílula estava habilmente colocada por trás dos dentes...
Assim acabou Heinrich Himmler. Enterraram-no no bosque, perto de Lunebourg. Um anónimo soldado inglês disse com satisfação lançando-lhe a última pazada de terra:
— O verme regressa à terra.
Esse veterano inglês chamuscado pelo fogo dos combates estava longe de supor que alguns anos depois as pessoas voltariam a recordar o «Heinrich de ferro» na Alemanha ocidental e que haveria tentativas de o reabilitar.
No processo de Nuremberga um manda-chuva SS, o Obergruppenfuhrer Bach-Zelewski, revelou que em 1941, na conferência de Weselsbourg, Himmler os tinha encarregado de suprimir trinta milhões de homens na Rússia. Tratava-se evidentemente de população civil, porque Himmler falava não de operações militares mas da redução do potencial biológico dos povos eslavos.
Goering confirmou isto no seu depoimento.
Um acusador soviético perguntou a Bach-Zelewski:
— Pode com exactidão e sinceramente confirmar que as medidas tomadas pelo comando da Wehrmacht tinham por objectivo reduzir o número de eslavos e de judeus em trinta milhões?
Bach-Zelewski respondeu afirmativamente:
— Sou de opinião que esses métodos teriam certamente conduzido ao extermínio de trinta milhões de indivíduos se fossem prosseguidos e a situação não se tivesse completamente modificado pelo facto do desenvolvimento ulterior dos acontecimentos.
Vejamos agora o que a propósito de Himmler escreveu Hans Fritzsche, no seu livro A Espada na Balança editado na Alemanha ocidental. Himmler parece que nunca pensou em massacrar trinta milhões de cidadãos soviéticos. Fritzsche traça o seguinte quadro:
«Uma noite, em princípios de 1941, Himmler que estava em conferência com Bach-Zelewski, Heidrich, Wolf e outros em Weselsbourg, falou da possibilidade de uma guerra contra a Rússia. Falando nas prováveis perdas da Rússia nos campos de batalha assim como nas motivadas pela fome, pelas doenças e epidemias, Himmler calculou-as em trinta milhões de homens».
Tudo se inverte. Himmler não teria dado directrizes quanto à redução do potencial biológico dos povos eslavos. Ter-se-ia limitado a calcular as perdas da Rússia em caso de guerra com a Alemanha.
Assim se falsificam os factos tarde e a más horas.
Infelizmente Hans Fritzsche não é o único. Ainda na Alemanha ocidental, Felix Kersten, ex-médico particular do Reichsfuhrer, publicou um livro não menos mentiroso com o título de Heinrich Himmler sem Uniforme. Confia ele aos leitores que Himmler era, em suma, um homem liberal. A sua honestidade, a sua modéstia e bondade excepcionais ter-lhe-iam granjeado o afecto dos soldados que ele ajudava, parece, a expensas dos seus modestos emolumentos. Kersten garante-nos com a maior seriedade que no dia em que ele trouxe a Himmler um relógio da Suécia que custava 160 marcos, o poderoso ministro do Terceiro Reich não pode pagá-lo logo.
«Só me deu 50 marcos, porque se estava no fim do mês e ele pediu-me para esperar até ao dia do pagamento».
Estas são as fábulas que nos conta Kersten. E agora a verdade.
Após a morte de Himmler foi descoberto perto de Berchtesgaden um depósito que lhe pertencera: 25 935 libras esterlinas, oito milhões de francos franceses, três milhões de francos marroquinos, um milhão de marcos do Reich, um milhão de libras egípcias, dois milhões de pesos argentinos, quinhentos mil ienes japoneses e outras divisas...
A Última Sede do Governo do Reich. Na primeira fila (da esquerda para a direita): Goering, Hess, Ribbentrop, Keitel, Kaltenbrunner, Rosenberg, Frank, Frick, Streicher, Funk, Schacht. Na segunda fila: Doenitz, Raeder, Schirach, Sauckel, Jodl, Papen, Seyss-Inquart, Speer, Neurath, Fritzsche. (clique na foto para maior resolução) |
Na sala de audiências, o ex-governo alemão está alinhado em dois bancos. O princípio da sua distribuição corresponde, no conjunto, à posição que os réus ocupavam na hierarquia nazi.
No primeiro lugar da fila da frente está Hermann Wilhelm Goering. Se o encontrasse à civil nos corredores do Palácio da Justiça com certeza que não o reconhecia. É que ele era mais conhecido pelas caricaturas dos jornais do que pelos retratos. Os caricaturistas representavam-no como um sátrapa barrigudo, a cara entumecida de gordura. Ao passo que aqui, no banco dos réus, vi um homem de constituição normal. Só a largura exagerada da blusa deixava supor a que ponto ele emagrecera.
Em vão descortinaríamos no seu rosto ou nos seus ares aquilo que o criminalista italiano Lombroso designava por «traços do criminoso nato». Numa palavra, nenhum dos réus se parecia fisicamente com um feroz SS. Pelo contrário, alguns, como o chefe da Hitlerjugend, Baldur von Schirach, podiam perfeitamente passar por respeitáveis cavalheiros.
Também não havia, pois, nada de bestial no aspecto de Goering. Arcaboiço largo, rosto enérgico, olhos cinzentos, nariz direito, lábios finos. Só os papos por baixo dos olhos traíam nele uma certa morbidez. O coronel Andrews tinha-o privado de narcóticos; era talvez por isso que ele tinha emagrecido tanto e se apresentava com melhor aspecto. Uma cela de prisão tinha feito o que os médicos nunca antes tinham conseguido.
Toda a gente na Alemanha devia saber da sua mania de mudar de maneira de vestir todos os dias, ou quase. Ele próprio inventava os modelos e o corte dos seus uniformes. No processo aparecia sempre de botas e calções de general com debrum. Antes de se sentar embrulhava-se num cobertor militar. Se calhar sentia-se pouco à vontade ali, sentado num banal banco de madeira.
Enquanto os outros réus mantinham quase sempre a mesma atitude, Goering mudava constantemente de postura, mostrava-se expansivo, estava sempre a virar-se para os parceiros e a falar-lhes ao ouvido. Mas tanto ele como os outros assumiram no início do processo um ar digno, como se estivessem num Parteitag. Até parecia que consideravam os polícias americanos que os guardavam uma espécie de guarda pretoriana.
No Estado hitleriano Goering intitulava-se o «homem n°2», dando a prioridade a Hitler. Aqui designam-no por «réu n° 1». Por isso ele tenta comportar-se à altura: fala com benevolência com os membros do governo do Reich que o destino relegou para este banco de infâmia, toma ares susceptíveis de chamarem a atenção dos repórteres fotográficos estrangeiros. Parece tão senhor de si que nada do que se passa no tribunal dá a sensação de poder impressioná-lo. Enganadora aparência: ele sabe perfeitamente que chegará o momento em que cada um terá de responder pelos seus actos e prestar declarações. E sabe-se lá como vão comportar-se os outros réus: não tentarão atirar tudo para cima das suas costas, salvar-se à custa do seu nome, da sua vida?
No início do processo, magoado pelos pouco lisonjeiros epítetos com que o Ministério Público o brindava, Goering investia, de mão levantada, pedindo a palavra. As persuasivas e calmas explicações do presidente acalmaram-no um pouco. Ninguém intentava, evidentemente, privá-lo do uso da palavra. Mas deram-lhe a entender que no processo de Nuremberga ele já não era marechal do Reich e devia adequar as atitudes que assumia à sua qualidade de réu. Pode imaginar-se como isso devia ser duro para a «segunda personagem do império» que, ainda muito recentemente, dava as suas «ordens supremas» aos grandes magistrados da Alemanha.
Dantes, peito e barriga de Goering eram constelados de condecorações lembrando a montra de uma joalharia. Agora veste dólman sem dragonas, sem condecorações nem perspectivas radiosas. Mas quando vê assestadas para ele as objectivas das máquinas fotográficas e de filmar, Goering ensaca a sua expressiva mímica: levanta a cabeça, assume um ar frio e altivo, faz gestos imperativos na direcção da guarda.
Ao lado de Goering encontra-se Hess, a quem ele dirige a palavra com mais frequência que aos outros. Essas conversas mais consistem, no entanto, em monólogos: Goering fala gesticulando, enquanto Hess divaga em redor a turva mirada dos seus olhos encovados.
Hess veste fato cinzento. O seu negro e ralo cabelo está penteado para trás. Maçãs-do-rosto salientes, grandes orelhas de abano. Por sob espessas sobrancelhas, duas profundas cavidades onde se dissimulam uns olhinhos pequenos e fugidios. Lembram às vezes olhos de cego. O físico deste fervoroso adepto da «raça eleita» parece tudo menos o de um «ariano». Por instantes faz caretas como se estivesse sob o efeito de uma dor terrível. Corriam rumores de que ele tinha um cancro no estômago.
Hess era adjunto de Hitler na direcção do partido nacional-socialista. Até ao ano de 1941 foi um dos ministros com mais poder. Dele emanavam as principais directrizes para as organizações do partido nazi.
Diferentemente da maioria dos réus, Hess nasceu no estrangeiro, na cidade egípcia de Alexandria. Foi educado por um preceptor até à idade de quinze anos, indo depois para a Alemanha terminar os estudos. A Primeira Guerra Mundial proporcionou-lhe encontrar Hitler: ambos faziam o serviço militar no mesmo regimento. No fim da guerra era aviador e destacou-se, juntamente com Goering, nos bombardeamentos de pacíficas cidades.
Depois da derrota da Alemanha Hess adere ao partido nacional-socialista e desempenha importante papel no golpe fascista de Novembro de 1923. Hitler encarrega-o de sequestrar vários dirigentes da Baviera. Como o golpe fracassou, Hess fugiu para a Áustria donde logo regressou à Alemanha. Foi detido, ficando em reclusão na prisão do forte de Landsberg, onde estava Hitler.
Aí Hess tornou-se praticamente secretário de Hitler: uma boa parte da bíblia nacional-socialista, Mein Kampf, ditou-lha Hitler nesta prisão. O pai de Hess ensinara-lhe estenografia na esperança de fazer dele comerciante. Nunca entrou para o comércio, mas a estenografia foi-lhe útil. Aliás, Hess não se limitava a estenografar Mein Kampf. Participava activamente na criação desta bíblia de canibais. Apaixonado pelas teorias agressivas da geopolítica(5) ensinada pelo seu mestre Haushofer, gradualmente as foi insinuando no livro de Hitler.
No processo de Nuremberga claro que toda a gente estava interessada na aterragem de Hess em Inglaterra, mesmo antes da agressão da Alemanha contra a União Soviética. Logo no dia seguinte, como se sabe, a Chancelaria do Reich informava que Hess tinha levado a cabo esse «absurdo acto» em estado de aberração mental. Seria verdade?
Nos escritos históricos do após-guerra dos países ocidentais e sobretudo da Alemanha ocidental, vamos com frequência encontrar a afirmação de que Hess desde há muito andava magoado por ter sido não designado por Hitler como seu sucessor. Os historiadores sustentam ao mesmo tempo que Hess teria ficado chocado com o projecto de Hitler atacar a URSS a partir de 1941. Nisso via ele uma violação da lei fundamental do seu ídolo Haushofer: nunca combater em duas frentes. Por isso teria decidido fazer uma coisa que garantiria a sua definitiva vitória sobre Goering. A assinatura da paz entre a Alemanha e a Inglaterra era, a seus olhos, a proeza política que lhe voltaria a proporcionar toda a estima de Hitler. Por isso tomou o avião para Inglaterra.
Não nos vamos alongar em pormenores sobre as suas negociações com os ingleses (figuram no meu livro De Munique a Nuremberga). Apenas direi que os documentos apresentados no processo arrasam de alto-a-baixo as complicadas elucubrações dos historiadores burgueses. É incontestável que as propostas feitas por Hess aos reaccionários ingleses estavam inteiramente em consonância com os pontos de vista de todo o governo de Hitler durante o período que antecedeu a agressão à URSS: conseguir a neutralidade da Inglaterra para proteger as suas retaguardas a ocidente. Em suma, Hess com nada de original contribuía. E as suas propostas, humilhantes para a Grã-Bretanha — reconhecer de antemão a supremacia da Alemanha na Europa em troca da promessa do domínio britânico apenas no seu império — é óbvio que não poderiam ter qualquer êxito. Já tinha passado o momento de levar os ingleses a consentirem numa aliança com Hitler.
A versão dos próprios hitlerianos respeitantes à aberração mental de Hess também não se aguenta de pé. A princípio a Defesa agarrou-se a isso. Foi pedida a peritagem psiquiátrica. O Tribunal Militar Internacional deu seguimento a esse pedido. Uma Comissão Especial, composta pelos melhores psiquiatras do mundo, examinou Hess.
A Comissão concluiu, após minucioso exame, que
«no momento que passa Hess não está demente no sentido estrito do termo. A sua amnésia não o impede de dar perfeitamente conta do que se passa sua volta mas entrava-lhe, em certa medida, a aptidão de assumir a sua defesa e recordar os pormenores do passado que poderiam emergir como dados de facto».
Para que a situação ficasse totalmente clara, os peritos recomendam um exame suplementar. Hess recusa categoricamente e não aceita qualquer tratamento que possa fazer-lhe recuperar a memória.
Segundo o relatório do psiquiatra inglês Rees, que observou Hess desde o início da sua estadia em Inglaterra, o acidente de avião não lhe teria causado qualquer lesão cerebral. Mas na prisão contraiu a mania da perseguição: tinha medo que os ingleses o assassinassem ou envenenassem «por instigação dos judeus», para depois fazerem crer num suicídio. Entretanto tentou matar-se por duas vezes, mas essas tentativas, na opinião dos médicos, tinham um carácter exibicionista histérico.
Citemos a propósito algumas passagens de um relatório dos psiquiatras:
«Psicologicamente, Hess é completamente consciente. Sabe que está na prisão de Nuremberga na condição de criminoso de guerra segundo a nota de culpa; leu e, para retomar as suas próprias palavras, está familiarizado com as acusações contra ele levantadas. Responde com rapidez e sem se afastar do assunto às perguntas que lhe são feitas. Fala de maneira coerente, os seus pensamentos são claros e precisos e acompanhados de gestos expressivos... A inteligência de Hess é normal e nalguns casos acima da média... A sua perda de memória não resulta de uma doença mental mas representa uma amnésia histérica na base da qual está uma tendência ao mesmo tempo subconsciente, e consciente para a legítima defesa. Tal comportamento cessa com frequência quando a pessoa histérica é posta face a uma situação que a obrigue a proceder correctamente. A amnésia de Hess poderá, pois, deixar de se manifestar quando ele for obrigado a comparecer perante o tribunal».
Os peritos estão de acordo em que Hess «dá mostras de um comportamento histérico com indícios de um carácter intencionalmente dissimulado». Mas o que dissipou todas as dúvidas quanto ao estado psíquico do inculpado foi ...o próprio Hess.
Quando foram ouvidas em tribunal as conclusões dos médicos, ele levantou-se com lentidão do banco dos réus, olhou para o tecto, passou a língua pelos lábios, esperou que os soldados americanos pusessem diante dele o microfone e declarou subitamente:
— Doravante disponho da minha memória nas minhas relações com o mundo exterior. Foi por razões tácticas que simulei a perda de memória. Só a minha capacidade de concentração está, para falar com franqueza, algo reduzida. Contudo, a minha capacidade de seguir o processo, de me defender, de fazer perguntas de modo nenhum está afectada.
Um silêncio total se abateu na sala. Mas mal Hess se voltou a sentar a porta abriu-se e um corrupio de jornalistas precipitou-se para as cabinas telefónicas. Lord Lawrence suspendeu a audiência. No dia seguinte o presidente começou por anunciar:
«O Tribunal examinou com atenção o pedido do advogado de Hess... O Tribunal estudou também os relatórios médicos muito completos estabelecidos após exame ao réu, e daí concluiu que não há qualquer razão para que ele seja de novo submetido a exame.
«Depois da declaração que o réu Hess fez ontem perante o Tribunal e após a análise das provas, o Tribunal considera que o réu está actualmente em condições de comparecer perante ele. Por consequência, o requerimento do seu advogado é indeferido e os debates continuam».
Assim terminou a tentativa de subtrair a julgamento, um dos primeiros auxiliares de Hitler.
Hess teve sorte: os quatro anos que passou na Inglaterra salvaram-lhe a vida.
Sem dúvida que o Tribunal teve em conta o facto de que, estando no estrangeiro, não tinha podido chafurdar nos atrozes crimes cometidos durante esse período. Mas o juiz soviético teve com certeza razão em declarar que o réu teria merecido três vezes a morte pelas perversidades perpetradas antes da sua partida para a Inglaterra.
À sua esquerda sentava-se Joachim von Ribbentrop... Foi ele quem veio a Moscovo em Agosto de 1939 assinar o pacto de não-agressão perfidamente violado um ano e nove meses mais tarde. Lembro-me dos seus retratos de então: tinha um aspecto soberbo. E agora? Pois bem, mudou muito. Sem ter precisamente emagrecido, tinha um ar desleixado, abandalhado. Enquanto Keitel põe sempre um dólman cuidadosamente passado a ferro e botas reluzentes, Ribbentrop cai no desleixo.
Quando um dos jornalistas comentava o seu aspecto amarrotado, o eminente caricaturista soviético Boris Efimov respondeu a meia voz, olhando de relance para o ex-ministro:
— Ora, quando o pendurarem na cruzeta já fica desamarrotado!
Ribbentrop afecta ares de mártir incompreendido. Mas toda a gente vislumbra nele um indivíduo enlouquecido de terror, prestes às piores humilhações para salvar a pele.
Wilhelm Keitel, sentado ao lado dele, tem melhor aspecto, se Item que o seu rosto tenha já deixado de respirar optimismo. Nariz direito, queixo bem desenhado, olho azul, bigode curto. Os músculos faciais estão crispados. Uniforme de colarinho de veludo, sem dragonas. Keitel aparece sempre no banco dos réus carregado com uma pesada caixa de papelão a abarrotar de papéis que ele vai estudando no decorrer das audiências. De vez em quando chama o seu advogado, Dr. Nelte, para o consultar.
A última vez que ele se tinha apresentado em traje de grande gala, com o bastão de marechal-de-campo e monóculo, fora a 8 de Maio de 1945. Foi essa a data em que ele assinou a acta de rendição da Alemanha, e logo a seguir, uma voz imperiosa:
— A delegação alemã pode retirar-se.
E Keitel retirou-se... para Nuremberga.
E eis Ernst Kaltenbrunner, o adjunto de Himmler. Era dos seus gabinetes que emanavam as directrizes respeitantes ao extermínio de milhões de pessoas internadas nos campos de morte. Fisionomia cavalar sulcada de cutiladas, marcas de duelos estudantis, pupilas negras e glaciais, nariz comprido e aquilino, boca sempre entreaberta. Fitou na assistência um olhar de ódio.
E dizer que este homem estudou Direito, que é um antigo advogado de Viena, membro de uma corporação que exige respeito pelas leis e a sua rigorosa aplicação!
Quando o processo se iniciou ele não estava presente por motivo de doença. Os médicos andavam numa fona à volta dele. É talvez o mais «difícil» dos réus. Confrontado com centenas de documentos irrefutáveis, em que constava a sua própria assinatura, e por dezenas de testemunhos, ele põe em acção toda a sua experiência da chicana para embrulhar as coisas, usa de subterfúgios como um animal acossado...
Alfred Rosenberg, seu vizinho no banco, tem um físico absolutamente banal. Não tem nada do «nórdico», do «super-homem» de que se fala nos seus tratados de «filosofia». Originário de um país báltico, passou a sua juventude na Rússia, estudou em Petersburgo e depois em Moscovo. O seu conhecimento do russo serviu para que se lançasse em toda a espécie de provocações. O fim da guerra surpreendeu-o em Flensburgo onde se tinha instalado o governo do Terceiro Reich. Tendo-se embebedado para afogar o desgosto, fez uma entorse e foi parar ao hospital. Foi de lá que o transferiram para Nuremberga. O principal «filósofo» hitleriano, ministro do Reich para os territórios ocupados do Leste, compareceu perante a justiça.
Hans Frank, «superjurista» do partido nazi. Foi defensor de Adolf Hitler no processo de Munique após o fracasso do golpe de 1923. Depois, grande jurisconsulto do partido nazi quando da sua luta pelo poder e desde que o tomou. Durante a guerra foi governador-geral da Polónia ocupada. O advogado bávaro de Hitler apressou-se a virar seu acusador em Nuremberga. Foi sem dúvida o primeiro dos réus a difamar com zelo o Fuhrer, o nazismo e os seus próprios colegas. Era ele quem soluçava ao ouvir os depoimentos das testemunhas e ao ver os filmes sobre as atrocidades fascistas que a Acusação passava no écran. Era hipocrisia, desesperada tentativa de salvar a pele por meio de um arrependimento fingido, ou era uma sincera reviravolta psicológica? Voltaremos ao assunto.
Tem como vizinho de banco Wilhelm Frick, um dos decanos do nazismo, líder da sua bancada no Reichstag antes da tomada do poder, depois ministro do Interior e, por fim, Reichsprotektor da Boémia — Morávia. Passa já dos sessenta anos. Era o seu ministério que elaborava as odiosas leis raciais que serviram de «base jurídica» à perseguição e extermínio de povos inteiros. O seu primeiro lugar-tenente era Globke de quem ele, nas suas declarações, tantas vezes gabou os «talentos». Sabe-se que foram esses certificados que permitiram a Globke aceder ao elevado cargo de Secretário de Estado do governo Adenauer.
Mais adiante está Julius Streicher, o grande «teórico» do anti-semitismo, talvez o mais ignóbil de todos esses facínoras. Não se saiu mal na corrupção de toda uma geração de alemães. O veneno que inoculou mostrou ser tão tenaz e virulento que ainda hoje por vezes se faz sentir nos incidentes racistas na Alemanha ocidental.
Walter Funk, seu vizinho, sente-se ofendido por ter sido colocado «ao lado desse degenerado, desse energúmeno anti-semita». Pequeno e gordo, careca, com olhos de cobra sonolenta, o ex-ministro da Economia do Reich e presidente do Banco do Reich o que não queria era que o conotassem com Streicher. E este sorria sardónico quando o Ministério Público recordava a esse puritano do Funk que ele aumentava as reservas de ouro do Reichsbank acrescentando-lhe os anéis, dentes de ouro e outros valores tirados às vítimas de Auschwitz e de Maidanek.
E aqui está Hjalmar Schacht, sem o qual nem Hitler nem Goering, nem Hess, nem Rosenberg, nem Funk nem Streicher teriam subido à cena política. Foi ele, esse representante do capital monopolista alemão, quem, ao financiar generosamente o partido hitleriano e os armamentos, ajudou Hitler a sentar-se na cadeira de chanceler do Reich e a desencadear a Segunda Guerra Mundial.
A segunda fila não é menos digna de interesse. Os grandes almirantes Doenitz e Raeder lá estão sentados, esses piratas, violadores das leis e costumes da guerra marítima, que lançaram a Marinha alemã aos pés de Hitler. Tentaram salvar o barco nazi. O barco foi ao fundo e Doentiz e Raeder foram parar ao banco dos réus.
Doenitz foi, sem dúvida, uma personalidade mais marcante que Raeder. Passou a vida no Mar do Norte. Alistado na Marinha de Guerra alemã desde 1910, foi prisioneiro dos ingleses na Primeira Guerra Mundial. No campo simulou estar louco: vagueava de cabeça baixa e zumbia como os submarinos. Mas os psiquiatras depressa o desmascaram e a enxovia curou-o de caminho.
Repatriado em 1919, volta a alistar-se na Marinha, é comandante de uma frota de contratorpedeiros e depois de um cruzador. Finalmente, já no reinado de Hitler, comanda a frota de submarinos. Durante a guerra, roído de ambição e desejando ardentemente o cargo de comandante das Forças Navais, lança-se em intrigas contra Raeder. Este e Hitler desde há muito que estavam em desacordo sobre os navios de linha. Hitler achava-os caducos, Raeder sustentava o contrário. Doenitz fingia partilhar da opinião de Hitler, mas a sós com Raeder defendia o ponto de vista desde último.
Em 1943 Raeder é afastado das suas funções em proveito de Doenitz. O novo comandante das Forças Navais é, de entre toda a corte militar que rodeia Hitler, o mais fervoroso a reclamar que o exército e a armada sejam «impregnados da ideologia nacional-socialista». Esta devoção ao nazismo desempenhou um importante papel na sua futura carreira. Não só na época do apogeu do poder de Hitler mas também na sua derrocada. Antes de morrer, foi a ele que Hitler designou para seu sucessor.
Facto curioso é o de Doenitz ter conservado até à capitulação o busto do Fuhrer com que este o tinha presenteado. Só o retirou quando Flensburgo foi ocupada pelos Aliados.
Doenitz ocupou por vinte dias o cargo de chefe do Estado alemão. A 22 de Maio de 1945 tudo acabou. O grande-almirante foi chamado por telefone à Comissão Interaliada, juntamente com Jodl e o almirante Friedeburg. Quando o seu ajudante de campo o informou disso o novo «Fuhrer» levantou-se, deu alguns passos pela sala e disse depois de um longo silêncio:
— Preparem as minhas coisas, chegou o dia da nossa prisão.
Até então Doenitz tinha sido recebido com honras militares a bordo dos barcos e nos estados-maiores aliados. Mas desta vez apenas tinha a recebê-lo um oficial subalterno e uma chusma de repórteres fotográficos.
Após cinco dias de ansiedade, viu aparecer o general inglês Fooks, o general americano Ford e o representante soviético Truskov. Vinham informá-lo de que tinham ordem de o prender e a todo o seu governo.
Ao lado, do grande-almirante está sentado Baldur von Schirach, chefe da Hitlerjugend, que durante anos se aplicou a envenenar a consciência dos jovens alemães para deles fazer um dócil instrumento do regime nazi.
E quem é este careca de bigodinho à Hitler? Nunca perde a ocasião de trazer a lume as suas origens operárias. Trata-se de Fritz Sauckel, que dirá na sua última declaração:
— Sou de uma condição social muito diferente da dos outros réus. Pela minha maneira de ser e pela minha mentalidade, sempre me mantive marinheiro e operário. Senti e sinto orgulho por a minha mulher ser filha de um operário que era social-democrata e continua a sê-lo.
Mas o mundo inteiro sabia o que Fritz Sauckel estava a calar: ele era o mais feroz mercador de escravos que a história jamais conheceu. Encarregado da requisição da mão-de-obra nos países ocupados, enviou milhares de infelizes trabalhadores para o degredo alemão e fez o possível por «gastá-los» até à morte.
A seguir a Sauckel está Jodl, chefe do Gabinete de Operações do OKW e do qual faremos mais adiante a resenha dos crimes. Depoisestá Franz von Papen, velho espião e sabotador do tempo da Primeira Guerra Mundial, que trocou a espionagem pelo cargo de chanceler, raposa matreira disfarçado de piedoso católico. Foi ele que no início dos anos trinta abriu o caminho do poder a Hitler.
A seu lado, vemos Arthur Seyss-Inquart, um dos que favoreceu a Anschluss, anexação da Áustria. Depois, enquanto Gauleiter, durante a guerra, afogou em sangue os povos da Polónia e da Holanda. A 3 de Maio de 1945, quando Doenitz, o novo Fuhrer, convocou todos os chefes civis e militares das regiões ainda ocupadas pelas tropas alemãs, Seyss-Inquart também se dirigiu a Flensburgo. A mau tempo atrasa-o aí. A 7 de Maio tenta passar para os Países Baixos mas foi detido pelas tropas canadianas. Foi na qualidade de prisioneiro que voltou à Holanda. Foram-lhe recordados todos os seus crimes, incluindo o seu papel na organização da quinta coluna na Áustria.
E agora Speer. Antes da guerra e mesmo no início das hostilidades mal se tinha ouvido falar dele. Mas em 1944 tinha sem dúvida mais peso político que Goering, Goebbels e Ribbentrop, sem falar de nazis menos influentes.
Não é pois de modo nenhum por acaso que em vésperas da derrocada da Alemanha hitleriana o serviço de informações aliado tenha recebido ordens para o vigiar de perto. E em Maio de 1945, mal chegou a Flensburgo, a delegação americana teve com o ex-ministro do Armamento uma conversa.
Speer declarou de chofre:
— Ficarei encantado por prestar às Potências Aliadas todas as informações de que disponho.
Sentia-se visivelmente lisonjeado por ser o primeiro membro do governo de Doenitz a quem os representantes dos Estados Unidos se dirigiram.
Nesse dia o Reichsminister ainda envergava o seu uniforme castanho. Mas no dia seguinte de manhã vestiu-se à civil e, com o seu sorriso doce, dava mais a impressão de um jovem professor que a de um apaniguado do nazismo. Estava em pulgas para dispensar aos novos senhores a sua simpatia, a sua lealdade. E, bem entendido, tentava passar apenas por um brilhante organizador, por um técnico competente e não por político. O facto de ele ter sido membro do governo nazi mais não era do que consequência de trágicas circunstâncias. Era um engenheiro, um especialista capaz de exercer os seus talentos fosse em que governo fosse.
Speer garante aos americanos que até chegou a lutar contra a política de Hitler, que começou a resistir desde que se deu conta da verdadeira natureza do fascismo. Arrasta pelas ruas da amargura aqueles de quem ele ainda recentemente tinha sido colaborador. Quem é Goering?
«Um gatuno, um homem desonesto, um criminoso».
E Goebbels?
«Um imbecil, um desmiolado». «Ribbentrop é um palhaço». «Himmler um monstro». «Sauckel um bruto».
E o resto da súcia,
«uma corja de indivíduos sem lei nem roque». Chegando ao poder «relativamente pobres, aproveitaram-se dos altos cargos que ocupavam para fazerem fortuna saqueando a torto e a direito».
Speer arma-se em agente secreto dos EUA infiltrado no governo hitleriano e que finalmente tinha agora a possibilidade de arrancar a máscara e comunicar aos amigos os seus pensamentos e observações. Com cara enjoada conta que nos últimos meses da guerra, à medida que a crise se agravava, muitos ministros hitlerianos se entregaram à borracheira. E suspira evocando a repugnância que sentia ao ter de lidar com semelhantes bêbados.
Alguns meses depois o destino fez com que viesse a encontrar os seus antigos colegas. Sentou-se no banco dos réus junto do «gatuno Goering», do «palhaço Ribbentrop» e do «bruto Sauckel».
Debita a sua declaração. Nasceu em 1905. Arquitecto de profissão como o pai e o avô. Conheceu Hitler em 1934. Hitler, que se julgava um artista, um mecenas, encorajou o jovem e confiou-lhe trabalhos da sua especialidade. Speer fez o projecto da nova Chancelaria do Reich e de outros edifícios, depois ocupou-se do reordenamento de Berlim e Nuremberga. Foi-se a pouco e pouco tornando amigo do Fuhrer.
— Se Hitler tivesse podido ter amigos, declara no processo, eu seria sem dúvida um dos seus mais íntimos.
Em 1938 Hitler atribui-lhe a insígnia de ouro do partido. Em 1941 nomeia-o membro do Reichstag. E em Fevereiro de 1942, quando o doutor Todt pereceu num acidente de aviação, Albert Speer, com a idade de 36 anos, ocupa o cargo de ministro do Armamento.
Aí, ultrapassa-se a si próprio. Constrói fábricas de guerra subterrâneas e poderosos laboratórios, pressiona os chefes do consórcio «IG Farbenindustrie» para que produzam tóxicos, prepara uma «arma secreta» ultramoderna.
Em 1942 realizam-se os primeiros ensaios de mísseis alemães. Speer sonha já com cidades em ruínas. Efectivamente os V-1 e V-2 começam já a cair sobre Londres. Têm um grande poder destrutivo. Mas o ministro do Armamento ainda não está satisfeito. Anda atrás dos cientistas atómicos, multiplica as visitas aos seus laboratórios, faz tudo para acelerar o desfecho atómico da guerra. Mas, azar, isso mostra ser muito mais complicado do que se supunha!
No processo perguntaram-lhe em que ponto estava a Alemanha no estudo da arma atómica. Responde ele:
— Infelizmente os melhores especialistas da energia atómica estão na América. Nós estamos muito atrasados nesse domínio. Iríamos precisar de mais um ou dois anos para desintegrar o átomo.
Ao serem ouvidas estas palavras, um murmúrio surdo percorreu a sala. Ninguém duvidava que se Speer tivesse entregue a bomba atómica a Hitler isso significaria o fim de dezenas de cidades, da Europa inteira. Os nazis não teriam hesitado em transformar o mundo num deserto.
M. Raguinski, vogal da URSS (clique na foto para maior resolução) |
No processo de Nuremberga Speer viu-se a braços com homens de leis experientes. Um dos mais hábeis no seu desmascaramento foi o advogado geral soviético Mark Raguinski.
Só o conheci em Nuremberga. Incansável, extremamente disciplinado, podia trabalhar vinte horas por dia.
Frente a frente estão os dois adversários. Tanto um como outro andam pelos quarenta anos. Speer, no seu foro íntimo, alimenta a esperança de que Raguinski não consiga desenredar até ao fim o complexo novelo das suas actividades. A política é uma coisa, e a economia, outra, diferente, sobretudo a indústria de armamentos. Os homens de leis correm o risco de facilmente se perderem nos meandros dos seus labirintos.
Só que, logo desde o início do julgamento, o ministro hitleriano do Armamento sente as suas esperanças a esboroarem-se. A competência do representante da Acusação deixa-o aturdido. Raguinski espreme-o como se ele próprio fosse um engenheiro de guerra. Ora, o segredo dos seus conhecimentos técnicos e económicos explicasse muito simplesmente: durante a guerra, precisamente na altura em que o futuro réu Albert Speer trocou a profissão de arquitecto pelas funções de ministro do Armamento, o seu futuro acusador Mark Raguinski chefiou no Comité de Defesa(6) um importante ramo da indústria de guerra da URSS.
À medida que ia aparecendo o verdadeiro rosto de Albert Speer, este ia perdendo o à-vontade. Balbuciou que «teria preferido continuar arquitecto do que ser ministro do Armamento». Mas o advogado geral soviético não se interessava pela sua carreira de arquitecto e apresentava ao Tribunal uma sucessão de provas irrefutáveis da culpabilidade de Speer como ministro hitleriano. Foi debalde que o réu tentou mascarar-se perante os juizes de «especialista sem partido» e até de «homem clemente». Raguinski fez a leitura da ordem assinada por Speer em que é dito que os SS e a polícia devem
«tomar tranquilamente as mais rigorosas medidas e enviar os preguiçosos para os campos de concentração».
Speer sabia que os «preguiçosos» eram os operários estrangeiros e os campos de «trabalho», locais, de onde não se saía vivo.
Outro documento: o depoimento de operários de fábricas de tanques relativa a determinadas caixas de aço. Speer garante logo que se trata de simples armários para guardar os pertences, as roupas de trabalho. Mas o acusador lê o testemunho.
«Eu, abaixo assinado Damm, vi com os meus próprios olhos fechar nessas caixas três operários russos ficando dois numa só. Deviam lá ficar toda a noite de Ano Novo debaixo de um duche frio».
Speer não pôde continuar a negar que esses «armários» eram câmaras de tortura. Apenas garante ter exigido sempre que os operários estrangeiros fossem bem tratados, porque compreendia que o bom resultado do trabalho dependia das suas condições materiais. Mas mais uma vez Raguinski o confunde. Cita o artigo de Speer publicado no jornal Das Reich de 19 de Abril de 1942:
«Em primeiro lugar é imperiosamente necessário fazer uso de modos enérgicos comportando as mais severas penas: longas penas de reclusão ou pena de morte. Há que ganhar a guerra».
— Escreveu isto? — pergunta Raguinski.
Speer, encostado à parede, confessa.
Os contactos do ministro do Armamento com Himmler vão-se gradualmente revelando. O réu tenta em vão tergiversar: Meu Deus, mas como é possível pensar-se que ele ignorava a Gestapo? Ele sabia o que era, claro, e era por isso que não queria ter nada a ver com essa sórdida instituição. Mas de novo Raguinski lhe demonstra que ele subestima o trabalho dos investigadores. Lembra-lhe que a 4 de Janeiro de 1944, numa reunião convocada por Hitler, o ministro do armamento reclamou a Sauckel, para o ano em curso, «não menos de quatro milhões de operários recrutados nas regiões ocupadas». Mas não era aí que residia o desagradável da questão. O advogado geral soviético chama a atenção de Speer para a passagem da acta de reunião em que é especificado que o programa em apreço irá ser levado a cabo «com a participação de Himmler». E não é tudo. Raguinski apresenta um documento que prova que Speer está combinado com Himmler na fixação da percentagem dos lucros que os SS receberão sobre a produção dos operários estrangeiros reduzidos à escravidão.
Foi assim que pouco a pouco, por debaixo da máscara de respeitabilidade de especialista técnico, começou a aparecer o nazi desenfreado, o perigoso criminoso de guerra, o feroz esclavagista, o homem capaz dos piores crimes. Razão teve Rudenko ao declarar no seu discurso de encerramento:
— E quando os aviadores fascistas bombardeavam cidades e aldeias pacíficas, matando mulheres, velhos e crianças, quando a artilharia alemã abria fogo sobre Leninegrado com as suas peças pesadas, quando os piratas hitlerianos afundavam navios-hospitais, quando os V-1 e V-2 destruíam as cidades inglesas, tudo isso era resultado de actividade de Speer...
Ainda mais dois: Neurath e Fritzsche.
O primeiro foi ministro dos Negócios Estrangeiros antes de Ribbentrop... Fidalgo prussiano, diplomata da velha escola, ajudou Hitler a dar os primeiros passos na política externa agressiva. Quando já estava suficientemente nazificado tornou-se Reichsprotektor da Boémia-Morávia.
Hans Fritzsche secundou Goebbels. Dirigiu toda a propaganda radiodifundida da Alemanha hitleriana, incitando os seus compatriotas à xenofobia.
Em Nuremberga Fritzsche conseguiu pintar de maneira bastante expressiva o último encontro que teve com o seu chefe. Goebbels, em vésperas do seu suicídio, convidara os auxiliares para uma sessão de cinema em sua casa. Fritzsche, naturalmente, fazia parte das visitas. O salão era iluminado por velas, Goebbels estava cuidadosamente vestido. Por fim pronunciou um discurso no qual tratava o povo alemão com inaudito cinismo e lhe imputava as desgraças do regime nazi.
— O povo alemão — vociferava — falhou às suas promessas. No Leste pôs-se em fuga. No Ocidente recebe o inimigo içando a bandeira branca. Que podia eu fazer de um povo cujos homens não lutam? O povo alemão escolheu o seu destino. Lembrem-se, meus senhores, que foi decidida no plebiscito de Novembro de 1933 a nossa saída da Sociedade das Nações. Foi o próprio povo alemão quem escolheu a guerra que acaba de perder.
No dizer de Fritzsche, a luz das velas dava já a Goebbels o ar de um fantasma. Ele dava-se perfeitamente conta do que o esperava, a ele e aos seus acólitos. Acólitos que esperavam senão a gratidão pela sua fidelidade, pelo menos um pouco de simpatia, mas ele lançou-lhes com maldosa alegria:
— Vós que trabalhastes comigo, sereis todos degolados.
Goebbels como que saboreou a palidez que invadia os rostos à volta dele. Depois dirigiu-se em silêncio para a porta. Mas à saída exclamou em tom patético:
— Quando batermos em retirada a terra deverá tremer!
Foi este o derradeiro «grito de Ipiranga» do pior dos facínoras que ajudou Hitler a empurrar o povo alemão e todos os povos da Europa para um abismo de sofrimentos... A 4 de Maio Hans Fritzsche foi levado à cave da Chancelaria para identificar o corpo de Goebbels.
E assim tomou lugar no banco dos réus, todo um governo. Tratava-se do mais vasto processo da história: dizia respeito aos acontecimentos de várias décadas, à vida de todo um continente. Pela primeira vez a lei ia atingir homens que tinham chegado aos pináculos do poder e o tinham exercido da mais criminosa maneira em prejuízo dos povos.
A humanidade tinha sofrido, no curso dos dois últimos séculos, centenas de guerras agressivas. E os crimes que as acompanhavam iam-se tornando cada vez mais graves. Não obstante, os instigadores dessas guerras e desses crimes nunca tinham sido punidos.
Quantas guerras de agressão desencadeou Napoleão na Europa. Quantas cidades e aldeias ele transformou em ruínas. O Congresso de Viena de 1815, que se propusera castigá-lo, acabou por lhe dar de presente a ilha de Elba.
É bem conhecida a comédia representada pela Entente que se dizia disposta a julgar Guilherme II e que, na realidade, o deixou fugir para a Holanda. Aí viveu luxuosamente mais de vinte anos, até que Hitler esmagou a França. Os ideólogos e os políticos do imperialismo sabiam muito bem ao que se expunham criando um precedente de acções judiciais contra os agressores. Ontem, os povos exigiam o julgamento de Guilherme II e amanhã exigirão o de ... de quem, afinal? Deste ou daquele homem de Estado reaccionário, já que a guerra é inseparável da política imperialista.
Foi com certeza a impunidade das anteriores agressões que encorajou os nazis a perpetrarem os seus crimes. Recebiam com vaias os sérios avisos da coligação anti-hitleriana. Hitler julgava que a sentença pessimista de Pascal sobre a justiça humana continuaria eternamente em vigor:
«A justiça está sujeita à disputa, a força é muito reconhecida e isenta de disputa... E assim, não podendo fazer com que o que é justo fosse forte, fez-se com que o que é forte fosse justo».
Mas Hitler enganara-se nos seus cálculos. Os meados do século XX assinalaram o fim dos agressores impunes. Nuremberga simbolizou, de qualquer modo, a vontade de os povos fazerem com que o que é justo seja forte. Começou por se mudar a sede do governo hitleriano: dos sumptuosos palácios, os ministros nazis tiveram de passar para o desconfortável banco dos réus. Não se tratava já de brincadeira nenhuma. Desde o primeiro dia do processo que eles ficaram a saber que a agressão era considerada como o pior dos crimes internacionais. E no último dia, em virtude dessa lei nascida do sofrimento dos povos, o Tribunal Internacional condenou os mais sinistros fautores da guerra à pena de morte por enforcamento.
Por meio desta sentença, o Tribunal prevenia sem rodeios os que de novo tentassem urdir uma conspiração contra a paz de que, doravante, ao lançarem-se nisso o estariam a fazer de corda ao pescoço.
Contudo, não teria razão quem pensasse que depois de séculos de impunidade para os agressores tinha sido fácil levar ao julgamento e à condenação grandes criminosos de guerra nazis. Houve, claro, bom número de tentativas para sabotar o processo. Os pretextos eram variados: os hipócritas apaniguados apelavam à caridade cristã. As suas diligências assumiam a mesma farisaica forma das dos legitimistas franceses que tinham pedido o perdão para Luís XVI. Seria já bastante o seu castigo, diziam, só o facto de permanecer no seio de uma nação livre de que ele fora chefe e agora era o opróbrio. Que viva pois sob o peso eterno da vergonha e do arrependimento.
— Condenemo-lo aos tormentos da vida! — gritavam os defensores do rei criminoso.
Também a isso recorriam os defensores de Goering, de Ribbentrop. Mas outros havia, em muito maior número, que gritavam:
— Fuzilem-nos, a esses miseráveis, sem outras formalidades!
Estas tão radicais exigências revestiam por vezes formas convincentes. Assim, o Ottawa Morning Journal escrevia que um processo dos criminosos de guerra declarados soaria a falso. Sendo tão evidente a sua culpabilidade, a mais capaz e enérgica defesa não poderia fornecer argumentos que pudessem influenciar o veredicto ou a pena.
«Para evitar que nos acusem de hipocrisia, encontremos um outro meio de punir este género de criminosos».
A coberto de tais intervenções procuravam-se muitas vezes impedir uma condenação pública do imperialismo e não criar um perigoso precedente para o futuro. A reacção achava não ter aqui nada a perder: Goering e Ribbentrop, Hess e Rosenberg já não estavam em condições de ser úteis. Eram uns falidos, cadáveres políticos que a História lançara já para o caixote do lixo. Ao passo que intentar contra eles um processo em audiência pública era um grande risco. Os reaccionários inveterados por nada deste mundo tinham interesse em que os juizes remexessem no sancta sanctorum da política imperialista e detectassem as causas da guerra.
Mas querer não é forçosamente poder. A ambiência de meados do século XX, em que a vida social e a consciência política dos povos evoluíam a um ritmo tão rápido e em que o prestígio internacional da União Soviética crescera prodigiosamente, já não oferecia tais possibilidades. As tentativas da reacção para sabotar o processo desembocaram num fracasso.
Quando regressei à URSS perguntaram-me com frequência como é que os réus tinham reagido às acusações. Uma única frase não chegava para uma resposta cabal. E a razão disso é que a questão da confissão ou da negação tinha afinal sido convertida pelos réus num problema de táctica, e os meios de defesa variavam segundo os casos. O que os tomava semelhantes era a tendência de os advogados contestarem a própria lei segundo a qual eles estavam a ser julgados. O que deu aos procuradores azo a uma observação espirituosa:
— Nenhum ladrão que sente a corda à volta do pescoço tem uma boa opinião da lei.
Quando o presidente perguntava aos réus se eles se reconheciam como culpados, a maioria respondia:
— Estou inocente!
Alguns acrescentavam:
— Não me considero culpado segundo os termos da acusação.
Rudolf Hess quis dar à sua resposta uma certa originalidade:
— Só me considero culpado perante Deus.
Entretanto existia um documento nas margens do qual os grandes criminosos de guerra tinham apontado não oficialmente e em linguagem menos lacónica o que pensavam da sua culpabilidade. Era o exemplar da nota de culpa pertencente ao doutor Gilbert, que tinha proposto aos seus pacientes que lá escrevessem as suas opiniões.
Os réus sabiam com certeza que as suas entrevistas com o doutor Gilbert não iam ficar secretas. E tentaram aproveitar-se disso para fazerem um apelo à História e darem deles uma impressão diametralmente oposta à que se criara na sala de audiências sob o peso de provas irrefutáveis. Foi isso naturalmente o que aconteceu também. E note-se que eles se pronunciaram sobre as acusações no princípio do processo, quando as provas da sua actividade criminosa ainda não tinham sido apresentadas na sua esmagadora evidência e quando muitos deles alimentavam ainda a esperança de passarem por inocentes.
Hermann Goering não queria admitir que se tratasse ali de um documento jurídico confirmando da forma mais convincente a monstruosidade dos seus crimes. «O vencedor sempre será juiz e o vencido réu», escreveu ele, tendo sem dúvida a frase já composta de antemão.
Joachim von Ribbentrop preferiu chorar uma lágrima de crocodilo: «A nota de culpa tem inocentes como alvo». Como anotou Gilbert no seu diário, Ribbentrop teria acrescentado de viva voz:
— Éramos todos a sombra de Hitler.
Rudolf Hess, que estava na fase de simular a amnésia, escreveu:
«Não consigo lembrar-me».
Ernst Kaltenbrunner, um dos mais sinistros sátrapas de Hitler, inscreveu no texto da nota da culpa a seguinte inscrição:
«Não me considero culpado de qualquer crime de guerra. Apenas cumpri o meu dever como dirigente do serviço de informações e recuso-me a desempenhar o papel de ersatz de Himmler».
Alfred Rosenberg, o principal teórico do nazismo e do extermínio de homens no Leste, declarou:
«Tenho de recusar a acusação de conspiração. O movimento anti-semita apenas tinha como finalidade a autoprotecção».
Hans Frank, ministro hitleriano da Justiça, depois governador-geral da Polónia ocupada, escolheu outra táctica, como o atesta a sua observação:
— Considero este processo um processo mundial criado por vontade de Deus para pôr termo à terrível época de sofrimento vivida sob Adolfo Hitler.
Wilhelm Frick, ex-ministro de Interior, foi mais breve:
«Toda a nota de culpa assenta na hipótese de uma conspiração fictícia».
Fritz Sauckel, comissário do Reich para o emprego da mão-de-obra, encarnava infelizmente demasiado tarde o papel de idealista tardio:
«O abismo entre o ideal de uma comunidade social que eu, como operário e marinheiro, concebia e defendia, e os terríveis factos acontecidos nos campos de concentração, impressionou-me profundamente».
Franz von Papen, ex-chanceler do Reich e depois notório diplomata hitleriano, pretendeu que a nota de culpa acabava de lhe abrir os olhos sobre a história do Terceiro Reich e que estava horrorizado com a leviandade com que a Alemanha foi lançada na guerra e na catástrofe mundial, bem como pela acumulação de incontáveis crimes que alguns cometeram.
Keitel, ex-comandante da Wehrmacht, tentou ilibar-se alegando a disciplina militar:
«Para um soldado, ordens são ordens».
O grande-almirante Doenitz decidiu fazer, uma vez mais, estendal do seu descaramento:
«Por nada desta vida sou abrangido por qualquer dos pontos de acusação. Trata-se de uma amostra típica do humor americano».
Mas isto era nos primeiros dias do processo. Porque depois, à medida que as provas se iam acumulando, a atitude dos réus modificava-se. No fim do processo não houve um único que negasse o bem fundado da acusação no seu conjunto. Não obstante, quase todos procuraram riscar da sua confissão a responsabilidade pessoal. Digo «quase» porque poderíamos citar duas excepções, aliás relativas.
O réu Frank declarou em audiência:
— A este propósito apenas peço ao Tribunal que no fim dos pleitos se pronuncie sobre o grau da minha culpabilidade. Mas gostaria desde já, à luz destes cinco meses de processo e depois de ter lançado um último olhar sobre tantos terríficos horrores, declarar que trago dentro de mim um profundo sentimento de culpa.
A táctica de Schirach era mais ou menos a mesma:
— É culpa minha, da qual respondo perante Deus e perante o povo alemão, ter educado a juventude deste povo em prol de um homem que, durante muitos anos, considerei como chefe do nosso país. Foi para ele que formei esta juventude. É culpa minha ter educado esta juventude para um homem que foi assassino milhões de vezes... Todo o alemão que, depois de Auschwitz, ainda teime na política racial, é culpado.
Schirach chegou mesmo a pedir a autorização de falar pela rádio para «abrir os olhos» à juventude alemã.
Este comportamento de Frank, de Schirach e, depois, de Speer foi interpretado nos corredores como um «grito de consciência». Até o procurador-geral francês o exprimiu no seu discurso de encerramento.
Alguns réus mimaram ainda melhor o arrependimento nas suas entrevistas privadas com Gilbert. Frank, por exemplo, debitou-lhe esta tirada no fim do processo:
— Nos séculos vindouros as pessoas dirão: «Meu Deus, como foi possível que semelhante acto fosse levado a cabo?» Não podemos simplesmente designá-lo por crime, a palavra é suave demais. Roubar é um crime, matar um homem é um crime; mas isto vai além da imaginação humana! Industrializar o assassínio! Duas mil vítimas por dia, dentes de ouro e anéis no Reichsbank; cabelos metidos em sacos para fazer colchões! Deus todo-poderoso! E tudo isso ordenado por um demónio que assumiu forma humana!
E Speer fazia eco com ele:
— Vi o país mergulhado no desespero e milhões de homens mortos por causa desse maníaco...
As confidências que Funk fez a Gilbert também ficaram para a posteridade:
— Nenhum de nós escapa à responsabilidade moral nesta matéria. Já lhe disse como a minha consciência ficou perturbada quando assinei essas leis sobre a arianização da propriedade judia. Somos todos culpados!
E eis a conclusão a que chegou Doenitz que, nos primeiros dias do processo, chamava à nota de culpa «amostra típica de humor americano»:
— No princípio estava furioso por ser arrastado para este processo porque não sabia nada destas atrocidades. Mas agora, depois de ter ouvido todos estes testemunhos sobre o duplo jogo, o sórdido trabalho no Leste, reconheço que havia boas razões para esperar ir ao fundo das coisas.
E dentro do mesmo espírito se pronunciou Papen:
— Estou perfeitamente disposto a aceitar o meu ano de reclusão como um sacrifício, a fim de mostrar ao povo alemão o que era o regime hitleriano. É necessário que o povo alemão veja como foi traído e é preciso que ele ajude a extirpar os últimos vestígios do nazismo.
Estas confissões deixaram de ser evocadas desde que na Alemanha ocidental se lança uma desenfreada campanha contra o processo de Nuremberga com a única finalidade de reabilitar nazis que estão hoje ao serviço de Bona. Mas cabecilhas como Frank e Schirach, Speer e Funk, Doenitz e Papen não ousavam então pôr em causa a justeza das provas recolhidas pelo Tribunal Militar Internacional.
Não se podia no entanto dar razão aos representantes das potências ocidentais que interpretavam as confissões de certos réus como sendo uma manifestação de arrependimento.
Em Janeiro de 1940 declarava Frank cinicamente numa conferência realizada em Varsóvia:
— A 15 de Setembro de 1939 foi-me confiada a missão de assumir a administração das regiões conquistadas do Leste e a ordem extraordinária de explorar sem piedade estas regiões que se tornaram zona e presa de guerra e fazer delas um amontoado de ruínas.
A 2 de Agosto de 1943, usando da palavra numa recepção dos funcionários do partido nazi em Cracóvia, traça o primeiro balanço da sua actividade:
— Começámos aqui com 3 500 000 judeus, e agora restam apenas algumas brigadas de trabalho. O resto, digamos, emigrou.
Na sessão de audiência ele tergiversa, descarrega as culpas para Himmler e Kaltenbrunner. Frank só reconhece os crimes em si. Efectivamente eles foram cometidos. Foram perversidades monstruosas, de uma inaudita envergadura. Mas Frank esforça-se por provar que não alinhou nisso, se bem que traga dentro dele «um profundo sentimento de culpa» pelo facto de ter sido membro do governo alemão.
A seu ver, todas as desgraças da Alemanha e dos seus regimes, incluindo o regime hitleriano, seriam originadas pelo carácter do seu povo.
— A barbárie — dizia ele a Gilbert — deve constituir uma forte característica racial alemã. Sem isso como teria Himmler encontrado homens para executar as suas ordens assassinas?
Numa outra ocasião tratou de «aprofundar» este pensamento:
— Nós, os alemães, somos todos saqueadores. Não esqueçam que a literatura alemã começou com Os Bandidos de Schiller. Nunca lhe tinha vindo isso à ideia? ...
Que absurdos ele era capaz de debitar para lançar para os ombros de todo o povo alemão os crimes do hitlerismo!
— Sabe, doutor — dizia ele com gravidade a Gilbert — o povo alemão é verdadeiramente feminino na sua massa. Deveríamos dizer die Volk em vez de das Volk. É um povo tão emotivo, tão inconstante, tão tributário da sua honra e do seu meio, tão influenciável, tão submetido à virilidade. Foi esse, Herr Doktor, o segredo do poder hitleriano. Hitler levantou-se e pôs-se aos murros na mesa: «Eu sou um homem, um homem, um homem.. .». Tanto alardeou a sua força e energia que o povo se entregou a ele. Não se pode dizer que Hitler tenha violado o povo alemão. Seduziu-o...
Frank evitava dizer o que realmente tinha permitido aos hitlerianos dominar o povo alemão e perpetrar tantos bárbaros crimes. Não, dizia que o partido nazi tinha subido ao poder não porque alcançara a maioria dos votos nas eleições mas no seguimento de uma vergonhosa aliança dos magnatas do Ruhr com os conspiradores nazis e os militaristas prussianos. Foi isso que muito justamente salientou, no processo, um dos representantes da Acusação:
— Se o povo alemão tivesse aceite de bom grado, o programa nazi, os hitlerianos não teriam tido necessidade dos destacamentos de choque nem dos campos de concentração, nem da Gestapo, criados logo a seguir à tomada de poder pelos nazis...
Também Goering se referiu muitas vezes à questão do carácter alemão. Em conversa com o médico da prisão tentou mesmo fazer espírito:
— Se lidar com um alemão, pode ter a certeza que se trata de uma pessoa honesta, mas dois alemães já formam um bando, e três provocam necessariamente uma guerra.
Claro que nem Frank nem Goering ao caluniarem o seu povo, pensavam reconhecer que foi a propaganda nazi que, durante anos, embruteceu os alemães, lhes inoculou o veneno da xenofobia, desenvolveu neles a arrogância da «raça eleita», despertou os maus instintos e fez resplandecer aos olhos dos «senhores» as delícias da vida, «senhores» esses que as «raças inferiores» deviam servir.
Entretanto seria injusto passar em silêncio o facto de certos réus compreenderem o absurdo da atitude adoptada por Frank e Goering, a inépcia das suas tentativas de se ilibarem dos seus crimes à custa de uma entidade que é todo o povo alemão. Na noite de 26 de Janeiro de 1946, von Papen dizia a Gilbert:
— Calhou Rosenberg ter passeado hoje comigo no recreio. Normalmente não lhe dirijo a palavra, porque nada tenho de comum com ele. Mas por mero acaso saímos ambos ao mesmo tempo. Pusemo-nos a falar das provas fornecidas pelos franceses sobre as torturas e outras atrocidades. E diz-me ele inocentemente: «Não compreendo como os alemães chegaram ao ponto de fazer semelhantes coisas». E sabe você o que eu então lhe respondi? Compreendo-o muito bem. Com a sua filosofia, os seus princípios, você destruiu pura e simplesmente os cânones morais. Nada de espantar que o resultado tenha sido semelhante barbárie!»
Papen não é tão estúpido que negue, ou mesmo apenas cale, o ignóbil papel da propaganda e da filosofia nazis na preparação moral dos crimes. Mas estaríamos errados se esperássemos dele um reconhecimento de culpa, que confessasse os seus próprios esforços para abrir caminho a Hitler na Alemanha, assim como a Rosenberg e à sua filosofia de canibais.
As «confissões»; dos outros réus eram do mesmo género.
Speer qualificava Hitler de maníaco. Chegou mesmo a dizer aos juízes que tinha preparado secretamente o seu assassinato nos fins da guerra, o que lhe valeu da parte de Goering uma tempestade de hipócrita indignação. Mas Speer não terá a coragem de confessar que se tinha dedicado de corpo e alma ao desenvolvimento da máquina de guerra hitleriana, obrigando a que nela participassem milhões de trabalhadores escravizados trazidos do estrangeiro.
Doenitz indignar-se-á com as «abjecções cometidas no Leste» sem dizer palavra sobre as suas próprias ordens: «torpedear sem aviso» os vasos comerciais e disparar sobre os infelizes marinheiros que tentassem salvar-se a nado. Não irá contar como formava os seus quadros de piratas exigindo que eles fossem «nacionais-socialistas modelos». Outro facto típico: dez anos mais tarde, purgada a sua pena, Doenitz publicará um livro a vilipendiar o Leste de que ele tinha deplorado os sofrimentos quando estava no banco dos réus. E não foi sem motivo que os revanchistas de Bona o elegeram presidente da «União dos Marinheiros Alemães» que fomenta novas abjecções.
Funk, que deplorava a propriedade judia confiscada, omitirá falar (outros o farão em seu lugar) do facto de ele próprio ter recebido meio milhão de marcos a título de «doação» do Fuhrer.
Os réus só eram unânimes num ponto: fazer recair toda a responsabilidade sobre os mortos: Himmler, Heydrich, Goebbels, Ley. Principalmente sobre Hitler. Mesmo Goering que, no processo, tentava parecer leal a Hitler, forcejava por descarregar sobre o seu Fuhrer bem-amado as acusações contra ele feitas.
Keitel, como veremos, censurava o facto de Hitler se ter suicidado deixando-os sozinhos perante o Tribunal. Considerava esse acto uma cobardia. Outros réus voltaram com frequência a esse tema.
Goering tentou explicar aos seus «colegas» por que é que Hitler linha agido assim e o que teria apressado a sua morte. Ao saber qual o fim de Mussolini, executado pelos patriotas italianos, Hitler agitou-se pelo compartimento, de mãos a tremer. Berrava que nunca se entregaria ao inimigo e que nenhum «mau alemão» teria possibilidade de profanar o seu corpo.
A expressão «mau alemão» na boca de Hitler é sintomática. O Fuhrer tinha medo do povo alemão, do castigo com que esse povo o fustigaria. À medida que a inevitável catástrofe se aproximava, mais consciência ele tinha das contas que o povo alemão o obrigaria a prestar pelos seus monstruosos crimes.
Se reproduzo aqui uma parte do que foi dito acerca de Hitler pelos réus do processo de Nuremberga, é porque os revanchistas alemães ocidentais, na sua defesa a favor da absolvição do nazismo, chegaram ao ponto de reabilitar o próprio Hitler. Todos os dias chegam às livrarias numerosos panegíricos em sua honra. Entre os autores desta cozinha malcheirosa figuram historiadores prussianos oficiais, antigos generais hitlerianos, o motorista de Hitler, Erich Kempka, o seu secretário particular Albert Zoller, e até o seu criado de quarto Krause. Todos o pintam como um semideus.
Na Inglaterra saiu o livro Estratégia de Hitler, que põe nos cornos da lua o seu génio militar. O vice-almirante alemão ocidental Kurt Assmann compara-o a Napoleão.
E aqui vai o que escreveu Walter Goerlitz, historiador alemão ocidental bastante conhecido:
«Adolfo Hitler é uma personalidade de envergadura mundial. Transformou o mapa mundi mais que qualquer outro dirigente da Europa o fizera antes dele».
E Goerlitz não pára de se enternecer. Comove-se até às lágrimas com o modo de vida espartano de Hitler, que contrastava com as orgias de Goering e dos outros próximos do Fuhrer, extasia-se com a maneira como Hitler «contribuiu para ultrapassar a luta de classes», mérito que lhe teria valido o afecto dos operários alemães. E, bem entendido, Goerlitz considera-o inocente do incêndio Reichstag bem como de numerosos crimes contra o povo alemão.
Ao lermos este género de textos, voltamos a lembrar-nos das declarações dos réus do processo de Nuremberga. Esses, de qualquer modo, conheciam melhor Hitler que os que tentam agora reabilitá-lo tardiamente.
Hans Frank escrevia na sua cela:
— Quem era Adolfo Hitler? Um estadista? E no entanto ele despojara o Estado das suas principais instituições, tais como os legítimos direitos dos cidadãos, a constituição, os princípios de administração; e por fim sabotou o Reich por intermédio da guerra.
«Foi um militante do partido? Mas ele sabotou sistematicamente o seu programa, desvalorizou-lhe as ideias e fez do partido instrumento da sua política.
«Dizia-se artista, protector das artes, mas abafou o desenvolvimento da autêntica arte. A todas as possíveis questões só poderemos responder «não», porque ele destruía sempre o que tinha criado».
Mais adiante, ao assinalar que lhe chamavam gigante, Frank faz a precisão:
«Sim, foi um gigante, mas um gigante destrutivo».
Voltando constantemente às características de Hitler, quer nas suas declarações oficiais no processo, quer nas entrevistas privadas com o doutor Gilbert, Frank especificava que
«Hitler representava o espírito do mal na terra».
Frank lançava-se em confissões:
— A princípio pactuei com o diabo. Mas depois dei-me conta do psicopata frio e duro que ele era. O seu olhar pretensamente fascinante outra coisa não era que o de um psicopata insensível! O que o movia era só um egotismo primitivo e obstinado que nada era capaz de travar.
Ninguém, suponho, se deixará enganar pelo teor destas críticas, pela tendência de Frank e dos outros réus em falarem de Hitler como se eles fossem terceiras pessoas com direito a indignarem-se tanto como os seus adversários. Mas a questão não é esta. Gostava de chamar a atenção do leitor para o que pensavam de Hitler as pessoas que lidaram com ele durante anos.
Frank não era o único a «criticar» Hitler. Baldur von Schirach, ex-chefe da Juventude Hitleriana, traçava do seu ídolo de ontem um retrato bastante violento. Afirmou por reiteradas vezes que Hitler era
«um fanático, um pseudo-intelectual», «um desumano tirano».
O caudilho da Hitlerjugend propôs mesmo aos Aliados a convocação para Buchenwald — um dos locais onde os nazis cometeram os seus mais atrozes crimes — dos chefes da juventude alemã para que pudesse denunciar perante eles a natureza criminosa de Hitler. E quando o Ministério Público citou o discurso pronunciado por Hitler na reunião secreta de 5 de Novembro de 1937, no qual ele expunha o seu programa de conquista do mundo, Schirach chamou a esse programa
«loucura política concentrada».
E Frank rematou fatídico:
— Esperem que os alemães leiam isto e vejam com que frivolidade o Fuhrer lhes marcou o destino!
E Schacht? Esse falava de Hitler em termos que levavam Goering a revelar uma vez mais a sua hipocrisia tapando as orelhas.
Cada um dos réus caprichava por ultrapassar os outros na descoberta dos menos lisonjeiros epítetos a dar a Hitler. Mas nenhum quis confessar que os actos do Fuhrer eram também os seus actos, que foram eles quem criou, adulou, investiu esse criminoso neurasténico de um poder ilimitado, sendo eles os primeiros a atiçar nele o ódio, a insuflar-lhe o medo.
Um pormenor de tal importância claro que não podia escapar à Acusação. Os seus representantes concordavam que incumbia a Hitler e a Himmler uma parte enorme de responsabilidade, mas salientavam muito justamente que
«Hitler não tinha levado para o túmulo toda a responsabilidade e que a mortalha de Himmler não havia embrulhado todas as culpas».
Imagine-se o terror que teria invadido o banco dos réus se a porta de súbito se abrisse e desse passagem a Adolfo Hitler. Mas infelizmente, ele tinha-se suicidado, tinha deixado este mundo tal como nele havia vivido: como demagogo, como impostor, com a indicação testamentária, à laia de versão oficial, de que teria «tombado no campo da honra».
Imagine-se o que teriam sentido os réus se vissem entrar Heinrich Himmler, com uma pilha de dossiers debaixo do braço. Mas isso era, infelizmente, do domínio do impossível...
A História regista muitos processos políticos. Processos que fizeram passar por uma rude prova as qualidades morais de estadistas caídos numa situação crítica, muitas vezes mesmo colocados frente à morte. A História demonstra de modo indubitável que a atitude dos réus depende directamente do carácter e objectivos da sua anterior actividade. A pureza ideológica, o devotamento aos interesses do povo, o sentimento de terem cumprido uma missão justa originam a abnegação, a lealdade, a coragem e a solidariedade perante os tribunais que, em casos desses, mais não são que a camuflagem jurídica de uma justiça sumária da parte do inimigo.
O processo de Nuremberga desvendou perante o mundo inteiro o verdadeiro rosto dos chefes nazis. Nenhum deles ousou assumir abertamente a defesa da abjecta causa de que durante tantos anos eles foram servidores. Nenhum ousou negar os horríveis crimes cometidos em nome do Terceiro Reich. Comportaram-se no Tribunal como vulgares meliantes de direito comum com cadastro bem carregado: apanhados com a boca na botija, eles negavam, atiravam as culpas para cima dos mortos, dos seus companheiros de banco dos réus, tudo faziam para se safarem.
A aproximação da morte enobrece, costuma dizer-se. Mas nem sempre. Esses foram para a forca do mesmo modo como tinham vivido: como egoístas, odiando toda a gente, mesmo os que com eles lidavam nos tempos de poder e triunfo.
Ei-los que entram na sala de audiências. Goering senta-se, embrulhado no cobertor da cadeia, o cotovelo apoiado na barra, o rosto tapado com a mão. Que pensamentos, estará ele a ruminar?
Talvez evoque um processo ao qual assistiu não há muito. Doze anos não é muito tempo, mas como tudo mudou desde então! Goering era então primeiro-ministro do governo prussiano, presidente do Reichstag, e no banco dos réus sentava-se Jorge Dimitrov e os seus camaradas comunistas. Um processo em que criminosos tinham envergada a toga para condenar um militante que encarnava as ideias de liberdade, de justiça, de dignidade humana.
Dimitrov e os seus amigos eram acusados, contra todo o bom-senso, de terem ateado fogo ao Reichstag. Ora Goering estava bem colocado para saber que isso era mentira, o Reichstag tinha sido incendiado por ordem sua. Isso iria servir de pretexto para ajustar as contas aos heterodoxos e fazer passar os hitlerianos aos olhos da opinião pública por «defensores da civilização ocidental» ameaçada pelos «extremistas bolcheviques».
Por pouco não era Goering quem tinha de se defender a si próprio. Porque Jorge Dimitrov atacou, sabendo muito bem que o incêndio do Reichstag podia alastrar a todo o mundo (o que de facto aconteceu). Defendeu menos a sua pessoa que os ideais sociais que eram a sua razão de ser.
— Estou aqui como credor e não como devedor! — declarou ele frontalmente à Justiça nazi em 31 de Outubro de 1933.
E um mês mais tarde, a 28 de Novembro, dizia:
— Estamos perante um processo político. Por isso é preciso elucidar até ao fim o substracto político e o carácter político da questão. Já que quiseram um processo político, tê-lo-ão, mas sem contemplações: guerra é guerra!
A esta lembrança, Hermann Goering teria podido comparar o seu comportamento e o dos seus colegas à atitude do outro. Antes e durante o processo. Mas com certeza que evitava fazê-lo porque a comparação não lhe era favorável.
Os chefes nazis, que nada de bom auguravam para si próprios, mesmo sem o processo, tinham um sagrado horror a um julgamento público. A primeira diligência dos seus advogados foi tentar evitar esse julgamento.
Nos seus encontros com os americanos, Goering tentava convencê-los que eles teriam todo o interesse em entenderem-se com ele. Tal como os outros criminosos de guerra, ele tinha medo da luz do projector jurídico que iria iluminar toda ignomínia da sua vida e da sua política.
Em Leipzig, em 1933, Hermann Goering, testemunha de acusação de Dimitrov, ouviu o credo do réu:
— Eu defendo as minhas ideias, as minhas convicções comunistas. Defendo a minha razão de ser.
Mas que pode dizer Goering em Nuremberga? Que convicção profunda podem os seus cúmplices pleitear? Que «ideias» poderão eles invocar depois de Auschwitz, Dachau, Treblinka, depois da morte de milhões de homens torturados e massacrados por ordem sua, depois que foram descobertos nos subterrâneos do Reichsbank os dentes de ouro das suas vítimas? Qual dos réus de Nuremberga teria ousado levantar-se para dizer que estava ali «como credor e não como devedor»? Qual deles terá ousado defender abertamente o nazismo? Não tentaram alguns deles fazer crer ao Tribunal que nunca tinham lido O Mito do Século XX de Rosenberg e portanto não podiam partilhar das ideias desse «filósofo demente»? O próprio Goering, a quem o procurador-geral soviético Roman Rudenko perguntava se estava de acordo com a teoria racial, respondeu:
— Pessoalmente não a acho correcta.
E Robert Ley, que na Alemanha levou a cabo a política racista com a persistência de um maníaco e a crueldade de um bárbaro, escrevia no seu Testamento:
«Pelo anti-semitismo violámos a lei fundamental... O anti-semitismo deformou a nossa perspectiva. É duro reconhecermos os nossos erros, mas a própria existência do nosso povo está posta em causa, e nós, os nacionais-socialistas, devemos ter a coragem de renegar o anti-semitismo. Devemos dizer aos jovens que isso foi um erro... É necessário que os anti-semitas inveterados se tornem os campeões da ideia nova. Que encontrem neles a força de indicar o caminho ao seu povo».
Schirach não lhe ficava atrás no zelo com que deixara de «defender» no processo a política racial. Não chegou ele a pedir autorização para radiodifundir através de toda a Alemanha que o fascismo era um veneno para o povo? Ele que tinha passado a sua vida a pregar o racismo, declarou no processo que
«todo o alemão que, depois de Auschwitz, ainda se agarrava à política racista, era culpado».
E Frank não profetizava histericamente em Nuremberga que
«dentro de milénios a vergonha da Alemanha continuará viva na memória dos povos»?
Jorge Dimitrov, rejeitando a acusação, tinha dito:
— Não foram os comunistas que deitaram fogo ao Reichstag. Eles não podiam ter cometido esse crime porque é contrário aos seus princípios políticos. Os comunistas não são incendiários, conspiradores, aventureiros.
Qual dos vinte réus poderia ter dito o mesmo depois da revelação dos planos de agressão contra os outros países? Depois de se ter sabido que o general hitleriano Kammhuber tinha mandado bombardear a cidade alemã de Freiburg para fornecer aos nazis o pretexto para lançarem a sua aviação na destruição de pacíficas cidades estrangeiras? Enfim, depois da provocação fascista de Gleiwitz, cobertura sangrenta à Segunda Guerra Mundial? Nenhum deles, bem entendido!
Depois de ter denunciado a provocação nazi do Reichstag, Dimitrov fez várias exigências aos juízes: absolver os inocentes, punir os provocadores, etc. O presidente do tribunal de Leipzig declarou com um sorriso irónico:
— Ao deliberar sobre a sentença, o tribunal tomará em consideração aquilo a que o senhor chama as suas propostas.
Ao que Dimitrov ripostou de imediato:
— Lá chegará o tempo em que serão ajustadas as contas e com juros.
E esse tempo chegou. Em Nuremberga, cidade dos Parteitag nazis, reuniu-se o Tribunal dos Povos. O bando de assaltantes que, com ajuda de chaves falsas políticas, se introduziu no proscénio da história, ocupava agora o lugar que lhe competia. Tinha soado a hora da expiação.
No processo de Leipzig, Dimitrov lançara à cara da camarilha nazi:
— O fascismo mente, assassina, leva à guerra e às perseguições... Estais perante o tribunal do mundo! Toda a gente faz o vosso julgamento e tereis de responder pelos vossos crimes.
E ali estão eles, sentindo pender-lhes por sobre a cabeça a espada da justiça. Chegou a hora de serem eles a defender-se. Mas de que maneira eles o fazem? Sem qualquer traço de ideologia.
Goering, por exemplo, afirmava que tudo fizera para impedir a guerra da Polónia: teria negociado com os ingleses por intermédio do engenheiro sueco Dahlerus, à revelia de Ribbentrop. Este, quando foi posto ao corrente, teria mesmo tentado forjar um acidente de avião para impedir que Dahlerus voasse para Londres.
O advogado de Hess afiançava que o pacifismo do seu cliente o tinha levado, em vésperas da agressão contra a URSS, a ir à Inglaterra, «com perigo da própria vida», para encetar conversações. Uns anos mais tarde, os neonazis suecos, retomando esta enternecedora versão, propuseram Hess... para o Prémio Nobel da paz!
Goering sustentou que se opusera energicamente à agressão contra a URSS, em 1941, mas Schacht desmentiu-o dizendo ter pedido a demissão para não mais colaborar com esse homem que tinha tomado a resolução de mergulhar a Alemanha numa gigantesca guerra.
A demissão! Parece que quase todos se queriam demitir porque «tinham compreendido a iniquidade da política de Hitler». O ministro Lammers, chefe da Chancelaria do Reich, confirmá-lo-á no que respeita a Rosenberg. Frank também teria gostado de ir para a reforma. Jodl virá a assinalar, apoiado por Keitel, que tinha pedido a dispensa do cargo e a nomeação para comandante de uma divisão de caçadores alpinos. Funk teria dito à sua esposa na intimidade:
«Era melhor largar todo este ministério e retirarmo-nos para uma casinha de três assoalhadas».
Rosenberg insistia em que se procurasse o relatório que fizera a Hitler, no qual protestava «energicamente» contra as atrozes condições dos prisioneiros de guerra soviéticos.
No processo intrigarão desavergonhadamente uns contra os outros.
Eu já observara que durante as suspensões das audiências eles se reuniam por pequenos grupos cuja composição era sempre a mesma. Schacht nunca estava ao pé de Goering, Neurath fugia de Ribbentrop. Ninguém via Streicher a falar com Goering, nem Schacht com Kaltenbrunner ou Ribbentrop.
O meu ofício de jurista, as minhas funções de juiz no Tribunal Militar e de advogado nos tribunais de Moscovo deram azo a que muitas vezes assistisse a discórdias, por vezes escandalosas, na sala dos prisioneiros. Enquanto estão unidos pela comunhão de fins e de interesses, por um chefe único do bando, os malfeitores (ou o seu chefe) reprimem dentro deles os conflitos latentes. Mas uma vez apanhados e levados a tribunal, geralmente não se lhes nota mais qualquer vestígio dessa pretensa «comunhão».
Foi também o que se passou em Nuremberga: o criminoso governo de uma das maiores potências da Europa ocidental mal se sentou no banco dos réus adoptou logo os costumes da gente de faca na liga.
Com efeito, por que não se dirigiram, Goering e Julius Streicher, mutuamente a palavra durante todo o processo? Estavam incompatibilizados por dissensões de ordem política? Teria Streicher reprovado a conduta de Goering na «noite das facas longas», quando esse «porco» (como delicadamente o tratou Streicher) fez rolar dezenas de cabeças? De modo nenhum. Streicher tinha, pelo contrário, sentido admiração pela «coragem e energia» do «gordo Hermann»... Talvez Goering sentisse aversão pela «teoria» do anti-semitismo de que Streicher era um dos autores? Também não, ele não se cansava de gabar os méritos de Streicher que tudo fizera para motivar a necessidade de «resolver definitivamente a questão judia». E não tinha sido Goering quem ganhara dezenas de milhões de marcos com a pretensa «arianização dos bens judeus» (pilhagem dos judeus, diremos nós mais simplesmente)?
Mas a sorte quis que um dos «chefes ideológicos» do nacional-socialismo se achasse um dia numa delicada situação. Tinham-se queixado dele a Hitler, e não foram os judeus vítimas dos pogroms organizados por Streicher desde 1938, mas loiros arianos de puro sangue: parece que o Parteigenosse Streicher tinha um fraco pelas rapariguinhas. O desvio de menores oriundas de famílias arianas distintas ameaçava escândalo. Para verificar as queixas, Hitler nomeou uma comissão presidida por Goering. Os factos foram confirmados e o Gauleiter da Turíngia, gravemente comprometido, foi demitido. O que aliás lhe permitiu dedicar-se inteiramente ao anti-semitismo. A guerra estava iminente e as «obras» de Streicher iam mais do que nunca ser úteis aos hitlerianos.
Mas Streicher votou sempre a Goering, «esse narcómano, esse desavergonhado bandido», um rancor terrível. Sufocava de raiva ao pensar que esse «faroleiro e arrivista» tinha ousado denunciá-lo e comprometê-lo, a ele, um dos fundadores do partido nazi.
Era por isso que, no banco dos réus, eles não escondiam o seu ódio recíproco.
E que diferendo opunha Goering a Schacht? Por que não trocaram eles uma única palavra durante os dez meses que durou o processo? Enquanto Schacht esteve no poder, nas boas graças de Hitler, as suas relações pareciam ser correctas. Schacht tinha em alta conta as capacidades de organizador de Goering. Activamente apoiado por este, Schacht ajudava-o em troca com toda a sua experiência de financeiro de classe internacional. Mas já desde antes da guerra que as relações entre o «gordo Hermann» e o «mago das finanças» tinham esfriado. Goering, ambicioso e cúpido, quis ser ele o único a gerir a economia nacional. Tinha estima por Schacht; um e outro visavam o mesmo fim: rearmar o mais depressa possível a Alemanha, apressar o dia em que as hordas da Wehrmacht se lançassem sobre os países vizinhos. Era isso que os unia. Mas a rivalidade pessoal, a inveja recíproca dos dois ministros hitlerianos eram tão violentas que culminaram numa ruptura que derrubou Schacht em proveito de Goering.
Eis a razão por que, no processo de Nuremberga, nunca os via lado a lado mas em contrapartida os ouvia dirigirem-se epítetos pouco lisonjeiros um ao outro.
Eram lobos e como tal se comportavam.
Lembro-me de um outro episódio. Ernst Kaltenbrunner, chefe da Gestapo e de outros organismos repressivos hitlerianos, adoecera antes do processo e não tinha podido assistir às primeiras audiências. Só compareceu a 10 de Dezembro de 1945. A imprensa mostrou-se vivamente interessada com a entrada desta notória personagem. Operadores de cinema e repórteres fotográficos assestavam as máquinas. A atenção da assistência concentrava-se no banco dos réus. Kaltenbrunner cumprimentou com um amplo gesto os amigos, que o receberam com ar glacial. Foi como se um sopro gelado tivesse entrado pela porta que acabara de se abrir. Kaltenbrunner estendeu a mão a Jodl que estava mais perto dele. Este virou-se ostensivamente. Os outros também.
O guarda fez-lhe sinal para se sentar entre Keitel e Ribbentrop. Enquanto se instalava, Keitel fingiu estar ocupado. Kaltenbrunner estendeu-lhe a mão, Keitel absteve-se de lha apertar e lançou-se numa conversa sem importância com o médico americano.
Kaltenbrunner voltou-se para Frank, mas este também não o quis cumprimentar: debruçou-se para um livro rangendo os dentes. Kaltenbrunner dirige-se aos almirantes Raeder e Doenitz, que também não estão interessados em falar com o sanguinário carrasco. Resignado, o todo-poderoso ex-chefe da Gestapo estende a mão ao seu advogado. Novo fracasso. O defensor prefere não lhe tocar, embora lhe fale muito educadamente.
Aos que assistiam então a esta cena não lhes passava sequer pela cabeça que ela era o nascimento de um mito destinado a ser largamente espalhado: o mito da não participação dos outros réus, particularmente dos generais alemães, nas atrocidades e violências perpetradas pela Gestapo durante a Segunda Guerra Mundial. Ao virarem a cara a Kaltenbrunner, Keitel e Jodl, Raeder e Doenitz faziam questão de dar a entender que nunca tinham tido nem queriam ter qualquer relacionamento com as orgias sangrentas da Gestapo e do SS, era como se esses senhores generais e marechais estivessem a tentar dizer aos juízes:
«Acreditem ou não, nem sequer somos capazes de cumprimentar este SS. É bem verdade que os crimes foram cometidos, tanto na Alemanha como em território ocupado, mas os generais alemães não têm nada a ver com isso. A sua reputação foi sempre mais alva que a neve dos cumes alpinos».
É verdade que alguns meses depois Keitel e Jodl, Raeder e Doenitz verão denunciado, sob o peso de documentos irrefutáveis, o farisaísmo da cena representada a 10 de Dezembro de 1945. O próprio Kaltenbrunner acabará por confiar aos juízes coisas que porão o banco dos réus muito agitado. Acabará por provar que esses senhores não têm razões para se indignarem com a sua proximidade; está ainda para se ver qual deles é o mais «porco sujo».
Mas não nos precipitemos. Cada um dos réus teve muito tempo para revelar ao mundo a sua facinorosa e dúplice actividade. Por tudo e por nada eles descobriam os podres uns aos outros.
Eis Ribbentrop que faz o seu depoimento. Toda a gente já sabe que a política externa nazi provou ser catastrófica para a Alemanha. E contudo o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros tenta justificá-la. Nestes entrementes Papen diz bastante alto aos seus vizinhos que ele tinha dado bons conselhos, mas em vão, a Ribbentrop. Ao que este reagiu dizendo e Goering num tom de ódio:
— Àquele devíamo-lo ter matado há muito.
Goering concorda com a cabeça e lembra que o «oposicionista» Papen tinha recebido de Hitler, como recompensa, a insígnia de ouro do partido nazi. Papen logo se desculpa declarando que Hitler o fizera só para camuflar as suas dissensões. Goering murmura com um gesto de desprezo:
— Mentiroso, cobarde...
E agora é O Mito do Século XX que se torna objecto de discórdia. Rosenberg sempre tivera muito orgulho nas suas obras de filosofia. Mas o advogado não devia ter cometido a parvoíce de perguntar qual a opinião de Schirach a esse respeito. O Chefe da Hitlerjugend declara, por entre os risos da sala, que nunca conseguira ler isso até ao fim. Depois Gilbert viria a fazer a mesma pergunta aos outros réus que asseguram que não leram o livro de Rosenberg. Só Streicher teve pena do filósofo nazi. Disse que O Mito do Século XX era uma obra muito séria mas de uma profundidade para ele inacessível.
No entanto havia alguém que se metia menos que os outros nessas disputas. Não acusava nem defendia ninguém. Com sessenta e nove anos, nunca tinha pertencido à elite nazi. Representante típico do militarismo alemão, Raeder tinha empregado todas as suas aptidões a criar a frota rapace da Alemanha. Tinha ajudado Hitler a armar-se secretamente e a preparar a marinha para uma grande Guerra. E quando a guerra rebentou foi por ordem sua que os mares e oceanos se tornaram arenas de banditismo. Em 1943 Hitler substituiu-o por Doenitz, e o velho almirante passou dignamente para a reforma. Ei-lo agora no banco dos réus, sem fazer ondas.
Mas que se passa agora? Porquê toda essa agitação entre os réus? Goering virou-se para Raeder, os olhos a faiscar de cólera. Doenitz afasta-se dele ostensivamente. Keitel abana a cabeça com ar reprovador.
Acaba de saber-se que durante a instrução Raeder fez uma declaração por escrito na qual tentou caracterizar os seus «colegas».
Goering, segundo ele, exerceu uma influência desastrosa sobre o destino da Alemanha. As suas principais particularidades eram uma inimaginável vaidade e uma ambição desmesurada, o desejo de espantar os outros, a falsidade, o egoísmo... Dava nas vistas pela sua cupidez e maneiras efeminadas, indignas de um soldado.
A opinião que Raeder tem do seu sucessor Doenitz não é melhor.
«As nossas relações — afirma — eram muito frias porque eu não gostava da sua arrogância, da sua falta de tacto... As suas tendências políticas muito fortes criaram-lhe dificuldades no cargo de comandante da Marinha. O seu último discurso à Juventude Hitleriana fez com que ele caísse no ridículo em todos os meios e valeu-lhe a alcunha de «garoto hitleriano».
O «doce» Raeder não esqueceu Keitel. Apresenta-o como
«um homem de inimaginável fraqueza, que deve a esse traço do seu carácter o ter-se mantido tanto tempo no seu elevado posto».
O advogado de Keitel ia fazer uma pergunta a Raeder, mas o seu constituinte pediu-lhe para não o fazer. Quanto a Schirach, não escondia a satisfação de ver mais uma vez esse «porco gordo» do Goering em maus lençóis.
O procurador-adjunto soviético Pokrovski queria ler ao Tribunal o texto completo dessa declaração, mas o advogado de Raeder opôs-se-lhe formalmente. No decorrer da discussão, disse Jodl ao seu advogado:
— Que o leiam!
Keitel fulminou-o com os olhos e protestou. Com o dedo apontado para Pokrovski, gaguejou:
— Interrompam-no!
Hess, presa da hilaridade da querela, desatou à gargalhada.
Durante a suspensão da audiência, Jodl disse ao doutor Gilbert por que não tinha levantado objecções à leitura da declaração.
«Ele leu-me a passagem que a ele se referia — conta Gilbert nas suas memórias. — Raeder reconhecia aí que Jodl, contrariamente a Keitel, tinha uma posição independente face a Hitler, e que com frequência tinha conseguido levar a melhor os seus pontos de vista».
Doenitz, em contrapartida, estava furioso com Raeder. À noite, na cela, denegriu-o na presença de Gilbert:
— Não suporto que as pessoas virem a casaca consoante as circunstâncias. Por que diabo as pessoas não podem ser honestas!?
Mas que valor se podia dar ao espírito de lealdade de Doenitz? Durante a guerra um submarino alemão tinha torpedeado sem aviso um cargueiro inglês Athenia. Doenitz deu ordem de abafar este acto de banditismo e com essa finalidade mandou fazer uma falsificação: uma página do diário de bordo do submarino foi arrancada e substituída por outra. Entre a espada e a parede, Doenitz teve de reconhecer isto em Nuremberga.
Para se ver até que ponto ia a «amizade e união» destes homens que, ainda recentemente, se intitulavam governo alemão, basta dizer que se desunhavam em dar provas da hipocrisia dos que, entre eles, pelas suas confissões, simulavam o arrependimento. Foi o que fizeram em relação a Frank. Speer constatou que uma vez que o diário íntimo de Frank tinha caído nas mãos da Acusação, ele não podia fazer mais nada a não ser confessar.
— No fundo ele é mais culpado que nós. E sabe-o.
Speer, por sua vez, atolou-se quando teve a ideia de lançar a sua «bomba» na sala afirmando ter preparado um novo atentado contra Hitler depois do fracasso da «conspiração dos generais». Queria fazer crer que o projecto tinha amadurecido gradualmente, à medida que ia descobrindo a natureza criminosa do seu senhor e amigo. Era essa, sem dúvida, a táctica que o seu advogado doutor Flachsner achava também ser a melhor. De qualquer modo, estavam a agir concertadamente.
Flachsner sobe à tribuna e pergunta ao seu cliente:
— Senhor Speer, a testemunha Stahl declarou no seu depoimento que em meados de Fevereiro de 1945 você lhe havia pedido um outro veneno para matar Hitler, Bormann e Goebbels. Por que concebeu esse projecto?
E Speer respondeu com o ar de um homem que tivesse consagrado anos da sua vida à luta contra o fascismo.
— Quanto a mim não havia outra solução.
Depois expôs em pormenor o seu plano de assassínio:
— Desde 20 de Julho(7) que até os colaboradores mais chegados de Hitler não podiam entrar no seu abrigo sem que os bolsos e pastas lhes fossem revistados pelos SS. Eu, que era arquitecto, conhecia bem esse abrigo. Tinha um sistema de ventilação semelhante ao desta sala. Não era difícil fazer penetrar o gás na conduta de aspiração que ficava no jardim da Chancelaria... Em meados do mês de Fevereiro de 1945 mandei chamar o director do meu departamento de munições, Stahl, e dei-lhe parte da minha intenção...
«Dificuldades de ordem técnica» tendo-o pretensamente impedido de levar a bom termo o seu projecto, ele concebeu um outro: raptar dez grandes chefes nazis, incluindo Hitler, e mandá-los de avião para Inglaterra. Mas também nesse caso ele falhou: «os conjurados linham roído a corda».
A declaração de Speer era de facto inesperada para os outros réus, que ficaram de boca aberta. Depois foi o desencadear da indignação. O mais exuberante era Goering. Abanava a cabeça apontando com o dedo para Speer. Goering lembrava-se bem da história do atentado frustrado de Julho de 1944 e de certeza se não esquecera que Speer tinha invectivado os conspiradores e sentira grande regozijo ao ver o seu querido Fuhrer são e salvo.
Durante a suspensão da audiência, o ex-marechal do Reich perguntou colérico ao ex-ministro do Armamento com é que ele se tinha atrevido a enveredar por semelhante forma de defesa. Seguiu-se uma violenta discussão que culminou em Speer mandar Goering para todos os lados. Magoado com tanta brutalidade, o «Fuhrer do banco dos réus» voltou para o seu lugar como um cão batido. À noite, na cela, queixou-se ao médico:
— Sim, doutor, hoje o dia foi mau. Que vá para o raio que o parta, esse imbecil do Speer!... Como foi possível ele ter descido tão baixo para fazer semelhante indecência só na esperança de salvar a pele nojenta! Estou quase morto de vergonha!
Rebaixando Hitler, Speer tinha porém o cuidado de não causar dano aos seus co-réus. Mas a Goering tratou-o sem contemplações. O ex-ministro do Armamento revelou ao Tribunal que num encontro Hitler tinha qualificado Goering de traidor, corrupto, morfinómano.
Foi a primeira vez que semelhantes palavras partiram do banco de réus e não da barra das testemunhas ou da tribuna do Ministério Público. Speer, não satisfeito com repetir a quem quisesse ouvi-lo opinião de Hitler sobre o seu «fiel paladino», fez do facto o consequente comentário:
— Fiquei extremamente confuso... Se o chefe de Estado sabia isso há muito, nunca devia ter deixado entregues nas mãos desse homem funções das quais dependiam tantas vidas humanas.
Era óbvio que esta declaração não fora feita para agradar Goering. Sobretudo porque não se sabia se Speer se ia ficar por aqui. Goering tentou influenciá-lo por intermédio de Schirach que o convidou a «comportar-se com mais hombridade». Mas Speer mandou-lhe responder que
«era a ele que teria competido comportar-se com mais hombridade durante a guerra e assumir as suas responsabilidades era vez de se atordoar com narcóticos...».
As revelações de Speer tinham posto todos os réus em polvorosa.
Rosenberg opinava:
— Uma vez que a tentativa de atentado fracassou, ele teria feito melhor se se calasse.
Schacht estava exultante:
— Foi uma defesa magistral!
— Francamente, devíamos enforcá-lo! — disse Funk.
Claro que, quanto a Funk, não era por causa dos seus crimes que ele tinha o desejo de o enforcar, mas tão somente porque o outro tinha inventado esse álibi ao passo que ele nada de semelhante tinha encontrado durante todo o processo.
Quanto a Frank, esse histérico que ainda recentemente amaldiçoara Hitler, não se coibia de crivar Speer de injúrias:
— Não esqueçam que era o próprio Speer quem dizia que ia varrer do céu a aviação inimiga.
von Papen, que tinha por Goering uma aversão figadal, aproveitou o incidente para lhe atirar mais uma pedrada. No decorrer do almoço disse ao seu vizinho de mesa:
— A declaração de Speer acaba com esse bola de unto.
Schacht e Neurath concordaram.
— Goering perdeu todo o crédito junto do povo alemão.
Goering parecia, efectivamente, uma alma penada. Depois do almoço disse a Hess e a Doenitz:
— Nunca devíamos ter confiado em Speer.
Depois foi ter com Rosenberg e Jodl e garantiu-lhes que Speer estava a mentir quando disse que «dificuldades de ordem técnica» o tinham impedido de levar a bom termo o seu projecto. Nunca ninguém revistava a sua pasta, ele poderia pois, se quisesse, ter matado Hitler.
Os réus fizeram frente comum no ataque a Speer, ou quase, porque tinham inveja desse «pecador arrependido» ou então detestavam-no de todo o coração.
A briga entre Speer e Goering prosseguiu em plena audiência. O primeiro tentava convencer o Tribunal de que tinha tentado participar, embora um pouco tarde, na luta contra o hitlerismo. O outro, tudo fazia para que os juízes não acreditassem nesse «favorito de Hitler, nesse renegado». Renegado porque Speer tinha de súbito ido contra aquilo a que Goering chamava «linha de solidariedade» à qual a maioria dos réus se agarrava.
— Trata-se bem de solidariedade! — contra-atacou Speer.
E apontando para os seus antigos colegas, acrescentou:
— Cada qual devia pretensamente estar de relações amigáveis com todos os outros, mesmo quando mutuamente se apunhalavam pelas costas. A esse respeito eu era como os restantes.
As reservas de factos deste género continuam inesgotáveis. Todos os duzentos e cinquenta dias que o processo durou traziam múltiplas confirmações da absoluta falta de escrúpulos, da perfídia e do ódio recíproco dos réus. E agora que os revanchistas alemães ocidentais não se cansam de arrastar pela lama o Tribunal de Nuremberga com a finalidade de desculparem os hitlerianos condenados, gostaria de citar as palavras que nesse Tribunal pronunciou Speer. Relembrando «todos esses chefes» que, nos últimos dias da guerra, fugiam do inferno da capital, acrescentou:
— Mas nenhum deles pensou em poupar o povo de quaisquer efeitos dessa loucura. Cada vez que penso nisso encho-me de raiva. Nenhum deles deve entrar na História como homem minimamente respeitável. Que todo o amaldiçoado sistema nazi, juntamente com todos os que nele participaram, caia na ignomínia e na vergonha que merecem! E que os alemães os esqueçam e se lancem na construção de uma nova vida assente numa qualquer base democrática sensata.
À medida que a morosa máquina da Justiça se aproximava lenta mas seguramente do seu termo, os ex-chefes nazis cada vez mais se iam dando conta da absoluta ineficácia do seu método de defesa. Convencidos de como eram baldados os seus esforços de contestação do Estatuto do Tribunal Internacional, sobretudo do artigo respeitante à responsabilidade da agressão, descobriram subitamente que a política agressiva de modo nenhum era seu monopólio. Evocaram o século XIX, dito «século de ouro» porque nesse tempo a ninguém passava pela cabeça demandar judicialmente o agressor. E puseram-se a ajustar as guerras de rapina do século em questão ao Estatuto do Tribunal Internacional.
Goering interessou-se pela penhora dos Estados Unidos sobre a Califórnia e o Texas. E chegou à conclusão seguinte:
«Também era uma mera guerra de agressão com vistas à expansão territorial».
Rosenberg entrou em discussão com o doutor Gilbert a propósito da política inglesa na China do século XIX.
— E isso da «porta aberta» na China? Seria democracia mover, uma guerra para que a Inglaterra pudesse envenenar com ópio trinta milhões de chineses? Já alguma vez viu esses antros do ópio? São bem piores que os campos de concentração. Foi assim que milhões de chineses foram moralmente assassinados para que a porta continuasse aberta ao comércio estrangeiro.
E Ribbentrop de reiterar:
— Não ouviu falar da maneira como os americanos massacraram os índios? Será que eles também eram uma raça inferior? Sabe quem inventou os campos de concentração? Os ingleses. E sabe porquê? Para obrigarem os boers a depor as armas.
Era no domínio da política racial que com mais afinco se procuravam as analogias. Rosenberg, presa de maus pressentimentos, deitou para trás das costas o amor-próprio de autor e renunciou publicamente ao seu pioneirismo declarando sem peias que não podia considerar-se o «criador da teoria racial». E por intermédio do seu advogado depositou na mesa dos juízes um estendal de extractos de obras de racistas americanos, ingleses, franceses. Do que ele mais gostava era de Passing of the Great Race (Fim de uma Grande Raça) do americano Madison Grant. Esse livro contém muitas leis aprovadas pelo Congresso americano que, para conservar a «pureza da raça» limitava a imigração dos oriundos da Europa meridional e oriental e em contrapartida encorajava a dos europeus do Norte e Oeste.
O advogado de Rosenberg citava os parágrafos do livro de Grant que mais se assemelhavam aos escritos do réu, tentando assim provar que este último não tinha começado as suas investigações «a partir do zero».
Schirach breve utilizou a mesma táctica. Referiu-se também aos racistas americanos que, mais do que ninguém, teriam exercido influência na formação dos seus sentimentos anti-semitas.
Por que se davam eles a esse trabalho? É que, na verdade, ninguém sustentava que a Alemanha nazi tenha sido a primeira a desencadear guerra de agressão. Ninguém negava que antes de Rosenberg houve obscurantistas que elaboraram a «teoria racial». O fascismo outra coisa não é que a mais violenta, belicosa e feroz expressão do imperialismo. O fascismo aproveitou-se de toda a experiência agressora do imperialismo acrescentando-lhe, claro, muitos elementos novos com o fim de transformar a guerra num banditismo metódico.
A desgraça é que até então as massas populares não tinham oposto ao agressor uma resistência organizada. Os povos careciam de consciência política e de organização para determinarem quem era o agressor e o modo de castigá-lo. Os réus podiam neste campo multiplicar os exemplos. Mas isso não lhes serviu de nada. O grande mérito do processo de Nuremberga foi precisamente o de ter privado os políticos dos Estados agressores da sua arma habitual: a impunidade da agressão.
Toda a gente, incluindo os inculpados, compreendia perfeitamente que Rosenberg, Schirach, Streicher tinham sido postos em tribunal por causa da sua odiosa propaganda que, na linguagem jurídica de qualquer país civilizado, se chama instigação aos piores crimes. As ideias bárbaras do nazismo tinham sido transformadas em actos sangrentos. E era por essas ideias e esses actos que a camarilha hitleriana, da qual faziam parte Rosenberg, Schirach e Streicher, tinha sido levada a julgamento.
O processo de Nuremberga não se desenrolava numa redoma impenetrável. Fora do Palácio da Justiça a vida era fervente de paixões políticas, todos os dias chegavam novidades à sala de audiências. Os réus devoravam os jornais que os seus advogados lhes davam. Procuravam avidamente comunicados sobre as divergências no seio da coligação anti-hitleriana. Tal como o frango faminto só sonha com milho, Goering e Ribbentrop teriam gostado de se empanzinar em conflitos entre o ocidente burguês e a União Soviética.
Nos primeiros meses do processo a imprensa estrangeira, no seu conjunto, estava longe de regozijar os réus. Os jornais de todo o mundo anunciavam que o ministro do Interior do governo Quisling tinha sido executado na Noruega, que Rudolf Ferdinand Hoess, chefe do campo de Auschwitz, tinha sido levado debaixo de escolta para Varsóvia para aí ser julgado, que o processo do governador hitleriano Karl Frank estava a ser preparado na capital da Checoslováquia. Recentemente tinha saído nos jornais uma notícia muito desagradável para os réus: o presidente dos EUA Truman teria recebido de Inglaterra a proposta de serem utilizados os criminosos de guerra condenados como cobaias nas experiências atómicas no Pacífico...
Mas à medida que o fim das hostilidades recuava no tempo, a imprensa ocidental (sobretudo a americana) publicava cada vez mais informações sobre os primeiros sintomas de tensão entre o Ocidente e o Leste. E quanto mais frequentes eram essas informações mais crescia a animação entre os réus. No decorrer das audiências eles juntavam-se para comentarem os últimos acontecimentos mundiais. O tom das suas intervenções tornava-se mais arrogante, davam a entender pela sua atitude que compreendiam muito melhor que os seus acusadores ocidentais as tarefas que esperavam o mundo imperialista.
...Estávamos em Março de 1946. Ao entrar na sala antes da audiência vi uma cena muito curiosa. O reservado dos réus parecia uma colmeia em efervescência. Goering tinha saído do seu lugar na extremidade para se ir pôr ao centro. Ribbentrop, Rosenberg, Doenitz, Frank, Sauckel, Schirach amontoavam-se à volta dele. Do outro lado pontificava o grupo Schacht, Papen, Fritzsche, Seyss-Inquart, Neurath. Como sempre lá estava o doutor Gilbert, indo de um grupo para outro.
Todos os réus, sem excepção, estavam radiantes. Em certos rostos aparecera um clarão de esperança.
Que tinha acontecido? É que nessa manhã os jornais americanos traziam em título de primeira página:
«Todos unidos para travar os russos!»
Era o discurso de Fulton, de triste fama, no qual Churchill apelava ao mundo ocidental para que fizesse uma aliança anti- soviética, maldizia as democracias populares e lançava para a mesa do grande jogo político o antiquado trunfo do anticomunismo.
Ao tomar conhecimento do texto, Goering ganhou ânimo ao ponto de declarar:
— No Verão passado não esperava chegar ao Outono. Mas cheguei, bem como ao Inverno e à Primavera seguinte. Se durar até ao próximo Outono, não há dúvidas de que verei ainda mais um Outono, mais um Inverno, mais uma Primavera, mais um Verão.
E concluiu satisfeito, com um sorriso sardónico:
— Os únicos aliados que ainda o continuam a ser são os quatro procuradores, e só estão unidos contra os vinte arguidos.
Esfregava as mãos, ria de contente, expandia-se diante do doutor Gilbert:
— Naturalmente, eu já lho tinha dito. Sempre assim foi. Temos de novo a velha balança de forças.
Gilbert perguntou-lhe se ele pensava que a Inglaterra, ao assinar o acordo de Munique(8), tinha consentido que a Alemanha estendesse» as suas fronteiras para Leste, em detrimento da Rússia.
— Claro — respondeu Goering como se isso fosse a coisa mais evidente do mundo. — Contudo eles tiveram medo que a Alemanha se tomasse forte demais. Agora é a Rússia que os inquieta. Sabe, doutor, se eu ao menos pudesse ter uma conversa franca com Sir David Maxwell-Fyfe(9) diante de um copo de whisky, aposto que ele seria obrigado a admitir que os ingleses desejariam ardentemente a nossa entrada em guerra contra a Rússia.
Goering salientou de seguida que os americanos já há muito deviam ter encontrado uma linguagem comum com a Alemanha hitleriana.
— A maioria dos nossos chefes — declarou ele — teriam ficado contentes por cooperar convosco.
A discussão não era menos animada no grupo de Papen. Este disse depois de ter lido o resumo do discurso de Churchill:
— Caramba, ele atira-se para a frente!
— Aí está — constatou Doenitz com alguma satisfação —, ele regressa agora à sua antiga política.
Neurath também tinha uma palavra a dizer:
— Naturalmente que Churchill fez bom acolhimento à ajuda da Rússia quando tinha necessidade dela. Mas em primeiro lugar está sempre o Império Britânico. Ele não devia ter feito tantas concessões aos russos em Teerão e em Casablanca.
— Ialta, Ialta — corrigiu Doenitz. — Ele não devia ter dado tanto aos russos quando já era manifesto que a Alemanha ia perder a guerra. Foi o que eu escrevi a Eisenhower quando ainda era alguém.
O entusiasmo inspirado aos hitlerianos pelo discurso de Churchill ganhou tais proporções que não hesitaram em apresentar um requerimento para a sua convocação na qualidade de testemunha. E Rudolf Hess disse para Goering:
— Um dia você será o Fuhrer da Alemanha.
E não era só o discurso de Churchill que servia de reconforto aos antigos bonzos nazis. Chegou a informação de que as autoridades americanas tinham absolvido o general hitleriano Student. Além do discurso de McNarney, comandante das tropas americanas na Alemanha, e o último livro do diplomata americano Bullit que fez um desenvolvimento do programa fultoniano de Churchill.
Goering rapidamente tratou de se orientar. De súbito, nas suas declarações, conta em pormenor como em 1940 a Inglaterra e a França se preparavam para bombardear as regiões petrolíferas do Cáucaso. A defesa logo se apressa a corroborar a coisa por meio de documentos que os alemães tinham confiscado em França. A finalidade desta manobra era a de abrir entre os delegados soviéticos e ocidentais no Tribunal Internacional um abismo que poderia vir a engolir todo o processo de Nuremberga.
Houve, pois, muito antes do fim do processo de Nuremberga, complicações sérias na situação internacional. O espantoso é a pouca influência que elas exerceram sobre os representantes das quatro potências no Tribunal Internacional.
Como uma altercação entre, digamos, Jackson e Rudenko faria as delícias dos réus! Mas eles não lhes deram essa alegria. Lançando hoje um olhar retrospectivo, devo dizer que no conjunto (salvo algumas excepções) o processo foi um modelo de colaboração fecunda e leal entre as quatro potências. E essa colaboração, calorosamente aceite pela opinião pública, estendia-se a toda a actividade dos delegados.
Desde os primeiros dias que réus e defensores viram no processo uma espécie de litígio entre sociedades por acções das quais uma tinha ido à falência mas achava que o ajuste das contas antigas devia inspirar-se no princípio de «responsabilidade partilhada». Era por isso que de vez em quando eles evocavam a ajuda concedida pelas potências ocidentais ao Estado nazi na sua política externa.
Isso punha os representantes ocidentais do Ministério Público numa posição embaraçosa. E os soviéticos acharam-se perante o dilema: polemizar com os seus colegas americanos, britânicos e franceses, a propósito da política muniquense do Ocidente, com o risco de se desviarem dos objectivos que a humanidade tinha imposto ao processo de Nuremberga (era isso o que os réus queriam), ou então dizerem de uma vez por todas aos grandes criminosos de guerra alemães: nós, os mandatários dos povos de todo o mundo, julgámos-vos pelos crimes cuja gravidade e horror não são atenuados pelo facto de ter havido pessoas que vos ajudaram a desencadear a guerra.
Esse o caminho seguido pelos procuradores soviéticos, e os outros fizeram o mesmo.
O procurador-geral americano era Robert Jackson, então membro do Supremo Tribunal dos Estados Unidos. Seja dito em sua honra que ele não negava que na questão alemã os meios dirigentes do seu pais tinham praticado antes da guerra uma política desprovida de sensatez. Na sua declaração de abertura, disse ele nomeadamente:
— Os elementos democráticos que tinham tentado dirigir o povo por meio da nova e frágil República de Weimar não foram suficientemente apoiados pelas forças democráticas do resto do mundo — inclusive pelo meu país — para poderem singrar.
E voltou ao assunto ao falar da política das grandes potências imperialistas nos anos trinta, dos problemas da salvaguarda da paz aquando acções agressoras da Alemanha nazi:
— Também não respondemos pela moral e sensatez de nenhum país, incluindo do meu, face a estes problemas.
Alguns anos depois veremos que a história se repete. A situação nova irá até certo ponto agir sobre o próprio Jackson. Mas em Nuremberga, a sua experiência de homem de leis e de político tinha-lhe dado azo a tirar uma conclusão correcta do papel e de todo o alcance do processo. Os seus discursos, os seus interrogatórios eram a prova de que ele estava decidido a denunciar a camarilha hitleriana que, a determinado momento, se tinha apossado de grande parle da Europa e que, se tivesse sido favorecida por certas circunstâncias, poderia ter atacado países do continente americano.
Jackson dava-se perfeitamente conta que os povos do mundo, incluindo o povo americano, encaravam com esperança o processo de Nuremberga e, como todo o político burguês, sabia que um tom justo das intervenções neste processo contribuiria para reforçar a sua popularidade na opinião pública americana.
Mas sabia também outra coisa. Um dia, em Londres, durante a assinatura do acordo sobre a instituição do Tribunal Militar Internacional, disse ao general soviético Nikitchenko que ia ser juiz no processo de Nuremberga:
—Sabe, general, muitas pessoas na América não me perdoarão este acordo.
Nikitchenko descortinou sem custo do que se tratava. Eram naturalmente os reaccionários americanos que deploravam a derrota da Alemanha hitleriana e temiam que já não houvesse na Europa força capaz de «estrangular» as massas populares. Por isso deu a Jackson o seguinte conselho:
— De regresso à América fale pela rádio, diga ao povo americano o que pensa do futuro processo.
Mais tarde, quando Jackson voltou da América, as suas primeiras palavras a Nikitchenko foram:
— Sabe, general, falei na rádio e isso funcionou muito bem...
No processo de Nuremberga Robert Jackson não se limitava a evocar o passado, falava do futuro. Ao mesmo tempo que estigmatizava os crimes nazis, fazia ressaltar a ideia de que processo algum protegeria a humanidade se fosse retomada a política antiga no referente à questão alemã. Foi isso o que desagradou aos meios dirigentes dos EUA. A imprensa americana reaccionária atirou-se a Jackson. Os ataques iam-se multiplicando à medida que a política americana do após-guerra visando restabelecer o militarismo alemão se intensificava.
Em Nuremberga Jackson exigiu em termos enérgicos que Krupp fosse levado a julgamento por cumplicidade na agressão hitleriana e nos crimes de guerra. Declarou com franqueza:
— Os «interesses da Justiça» não podem ser salvaguardados se não nos preocuparmos com os direitos dos homens de quatro gerações cujas vidas foram sacrificadas ou ameaçadas por causa dos armamentos de Krupp, e dos homens de amanhã que não poderão sentir-se em segurança se pessoas como Krupp escaparem a toda e qualquer condenação no seguimento de um processo como este.
Mas logo que a situação mudou, logo que os Krupp americanos exprimiram a sua indignação pela sua atitude, Robert Jackson viu um abismo a cavar-se-lhe por debaixo dos pés. Quando se pôs a questão de levar efectivamente a um tribunal internacional os industriais alemães, incluindo Alfred Krupp, Jackson mudou bruscamente de atitude. Fez uma declaração diametralmente oposta a tudo o que anteriormente tinha dito: os Estados Unidos
«não teriam o dever moral nem jurídico de intentarem processos deste género».
Foi assim que se produziu uma dessas metamorfoses correntes no mundo burguês. Mas, para ser objectivo, devo salientar uma vez mais que no processo de Nuremberga Jackson contribuiu substancialmente para o desmascaramento do fascismo e do militarismo alemães. Por isso a delegação soviética conserva dele a melhor recordação.
Algumas palavras a propósito do vogal americano Thomas Dodd. Era muito menos erudito que Jackson. Mas os seus discursos, os seus interrogatórios golpeavam sem contemplações os nazis e a sua política. Jornais de todo o mundo publicaram a fotografia de Thomas Dodd apresentando aos juízes uma prova material: a cabeça mumificada de um polaco executado, que servia de «adorno» em cima da secretária do chefe de um campo de morte. Advogado nova-iorquino experiente, Dodd sabia muito bem o que devia fazer no processo para se tornar popular. O seu requisitório de Nuremberga fá-lo-á eleger, pouco depois, para o Senado dos EUA. Mas o senador Dodd irá navegar nas águas da política americana agressora do após-guerra, política que ele tão bem tinha pressentido no processo de Nuremberga. Promovido a um cargo elevado na Subcomissão de Segurança Interna e investido de grandes poderes, virá a adorar aquilo que antes linha fulminado. Em Nuremberga demonstrara de maneira convincente que o anticomunismo não passava de uma camuflagem da política de agressão. Mas aqui, nos Estados Unidos, tornou-se um veemente preconizador do «anticomunismo». Atira-se a Cyrus Eaton pela única razão de este não ter medo dos contactos com os «comunistas russos». Proclama um manifesto destinado a ser, segundo ele, a profissão de fé de todos os que declararam uma «luta de morte contra o comunismo mundial».
Assim foi e nisto se tornou Thomas Dodd, vogal americano no processo de Nuremberga.
Mas havia lá outros magistrados dos Estados Unidos.
Lá estava, nomeadamente, o procurador-adjunto Telford Taylor, caído em desgraça no círculo dos reaccionários americanos por ter previsto o futuro e ter insistido demasiado no perigo de um ressurgimento do militarismo alemão. No seu requisitório contra o Estado-Maior-General alemão, apresentou uma quantidade de documentos e outras provas que demonstravam sobejamente os piores crimes contra a paz e a humanidade perpetrados por esta organização.
Declarou Taylor, entre outras coisas:
— A cavilha mestra do militarismo alemão foi, ao longo dos anos, um grupo de chefes militares profissionais, conhecidos por toda a gente pelo nome de «Estado-Maior-General alemão». É por isso que denunciar e desacreditar este grupo declarando-o criminoso é muito mais importante que a sorte das pessoas fardadas deste grupo na sua qualidade de indivíduos.
Não havia melhor maneira de o dizer! Taylor recomendava que durante anos se neutralizasse esta organização extremamente agressiva. Mas o Tribunal Internacional — mais exactamente a sua maioria burguesa — decidiu de outro modo. Rejeitou a petição de que o Estado Maior alemão fosse declarado culpado, o que lhe valeu os ruidosos panegíricos da imprensa reaccionária do Ocidente. Quanto a Taylor, os militaristas americanos deram-lhe claramente a entender que não tinham nada a fazer com um general como ele. A Army and Navy Journal fez chover sobre ele e sobre Jackson uma tempestade de epítetos pouco lisonjeiros pelo facto de eles terem ousado inculpar «representantes da honrosa profissão militar», generais que «mais não tinham feito do que cumprir o seu dever». Mas foi precisamente a este respeito que Jackson disse:
— Estes militares estão perante vós não por terem servido o seu país, mas por o terem dominado e conduzido juntamente com os outros para a guerra. Não estão aqui porque perderam a guerra mas sim porque a desencadearam. Os políticos podem ter pensado que eles eram soldados, mas os soldados sabem que eles eram políticos.
Os fantarrões dos militares não quiseram dar o braço a torcer e levaram a cabo a ameaça que tinham feito a Taylor. Mandado para a reforma, tornou-se alvo dos mais brutais ataques. Trataram-no de «vermelho».
Alguns anos depois do processo de Nuremberga, li artigos e livros de Telford Taylor. Neles, o autor condescende por vezes com a «guerra fria», mas no geral a sua actividade literária visa desmascarar o militarismo alemão.
Recordo-me de Robert Kempner, vogal americano. Em Nuremberga, fez ele um muito considerável e útil trabalho. Mas o mais digno de nota é ele ter continuado, depois do fecho do processo, a desmascarar os criminosos de guerra na República Federal da Alemanha onde vive a maior parte do tempo. Não foi por acaso que um porta-voz dos revanchistas de Bona, o general nazi na reforma Alfred Keller (esse mesmo Alfred Keller que comandava a aviação hitleriana na frente de Leninegrado) reclamou há alguns anos que Kempner fosse levado a julgamento e publicou na Deutsche National Zeitung und Soldaten-Zeitung um «Libelo acusatório contra o ex-vogal americano no processo de Nuremberga». Esse documento, se assim se lhe pode chamar, imputa a Kempner a «cumplicidade em assassínio, particularmente por ter condenado o general Jodl».
Aos olhos dos revanchistas, Robert Kempner é uma recordação das acusações e do veredicto de Nuremberga.
O procurador-geral britânico era sir Hartley Shawcross. Com quarenta e dois ou quarenta e três anos de idade, ele ocupava o cargo de attorney (procurador) geral no governo trabalhista recentemente formado, e era membro da Câmara dos Comuns.
A sua nomeação teve pois lugar logo no início da sua carreira de chefe do Ministério Público da Grã-Bretanha. Era com certeza por isso que as suas presenças no processo eram de curta duração. Em todo o caso, pronunciou a declaração de abertura e o discurso de encerramento.
A delegação inglesa tinha na realidade à cabeça o procurador-geral adjunto David Maxwell-Fyfe, antecessor de Shawcross no cargo de attorney geral. A delegação tinha sido formada ainda pelo governo conservador de Churchill e era Maxwell-Fyfe quem deveria ter sido o chefe. Os conservadores cederam o poder aos trabalhistas e Maxwell-Fyfe passou o seu lugar a Shawcross aceitando ser adjunto deste.
Atarracado, quase careca, de belos olhos num rosto expressivo, era um típico representante da escola forense inglesa, mestre na arte do interrogatório. Tornou-se um dos primeiros personagens do Ministério Público. Os réus e muitas testemunhas experimentaram a sua virulência à menor tentativa de quererem negar factos evidentes. Nos corredores do Palácio da Justiça dizia-se que ele abocanhava como um buldogue.
Há que dizer em sua honra que a crescente tensão da atmosfera política internacional não o influenciou. Do primeiro ao último dia do processo, Maxwell-Fyfe deu-se perfeitamente conta da importância que havia em manter a união entre os procuradores com vista a desmascarar, condenar e punir os agressores nazis.
O Ministério Público francês contribuiu em grande medida para que justiça fosse feita em Nuremberga.
O procurador-geral francês era de Menthon. Comissário da Justiça no Comité de Libertação Nacional durante a guerra, veio a ser ministro da Justiça do governo de Gaulle. Regressou a França ainda no decorrer do processo e foi substituído por Champetier de Ribes, parlamentar muito antigo e membro da Resistência.
Segundo o acordo entre os procuradores sobre a repartição do trabalho, ao Ministério Público francês coube apresentar os documentos sobre os crimes dos hitlerianos contra a França, a Bélgica, a Holanda, o Luxemburgo. Bateu-se activamente em desvendar os mais graves crimes de guerra: massacres de resistentes e de reféns, recurso ao trabalho escravo, saque económico dos territórios ocupados. Os procuradores franceses desmascararam com provas à vista as tentativas de os hitlerianos se ilibarem alegando terem obedecido a ordens e utilizando outros desonestos processos.
O procurador-geral soviético era Roman Rudenko. Tinha trepado todos os escalões do Ministério Público, era um magistrado de invulgar experiência, um homem de vastos horizontes políticos, veterano do Partido Comunista. Na altura era procurador-geral da Ucrânia.
Quando o vi pela primeira vez em Nuremberga não tinha ele ainda quarenta anos. E era membro do Partido Comunista de há vinte anos a essa parte.
A sua situação no processo era ao mesmo tempo mais fácil e mais difícil que a dos seus colegas ocidentais. Diz ele na sua declaração de abertura:
— Meritíssimos Juízes, represento aqui a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas que foi quem mais sofreu com a invasão fascista e cuja contribuição para o esmagamento da Alemanha hitleriana e seus satélites foi imensa.
Isso tinha um enorme significado. Nenhum outro país tinha sido tão assolado pelos hitlerianos como o foi a URSS e nenhum outro tinha levado a cabo tantos heróicos esforços para salvar o mundo da peste castanha.
Rudenko não precisava de manter as reservas que por vezes se impunham ao procurador-geral americano. Já mesmo antes do processo Jackson tinha notado significativamente:
— Penso que se, no decurso dos debates, nos pusermos a examinar as causas políticas e económicas desta guerra, o processo trará prejuízos tanto à Europa como à América.
Quanto a Rudenko, não sentia esse receio. A acusação que levantámos contra a camarilha nazi assentava não só na base sólida de provas escolhidas cuidadosamente e sem falhas do ponto de vista jurídico, mas também no grande prestígio moral da política externa do Estado dos Sovietes que constantemente interveio contra o fascismo, contra o perigo de uma guerra de agressão desencadeada pelo Estado hitleriano. O procurador da URSS não tinha no seu caminho os escolhos de que os réus se poderiam ter aproveitado para tentarem denegrir o seu país.
Tudo isso favorecia, sem sombra de dúvidas, a posição e a actividade da delegação soviética. Mas, por outro lado, não podiam subestimar-se as dificuldades que ela tinha de ultrapassar.
Nuremberga era a sede do Tribunal dos Povos, e a humanidade via na presença dos representantes da URSS a garantia de que a reacção não conseguiria desviar o processo do bom caminho. Rudenko recebia uma quantidade de cartas de todos os países do mundo exortando-o a satisfazer os votos da humanidade ao castigar resolutamente os agressores hitlerianos. Entre os autores dessas mensagens havia alemães que, já em 1946, começavam a notar os primeiros sintomas de regeneração do militarismo na parte ocidental do seu país. Eis, por exemplo, a carta de Schulte, de Freifeld-no-Reno. Ao mesmo tempo que fazia o elogio do discurso do procurador soviético, Schulte anunciava-lhe com inquietação que os criminosos nazis já punham a cabeça fora dos seus covis sob a protecção das autoridades de ocupação ocidentais.
E eis também uma carta da América. É remetida pela «Sociedade dos Adversários de uma Terceira Guerra Mundial». Nela, Rudenko é informado de que, segundo dados da imprensa, as autoridades americanas teriam soltado o ideólogo nacional-socialista Karl Haushofer; esperava-se que o procurador soviético instasse para que ele fosse de novo posto na situação de detido e incluído na lista dos grandes criminosos de guerra.
Sim, incumbiam a Rudenko grandes tarefas históricas. E essas tarefas, essencialmente antifascistas, anti-imperialistas, devia ele levá-las a cabo em colaboração com magistrados burgueses que representavam as principais potências do mundo capitalista.
Ao reler ultimamente os autos do Comité do Ministério Público, de novo senti a mais viva satisfação pelos talentos de Rudenko, cuja acuidade política acrescida de flexibilidade garantiram a perfeita coesão do trabalho. Infelizmente os juízes do Tribunal Internacional, ao mesmo tempo que lavravam uma sentença justa no seu todo, não foram capazes de evitar certas divergências a propósito das quais o juiz soviético emitiu opinião à parte. Quanto aos procuradores, mantiveram-se unidos até ao fim. Uma parte desse mérito cabe certamente ao procurador-geral soviético pelo seu admirável tacto.
Rudenko sabia fazer reinar o entendimento no seio do Comité. Magistrado altamente qualificado, dotado de fina intuição política, conversador espirituoso com sentido de humor, ele inspirava aos seus parceiros tanto o respeito como a simpatia. Isso facilitava muito o trabalho conjunto.
Em Nuremberga cada procurador tinha a sua maneira de interrogar. A de Rudenko era muito incisiva e, para usar a linguagem desportiva, digamos que nele o knock-out se sobrepunha ao knock-down.
Goering e os outros réus recorreram, desde o início do processo a um meio muito primitivo de semear a discórdia entre os procuradores das quatro potências. Observando as regras da boa educação em relação aos ocidentais, tentaram fazer obstrução a Rudenko. Mal ele encetara a sua declaração de abertura e já Goering e Hess tiravam ostensivamente os auscultadores. Mas os nervos de Goering depressa cederam. Quando Rudenko pronunciou o seu nome, o Reichsmarschall de imediato voltou a pô-los e logo a seguir se pôs a tomar apontamentos. Quando o procurador-geral soviético acabou o interrogatório a Ribbentrop, Goering envolveu com um olhar de piedade o ex-ministro alemão dos Negócios Estrangeiros e concluiu:
— Ribbentrop já tem a sua conta. Está moralmente desfeito.
Só que Ribbentrop poderia ter dito o mesmo de Hermann Goering quando este voltou para o seu lugar depois de ter sido interrogado por Rudenko. Correu em Nuremberga um boato absurdo: Rudenko, revoltado pela impudência de Goering, tê-lo-ia abatido a tiro de revólver durante o interrogatório. Era o que anunciava a 10 de Abril de 1946 o jornal americano Stars and Stripes.
Íamos caindo de pantanas com esta absurda mentirola. Mas um jornalista americano apressou-se a tranquilizar-me:
— Porquê tanta indignação, comandante? Que importância tem a maneira como Goering seja eliminado? Como se ele se sentisse muito bem ao ser metralhado pelas perguntas assassinas do vosso procurador!
No dia seguinte, o jornal ávido de sensações saiu-se com outra peta. Já não tinha sido Rudenko mas Lord Lawrence, presidente do Tribunal Internacional, quem teria sacado debaixo da beca um revólver para matar Goering. Esta versão foi substituída por uma terceira: ninguém disparara contra o Reichsmarschall, este teria simplesmente sido acometido por «congestão cerebral». O que também não era verdade.
Fiquei maravilhado com o sangue-frio de Rudenko ao longo de todo o processo. Sangue-frio que ele soube manter mesmo durante o interrogatório de Rosenberg que não parava de se queixar da inexactidão das traduções: ele conhecia bastante bem o russo para se poder permitir essas chicanas. Mas também se via logo que ele o fazia de cada vez que Rudenko lhe fazia uma pergunta desagradável. Interromper a audiência por meio de recriminações pedantes era mais cómodo que responder concretamente. Sempre era tempo que ele ganhava.
Um dos mais dramáticos episódios foi talvez o interrogatório da testemunha Paulus. Este sabia em absoluto tudo o que respeitava aos preparativos da agressão hitleriana contra a URSS. Adjunto do comandante do Estado-Maior-General, ele tinha feito pessoalmente parte do «Plano Barbarossa». Por isso era ver qual dos advogados de defesa mais protestava quando Rudenko quis ler os seus depoimentos feitos em Moscovo. Exigiam que ele comparecesse em Nuremberga. Nos corredores gracejavam: não se corria o risco de Rudenko o sujeitar a um interrogatório cruzado! Uma coisa era o seu testemunho de Moscovo — diziam eles — e outra era o que ele diria em confronto como os seus chefes e amigos. E quando o presidente Lawrence, atento aos requerimentos e protestos da Defesa, perguntou «o que pensava o general Rudenko», foi grande a surpresa dos advogados: Rudenko aceitou imediatamente. Mas só os iniciados se aperceberam da mordente ironia do seu olhar. E como Lawrence, que não desconfiava de nada, se informou do tempo que seria necessário para a viagem da testemunha, Rudenko respondeu tranquilamente, direi mesmo que com uma ostensiva indolência:
— Não mais de cinco minutos, suponho, Meritíssimo. O marechal-de-campo von Paulus está em Nuremberga, nas instalações da delegação soviética.
O leitor deve sem dúvida ter adivinhado que ele previra a obstrução da Defesa e convocara Paulus de antemão (sem muito alarde). A resposta de Rudenko provocou o efeito do rebentar de uma bomba. Os defensores bateram em retirada, desistiram, mas Lawrence, irritado com a sua atitude, exigiu a comparência imediata de Paulus.
O interrogatório do marechal-de-campo, magistralmente conduzido por Rudenko, aniquilou a tentativa de a Defesa apresentar a agressão contra a URSS como uma «guerra defensiva» e revelou ao mesmo tempo aos representantes da imprensa mundial a má-fé dos advogados de defesa de Nuremberga.
Como já assinalei, Defesa e réus sempre apostaram no facto de a Alemanha hitleriana não ter alcançado bom número dos seus êxitos sem o concurso de certos meios do Ocidente. Por isso choviam os requerimentos respeitantes à convocação, na qualidade de testemunhas de defesa, de políticos como Daladier, Paul Boncour, Lord e Lady Astor, Vansittart, Londonderry. Por vezes sentia um verdadeiro desejo de que essas testemunhas comparecessem na barra: os seus depoimentos teriam contribuído para esclarecer a política de Munique que tão grande papel desempenhou na consolidação do movimento nazi e no desencadeamento da Segunda Guerra Mundial. Mas o procurador soviético protestou sempre energicamente, fazendo fracassar as menores tentativas de desviar as atenções do Tribunal do estabelecimento da culpabilidade pessoal dos réus e de submeter a julgamento as acções dos Estados que tinham instituído o Tribunal.
Rudenko tinha também já percebido a táctica dos arguidos e dos seus defensores que gostariam de prolongar o processo até às calendas gregas. Rosenberg, por exemplo, se o deixassem, teria gasto horas a citar as inúmeras obras de racistas americanos e da Europa ocidental. Mas nem ele nem Thoma, o seu advogado, o conseguiram. Quando este tentou arrastar o Tribunal para semelhante discussão, Rudenko declarou energicamente:
— A Acusação culpa o réu de factos concretos: guerra de agressão e atrocidades. Creio que o Tribunal não tem a intenção de ouvir um curso sobre a teoria das raças, sobre o nacional-socialismo ou outras ideologias.
E o Tribunal deu-lhe razão.
Não esquecerei nunca a impressão que causou na sala de audiência o seu discurso de encerramento. No dia seguinte — a 30 de Julho de 1946 — a imprensa americana anunciava:
«Os réus sentados no seu banco escutavam, pálidos e crispados, o representante do seu pior inimigo a estigmatizá-los com as mais duras palavras de que a Acusação jamais se servira».
No processo de Nuremberga qualquer réu podia ter um advogado à sua escolha. A cada um foi perguntado qual a sua preferência. Era mais fácil fazer a pergunta do que responder-lhe. Os antigos chefes da Alemanha pouco interessados estavam no Foro: sabiam o valor que ele tinha num regime da ilegalidade do arbitrário. Goering, no entanto, poderia ter-se lembrado de alguns advogados do processo de Leipzig. Esses mesmos cujos bons ofícios Dimitrov tão energicamente tinha recusado, segundo o princípio: «Deus me livre dos amigos, que dos inimigos encarrego-me eu». Não, não, Goering nada tinha a fazer em Nuremberga de defensores deste calibre.
Houve outras dificuldades. Muitos advogados alemães a quem fora proposto pleitear a causa dos grandes criminosos de guerra declinaram essa «honra» com uma firmeza polida. Outros, que tinham eles próprios oferecido os seus serviços ao Tribunal, tiveram de ser recusados porque chafurdaram também nos crimes nazis.
Não obstante, o problema foi resolvido. Cada réu teve o seu advogado e este, o seu assistente. Como muito justamente salientou um dos procuradores, os réus muito raramente tinham concedido essa regalia aos seus próprios compatriotas.
No entanto o Tribunal Internacional rechaçou as tentativas de os militaristas alemães «reforçarem» a Defesa pelos «seus próprios meios». Foi o que nomeadamente aconteceu a uma bastante singular diligência de Grammer, general de infantaria do exército hitleriano, que solicitava a admissão nas audiências de oficiais alemães superiores, a título de observadores e para «testemunharem a sua simpatia aos réus do OKW». O processo de Nuremberga tinha uma finalidade inteiramente diferente da pretendida por Grammer...
A Defesa contava com personagens bastante conhecidas, entre as quais grande número de universitários.
O Dr. Exner, por exemplo, maciço mas expedito se bem que quase septuagenário. Ensinara direito criminal em Leipzig, Munique e quis aproveitar a sua experiência para defender o general Jodl, um dos conselheiros militares de Hitler.
E o professor Hermann Jahrreis utilizou os seus conhecimentos de Direito Internacional e Constitucional para defender o governo hitleriano. Teve a duvidosa honra de pronunciar no Tribunal um discurso sobre «as questões de Direito Comum», que visava minar a autoridade do processo.
Havia também o Dr. Rudolf Dix, um dos pilares do Foro do Terceiro Reich. Com anos de prática no seu activo, dirigiu por algum tempo, estando Hitler no poder, a Associação dos Advogados Alemães. Mas quando rebentou a Segunda Guerra Mundial, trocou a toga pelo uniforme de funcionário das autoridades de ocupação na Eslovénia, depois na Polónia. Em Nuremberga apresentou-se como defensor de Schacht.
O Dr. Kranzbuhler, advogado de Doenitz, tinha sido durante dez anos juiz na Marinha de Guerra alemã. Esse conhecia a fundo os usos e costumes da guerra marítima e soube prestar ao seu constituinte uma ajuda eficaz.
O Dr. Otto Stahmer, advogado de Goering, era especialista em Direito Civil. Toda a sua anterior actividade estava ligada aos grandes processos internacionais sobre as patentes. Durante a guerra foi consultor jurídico da Marinha alemã e com certeza que tinha o traquejo de advogado burguês.
Se cito alguns extractos das «folhas de serviço» dos representantes da Defesa, é unicamente para dar ao leitor uma mais clara ideia da correlação de forças no processo de Nuremberga e, consequentemente, da rudeza dos duelos entre advogados e procuradores. Pelo meu lado, ao ver aquela poderosa coorte da Defesa nazi, não deixava no entanto de dizer a mim mesmo que nenhum advogado do mundo invejaria os seus confrades de Nuremberga. Existem nesta profissão «causas perdidas» que, dada a evidência do crime, apenas deixam ao defensor a possibilidade de invocar as circunstâncias atenuantes. Mas a equipa da Defesa em Nuremberga, que incluía advogados altamente qualificados, professores até (usavam a toga universitária violeta), dava-se perfeitamente conta de que esta argumentação também não prometia qualquer êxito. Sabiam todos, desde o início, que os seus constituintes estavam já condenados pela consciência da humanidade.
No plano do Direito Penal, a culpabilidade dos sátrapas de Hitler também não levantava a menor dúvida. Desde os primeiros dias do processo que a Defesa pôde constatar o enorme trabalho do Ministério Público que apresentou uma quantidade de documentos autênticos provindos dos arquivos alemães confiscados pelos Aliados.
Não obstante, o «derradeiro reduto dos nazis» (era a espirituosa expressão com que os caricaturistas soviéticos Kukriniksi baptizaram a Defesa de Nuremberga) resistiu teimosamente. O seu chefe ideológico era o advogado de Goering, Dr. Stahmer.
Mal o presidente abriu a primeira audiência do Tribunal Internacional e definiu em breve declaração o papel histórico do processo, o Dr. Stahmer subiu à barra, com várias folhas de papel na mão. Defensores e réus, prevenidos de antemão, olhavam com esperança o decano dos advogados de Nuremberga.
O Dr. Stahmer partiu de longe. Falou do horror dos conflitos mundiais evitando, bem entendido, nomear os que os tinham desencadeado, falou das nações mártires. E para concluir postulou a punibilidade da agressão.
— A humanidade — gritou, patético — insiste em que esta ideia seja, no futuro, mais que uma exigência: uma regra viável do Direito Internacional!
Mas logo adoptou um tom contrito, como Se estivesse a queixar-se aos juízes dos políticos e dos magistrados de antes da guerra.
— No entanto isso ainda não é, nos nossos dias, uma regra viva do Direito Internacional.
O advogado atirou-se à Sociedade das Nações, de triste memória, que, de cada vez que se lhe pedia para proteger um país atacado, se revelava absolutamente incapaz de agir sobre o agressor. Stahmer achava que isso não era fruto do acaso. O mal residia, parece, na ausência de todo e qualquer documento internacional declarando a agressão crime de lesa-humanidade. Mas, mesmo supondo que essa lei existisse, apenas se poderia, segundo Stahmer, acusar o Estado agressor, e não os indivíduos, que agiam em seu nome.
Por fim o advogado lembrou respeitosamente que o Tribunal se compunha de juízes dos países vencedores, o que pretensamente excluía a imparcialidade. A declaração da Defesa terminava assim:
— O Tribunal poderia colher as bases jurídicas deste processo nas opiniões emanando de especialistas universalmente reputados em matéria de Direito Internacional.
Havia entre os numerosos homens de imprensa ocidentais quem deplorasse sinceramente o que se passava na sala de audiências, de janelas tapadas de cortinas. «É um precedente dos mais perigosos», diziam eles. A guerra não é monopólio de Hitler. Sabe-se lá quem será levado aos tribunais depois da próxima guerra?
Esses jornalistas burgueses ficaram muito impressionados com o memorando da defesa. Dissesse-se o que se dissesse, os advogados tinham encontrado em condições muito difíceis um argumento que parecia cortar pela raiz toda a jurisdição do processo.
Esperava-se que ninguém fosse buscar comparações com outros processos históricos. Com o de Luís XVI, por exemplo, em que os advogados defendiam que a pessoa do rei era inatacável:
— A lei é omissa quanto ao réu, apesar da atrocidade dos seus crimes. Luís XVI apenas pode agora cair sob a espada da lei; a lei, nada diz a seu respeito, portanto não podemos julgá-lo...
Mas a França revolucionária não teve em conta estes subterfúgios. Um homem da Convenção, porta-voz da nação francesa, encontrou, para responder aos defensores do rei, as palavras justas e acutilantes:
— Talvez um dia os homens, tão afastados dos nossos preconceitos como nós o estamos dos vândalos, se espantem da barbárie de um século em que julgar um tirano é algo de religioso... Espantar-se-ão por no século XVIII se ser menos avançado que no tempo de César; o tirano foi imolado em pleno Senado, sem outras formalidades além de vinte e duas punhaladas, sem outras leis além da liberdade de Roma.
E eis que cento e cinquenta anos depois, a argumentação falhada dos defensores do rei criminoso volta a entrar em liça. Foi utilizada a mesma tese: mesmo admitindo que seja permitido julgar os grandes criminosos da Segunda Guerra Mundial, uma questão da mera justiça exige que os juízes sejam pessoas neutras e não os representantes de uma das coligações beligerantes. Mas será que tinham ficado países verdadeiramente neutros no meio do imenso conflito provocado pela camarilha hitleriana? E não incumbiria precisamente aos povos vítimas dessa agressão, povos que tão caro tinham pago a sua vitória sobre os nazis, o direito de julgar os chefes dessa camarilha?
De regresso à URSS, voltei a ler o relato do processo de Luís XVI e descobri nele uma muito curiosa analogia com o de Nuremberga. Também aí era defendido que o monarca não podia ser julgado senão por um tribunal desinteressado. A isto replicou sarcasticamente o membro da Convenção Amar:
— Mas qual será o júri do julgamento? Todos vós sois parte interessada, pelo que vos disseram; mas será que não vos disseram que o povo francês também é parte interessada, porque foi sobre ele que recaíram os golpes do tirano? A quem iríamos pois recorrer?
— A uma assembleia de reis! — lançou em tom irónico outro homem da Convenção, Legendre.
Foi com a mesma energia que o mal fundado das reivindicações da Defesa foi rechaçado em Nuremberga. Um dos procuradores especificou, no segundo dia dos debates, que o Tribunal Militar Internacional não agia só em nome das quatro potências representadas, mas também em nome dos quinze outros países que tinham aceitado o Acordo e o Estatuto do Tribunal com vista a recorrer ao Direito Internacional para fazer face ao mais terrível perigo da nossa época: a guerra de agressão. E o procurador-geral americano Jackson acrescentou:
— A razão exige que a lei não reprima somente os crimes cometidos por pessoas às ordens, mas que atinja também e sobretudo os chefes que dispunham do poder e o empregaram deliberadamente para fins de destruição e sujeição.
O discurso de Roman Rudenko, desdobrado em sólidos argumentos, aniquilou a asserção da Defesa segundo a qual não haveria lei internacional que fizesse da guerra de agressão um crime. O procurador-geral soviético referiu-se às decisões da Sociedade das Nações, ao pacto multipartido Briand-Kellogg onde é dito:
«As altas Partes Contratantes declaram solenemente em nome dos seus povos respectivos que condenam o recurso à guerra para a resolução dos diferendos internacionais e que a ela renunciam — como instrumento de política nacional — nas suas relações mútuas».
E assim foi neutralizada a primeira séria tentativa de sabotagem levada a efeito pela Defesa. O processo não foi deitado a terra!
Mas os advogados de defesa tinham mais que um trunfo na manga. Na minha qualidade de magistrado devo reconhecer que eles defenderam com toda a consciência os seus constituintes, sem porem de parte a mínima possibilidade. E faziam-no muito habilmente, do ponto de vista da moral do Foro burguês.
Havia no Palácio da Justiça um quiosque onde se vendiam os jornais estrangeiras. Por mais de uma vez reparei que os clientes mais assíduos desses jornais eram os advogados alemães. Escrutavam o horizonte político, regozijavam-se com a mais pequena nuvem que obscurecesse as relações entre o Leste e o Ocidente e não lhes foi difícil acreditar que o tempo jogava a favor dos réus. Foi por isso que se desunharam em arrastar o processo. Todos os meios lhes serviam.
Começaram por pedir, com os mais díspares pretextos, suspensões de audiência. O Dr. Stahmer, por exemplo, reclamou para ele e seus colegas vinte dias de férias pelo Natal. Foram-lhes concedidos dez. Quatro dias depois de retomarem o trabalho, a 5 de Janeiro de 1946, o Dr. Merkel (advogado da Gestapo) levantou-se para solicitar... um adiamento do processo.
A tentativa fracassou. Os advogados mudaram então de método: insistiram para que fossem convocadas dezenas, centenas de testemunhas sem ás quais se poderia muito bem passar.
Surgiu de seguida a já mencionada «manobra» de Rosenberg que tinha por finalidade lançar toda a gente em intermináveis discussões sobre a «teoria» do racismo. A Defesa trouxe dezenas de gordos volumes de racistas americanos, ingleses, franceses, bem como obras dos seus constituintes.
Alguns procuradores viram nisso uma propaganda perniciosa da ideologia fascista num processo movido contra o fascismo. Quanto a mim, não estou certo que os defensores (com excepção talvez de alguns) tenham pretendido pregar o nacional-socialismo. Dou razão, na ocorrência, ao Dr Dix que declarou ao Tribunal:
— Nenhum advogado, quaisquer que tenham podido ser outrora a sua filosofia ou as suas convicções políticas, pensou ou tentou aqui fazer uma propaganda ideológica em prol do mundo defunto — e sublinho a palavra defunto — do Terceiro Reich. Isso seria injusto, pior ainda, isso seria perfeitamente estúpido.
A maior parte dos advogados evidentemente se dava conta que 1945 já não era 1939 e que a sala de audiências do Tribunal Internacional não era o Reichstag hitleriano. Também não tinha ilusões sobre o valor das pesquisas «teóricas» dos seus constituintes. Volta-me à memória, a este propósito, um episódio bastante engraçado.
O Dr. Thoma fala aos juízes do alto da tribuna, apresenta-lhes um após outro documentos que se referem a Alfred Rosenberg. Está diante de um microfone dotado de um dispositivo para cortar o contacto, colocado ao alcance da mão. Os advogados servem-se dele quando têm algo a dizer ao seu assistente, instalado na mesa vizinha. O assistente de Thoma escuta-o atentamente e vai-lhe passando os documentos. Mas, ou porque percebeu mal, ou porque Thoma se enganou, este fica com O Mito do Século XX nas mãos. Ia a pô-lo diante dos juízes com um gesto majestoso mas, no último momento, apercebeu-se do lapso... Vermelho de cólera, fulmina com os olhos do assistente e ouve-se de súbito, em todos os auscultadores:
— Imbecil, por que é que me passou esta porcaria?
Thoma tinha-se esquecido de desligar o microfone.
Toda a sala rompeu numa gargalhada homérica, tão contagiosa que lord Lawrence, que sempre tinha salientado que «os risos comprometiam a dignidade do Tribunal», nada pôde fazer. Este velho juiz carregado de experiência só a si próprio se pôde conter, e não por muito tempo, aliás. Durante a suspensão da audiência riu a bandeiras despregadas. Até os réus riam. Só Rosenberg, sombrio como nuvem negra anunciadora de tempestade, lançava raios e coriscos ao seu infortunado defensor.
Na maioria dos casos a Defesa, não podendo usar métodos por pouco justificados que fossem para contestar os depoimentos das testemunhas de acusação, embrenhava-se por um caminho que considerava mais seguro: tudo fazia para difamar a pessoa de testemunha e assim pôr em dúvida as suas declarações.
O interrogado é von Paulus, cujas revelações são impossíveis de desmentir. Então o advogado faz-lhe a seguinte pergunta:
— Testemunha, é verdade que dá ou deu cursos na Academia Militar de Moscovo?
A insinuação é clara: como acreditar neste «renegado» que chegou ao cúmulo de instruir os seus inimigos? Mas o procurador-geral Maxwell-Fyfe reage com muito espírito.
— Que coisa singular! — nota ele. — O advogado parece ignorar quem ganhou esta guerra. Tanto quanto se saiba, o exército russo esmagou o exército alemão. Não competirá pois aos generais alemães aprenderem na escola dos generais russos?
Outro exemplo típico.
É interrogado o general Lahousen, chefe do serviço de informações alemão. Conta ele com voz monótona os crimes pavorosos do regime nazi. Diz-lhe o advogado Sauter:
— Falou de projectos de assassínios de que você, o seu serviço ou outros oficiais tinham sido encarregados de pôr em execução. Fez a este respeito, a qualquer autoridade de polícia, a declaração prescrita por lei? Permito-me salientar que a lei alemã pune com prisão ou pena de morte nos casos graves, a infracção à obrigação de denunciar tais intentos criminosos.
Sauter estava à espera que a testemunha, acossada, se desdissesse. Mas Lahousen riposta inopinadamente:
— Teria uma grande quantidade de relatórios a fazer: tive talvez conhecimento de cem mil projectos de assassínios.
A Defesa tem actuação análoga em relação a Hoellriegel, antigo oficial subalterno do campo de Mauthausen. Diz-lhe o advogado Steinbauer:
— Testemunha, você descreveu um acontecimento que, segundo a concepção dos povos civilizados, só pode ser qualificado de assassinato. Quero referir-me ao facto de os detidos serem atirados do alto de uma pedreira.
Hoellriegel aquiesce com a cabeça. O advogado franze os sobrolhos, a sua voz assume um timbre metálico:
— Deu parte deste acontecimento aos seus superiores?
Hoellriegel também não é assim tão ingénuo que se deixe desarmar.
— Esses casos — respondeu ele — repetiam-se com tanta frequência, sabe, que podíamos estar absolutamente certos que todos os oficiais estavam ao corrente.
Este comportamento da Defesa indignou ao mais alto grau a opinião pública de todo o mundo, incluindo a alemã.
Quanto a mim, a moderação dos juízes, a sua preocupação de não darem azo a que a posteridade lhes viesse a censurar o terem imposto restrições à Defesa, ultrapassavam todos os limites. No fim de contas talvez fosse mais sensato da sua parte evitar para sempre que fosse contestada a imparcialidade dos debates num tão importante processo.
Lembro-me a este propósito de um incidente muito curioso acontecido numa sessão de organização do Tribunal. Foi, se não me engano, na tarde de 17 de Dezembro de 1945. Os juízes tinham convocado o Dr. Hans Marx que defendia o réu Streicher. As explicações que se lhe pediam eram fora do vulgar. Não era ele a queixar-se de ter sido rejeitada uma das suas diligências, mas sim os juízes que o aconselhavam a apoiar a petição do seu constituinte, relativa à citação de determinadas testemunhas, nomeadamente da senhora Streicher.
O Dr. Marx nem queria crer. Tendo tomado conhecimento da queixa do seu constituinte ao secretariado, este experiente advogado levou o seu tempo a compreender o que queriam dele.
— Senhores juízes — começou ele hesitante — se bem compreendi o que se trata é de saber se há necessidade de testemunhas para o caso Streicher? E, se sim, por que é que eu não subscrevo a petição do meu constituinte? A verdade é que o senhor Streicher queria fazer comparecer testemunhas que eu próprio já interroguei, e tenho algumas dúvidas quanto à utilidade de as citar, pelo menos no que à Defesa se refere.
— Disse isso a Streicher? — quis saber Lord Lawrence.
O advogado respondeu pela afirmativa, acrescentando que Streicher continuava a insistir. Após o que o diálogo entre o juiz e o advogado de defesa tomou a seguinte feição:
Lord Lawrence. Certos membros do Tribunal Internacional acham que uma ou duas testemunhas da lista poderiam ser convocadas e os seus depoimentos, a julgar pela petição de Streicher, poderiam ser oportunos. É por isso que o Tribunal Internacional deseja ouvir os seus argumentos.
Advogado. Receio que haja um mal-entendido e se estejam a equivocar quanto à minha atitude como advogado. Seja como for, tomo em consideração a recomendação do Tribunal e gostaria de me assegurar mais uma vez do serviço que os depoimentos dessas testemunhas poderiam prestar ao meu constituinte.
Lord Lawrence. Deve sem dúvida compreender, senhor advogado, que o Tribunal Internacional não quer usurpar as funções da Defesa. É pois a si que compete rever a questão.
A entrevista, de que tomei nota no meu canhenho, é quanto basta para mostrar os escrúpulos manifestados pelo Tribunal quando se tratava do legítimo direito dos réus a serem defendidos. Depressa os advogados de defesa se aperceberam disso e tentaram abusar da situação.
Acontecia que a Defesa, pouco inclinada a fiar-se no comportamento das suas testemunhas perante o Tribunal, lhes fornecia textos já prontos. Foi o caso de Steengracht, ex-secretário do Ministério dos Negócios Estrangeiros alemão. Chamado à barra, respondeu às perguntas do advogado consultando sem cerimónias o «manual». Pelo que Lord Lawrence, perdendo o seu costumeiro sangue-frio, apostrofou o advogado de Ribbentrop:
— Doutor Horn, o Tribunal tinha decidido que as testemunhas podiam refrescar a memória com a ajuda de notas, mas parece que esta testemunha leu praticamente tudo o que disse... Se isto continua, o Tribunal ver-se-á obrigado a examinar se há lugar para a erradicação deste princípio e a adopção do princípio ordinário, segundo o qual nenhuma testemunha tem o direito de tomar como referência notas, a não ser as que tomou no momento...
Numa outra ocasião assisti a uma altercação bastante viva entre o presidente do Tribunal e o vogal americano Dodd de um lado, e o advogado da Defesa Dix do outro. Este, ao interrogar as testemunhas sobre o conteúdo deste ou daquele documento, fazia cada vez com mais frequência a leitura completa do texto ou da sua parte essencial. A testemunha já não tinha pois de procurar a resposta que se esperava dela. Por fim o presidente do Tribunal teve de interromper Dix e lembrar-lhe que a Defesa não tinha o direito, no decorrer do interrogatório, de sugerir às testemunhas as respostas referentes a uma passagem do documento.
Mas os advogados de defesa teimavam em formular perguntas sugestivas. O defensor de von Papen, Kubuschok, tentou por exemplo um dia influenciar a testemunha Steengracht da seguinte maneira:
— Sabe que o senhor von Papen só aceitou, depois de o ter recusado por duas vezes, o cargo de embaixador em Ancara em 1939, no dia em que a Itália ocupava a Albânia, o que fazia pairar pesadas ameaças de guerra no Sudeste?
Será necessário especificar que a testemunha recebia do advogado indicações precisas? Primeiro, sublinhar que von Papen tinha recusado por duas vezes ser embaixador de Hitler na Turquia, prova da sua repugnância em colaborar com o governo nazi; segundo, assinalar que ele tinha aceitado esse cargo unicamente por causa da séria ameaça de guerra que pretensamente esperava afastar por meio da sua actividade na Turquia.
Quanto a Laternser, o advogado do Estado-Maior-General, tentou provar que os militares não se metiam em política e não eram a isso autorizados; executavam as ordens sem reflectirem no seu sentido político. Foi no âmbito deste esquema que ele se esforçou por manter os testemunhos. Aquando do interrogatório do chefe da Chancelaria Lammers, perguntou-lhe:
— Sabe-se que Hitler não permitia aos seus chefes militares exercerem qualquer influência nas suas decisões políticas. Conhece declarações de Hitler segundo as quais ele tenha recusado aos generais o direito de manifestarem a sua opinião sobre o plano político?
Lammers apercebeu-se de imediato o que dele se pretendia e pronunciou todo um discurso sobre o assunto.
Dar-se-iam os advogados conta de que as suas investidas corriam o risco de fazer desabar sobre eles a cólera da opinião pública?
Com certeza.
Lá para o fim do processo, o secretário-geral remeteu-me um requerimento bastante significativo. A Defesa reclamava para cada um dos seus membros um salvo-conduto que garantisse a sua segurança pessoal.
Vãs apreensões! Na atmosfera de desforra que invadiu pouco depois a Alemanha ocidental, os advogados de Nuremberga não tiveram necessidade de salvo-condutos; pelo contrário, depressa sentiram que a missão que tinham cumprido no processo multiplicava até ao infinito os seus dividendos (financeiros e políticos) entre os meios reaccionários.
Já fiz observar aos leitores que os réus diziam a verdade ao Tribunal em dois casos: quando provas irrefutáveis os encostavam à parede ou, as mais das vezes, quando se criticavam uns aos outros. O que era bastante típico também da Defesa e de certas testemunhas.
Lembro-me do interrogatório da testemunha Severing, que conhecia de nome desde a minha juventude. Este célebre conciliador alemão tinha feito o seu melhor para impedir a união entre comunistas e sociais-democratas frente ao perigo crescente do fascismo. No processo de Nuremberga, esta vilã personagem deu cabo de Goering e de Hess com conhecimento de causa e com um espantoso ardor para a sua idade. Tudo o que ele dizia era exacto, sério, demolidor. A Schacht também não o poupou.
— Schacht traiu a democracia — declarou ele apresentando o réu como activo auxiliar de Hitler, um homem que se tinha aplicado em abrir caminho ao fascismo na Alemanha.
Não ousando desmentir tão perigosa testemunha, o Dr. Dix, advogado de Schacth, contra-ataca violentamente:
— Apesar de todo o respeito que tenho pelo íntegro carácter político de Severing, sou forçado, com grande desgosto meu, a recusar-lhe, a ele, o direito de fazer um juízo competente sobre homens de Estado... Severing e os seus amigos políticos têm, perante a História, uma responsabilidade muito maior que a de Hjalmar Schacht, devido à sua indecisão e à sua falta de ideias políticas frente à tomada do poder por Hitler. Essa responsabilidade toma-se tanto maior quanto a testemunha pretende ter reconhecido, já na altura, que a subida ao poder de Hitler significava a guerra. E quando se admite essa intuição política que a sua responsabilidade e a dos seus amigos políticos aumenta... Os nossos trabalhadores alemães não são na verdade mais cobardes que os trabalhadores holandeses. Ficámos contentes por ouvir a testemunha louvar trabalhadores holandeses que tiveram a coragem de fazer greve sob a ameaça das baionetas do exército de invasão. Os partidários que Severing e os seus amigos políticos tinham entre os operários alemães teriam talvez incitado estes a não aceitarem tão passivamente a dissolução dos sindicatos em 1935... O regime hitleriano não era ainda poderoso o bastante para não recear a verdade da palavra do poeta dirigida aos operários: «Todas as engrenagens param quando o teu braço forte quer». O governo nacional-socialista tinha disso plena consciência e manifestava temores nesse sentido... Mas esse braço forte de que acabo de falar tinha, ele também, necessidade de uma direcção, que foi recusada aos operários. Homens como Severing teriam podido assegurá-la...
Toda a sala escutava com um interesse contido a peleja entre Dix e Severing. Um e outro tinham, em suma, razão: Severing que amarrava ao pelourinho Goering, Hess, Schacht, e o Dr. Dix que censurava ao ex-líder da social-democracia alemã e aos seus companheiros de direita o terem traído os interesses da classe operária. Muitos devem ter sido os que nesse momento pensaram, uma vez mais, na importância do processo de Nuremberga na criação de uma história contemporânea verídica.
Ao lado dos veteranos do Foro alemão reaccionário, havia alguns jovens a que hoje chamarei de «furiosos». Esses não desdenhavam de qualquer meio.
O seu mais típico representante era o Dr. Seidl, homenzinho enfezado de comprido nariz com uma forma de modo nenhum ariana, com olhos baldosos profundamente encovados nas órbitas. Goering qualificava-o de «ratinho» e mandava-o fazer recados de que não teria ousado encarregar advogados da estatura de Stahmer ou Dix.
A tendência de Seidl, através de todo o seu comportamento, era fabricar uma nomeada escandalosa e rodopiava incessantemente à volta de Goering, embora a seu cargo estivesse a defesa de Hess e Frank. Conformava-se com zelo a todas as instruções deste velho mestre da provocação e das investidas criminosas. Podia ter-se a certeza de que depois de cada um dos seus conciliábulos Seidl faria uma declaração «sensacional».
Ei-lo que sobe à tribuna e debita uma nova patranha destinada a comprometer a política externa da URSS. É-lhe perguntado aonde foi ele buscá-la. E Seidl responde, de olhar impudente cravado nos olhos do juiz americano Biddle:
— A meios da delegação americana.
Pouco lhe importa que a provocação fabricada à pressa venha logo a ser desmascarada. Prepara já outra e sente-se muito orgulhoso de si próprio. Esta triste criatura que, durante toda a sua vida, só lidou com ratoneiros vulgares e aventureiros de segunda categoria, levou tempo a familiarizar-se com os seus novos clientes. Quando lhes falava, as suas mãos colavam-se instintivamente às costuras das calças.
Em nenhum país o juiz teria suportado que o advogado de defesa se comportasse de semelhante modo. Mas Seidl deve ter mais que os outros pressentido as vantagens a tirar dos excessivos escrúpulos dos juizes do Tribunal Internacional, sobretudo do seu presidente!
Penso não estar errado se disser que a atitude deste advogado e a tolerância para com ele por parte dos juízes de Nuremberga ilustram, às mil maravilhas, a falsidade dos rumores hoje postos a correr na Alemanha ocidental de que a Defesa alemã no processo de Nuremberga teria sido limitada nos seus direitos. Já que é preciso fazê-lo, citemos dois números eloquentes: o Ministério Público convocou 37 testemunhas e a Defesa 102.
Em Nuremberga os defensores alardeavam o carácter desinteressado do seu trabalho. Deram muitas vezes a entender que era para eles uma honra participar nesse processo histórico e que negociar sobre o montante dos honorários lhes teria parecido desonroso.
Mas o secretariado-geral sentiu logo a hipocrisia desta atitude. O Dr. Dix, por exemplo, que se gabava de considerar a defesa de Schacht como uma questão de princípio, apressou-se a ir embora de Nuremberga quando lhe recusaram os exorbitantes honorários que reclamava, e só voltou depois de ter conseguido um compromisso. Alguns dos seus colegas solicitaram ao Tribunal autorização para irem exercer noutras cidades da Alemanha. E o Dr. Babel, advogado dos SS, achando insuficientes os honorários, fez uma colecta entre os seus constituintes e ficou desolado quando o Tribunal pôs termo à sua actividade lucrativa.
Nunca antes eu tinha tido a oportunidade de ouvir advogados burgueses. Mas tinha lido muitos discursos de advogados russos de antes da revolução e de advogados ocidentais. E devo dizer que alguns me impressionaram. Tratava-se de obras-primas de eloquência jurídica.
Nada disso em Nuremberga. Estes experientes homens de leis apercebiam-se da força irresistível dos atrozes actos originados pelo regime nazi. Nem a sua alta competência, nem a habilidade dos processos, nem as suas incursões no terreno da defesa psicológica, último reduto de salvação por parte do Foro posto perante factos irrefutáveis, deram os resultados pretendidos.
Claro que houve defesas bem arquitectadas. Nomeadamente a do Dr. Dix, advogado de Schacht, que jogou com todos os matizes da carreira do seu constituinte. E poderiam assinalar-se ainda algumas outras excepções. Mas no seu conjunto as intervenções dos advogados de Nuremberga nunca virão provavelmente a ser consideradas amostras de arte oratória.
Tentaram eles provar que a apropriação da Áustria se efectuara com o consentimento dos austríacos, que teriam mesmo aceite Anschluss com entusiasmo. Steinbauer, defensor de Seyss-Inquart, acrescentou um argumento mais: Hitler era austríaco e tinha pela Áustria um amor patriótico.
— Por cima e a oriente de Berchtesgaden — perorava o advogado — fica o Obersalzberg, a mil metros de altitude, coberto de prados e bosques e situado no sopé norte do Alto Goll, salpicado de quintas e com uma vista magnífica. Era para aí, e não para o Reno ou para o Teutoburgerwald, nem para as costas do Mar do Norte que Hitler se retirava quando queria descansar longe da Chancelaria do Reich. Adolfo Hitler posta-se sonhador à larga janela da sua casa de campo e o seu olhar desliza por sobre os prados e vales até às montanhas cobertas de neve e iluminadas pelo sol poente. O país que protege estas montanhas é a Áustria, sua pátria!...
Steinbauer, como se vê, não foi avaro no colorido do quadro que pintou. Mas que ganhou ele com isso? Ele próprio sentia a fragilidade dos seus argumentos, a ponto de concluir com este apelo:
— Em vez de cederdes à cólera, procurai antes o edelweiss que cresce à sombra dos silvados!
Os advogados de defesa de Nuremberga tinham uma ideia muito própria do que era o edelweiss, essa rara flor alpina. Achavam que os processos dos criminosos de guerra de nada serviam aos Estados civilizados. Um deles declarou abertamente, a propósito dos processos dos fautores da Primeira Guerra Mundial que se efectuaram em Leipzig em 1921 e tiveram como desfecho, na realidade, a absolvição dos grandes criminosos:
— Esses processos correspondiam mais à exigência de uma opinião pública irritada que à dos homens de Estado. Se a opinião pública de 1919 tivesse seguido o seu caminho, os processos teriam dado ao mundo um espectáculo encarniçado de que as gerações futuras corariam de vergonha. Mas, graças aos homens de Estado e aos juristas, as aspirações populares à vingança viram-se transformadas numa verdadeira demonstração da majestade do direito e do poder da lei. Possa a decisão deste Tribunal ter o mesmo peso perante o julgamento da História!
Eram estes os «edelweiss» que buscavam os advogados de Nuremberga. Teriam ficado radiantes se o novo processo levasse a uma demonstração da «majestade do direito» análoga àquela em que findou o processo de Leipzig em 1921. Mas os juízes de Nuremberga recusaram-lhes esse prazer. Não encontraram o edelweiss debaixo das silveiras de Treblinka e de Auschwitz.
Os que liam regularmente a imprensa reaccionária do Ocidente e aguçavam um ouvido atento às declarações da Defesa constatavam uma espantosa unidade de pontos de vista e uma estreita cooperação entre os advogados de toga e os outros, os protectores da agressão que escreviam nos jornais e revistas.
Os advogados de defesa opunham-se a que indivíduos pudessem ser julgados por agressão... E logo a revista americana The Atlantic lhes vejo em auxílio.
Os advogados de defesa punham em causa certas provas da Acusação. E a revista americana The Nation apressou-se a apoiá-los. Foi até muito mais longe ao declarar que o processo, no seu conjunto, era desprovido de fundamento e que
«o libelo acusatório não corresponde nem aos princípios de direito em geral nem aos do Direito Internacional e Criminal em particular».
Os defensores de Nuremberga leram com viva satisfação a revista Fortune que, no mais aceso da discussão sobre os direitos de o Tribunal julgar a camarilha hitleriana, afirmava:
«No que respeita aos grandes criminosos, a declaração de Moscovo absteve-se de prever que eles sejam levados a julgamento. Apenas falou da decisão dos governos».
E para dissipar as dúvidas, a revista mencionava o destino de Napoleão, esse sanguinário conquistador que se contentaram em exilar numa ilha deserta «depois de o terem neutralizado». A moral da fábula salta aos olhos: em vez de se incomodar com todas essas «complicações judiciais», dever-se-ia escolher no planeta uma outra exótica ilhota e para lá mandar Goering, Hess, Ribbentrop...
E assim se juntaram duas linhas de defesa do hitlerismo: a oficial, incarnada pelos advogados, e a oficiosa, com larga representação nos órgãos de imprensa reaccionários do Ocidente.
Jornais e revistas deste calibre não tardaram a apelar abertamente à reconstituição do militarismo alemão com a finalidade deste atacar de novo a URSS.
Como homem de leis soviético, eu tinha o hábito de ir ver à mesa dos juízes, antes do exame do caso, todos os materiais brochados num ou em vários volumes. Terminado o inquérito, os juízes de instrução sistematizam as provas de culpabilidade do réu e depõem mas previamente perante o tribunal.
Totalmente diferente era o regulamento do Tribunal Militar Internacional. Aqui tinha sido adoptado o sistema anglo-americano: o tribunal é encarregado do caso... antes de o caso lá ser presente. Por isso a mesa dos juízes está limpa, e as duas partes, Acusação e Defesa, apresentam as suas provas no decorrer dos pleitos.
Mas o mais minucioso dos magistrados nada teria a dizer da escolha e da apreciação que o Tribunal Internacional fez das provas de culpabilidade em cada um dos casos. E, por mais paradoxal que pareça, observou, mesmo em relação a estas pessoas, o famoso princípio jurídico: ninguém é declarado culpado antes de ser estabelecida a prova em contrário.
Sem dúvida que seria supérfluo demonstrar ao leitor o quanto era complexa, direi mesmo, grandiosa, a tarefa de fazer a recolha e classificação das provas de culpa do governo de uma das maiores potências da Europa, do partido nazi e dos seus chefes que, durante treze anos, se prepararam para se apossarem do poder na Alemanha, ao longo de seis anos armaram o país preparando-o para a agressão e, durante mais seis, desencadearam incessantes guerras, acompanhadas dos mais nefandos crimes. O Tribunal soube, no entanto, levar a cabo esse trabalho com o máximo de cuidado.
O processo de Nuremberga é por vezes considerado como um processo de documentos. É exacto. Se bem que o Tribunal tenha tido em conta depoimentos das testemunhas, declarações dos réus assim como objectos de provas materiais, foram os documentos que dominaram, tanto pelo número como pelo valor. Isto porque na última fase da guerra os Aliados tinham confiscado tanto no Leste como no Ocidente importantes arquivos da Alemanha hitleriana. Em Flensburgo foram apanhados os do Estado-Maior-General alemão com todos os projectos de operações que ilustravam os preparativos para as guerras de agressão e para o seu desencadeamento. Em Marburgo pôde deitar-se a mão aos papéis de Ribbentrop. Num esconderijo de um castelo da Baviera foram encontrados os de Rosenberg.
Os figurões do Terceiro Reich punham cuidadosamente as suas actas preto no branco. Hitler e os seus ministros provavelmente que nunca fizeram qualquer reunião que não fosse estenografada ou passada pormenorizadamente a escrito.
Goering e Kaltenbrunner, Rosenberg e Schirach davam ordens para matar, saquear, queimar, tendo o cuidado de não só transcreverem, mas também filmarem, as suas instruções, juízos, elogios e censuras. A fim de que, para a posteridade, nada se perdesse!
Hans Frank tinha destacado para seu serviço pessoal um estenógrafo que seguia passo a passo Sua Excelência o senhor governador-geral e anotava cada uma das suas palavras, dos seus actos e gestos. No fim da guerra estas páginas formavam já dezenas de volumes com belas encadernações de couro. Frank não tinha de facto a menor suspeita de que esta colecção de obras viria a figurar como objecto de prova material no Tribunal Internacional. Mas teve disto amargo conhecimento a partir do primeiro dia do processo, ao ouvir um procurador dizer aos juízes:
— Não lhes pedimos para condenarem estes homens pelo testemunho dos seus inimigos. Não há ponto de acusação que não possa ser provado por livros ou arquivos.
Sabe-se que na URSS tinha sido instituída durante a guerra a Comissão Extraordinária de inquérito aos crimes dos invasores fascistas alemães e seus cúmplices. Comissões análogas existiram em muitos outros países vítimas da agressão hitleriana.
G. Aleksandrov, vogal da URSS (clique na foto para maior resolução) |
Já antes do processo de Nuremberga se dispunha, por conseguinte, de uma profusão de documentos reveladores. Na delegação soviética o seu estudo estava confiado a um grupo especial dirigido por Gueorgui Aleksandrov, conselheiro de Estado da Justiça.
Era preciso escolher os documentos mais probatórios, interrogar determinados réus. Por isso Aleksandrov e o seu adjunto S. Rosenblit trabalharam sem interrupção. A sua actividade foi coroada de êxito: descobriram em todos os seus pormenores o plano de agressão contra a URSS, dito «Plano Barbarossa».
Muitos documentos de interesse estavam nas mãos dos franceses, ingleses e sobretudo americanos. Era preciso examiná-los escolhendo o que pudesse ser útil para os procuradores soviéticos, manter o contacto com os juízes de instrução americanos, ingleses e franceses que pelo seu lado, estavam a interrogar réus e testemunhas. A coordenação era assegurada por Nikolai Orlov e Serguei Piradov. Anos de trabalho no Ministério Público, um tacto inato e o conhecimento de línguas estrangeiras fizeram com que se saíssem honrosamente desta difícil tarefa.
O volume de papelada aumentou durante o processo, porque à medida que os Ministérios Públicos das quatro potências apresentavam esta ou aquela prova, iam remetendo as cópias às outras delegações. Sem contar que outros documentos continuavam a chegar-nos da União Soviética e doutras lados. E cada um deles podia ser a qualquer momento requerido. Num processo como este teriam sido impossíveis debates eficazes sem um serviço de documentação bem organizado, sem uma sistematização das inúmeras provas. O procurador-geral soviético nomeara para a chefia deste serviço, ao qual dava grande importância, o professor D. Karev, secundado ao longo do processo por Tatiana Ileritskaia.
Serviço similar tinha sido criado junto aos juízes. Aí eram o comandante de Justiça A. Lvov e G. Bobkova-Bassova quem sistematizava as provas.
A aproximação da etapa final do processo, ia-se tornando mais evidente a necessidade de resumir as provas. Houve que multiplicar as referências, memorandos, gráficos. Em suma, ajudar por todos os meios os representantes soviéticos do Tribunal durante o exame dos resultados e a redacção da sentença. No princípio tínhamos grande necessidade de um colaborador qualificado. Foi então que chegou de Moscovo Aleksandre Lunev. Tendo acabado a Academia de Direito Militar antes da guerra, era lá professor desde 1945. Com a colaboração do comandante Lvov, conseguiu em pouco tempo resumir os materiais: aos juízes foram atempadamente entregues os numerosos dossiers relativos às diversas categorias de crimes e a cada um dos réus.
Depoimento do acadêmico Orbéli (clique na foto para maior resolução) |
O processo de Nuremberga foi essencialmente, repieto-o, um processo de documentos. As provas documentais eram nele dominantes. Mas também se recorria a outros meios para se estabelecer a culpabilidade dos arguidos, e entre eles os depoimentos orais. As testemunhas eram muito variadas. Podia ver-se na barra o ministro nazi Lammers, o motorista particular de Hitler Kempka, Guido Schmidt que foi antes da guerra ministro dos Negócios Estrangeiros na Áustria Gisevius, alto funcionário da Gestapo, Schmaglevskaia, vitima do terror policial, alguns representantes da cultura (como, por exemplo, o académico soviético I. Orbeli) e sacerdotes.
Umas eram citadas pelo Ministério Público, outras pela Defesa. Mas, ao fim e ao cabo, os seus depoimentos eram concordantes, todos eles desfavoráveis aos réus.
Keitel e Jodl, como já vimos, sustentavam que as forças armadas do Terceiro Reich tinham sido educadas «nas nobres tradições dos homens de guerra prussianos» e que todas as atrocidades foram obra dos SS. Isso desencadeou verdadeiras batalhas entre generais da Wehrmacht e das SS chamados a deporem como testemunhas. Isto, há que relembrá-lo, nomeadamente porque a versão da autoria de Keitel constitui hoje a linha oficial da propaganda de Bona, que procura inocentar os numerosos generais hitlerianos colocados à cabeça da Bundeswehr...
Agora, na barra, está o ex-marechal-de-campo von Manstein. O presidente manda-o prestar juramento. Uma das sumidades da Wehrmacht jura perante Deus «dizer a verdade, toda a verdade, nada mais que a verdade». Mas mal acaba de pronunciar a sacramental fórmula lança-se nas mais odiosas mentiras. Nega ter tido no seu exército um grupo especial para o extermínio em massa das pessoas, mas logo de seguida é confundido pelo depoimento da testemunha que veio depor depois dele, o SS Ohlendorf, que comandou esse grupo. Ao que parece era Manstein quem ordenava os massacres dos civis soviéticos e as distribuições pelos oficiais dos milhares de relógios sacados às vítimas. Os outros objectos de valor (dentes de ouro, anéis, pulseiras) eram cuidadosamente inventariados e depois expedidos para o Reichsbank de Berlim.
Anos depois deste interrogatório, tive ocasião de assistir a uma conferência de imprensa organizada em Moscovo em relação com o processo de Coblença, onde eram julgados chefes SS por atrozes crimes perpetrados na Bielorrússia. O meu colega do processo de Nuremberga, procurador Vassili Samsonov, pronunciou perante a assistência um discurso indignado. O governo da Alemanha Federal tinha-lhe recusado o direito de representar em Coblença a parte lesada: o povo bielorrusso. As autoridades de Bona fizeram o mesmo com Gueorgui Alexandrov, que tinha instruído o processo por parte da delegação soviética em Nuremberga. Os motivos reais desta atitude saltam aos olhos se for citada uma só das provas que os magistrados soviéticos tinham a intenção de apresentar em tribunal. Durante a ocupação nazi da Bielorrússia, de 1942 a 1944, o chefe do departamento das finanças do Reichskommissar Lohse em Riga é Vialon. A 25 de Setembro de 1942 este último assinou uma directriz para os comissários gerais de Riga, Tallinn, Kaunas e Minsk, respeitante à utilização dos «bens judeus recuperados», isto é, do que ficara depois das execuções em massa. Vialon inquietava-se sobretudo com os objectos em ouro sacados às vítimas, com as dentaduras de ouro. Por isso exigia numa directriz secreta:
«...Todos os objectos em ouro e prata serão minuciosamente contados, inventariados e postos à minha disposição... As cópias dos inventários ser-me-ão entregues».
Friedrich Vialon veio depois a ser secretário do ministério de Bona para as questões de colaboração económica. Como não fechar as portas de Coblença a magistrados soviéticos que têm na sua posse documentos tão comprometedores para ele? ...
Mas voltemos a Nuremberga.
Aí está, na barra das testemunhas, o ex-chefe do campo de Auschwitz, Rudolf Ferdinand Hoess. Quando lhe perguntam quantas pessoas matou em Auschwitz, responde ele com um sangue-frio que faz percorrer um arrepio pela sala:
— Dois milhões e meio.
Seguidamente fornece números exactos do rendimento diário de cada forno crematório. Os acusados apelidaram o dia do interrogatório de Hoess de «o momento mais vergonhoso de todo o processo».
— Aí está algo de que dentro de mil anos ainda se falará — notou Frank com voz angustiada.
Mas quem tinha mais razões para achar este dia «vergonhoso» era Alfred Rosenberg, esse zeloso executor da política hitleriana no Leste. Fez as suas recriminações:
— O Ministério Público pregou-me uma partida ao chamar Hoess mesmo antes de mim. Isso vai colocar-me numa posição muito difícil...
Lahousen é chamado à barra e dois robustos soldados americanos trazem um homem calvo, envergando o uniforme militar sem dragonas. Nova perturbação no banco dos réus. Canaris, chefe do serviço de espionagem alemão, tinha sido enforcado por ordem de Hitler por ter participado na conjura de Julho de 1944. Mas Lahousen, seu adjunto, estava vivo, o que não prometia nada de bom aos inculpados. O sangue subiu à cara de Goering e Keitel. E quando a testemunha se pôs num tom impassível a pormenorizar, fazendo referência a documentos, a participação de Goering, de Keitel e de Jodl no bombardeamento de Varsóvia, no extermínio de intelectuais polacos, na provocação de Gleiwitz em Agosto de 1939, o ex-marechal do Reich perdeu as estribeiras:
— Traidor! — sibilou. — Aqui está um de quem nos esquecemos em 20 de Julho. Hitler tinha razão, o Abwehr era uma organização de traidores...Não é nada de espantar que tenhamos perdido a guerra. O nosso próprio serviço de informações estava vendido ao inimigo!
Lahousen, informado extemporaneamente desta tirada, foi por sua vez aos arames:
— Agora eles falam de honra, depois de milhões de pessoas terem sido assassinadas!
Houve tempos em que Goering se entendia às mil maravilhas com Lahousen e o seu patrão Canaris. Mas desde que Lahousen tinha abandonado o barco em perigo, coisa que Goering não tinha conseguido fazer, eram inimigos mortais. Goering atribuía a derrota da Alemanha em primeiro lugar à traição dos serviços de informações se bem que devesse perfeitamente saber que essa derrota tinha causas muito mais profundas. Mas era muito mais cómodo atirar com as culpas para cima de Canaris e Lahousen. De um modo geral, Goering preferia descarregar sobre as outras acusações graves contra ele formuladas.
Ribbentrop foi talvez o único a não compreender a atitude de Lahousen, tentando fazer-lhe perguntas por intermédio do seu advogado, na esperança de que o testemunho lhe fosse favorável. Mas o advogado, mais perspicaz, opôs-se formalmente.
— Não façamos tantas perguntas, eles mais não farão do que atirar-no-las à cara com informações ainda mais prejudiciais...
Era curioso, de resto, ver a indignação dos réus perante a atitude de testemunhas como Lahousen que, ainda muito recentemente, garantiam «a sua fidelidade e devotamento absolutos aos chefes do Terceiro Reich». Como se os caudilhos da Alemanha hitleriana, após terem sido levados a julgamento, se tivessem mostrado mais leais e correctos entre eles.
Uma das testemunhas mais interessantes era sem dúvida o general das SS Bach-Zelewski. A Defesa tentou utilizá-lo para provar que todos os crimes de guerra tinham sido cometidos pela Gestapo e as SS, e que o comando militar alemão nada tinha a ver com isso, não havendo qualquer relação entre a Wehrmacht e as SS.
Bach-Zelewski contou ao tribunal os métodos criminosos empregues para suprimir os guerrilheiros prisioneiros e (sob o pretexto de combater os guerrilheiros) para massacrar a população pacífica. Confirmou que «para combater os guerrilheiros» se formavam unidades especiais de delinquentes comuns. E quando lhe perguntaram se os chefes da Wehrmacht estavam ao corrente desses crimes, respondeu sem pestanejar:
— Os métodos eram geralmente conhecidos e, bem entendido, dos chefes militares.
Durante a suspensão da audiência Goering explodiu. Pouco faltou para saltar do banco dos réus.
— Olhem-me só para este porco nojento, sanguinário e traidor! Era o assassino mais sangrento... Vende a alma para pôr a salvo a sua repugnante cabeça!
Foi deste modo que o «réu n° 1» reagiu às confissões de Bach-Zelewski.
Jodl, que também se sentiu vivamente picado por este depoimento, estava vermelho de raiva:
— Perguntem-lhe se ele sabe que Hitler no-lo apontava como um modelo de lutador contra os guerrilheiros! Perguntem-lho, a esse porco nojento!
E de facto perguntaram-lho. Foi Stahmer, advogado de Goering, quem se encarregou de o fazer. Aliás nem valia a pena, porque Bach-Zelewski, ciente da inutilidade de subterfúgios, punha as cartas na mesa.
Stahmer. Não sabia que era particularmente louvado e apreciado por Hitler e Himmler principalmente por causa da sua implacável e eficaz luta contra os guerrilheiros?
Bach-Zelewski. Recebi todas as minhas condecorações, a começar pela Cruz de Ferro, na Wehrmacht, por motivo dos serviços prestados na frente...
Esta resposta não chegava para satisfazer a Defesa. Mas o mais singular era que tanto a pergunta como a resposta eram correctas. Por mais manhoso que Bach-Zelewski fosse, ele não podia esconder que o comando militar alemão o tinha em grande conta para os massacres de soviéticos.
Quando a testemunha, terminado o depoimento, passou diante de Goering para sair da sala, a este berrou-lhe:
— Schweinehund! (Homossexual!)
Bach-Zelewski, de faces a arder, não respondeu nada. A injúria não foi traduzida pelos intérpretes, porque a maioria dos assistentes sabia o seu significado.
Depois disso evitou-se que as testemunhas passassem perto do banco dos réus. Faziam-nas entrar e sair pela porta, dos intérpretes. Quanto a Goering, o coronel Andrew deu-lhe uma repreensão e privou-o de tabaco durante oito dias.
E contudo Goering não deixava de ter razão ao tratar Bach-Zelewski de «Schweinehund». Este SS era efectivamente o mastim feroz de Hitler. Mas, como se encontrava na zona de ocupação americana, escapou ao castigo que impende sobre os crimes de guerra. Só quinze anos mais tarde foi detido e julgado em Nuremberga... Não por ter assassinado centenas de milhares de eslavos e de judeus, mas por ter fuzilado na «noite das facas longas» (no Verão de 1934, aquando do assassínio de Roehm e de outros rivais de Hitler e dele próprio) von Hoberg, fidalgo da Prússia Oriental, ele próprio SS, suspeito de contactos com antigos generais da Reichswehr hostis ao regime. Bach-Zelewski não teve grande razão de queixa da justiça alemã ocidental: só foi condenado a quatro anos de prisão.
Num dia do mês de Julho de 1946, tendo resolvido os assuntos correntes, subi à sala de audiências onde estava na altura a fazer uso da palavra o advogado Bergold. A primeira frase que me chegou aos ouvidos pareceu-me bastante bizarra:
— ...os Nurembergueses não enforcam ninguém antes de o terem apanhado.
Levei dois ou três minutos a compreender que ele tinha citado este velho rifão medieval a propósito do seu cliente Bormann.
Martin Bormann, que durante longos anos foi chefe do estado-maior de Rudolf Hess, veio ele próprio a ser, após a partida de Hess para a Inglaterra em Maio de 1941, o adjunto de Hitler na direcção do partido nacional-socialista. Desapareceu nos últimos dias da guerra e foi julgado à revelia. Tudo levava a crer que ele estaria vivo. Ainda hoje sabemos pela imprensa que ele teria sido visto neste ou naquele ponto do globo, o mais das vezes na América do Sul.
O jornalista soviético Lev Bezimenski baseou-se nestes numerosos dados para reconstituir a história mais ou menos verosímil da desaparição e ulteriores peregrinações de Martin Bormann. Tendo fugido de Berlim em plena batalha, esteve algum tempo depois na Áustria e a seguir na Dinamarca. Daí, o seu rasto conduz à Itália onde certos elementos da Igreja católica o receberam de braços abertos. Com a ajuda destes alcançou a Espanha e acabou por se estabelecer num país sul-americano.
De tempos a tempos, a imprensa ocidental publica informações «sensacionais» de natureza completamente diferente. É o caso de um tal Jaroslav Dedic que sustentou ter um dia assistido à inumação do corpo de Bormann em Berlim. Chamado a Berlim em Maio de 1945, não pôde confirmar se o corpo era de facto o de Bormann. Sobretudo porque não foi encontrado qualquer cadáver no lugar indicado. «Testemunhos» deste gabarito desde há algum tempo que se vêm reproduzindo, o que leva a crer que há pessoas interessadas em fazer passar Bormann por morto.
Desde o processo de Nuremberga que foram feitas (tentativas com a finalidade de por este meio se impedir que o chefe da Chancelaria do partido continuasse a ser procurado. A requerimento da Defesa foi interrogado Erich Kempka, director da garagem da Chancelaria e motorista particular de Hitler. Ele era uma das raras testemunhas da desaparição de Bormann.
Interrogado em primeiro lugar por Bergold, fez o seguinte depoimento:
— Vi o Reichsleiter Martin Bormann pela última vez na noite de 1 para 2 de Maio de 1945 junto à gare da Friedrichstrasse. Perguntou-me qual era a situação na gare e se se podia passar. Respondi-lhe que era praticamente impossível, porque se travavam aí violentos combates defensivos... O tanque da frente, ao lado do qual caminhava Martin Bormann, foi de súbito atingido por um projéctil, provavelmente uma granada de bazooka mandada de uma janela, e foi pelos ares. Do lado onde ia Bormann levantou-se bruscamente uma chama brilhante. Eu próprio fui cuspido pela explosão... e perdi os sentidos. Quando os recuperei não podia ver nada, porque a chama tinha-me cegado...
Este depoimento só medianamente satisfazia o advogado Bergold. Desejoso de arranjar uma prova formal da morte de Bormann, este fez a Kempka uma sugestiva pergunta:
— Testemunha, viu nesse momento Martin Bormann ser envolvido pela chama do rebentamento?
Então a testemunha começou a «ver claro».
— Sim, ainda vi outro movimento, uma espécie de desmoronamento. Dir-se-ia que ele tentava fugir.
O advogado aumenta a pressão:
— A explosão foi tão violenta que, segundo aquilo que você viu, Martin Bormann poderia ter sido morto logo ali?
Kempka, que compreendeu o que esperavam dele, responde mais categoricamente:
— Sim, estou convencido de que, dada a violência da explosão, ele foi morto. . .
Os juízes do Tribunal Internacional raramente interrogavam as testemunhas, deixando esse cuidado à Defesa e à Acusação. Mas desta feita o próprio presidente o fez.
Presidente. A que distância estava você de Bormann?
Kempka. Talvez a três ou quatro metros.
Presidente. Então um projéctil atingiu o tanque, é mesmo isso?
Kempka. Não, creio que o tanque foi atingido por uma bazooka que disparava de uma janela.
Presidente. E então viu jorrar uma chama e perdeu os sentidos?
Kempka. Sim, vi de súbito um clarão e, numa fracção de segundo, vi também o Reichsleiter Bormann e o secretário de Estado Naumann a serem projectados e caírem. Eu próprio fui cuspido para o lado nesse instante e perdi os sentidos. Quando vim a mim não via nada e fui-me embora a rastejar. Rastejei até que bati com a cabeça numa barragem antitanque.
Interrogado por outro juiz, o americano Francis Biddle, Kempka vai-se tornado cada vez mais evasivo.
Biddle. A que distância estava do tanque quando este explodiu?
Kempka. Acho que a três ou quatro metros.
Biddle. E a que distância estava Bormann do tanque quando este explodiu?
Kempka. Acho que estava agarrado a ele com uma mão.
Biddle. Você diz que acha. Viu-o ou não o viu?
Kempka termina por meter os pés pelas mãos. Responde de súbito:
— Eu não o vi realmente a agarrar-se ao tanque, mas para o seguir eu teria feito a mesma coisa, ter-me-ia colado à traseira do tanque.
É de todo evidente que a testemunha se contradiz: primeiro declara que seguiu o tanque à distância de três ou quatro metros, depois sustenta que se encostou a ele; tanto afirma que Bormann fazia como ele como confessa não o ter visto. Se se acrescentar que, a fazer fé em Kempka, a cena descrita aconteceu às duas ou três da madrugada, no meio da escuridão, não teremos dificuldade em avaliar quão fértil era a sua imaginação. É estranho que um homem agarrado a um tanque não tenha sofrido o mínimo ferimento por efeito da explosão. Em contrapartida, ele não duvida que Bormann tenha sido morto.
A todos quantos ouviram o seu depoimento, ele deu a impressão de um lamentável mentiroso. Ajudou menos o advogado Bergold do que desacreditou toda a sua argumentação a favor da versão da morte do Reichsleiter. Apesar dos desesperados esforços da Defesa, o Tribunal condenou Bormann à forca na qualidade de réu revel.
Note-se que durante o processo de Nuremberga havia pessoas que se diziam certas da morte de Eichmann. Mas ao cabo de quinze anos este «ressuscitou» para ser julgado e enforcado.
Falemos agora do interrogatório da testemunha Marie-Claude-Vaillant-Couturier...Um nome bem conhecido: esta militante francesa lutara corajosamente, durante anos, contra o fascismo. E quando as tropas nazis ocuparam o seu país foi presa e depois enviada para Auschwitz onde passou por todos os tormentos do inferno.
Às perguntas do representante do Ministério Público a senhora Vaillant-Couturier responde que era deputada à Assembleia Constituinte, condecorada com a Legião de Honra. Detida a 9 de Fevereiro de 1942 pela polícia de Pétain. Entregue seis semanas depois às autoridades hitlerianas. Na prisão da Santé, a sua cela era vizinha das do filósofo Georges Politzer e do físico Jacques Solomon. Politzer informara-a por meio de pancadas na parede que os nazis tinham querido forçá-lo com torturas a escrever tratados favoráveis ao nacional-socialismo. Quando ele recusou categoricamente essa ignóbil missão, ameaçaram incluí-lo no primeiro grupo de reféns a serem fuzilados...
A senhora Vaillant-Couturier continua o seu arrepiante relato:
— Parti para Auschwitz a 23 de Janeiro de 1943. Fazia parte de uma leva de 230 francesas. Estava connosco Danielle Casanova que morreu em Auschwitz.
Depois fala de uma outra infeliz:
— Toda a minha vida recordarei Annette Epaux! Quando subiu para a camioneta que a levava para a câmara de gás abraçava-se a outra francesa, a velha Line Porcher, e quando o camião arrancou gritou-nos: «Se voltarem à França pensem no meu rapaz». Depois puseram-se a cantar a Marselhesa.
Contendo dificilmente a emoção, a senhora Vaillant-Couturier relata as velhacarias de que se serviam os fascistas para evitar «incidentes indesejáveis» no decorrer do extermínio dos prisioneiros:
«Uma orquestra composta por reclusas, todas jovens e bonitas, vestindo blusinhas brancas e saias azul-marinho, tocava, à chegada dos comboios e durante a distribuição, árias alegres como a Barcarola dos «Contos de Hoffmann», a «Viúva Alegre», etc. Diziam aos novos que aquilo era um campo de trabalho. Os que eram seleccionados para o gás, isto é, os velhos, as crianças e mães, eram levados para um edifício vermelho de tijolos...
Toda a sala escutava, num silêncio onde se ouvia o arranhar das canetas dos estenógrafos. Todos os olhares se fixavam naquela que, ali, virava as páginas da horrível crónica:
— A pequena Marie era a única sobrevivente de uma família de nove. A mãe e os seus sete irmãos e irmãs tinham sido gaseados logo à chegada. Quando a conheci, o trabalho dela era despir as vítimas antes de irem para a câmara de gás. As pessoas, uma vez nuas, eram mandadas entrar para uma divisão parecida a uma gala de duches e as cápsulas de gás eram lançadas por um orifício feito no tecto. Um SS espreitava por um postigo o efeito produzido. Ao cabo de cinco ou seis minutos, quando gás cumprira já a sua obra, dava o sinal para que se abrissem as portas. Homens com máscaras anti-gás— também prisioneiros — entravam na sala e retiravam os corpos. Contavam-nos eles que as pessoas deviam sofrer muito antes de morrerem, porque estavam agarradas em cacho umas às outras e era muito difícil separá-las. Depois passava uma equipa para arrancar os dentes de ouro e as dentaduras. E quando os corpos eram reduzidos a cinzas ainda as passavam à peneira para tentarem recuperar algum ouro que restasse.
A senhora Vaillant-Couturier relata uma provocação monstruosa aos judeus de Salónica que chegavam a Auschwitz eram distribuídos bilhetes-postais e um texto impresso que eles deviam copiar pelo seu próprio punho: «Estamos muito bem aqui, há trabalho, somos bem tratados, aguardamos a vossa chegada». Cada qual devia enviar à família, um desses postais, nos quais estava escrito em baixo o endereço do remetente: Waldsee (localidade imaginária).
— Não sei se esse método — declarou a senhora Vaillant-Couturier — foi praticado noutros lados, mas foi-o em todo o caso no que respeita à Grécia (e também à Eslováquia); no gabinete de recrutamento na Grécia apresentavam-se famílias inteiras para se irem juntar aos seus, e lembro-me de um professor de letras de Salónica que viu com horror aparecer o seu pai.
Fiz já notar que muitos dos réus e seus defensores se esforçavam por demonstrar que Auschwitz, Maidanek e as outras fábricas de morte pertenciam à diocese de Himmler e que a Wehrmacht não tinha absolutamente nada a ver com isso. Mas a senhora Vaillant-Couturier desmentiu essa fábula. Revelou ela que o campo de Auschwitz era também guardado por soldados e oficiais do Exército.
Esta testemunha fez a vida bem negra à Defesa. Com a finalidade de tirar força aos seus depoimentos, declarou o advogado Nelte:
— Compreendo o ódio das pessoas que sofreram tanto. Tão grandes foram os seus sofrimentos que não podemos fiar-nos na sua objectividade.
Que dizer de semelhantes sentenças? Nos campos de concentração hitlerianos só havia duas categorias de pessoas: os criminosos e as suas vítimas, os assassinos e os assassinados, carrascos e mártires. Não havia outros. Os torcionários SS não mandavam convites para se assistir às suas orgias sangrentas. Que outras pessoas poderiam ser citadas como testemunhas perante o Tribunal? Em quem queriam os advogados de defesa que se tivesse confiança? Que testemunhos, podia o Tribunal tomar em consideração e considerar objectivos? Os dos assassinos, dos carrascos, ou os das vítimas que por milagres escaparam da morte?
O doutor Hans Marx foi dos que se meteu ao barulho. Estava decidido a provar de vez a «incompetência» da senhora Vaillant-Couturier.
— Como pode a senhora explicar que tenha conhecimentos tão exactos de estatísticas? Por exemplo, fala de setecentos mil judeus que teriam vindo da Hungria.
A senhora Vaillant-Couturier satisfez de imediato a curiosidade do advogado: teve disso conhecimento trabalhando nos escritórios. Marx tenta desarmá-la:
— Sustenta-se no entanto que teria havido apenas trezentos e cinquenta mil judeus oriundos da Hungria, isto segundo indicações do chefe de serviço da Gestapo Eichmann.
Ao que Marie-Claude responde, sarcástica:
— Não quero discutir com a Gestapo. Tenho boas razões para saber que o que ela afirma nem sempre é exacto.
O advogado Marx consegue livrar-se mais ou menos do tema de Auschwitz para abordar um outro, que acha menos perigoso.
— Mais uma pergunta, minha senhora. Até 1942 a senhora pôde constatar a conduta dos soldados alemães em Paris. Será que os soldados alemães não se comportaram de maneira conveniente, será que não pagavam o que requisitavam?
E de novo a resposta o confunde:
— Não sei se eles pagavam o que requisitavam. Quanto a comportamentos convenientes, muitos dos meus foram fuzilados ou massacrados para que eu não possa ter uma opinião diferente da sua sobre esta questão.
Completamente desencorajado, o advogado tenta uma última vez difamar a senhora Vaillant-Couturier:
— Como é possível que a senhora tenha sobrevivido a tão duras provas?
E continua dentro do mesmo espírito:
— Como pode explicar que tenha podido passar por tudo isso e que tenha regressado de boa saúde?
Estes odiosos métodos da Defesa despertaram ecos muito para além dos muros do Palácio da Justiça. O Berliner Zeitung fez sair um artigo que terminava assim:
«Não se pode proibir a quem quer que seja de expressar as suas simpatias. A questão é a de saber o que se pensar disso... Aquele que, em vez de se calar perante o relato dos sofrimentos passados pelas vítimas do hitlerismo, tenta pelo contrário virá-los a favor dos sádicos assassinos, deve ser para sempre banido da sociedade das pessoas honestas».
E alguns dias depois, numa reunião de organização do Tribunal, o presidente informou que tinha recebido uma queixa feita pelo Dr. Marx. O advogado declarava que tinha sido ultrajado pelo jornal berlinense.
Na minha opinião, o Tribunal só tinha uma coisa a fazer: assinalar ao advogado a indelicadeza do seu comportamento. Mas nada disso se passou. O juiz americano Parker pronunciou inopinadamente uma veemente filípica contra o Berliner Zeitung.
Conhecia-o há meses, desde que trabalhávamos juntos. Parecera-me bastante equilibrado. Mas ei-lo agora transformado noutro homem. Dava murros na mesa e ia ao ponto de gritar:
— Se fosse no meu país, tinha mandado meter o redactor atrás das grades. Ter a ousadia de insultar assim um advogado!
O meu serviço não me permitia entrar em discussão com os juízes. Mas tinha vontade de lembrar a Parker que ele próprio, quando examinávamos o caso Fritzsche, acusado de propaganda de agressão, tinha declarado tão categoricamente como agora:
— Como se pode julgar alguém por propaganda?...Não esqueçam que esta noção implica a liberdade de imprensa, a liberdade de expressão, a sagrada liberdade garantida pela Constituição americana.
Pergunta-se porquê, por um lado, a propaganda feita pela via dá imprensa é uma liberdade garantida pelo Constituição e, por outro, a opinião pública, igualmente expressa pela imprensa, é um ato pelo qual se deveria prender o redactor.
Viu-se de tudo em Nuremberga.
Na barra das testemunhas estava agora outra prisioneira de Auschwitz, Severine Schmaglewskaia. Muita gente tem os olhos marejados de lágrimas quando ela conta como as crianças eram arrancadas às mães para serem queimadas nos fornos do campo. Foi com uma dor pungente mesclada de cólera que ela gritou:
— Em nome de todas as mulheres da Europa gostaria de perguntar aos alemães: onde estão os nossos filhos?
Olho na direcção da Defesa e dos réus. Alguns advogados têm os olhos pregados no chão, outros mordem os lábios. A maioria dos réus está de cabeça baixa. Funk vira bruscamente as costas a Streicher como para dar a entender que depois do que ouviu não pode olhar mais para esse monstro racista. Frank corou. Rosenberg contorce-se no banco. Goering retirou dos ouvidos os auscultadores, como era seu hábito, para mostrar que isso não lhe dizia respeito.
Ao almoço, pergunta Kranzbuhler ao seu constituinte:
— Ninguém sabia absolutamente nada sobre isso?
Doenitz contenta-se a encolher os ombros. Foi Goering quem respondeu por ele:
— Claro que não. Você sabe que o próprio comandante de batalhão ignora o que se passa nas linhas. Quanto mais alto se está menos se vê do que se passa em baixo.
Mais uma vez, aquele que criou campos de concentração na Alemanha e organizou a Gestapo fazia uma lamentável tentativa de se desculpar. Um dos procuradores teve perfeitamente razão quando declarou no primeiro dia do processo:
— As provas são formais, direi mesmo que nem sequer uma das minhas palavras poderá ser contraditada. Os réus apenas poderão negar a sua responsabilidade pessoal.
As testemunhas soviéticas contribuíram eficazmente para desmascarar os criminosos de guerra hitlerianos ao revelarem os crimes que eles haviam perpetrado na URSS.
Aqui está um homem imponente, de madura idade, bela barba grisalha. Como lhe perguntam quais os seus títulos, ele responde que é membro da Academia das Ciências da URSS, membro da Academia de Arquitectura da URSS, presidente da Academia das Ciências da Arménia, membro honorário da Academia das Ciências do Irão, membro da Sociedade dos Antiquários de Londres, membro consultivo do Instituto americano de Arqueologia e Artes. Tratava-se do grande cientista soviético Jossif Orbeli. No momento em que ele se preparava para fazer o seu depoimento sobre as bárbaras destruições dos monumentos de Leninegrado, o advogado Servatius aproximou-se do microfone:
— Gostaria de pedir ao Tribunal que decidisse se a testemunha pode ser ouvida... Leninegrado nunca caiu nas mãos dos alemães.
Este bizarro argumento, que excluía toda a possibilidade de inculpar os nazis de crimes cometidos em territórios não ocupados, foi rejeitado pelo Tribunal e o académico Orbeli pôde fazer o seu testemunho. Evocou dolorosamente o bombardeamento do magnífico museu Ermitage pela artilharia alemã, os terríveis estragos causados nos soberbos monumentos arquitectónicos de Peterhof.
Latemser, advogado do Estado-Maior-General, perguntou-lhe:
— Pode dizer-me se, nas proximidades do Ermitage e do Palácio de Inverno, há indústrias, em particular indústrias de armamento?
Orbeli respondeu tranquilamente que na vizinhança do Ermitage não há nenhum estabelecimento da natureza militar. E para obviar a outras perguntas, precisa que se o advogado quer falar dos edifícios do Estado-Maior situados do outro lado da praça do Palácio, estes sofreram muito menos bombardeamentos que o Palácio de Inverno.
O advogado não se dá por achado:
— Sabe se nas proximidades dos edifícios de que falou se encontravam baterias de artilharia?
Orbeli responde:
— Em toda a praça junto ao Ermitage e ao Palácio de Inverno não havia nenhuma peça de artilharia, dado que desde o início foram tomadas medidas para evitar as vibrações inúteis junto aos monumentos culturais e artísticos.
Latemser, envergonhado, volta para o seu lugar. Servatius corre em sua ajuda.
Tendo tido a oportunidade de falar com este advogado que defendia Sauckel e a corporação dos dirigentes políticos, tive a surpresa de constatar que ele falava fluentemente o russo, quase sem sotaque. Um dia não pude conter-me e perguntei-lhe a razão. Ele fugiu à pergunta, balbuciou algo a propósito de preceptores que teria tido na sua infância e bateu rapidamente em retirada.
Ei-lo que avança agora em direcção da tribuna e lança contra Orbeli o que se pode chamar um ataque inesperado:
— A que distância, no Neva, se encontra a ponte mais próxima do Palácio?
O advogado fazia evidente alusão à ponte do Palácio e pretendia dar a entender que se tratava de um objectivo militar. Depois concluiu com arrogância:
— O senhor tem suficientes conhecimentos de artilharia para poder julgar se o alvo era de facto o Palácio ou a ponte?
Mas Servatius não teve mais sorte que o seu colega Laternser. O académico Orbeli, tendo por si a força de servir a verdade, respondeu ponderadamente:
— Nunca fui artilheiro, mas pensava que, se a artilharia alemã disparou contra uma ponte, não a alvejou com um único obus, ao passo que trinta obuses caíram em cima do Palácio, situado do outro lado. Desse ponto de vista, eu sou artilheiro.
A apresentação das provas no processo reservava bastantes surpresas aos réus.
Lev Smirnov, advogado-geral soviético, toma a palavra para ler o depoimento de Sigmund Mazur, preparador no Instituto Anatómico de Danzig. Esta testemunha conta como os nazis fabricavam sabão com gordura humana. O Tribunal é ao mesmo tempo informado da receita oficial:
«...depois de ter sido arrefecido, o sabão é vertido para moldes».
Os réus já não olham para Smirnov. A sua atenção é atraída por um objecto colocado em cima da mesa. O pano branco que o cobre deixa adivinhar que se trata de uma terrífica prova material.
Smirnov não abusa da paciência dos réus, retira o pano de cima das «tinas», isto é, dos moldes para onde era vertido o sabão no estado líquido. E agora aqui está ele no estado sólido: sabonetes de aparência vulgar, mas quantas vidas não tiveram de ser imoladas para fornecer esta «mercadoria» às perfumarias alemãs!
Depois o acusador mostra algo que se assemelha a peles. Sim, é isso, trata-se de pele não curtida. De pele humana.
Quando Smirnov o anuncia, perpassa por toda a sala um gemido abafado. Alguns arrepiam-se, como se estivessem a sentir sobre o corpo a faca de um nazi a esfolá-los.
Em cima das mesas alinhadas contra a parede há outros objectos cobertos com panos. Por ordem do procurador são destapados e surgem aos olhos de todos peles humanas curtidas e esticadas em caixilhos. Todas têm marcas de tatuagens artísticas. Os que tinham a infelicidade se mandarem tatuar na juventude eram sujeitos aos piores tormentos, logo que caíam nas mãos dos nazis. Eram mandados matar e a sua pele servia para a confecção de quebra-luzes ou outros artigos de marroquinaria.
Ao lado, dentro de uma redoma de vidro, uma caveira mumificada, do tamanho de um punho. Ainda conservava o cabelo bem como uma marca de corda à volta do pescoço.
Horror! Quem era? Um russo, um polaco, um francês? Apenas se sabe que esta caveira montada numa peanha servia de objecto de adorno em cima da secretária do chefe do campo de Auschwitz.
Smirnov já antes do processo de Nuremberga tinha lidado com criminosos nazis. Homem muito culto, jurista erudito, orador eloquente, conduziu brilhantemente o processo de dez torcionários fascistas alemães em Smolensk. Sendo então procurador-geral, ele estudou a fundo os crimes cometidos pelos hitlerianos contra as populações civis, os seus diferentes procedimentos e camuflagem. Foi por isso ele o encarregado de apresentar perante o Tribunal de Nuremberga as provas dos crimes de lesa-humanidade de que a camarilha nazi se linha tornado culpada.
A escolha foi das mais felizes. Os seus discursos golpeavam menos pela eloquência do que pela sua lógica, a sua força de persuasão, o carácter científico, poder-se-ia dizer, porque eram discursos que proporcionavam generalizações muito preciosas para os homens de leis e os historiadores. Aqui, analisa ele os múltiplos actos de barbárie:
— Todos os crimes monstruosos — diz ele — foram a aplicação de um sistema bem definido. Os métodos de assassínio eram todos do mesmo modelo. Um único e mesmo sistema presidia à construção das câmaras de gás, à produção em massa das caixas redondas contendo os venenos «Ciclone A» e «Ciclone B»; os fornos crematórios eram todos construídos seguindo um idêntico plano, e os campos de extermínio eram todos concebidos da mesma maneira. As horríveis máquinas de morte chamados Gaswagen (carros com câmara de gás), eram construídas em série, bem como os moinhos ambulantes para moer os ossos humanos. Todos estes factos provam bem que existia nos assassinos e nos carrascos uma vontade concertada de praticar o mal... As provas que ulteriormente vos apresentarei, irão mostrar-vos que os médicos legistas soviéticos descobriram locais em que os alemães tinham enterrado as suas vítimas, tanto no norte como no sul do país. Estes locais estavam separados um dos outros por milhares de quilómetros e está fora de dúvida que os crimes foram cometidos por pessoas diferentes. Mas os métodos eram absolutamente os mesmos. As feridas estavam invariavelmente localizadas nas mesmas partes do corpo. As imensas sepulturas disfarçadas de fossas antitanques ou de trincheiras eram em todo o lado cavadas segundo os mesmos processos.
Lev Smirnov por mais de uma vez voltou a esta questão, revelando o que tão perfeitamente tinha estimulado a formação na Alemanha de tal quantidade de carrascos. Fala do carácter politicamente organizado dos crimes, do papel desempenhado por anos de educação racista, do cuidado posto em interessar materialmente os hitlerianos pela guerra, das ordens especiais de Hitler estabelecendo a impunidade dos nazis, em suma, de tudo o que ajudou o partido nacional-socialista a encontrar tantos executores do diabólico plano de extermínio dos homens.
Os olhares atónitos de Goering, de Rosenberg, de Schirach, de Streicher parecem querer dizer: «Desculpe, mas que temos nós a ver com isso?» A sua «santa candura» não podia no entanto enganar ninguém. Foram eles, Goering e Rosenberg, Streicher e Schirach, quem durante anos perverteu o povo alemão, inculcando-lhe a ideia de que «a consciência é uma quimera» de que todo o bom alemão se deve desembaraçar, que não há homens dignos de viver a não ser os alemães. Os objectos de prova material expostos na sala de audiências eram uma ilustração repugnante dos frutos dessa perversão.
Os nazis fizeram eles próprios a contabilidade dos seus crimes. Nenhum assassínio devia ficar por registar. Nos campos de concentração havia livros onde eram apontadas por ordem alfabética as «chegadas» e as «partidas» dos prisioneiros. Aqui está um. É tão pesado que Smirnov tem de fazer esforço para o pôr em cima da mesa dos juízes.
Durante a suspensão da audiência dou-lhe uma olhadela. Foi indicada para todos os mortos, em letra caligráfica, a mesma causa de óbito: doença de coração. Os prisioneiros não morriam de velhos. A morte não fazia cera com eles. E morriam também por ordem alfabética.
Nem os inimigos jurados do regime hitleriano não podiam sequer imaginar que eram metodicamente entregues à banca alemã milhares de anéis, de brincos, de relógios, de broches sacados às vítimas dos campos de concentração, coroas de ouro arrancadas aos seus dentes. Nenhum Estado, no curso da História universal, tinha sido acusado de semelhantes crimes. Só em Nuremberga estas coisas se revelaram em toda a sua atrocidade e foram confirmadas pelos depoimentos de testemunhas.
Do mesmo modo que Smolensk tinha sido para Smirnov uma etapa do caminho para Nuremberga, o processo de Nuremberga, onde tão magistralmente ele desmascarou os sangrentos crimes dos conquistadores nazis, abriu-lhe novas perspectivas. Depois de Nuremberga ele foi enviado a Tóquio onde eram julgados os grandes criminosos de guerra japoneses. E alguns anos depois participou como procurador-geral no processo de Khabarovsk intentado contra os criminosos de guerra japoneses acusados de terem preparado e utilizado arma bacteriológica.
Mas voltemos a Nuremberga. Também a imensa colecção de fotografias ali amontoadas reservava bom número de surpresas aos inculpados. Os hitlerianos gostavam de posar perante os fotógrafos e os operadores de cinema, sem suporem que um dia isso lhes traria desvantagens.
Kaltenbrunner, por exemplo, nega ter alguma vez ido ao campo de Mauthausen e, por maioria de razão, ter assistido à introdução em massa dos cadáveres nos fornos. Mas (nem de propósito!) conservaram-se chapas em que o chefe da Gestapo vigia com ar grave o funcionamento dos fomos. Existem centenas destas fotos reveladoras. Mas ele está decidido a não se reconhecer nelas. Diz que estão «baças». Estes comprometedores documentos são então expedidos para o gabinete 158.
Um alemão bastante idoso, de estatura mediana e bem cheio de carnes, é aí que está instalado. Trata-se de Heinrich Hoffmann. Desconhecido antes do aparecimento de Hitler, tinha ganho o seu «pão» a fotografar bailarinas nuas. Depois lançou-se na publicação de bilhetes-postais pornográficos. Escolhia os seus modelos nos cabarets de segunda categoria, onde uma das raparigas lhe agradou e se tornou sua associada. Era Eva Braun, que seguidamente viria a cair nas graças de Hitler. Hoffmann não se afligiu muito por ter sido suplantado pelo Fuhrer, sobretudo porque o negócio fechado nessa ocasião lhe era muito vantajoso: comprometia-se a destruir todos os negativos em que figurava Eva Braun despida e em troca adquiriria o direito exclusivo de fotografar Hitler. Passou rapidamente da pornografia para hitlerografia e fez no Terceiro Reich uma carreira vertiginosa. Fundou uma editorial cujo fundo de maneio constituiu, em doze anos, 58 milhões de marcos. Hitler agraciou o seu retratista com o título de professor e a insígnia de ouro do partido nazi.
O fotógrafo da corte entrara numa época de prosperidade. Mas nada é eterno neste mundo. Em 1945 Hoffmann, envelhecido, considerava-se ainda feliz por «trabalhar na sua especialidade», como perito dos documentos fotográficos. Não tem acesso à sala. Vi-o só duas ou três vezes, antes das audiências. Agachado num canto, observava com olhar vago os seus antigos clientes que ali, ao banco dos réus, tinham ido encalhar.
Hoffmann não era o único a ter entregue ao Tribunal um grande número de fotos acusadoras. Prisioneiros escapados por milagre à morte também por vezes traziam fotografias terrificantes.
Na barra das testemunhas está Francisco Boix, um jovem espanhol de grande estatura, libertado de Mauthausen. Fotógrafo de profissão, era utilizado pela administração do campo no serviço de identificação dos reclusos. Foi isso que lhe permitiu depor na mesa dos juízes um pacote de fotografias de Mauthausen obtidas por ele próprio ou a partir de negativos que os SS lhe entregavam para revelar.
E aqui está uma delas representando uma sinistra «mascarada». Boix explica:
— Isto é uma mascarada feita a propósito de um austríaco que se evadira. Ele era marceneiro na garagem e conseguiu fazer uma caixa onde cabia e assim sair do campo. Mas foi apanhado... Foi condenado, passeado diante de dez mil deportados; havia uma orquestra de ciganos. Quando foi enforcado balouçava ao vento que então soprava e a orquestra tocava uma música muito conhecida que se chama a polca «Beyer Barel».
Numa outra chapa há um homem enforcado numa árvore. Boix comenta:
— É um judeu cuja nacionalidade se ignora. Foi metido num barril de água até não aguentar mais. Espancaram-no até ficar às portas da morte e deram-lhe dez minutos para se enforcar. Para o fazer ele utilizou o próprio cinto, pois sabia o que o esperava se assim não fosse... A foto foi tirada pelo SS Oberscharfuhrer Paul Ricken.
Em seguida Boix mostra uma foto em que se vê o ministro do Armamento Speer a visitar o campo. O ministro está de excelente humor. Com um desvanecido sorriso de auto-suficiência, aperta a mão ao chefe do campo, o Obersturmbannfuhrer Ziereis.
O procurador Rudenko pergunta à testemunha o que sabe do extermínio dos prisioneiros soviéticos em Mauthausen. Boix responde embaraçado:
— Sei tantas coisas que nem um mês chegava para as contar.
Depois mostra, emocionado, outra fotografia. Os juízes examinam-na e convidam a Defesa e os réus a verem-na também. Goering e Keitel esticam o pescoço, Jodl e Doenitz espreitam por cima das cabeças deles.
Aproveitei uma suspensão de audiência para lhe dar uma olhada. Trinta soldados soviéticos todos nus estão alinhados na neve, como numa revista. Dir-se-iam esqueletos, as costelas estão tão salientes como se já não tivessem carne. Os seus olhos cavos são trágicos, mas brilham de energia. Às portas da morte estes homens continuam corajosos, indomáveis e orgulhosos.
A 29 de Novembro de 1945 os réus, levados como todas as manhãs para a sala de audiências, viram um ecrã de cinema encostado à parede. Ia ser projectada uma série de documentários rodados por operadores nazis qualificados.
As luzes já estão apagadas mas as caras dos arguidos, iluminadas por lâmpadas especiais, estão visíveis. As primeiras sequências não os incomodam. É o tempo da luta dos nazis pelo poder, a criação da Wehrmacht, uma parada da Luftwaffe. Goering sorri ao contemplar-se como comandante da Aviação.
Depois são os desfiles de tropas terrestres, fábricas de guerra gigantes e o seu padrinho Hjalmar Schacht que prodigalizou milhares de milhões de marcos para a sua construção.
Goering dá cotoveladas a Hess cujo olhar indiferente vagueia do soalho ao tecto. Só por momentos se volta para o ecrã onde decorre uma reunião fascista no Reichstag. Aí se vê a si próprio ajuramentando um grupo de parlamentares.
Goering diz bastante alto aos seus vizinhos que o filme «vos inspira». A tal ponto vos inspira, diz, que «o procurador Jackson em pessoa deveria agora aderir ao partido nazi».
Mas eis que a disposição dos réus muda como da noite para o dia. O filme que segue intitula-se «Campos de concentração».
As actualidades da Gestapo evidentemente que não eram destinadas ao grande público. As filmagens feitas em Auschwitz são de gelar o sangue. Dezenas de milhares de desgraçados condenados à morte desfilam sem parar. São espancados, destroçados pelos cães. E depois chegam ao fim do seu calvário: os célebres fornos crematórios. À entrada, calçado amontoado, objectos de criança.
E isto, o que é? Um armazém inteiro de fardos. São os cabelos das vítimas, cortados antes do suplício. Nas embalagens está escrito: «Cabelo de homens», «Cabelo de mulheres».
Observo de soslaio o banco dos réus. Os rostos iluminados são como máscaras de espectros.
No ecrã, entretanto, vêem-se mais montões de sapatos, montes de cadáveres e...uma orquestra composta pelos melhores músicos da Europa. Executam o «tango da morte», abafando os gemidos dos infelizes. Depois os hitlerianos liquidaram-nos também a eles e não houve ninguém que viesse cobrir os seus gemidos...
Schacht voltou-se para a galeria dos convidados. Que lhe importam esses crimes, a ele que é financeiro e comerciante? Mas a sua hipocrisia não engana ninguém. Sem o grande tesoureiro da guerra não teria havido Auschwitz. .
Neurath baixou a cabeça. Funk, que guardava nas caves do Reichsbank as jóias das vítimas e as coroas de ouro dos dentes arrancadas a dezenas de milhares de supliciados, fechou os olhos e ele próprio fazia lembrar um morto. O esclavagista Sauckel seca o suor de testa. Frank chora aos soluços. Speer funga e Goering, com as duas mãos apoiadas no banco, olha para outro lado. Rosenberg agita-se nervosamente, vagueia o olhar à sua volta para ver o que fazem os outros. Um dos advogados murmura: «Meu Deus, como isto é horrível!»
Aos filmes de Auschwitz sucedem-se os de Buchenwald. Fornos devoradores e quebra-luzes de pele humana tatuada.
Quando tornam a aparecer os fardos de cabelo e o locutor informa que esta «matéria-prima» servia para o fabrico de meias especiais para as equipagens dos submarinos, Doenitz volta-se e fala ao ouvido de Raeder.
E agora Dachau. Dezassete mil mortos. Funk desfaz-se em lágrimas, Frank rói as unhas.
Joseph Kramer, carrasco do campo de Belsen, surge no ecrã. São atirados para uma fossa corpos de mulheres. Frank acaba por perder o domínio de si. Arqueja:
— O porco nojento!
Quando o filme acabou, o doutor Gilbert ouve esta observação de Streicher:
— É muito possível que tais coisas se tenham passado nos últimos dias.
Fritzsche responde-lhe:
— Milhões nos últimos dias? Oh, não!
Enquanto todas estas irrefutáveis provas de culpabilidade do partido nazi e dos seus chefes eram examinadas pelo Tribunal, de novo me vêm à memória as palavras de um dos procuradores:
«As nossas provas provocarão o vosso asco e ides dizer-me que vos privei do sono».
A noite, Gilbert foi visitar as celas. Foi também à de Fritzsche. Este tinha um olhar ausente e mal podia falar.
— Nenhuma potência, quer celeste quer terrestre, apagará esta vergonha do meu país! Nem pelo correr das gerações, nem mesmo pelo correr dos séculos.
Mas seis anos depois, já em liberdade e no ambiente de um novo acesso de militarismo que se apoderou da Alemanha, irá ele escrever um livro em que nega tudo.
Depois de Fritzsche, Gilbert vai ter com Frank. Mal o doutor lhe lembra o filme projectado nesse dia, Frank desfaz-se em pranto e lamenta-se:
— Dizer que vivíamos como reis e acreditávamos nesta besta feroz! Que ninguém diga que não sabia de nada. Toda a gente sentia que havia algo de abominável neste sistema...vocês tratam-nos bem demais — continua ele mostrando a comida em cima da mesa. — Os vossos prisioneiros e alguns dos nossos compatriotas morriam de fome nos nossos campos. Que Deus tenha piedade das nossas almas! Sim, senhor doutor, o que eu lhe disse era perfeitamente certo. Foi Deus quem quis este processo...
Frank tinha visto Treblinka, Maidanek e Auschwitz ao vivo. Aquando das suas visitas aos campos nunca ele tinha tido estas crises de chorosa histeria. Só ao ver o documentário e ao sentir a corda no seu próprio pescoço é que desatou em pranto. Por quem chorava ele? Sem dúvida que por si mesmo.
...Gilbert está agora na cela de Papen. Pergunta ao velho sabotador que abriu o caminho do poder a Hitler por que tinha ele ostensivamente virado costas ao ecrã. A resposta é das mais lacónicas:
— Não quis ver a vergonha da Alemanha.
Schacht queixa-se a Gilbert:
— Como tiveram a ousadia de me mandarem sentar ao lado desses criminosos?
Mas já iremos ver que não houve aqui «ousadia» nenhuma.
O erro foi talvez terem posto Schacht tão afastado de Goering.
...Aqui é a célula de Sauckel, que treme todo e debita os protestos da sua inocência:
— Estrangulava-me com as minhas próprias mãos se sentisse que tinha a ver, o mínimo que fosse, com esses assassínios. É uma vergonha, uma vergonha para nós, para os nossos filhos e para os filhos dos nossos filhos!
Keitel estava a comer quando Gilbert o foi visitar. Não disse nada até que o doutor lhe tocou primeiro no assunto do filme. Pousando a colher, o ex-marechal-de-campo apenas pronunciou algumas palavras:
— É terrível! Quando vejo coisas destas tenho vergonha de ser alemão.
Goering preferiu não dizer nada.
Mas já Fritzsche foi mais loquaz:
— Sim, aquilo foi a última gota...Agora tenho o sentimento de estar enterrado em imundícies e me afogar nelas...
Gilbert fez-lhe notar que Goering estava muito mais calmo parecia encarar as coisas com mais simplicidade. Então Fritzsche põe-se a barafustar contra esse
«rinoceronte de espessa carapaça, que é uma desonra para o povo alemão».
Por que cito eu tudo isto? Não estará já claro que lágrimas, lamentações e tiradas dos réus não passam de hipocrisia? Mas não é essa a questão: o que conta é que nenhum dos que compareceram perante o Tribunal Internacional teve a coragem, mesmo quando sozinho, com o dr. Gilbert, de negar os crimes nazis, todos eles apenas tratavam de se inocentar a si próprios. Isso mostra uma vez mais o odioso da propaganda alemã ocidental que se esforça por reabilitar o nazismo!
No processo de Nuremberga só a palavra «ecrã» bastava já para assustar Goering e Ribbentrop, Keitel e Jodl. Na verdade ela nada lhes prometia de bom. Porém nenhum deles teve a audácia de pôr em dúvida o que tinha sido fixado pelos operadores em dezenas de milhares de metros de película.
A propósito de cinema, não posso deixar de felicitar o eminente autor soviético de filmas documentários Roman Karmen e os que com ele fazem equipa — Boris Makasseiev, Victor Stadtland, Serguei Semionov, Victor Kotov — pelo seu Tribunal dos Povos. Pode sem hesitação dizer-se, parafraseando um dos procuradores, que, nele, os historiadores encontrarão a verdade, e os políticos um alerta.
Quem entra na sala de audiências, o que vê primeiro é a mesa dos oito juízes. Gada um dos quatro países — URSS, EUA, Grã-Bretanha e França — era representado por dois juízes, um dos quais era membro do Tribunal Internacional e o outro seu suplente. Esta distinção não tinha qualquer importância. Todos assinaram o veredicto da sentença. E nos debates todos participaram a título igual.
O presidente do Tribunal Internacional era Lord Geoffrey Lawrence. Tinha sido nomeado para Nuremberga em virtude de uma tradição que impõe que todos os membros do Supremo Tribunal da Grã-Bretanha vão em comissão de serviço ao ultramar.
Ignoro quem teria podido substituí-lo, mas acho que a sua candidatura era perfeita. Lawrence esteve à altura da sua tarefa. Conduziu o processo com conhecimento de causa e muita dignidade.
Era um sexagenário bastante baixo, corpulento, calvo, com óculos que constantemente lhe escorregavam para a ponta do nariz. Por vezes aflorava-lhe ao rosto um sorriso: tinha o sentido do humor.
Sir Geoffrey Lawrence segurava as rédeas do processo, mas fazia -o muito delicadamente, sem nunca levantar a voz. Parecia imperturbável. Mas soube muito bem impor a sua autoridade logo de início e tanto os advogados mais indisciplinados como os réus mais insolentes tiveram de se conformar sem discutir às suas instruções. A natureza tinha-o cumulado com as qualidades de juiz.
— É preciso não esquecermos nunca que os factos sobre os quais julgamos estes réus hoje são os factos sobre os quais a História nos julgará a nós próprios amanhã... É necessário, na nossa tarefa, que façamos prova de uma objectividade e de uma integridade intelectuais tais que este processo se imponha à posteridade como tendo respondido às aspirações de justiça da Humanidade.
Estas palavras, da autoria de um dos procuradores, certamente que correspondiam ao credo judicial de Lord Lawrence.
Observei-o de perto na sala de audiências e — o que também não é de descurar — nas reuniões de organização do Tribunal, onde eram examinados os requerimentos dos réus e dos seus advogados solicitando a citação desta ou daquela testemunha, a apresentação de documentos ou outras provas. Há que dizer que Lawrence e os outros juízes reagiam a isso com o máximo de objectividade e tolerância. Cada um deles se dava conta, que a imparcialidade e a verificação conscienciosa das provas neste processo sem precedentes, apaixonaria durante anos magistrados, historiadores e políticos.
Mas o presidente do Tribunal tinha ainda de juntar a estas qualidades a arte de guiar a marcha das audiências. Havia na sala, além dos protagonistas do processo, uma multidão de pessoas por vezes difíceis de controlar, como os jornalistas. A sua barulhenta reacção a qualquer réplica das partes fazia por vezes correr o risco de quebrar o curso normal dos debates ou o que os juízes chamam de solenidade e dignidade dos debates judiciais. Neste caso Lord Lawrence mostrava-se sempre à altura, sem todavia recorrer aos atributos do seu poder para o restabelecimento da ordem. Não tinha nem a campainha nem o martelo tradicional.
A propósito de martelo. No início do processo este utensílio estava lá, em cima da mesa, diante da poltrona presidencial. Fora o juiz americano Francis Biddle quem o tinha trazido. Era um martelo histórico, dizia-se: tinha servido na eleição de Franklin Roosevelt como governador do Estado de Nova Yorque. Roosevelt guardou por muito tempo esta preciosa recordação, depois deu-o de presente a Biddle. Este alimentava a secreta esperança de ser eleito presidente do Tribunal Internacional e levou-o para Nuremberga. Mas quando a presidência foi confiada a Lord Lawrence, o americano teve a civilidade de lhe oferecer a sua relíquia (pela duração do processo, suponho). Aconteceu isso antes da abertura da primeira sessão de audiência, a 20 de Novembro de 1945. Mas o martelo, infelizmente, só ficou na sala por dois dias. Jornalistas — com certeza americanos — «raptaram-no» ao terem tomado conhecimento das suas origens. Biddle ficou por muito tempo inconsolável, mas Lawrence não deu mostras de qualquer aflição.
Como presidente, ele não se exteriorizava nas audiências, pensando com razão que não lhe faltariam ocasiões para o fazer no momento em que seria decidida a sorte dos réus na sala de deliberações.
Não se podia dizer que, nele, o político sobrepujava o magistrado. Pelo contrário, dava a impressão de um dogmatista desejoso de fazer respeitar a letra da lei. Velava para que o Estatuto e o Regulamento do Tribunal fossem observados nos mínimos pormenores. As críticas dos jornais que censuravam aos juízes a sua lentidão em examinar um assunto tão indiscutível deixavam-no indiferente.
Lembro-me de uma caricatura que dele foi feita, e que saiu num jornal diário. O presidente está sentado à mesa dos juízes; tem uma longa barba que atravessa a sala de uma ponta à outra. No banco dos réus já não está ninguém. Lord Lawrence brande o martelo e anuncia:
— O processo está terminado. O último réu morreu de velhice.
Quando lhe mostrámos o desenho, Lawrence apenas sorriu, apreciando o humor do caricaturista. Mas nem por isso a sua maneira de conduzir o processo mudou.
Todo o magistrado sabe que, mesmo antes de ser lido o veredicto de sentença, há juízes que, sem o quererem, revelam às partes e ao público o seu ponto de vista. Isto em geral acontece sempre que eles fazem demasiadas perguntas e permitem a discussão às partes e até aos réus. As circunstâncias em que a pergunta é feita, a maneira como ela é formulada, a sua extensão e até a entoação deixam muitas vezes adivinhar a opinião do juiz antes de ele a ter revelado no veredicto.
Não era o caso de Geoffrey Lawrence. As suas perguntas eram raras e não desvendavam os seus pensamentos. Sempre correcto, por vezes com uma ponta de ironia, ele não se desviava nunca da sua calma. Os seus oportunos reparos endereçados ao advogado, ao arguido, ao procurador, denotavam muito tacto.
Um dia fez a Siemers, advogado de Raeder, um reparo ameno por ele colocar ao seu constituinte questões sobre factos bem conhecidos de Tribunal. Siemers prometeu não reincidir mas nem por isso abandonou essa maneira de actuar. O presidente deu prova da sua habitual tolerância. E só no momento em que Siemers disse a Raeder: «Passo à última pergunta» é que os óculos de Lawrence lhe deslizaram pelo nariz abaixo, prenúncio de uma réplica mordente. Que não tardou:
— Doutor Siemers, esta é mais ou menos a sexta última pergunta que o senhor faz.
Cumpria um horário com extrema regularidade. À noite, quando os juízes soviéticos Nikitchenko e Voltchkov metiam ombros ao estudo dos materiais para o dia seguinte, Lawrence ia passear para o parque com a esposa. Nos tempos livres tinha horror de falar do processo. Por isso, quando das nossas raras conversas, ele preferia contar peripécias sobre os seus cavalos de corrida. Conhecia-os a todos individualmente e parecia ser muito competente na matéria. Lev Cheinine, quando soube dessa sua inclinação, era quem muitas vezes puxava essa conversa, deixando-me embaraçado como intérprete, porque neste ramo eu era mais para o fraco em russo e, com maioria de razão, em inglês.
Ao contrário de Lawrence, o seu suplente, Sir Norman Birkett, era grande, de boa figura e bastante expansivo. A sua jovialidade conquistou as simpatias de quem o rodeava.
Nada tinha de tipicamente inglês. Na mobilidade do seu rosto ressaltava o nariz comprido e adunco. Cabelos castanhos caídos sobre a testa, olhos também castanhos, inteligentes e cheios de vivacidade. Sempre amável, comunicativo e espirituoso. Era tão bom magistrado como político instruído.
Advogado de renome, renunciara a uma carreira rendosa para se tornar juiz. Sobressaía no manejo da pena. Quando havia necessidade, em Nuremberga, de redigir com urgência um documento, era geralmente ele quem traçava as linhas gerais. Fazia-o com uma espantosa facilidade, como especialista brilhante que era. Os seus textos eram lacónicos e expressivos.
Completamente diferente era o juiz americano Francis Biddle. Só na avantajada estatura se parecia com Birkett. Os traços do seu rosto eram regulares, embora miúdos. O pequeno bigode, em conjunção com a pronunciada calvície, davam-lhe um ar um tanto enfatuado.
Foi ministro da Justiça no governo de Roosevelt. Era mais um político que um homem de leis. O seu carácter sofrera a influência de anos de luta política que, alternativamente, ora lhe abria ora lhe fechava os acessos a cargos oficiais nos EUA. Menos aferrado que Lawrence à letra de lei, revelou-se muito activo no processo, multiplicando as perguntas aos réus e às testemunhas.
As suas ideias políticas não eram mistério para ninguém. Era o típico burguês americano, muito afastado do liberalismo. Sem sombra de dúvida que os crimes nazis eram para ele, repugnantes. Mas, no seu foro íntimo, nem todos os artigos do Estatuto do Tribunal Internacional ele devia aprovar. Eram-lhe demasiado familiares muitos dos procedimentos da política externa imperialista para que ele os pudesse considerar inadmissíveis e, por maioria de razão, criminosos. Não formulou o seu credo político e jurídico antes do veredicto, mas os réus compreenderam por algumas das suas réplicas, das suas perguntas, das suas observações, que não era ele o seu mais intransigente; juiz. Assim, Papen salientou nas suas memórias:
«Víamos no Sr. Biddle e no seu suplente, sr. Parker, a melhor garantia de um julgamento equitativo».
E Doenitz disse um dia do juiz americano:
— Ele quer realmente ouvir a opinião da outra parte. Gostaria de o poder encontrar depois do processo.
Lembro-me que numa sessão de organização onde era examinada, previamente a questão da culpabilidade de Fritzsche, Biddle e Parker puseram em dúvida a necessidade de ele ser julgado em geral. Isso porque se tratava de propaganda de guerra, coisa tão corrente na América imperialista. A propaganda, seja ela qual for, não será a expressão da sagrada liberdade de opinião? John Parker declarou, redondamente, no decurso dos debates:
— Existem Fritzsche em todos os Estados, para quê julgá-los?
Mesmo correndo o risco de me estar a antecipar, quero assinalar que Fritzsche acabou por ser absolvido por maioria dos votos dos juizes ocidentais, enquanto o juiz soviético fazia declaração de voto.
Não obstante, Biddle e Parker estavam sinceramente indignados com as atrocidades cometidas pelos hitlerianos nos territórios ocupados, os repugnantes crimes dos nazis revoltavam-nos. Não punham qualquer dúvida a que semelhantes actos devessem ser punidos.
Ao lado do juiz americano sentava-se o juiz francês, Donnedieu de Vabres, um sexagenário de cabelo ralo, de grandes bigodes de morsa e óculos escuros de armação de tartaruga.
Nunca se imiscuía no curso do processo. Não me lembro de alguma vez ter feito qualquer pergunta a um réu ou testemunha. Escrevia sem parar. Do princípio ao fim da audiência. As suas notas poderiam com certeza formar enormes volumes. Antes da guerra, de Vabres havia escrito bom número de obras de Direito Penal Internacional, que não tinham propriamente um espírito democrático. De resto, o seu autor, que tive ocasião de observar durante um ano e às vezes de ouvir nas sessões à porta fechada, não dava a impressão de ser um democrata convicto.
Saiu da sua reserva na altura em que era examinada a responsabilidade dos hitlerianos nos crimes contra os guerrilheiros. Ele não conseguia perceber o que se lhes censurava.
— O Direito Internacional — dizia ele — só considera como combatentes os homens de uniforme militar. Se a população pega em armas, aí trata-se de banditismo. O inimigo tem o direito de considerar tais sujeitos como arruaceiros e de fuzilá-los sem outra forma de processo.
Que o representante de um país cujo povo tinha anos de Resistência no seu activo defendesse semelhante ponto de vista suscitava o espanto, o despeito, mesmo a indignação. Mas o que precisamente faz a grandeza do processo de Nuremberga é que as intervenções reaccionárias de certos juízes não puderam influenciar o seu desenlace. O Tribunal, no seu conjunto, tinha uma noção justa dos seus deveres. Compreendia muito bem a natureza extraordinária do processo. Era um Tribunal dos povos, cujos debates eram seguidos por toda a humanidade, um julgamento em que as acusações eram proferidas por milhões de homens.
Era importante, claro, que os juízes de um tribunal como este fossem homens de espírito democrático, inteiramente objectivos e leais. Mas todo o governo tinha a liberdade de enviar ao Tribunal Internacional quem quisesse. Ninguém podia sugerir-lhe as candidaturas.
Recordo-me de um desagradável incidente passado com o professor de Vabres.
Figurava entre os réus, como se sabe, Hans Frank, ministro da Justiça e depois governador-geral da Polónia; foi ao mesmo tempo presidente da Academia de Direito alemã. O Ministério Público, ao revelar as suas actividades criminosas, não se esqueceu de especificar que essa Academia, viveiro de ideias reaccionárias, tinha tentado justificar teoricamente o terrorismo hitleriano. No entanto o doutor Seidl, advogado de Frank, não se poupou a esforços para provar o contrário e apresentar este ninho do obscurantismo como uma instituição tida em estima por grandes magistrados da Europa, incluindo franceses, dos quais alguns tinham até tido a honra de lá colaborar. O esmiuçador advogado tinha encontrado na lista dos visitantes estrangeiros da Academia o nome de Donnedieu de Vabres. Mais, ele sabia que esse «hóspede de honra» tinha declarado numa sessão:
«A vantagem actual de um regime totalitário provém da sua energia, do seu vigor jovem capaz de satisfazer às novas necessidades à medida que elas surgem».
Já não me lembro se o doutor Seidl conseguiu fazer a leitura do seu documento. Parece que não. Mas o seu impacto alastrou.
Claro que isso não foi feito para agradar ao professor Donnedieu de Vabres. Infelizmente os erros humanos têm a desagradável propriedade de anteceder de perto ou de longe a sua expiação.
Os crimes do nazismo, a experiência da Segunda Guerra Mundial, os sacrifícios da França em nome da liberdade dos povos, as revelações do processo de Nuremberga, tudo isso deu os seus frutos. E Donnedieu de Vabres pôde dar-se conta por si mesmo do preço que custaram a «energia» do regime totalitário nazi, o seu «vigor jovem», etc., que tão a despropósito ele tinha mencionado no seu discurso. Pode ser que, depois de finalmente ter compreendido isso, o professor de Vabres tenha contribuído para resolver as tarefas essenciais da Justiça internacional em Nuremberga.
Bem diferentes são as minhas recordações de Robert Falco, o suplente de de Vabres. Era um homem muito simpático, muito leal, de um carácter bem francês. Combatente da Primeira Guerra Mundial, tinha sido condecorado pela sua bravura, e em meados dos anos quarenta era membro do Supremo Tribunal de Justiça. Felizmente que foi ele e não de Vabres quem participou nas conversações de Londres para a elaboração do Estatuto do Tribunal Internacional. Tive o enorme prazer, no Verão de 1965, de ver em Moscovo, eu e os meus antigos colegas do processo de Nuremberga Nina Orlova e Aleksandre Luniov, a senhora Falco e de lhe testemunhar a amizade que tinha pelo seu marido, já falecido.
E que dizer do juiz soviético, o general de Justiça Jona Nikitchenko?
Tinha então cinquenta anos e uma longa experiência jurídica. Presidente de um tribunal militar durante a guerra civil(10), não tinha depois disso deixado a profissão.
Muito erudito, de grande tacto e contenção, soube estabelecer de imediato bons contactos com os seus pares estrangeiros. No Verão de 1945, antes de vir para Nuremberga, tinha sido o chefe da nossa delegação à Conferência de Londres das quatro potências (URSS, EUA, Inglaterra e França) onde foi preparado um acordo sobre o julgamento dos grandes criminosos de guerra e o Estatuto do Tribunal Militar Internacional. No Outono desse mesmo ano, estando já formado o Tribunal, Nikitchenko presidiu à sua sessão em Berlim onde foram examinadas diversas questões de organizações e de jurisprudência.
Eu nunca o tinha visto antes do processo de Nuremberga. Foi aí que aprendi a conhecê-lo. E ao começar a escrever este livro tinha grande desejo de nele incluir o seu retrato. Mas depois de ter relido O Motim de Furmanov constatei que tinha sido ultrapassado.
Perdão, dir-me-eis, Furmanov descreveu-o há dezenas de anos, mais do que suficientes para que um carácter humano se modifique. Mas não, nem sempre! Confrontando o retrato de Furmanov com Nikitchenko tal como ele era em Nuremberga, concluo que de maneira nenhuma ele mudou. Esta estabilidade deve ser o privilégio das pessoas feitas de uma só peça.
Nikitchenko trabalhou nas minas do Baixo Don desde a idade dos treze anos e ligou-se ao movimento revolucionário. Aderiu ao partido bolchevique em 1914, participou activamente na criação da Guarda Vermelha em Novocherkassk em 1917 e bateu-se na frente Leste(11) em 1918. Foi aí que ele encontrou Dmitri Furmanov que lhe agradou pela
«...sua calma épica, a sua olímpica lentidão de gestos, a doce limpidez do seu olhar inteligente, o ritmo pacífico da sua fala... Por debaixo das lentes dos óculos, as suas redondas pupilas irradiam uma serena claridade... Nikitchenko pode ficar horas a reflectir ou a falar tranquilamente, sem elevar a voz, ou a fazer, na perfeição e sem pressas, alguma coisa...»
O carácter de Nikitchenko não podia ser pintado de melhor maneira. Debruço-me uma vez mais sobre o texto de Furmanov e digo a mim mesmo que este é bem o Nikitchenko de Nuremberga.
Creio estar certo quando digo que em Nuremberga ele gozava de grande consideração entre os seus colegas. Os juízes ocidentais, pessoas perspicazes e avisadas, depressa reconheceram nele uma personalidade. E isso não deixou de contribuir para favorecer a cooperação.
Nikitchenko estava de acordo com Geoffrey Lawrence em que o processo devia ser conduzido com objectividade e imparcialidade. A este respeito ele apoiou sempre o presidente do Tribunal Internacional. Não obstante, ele e o seu suplente Voltchkov eram chamados nos corredores de «juízes duros». Estavam inteiramente a favor de Lawrence quando ele assegurava o exame objectivo e imparcial das acusações. Mas quando Nikitchenko se apercebia que os inculpados ou os seus advogados tentavam fazer arrastar o processo, ele opunha-se formalmente e lembrava em termos correctos aos outros juízes que o artigo 1º do Estatuto exigia um julgamento e um castigo não só equitativos mas também rápidos.
Nikitchenko mostrava-se activo nas audiências. Juiz muito experiente, ele detectava logo a intenção de a Defesa colocar às testemunhas perguntas ditas «sugestivas». Também nesse caso ele agia muito energicamente para pôr termo a toda e qualquer tentativa de alterar a verdade.
Disse já que as divergências ideológicas criavam dificuldades na colaboração entre os juízes do nosso país e os dos países burgueses. A maneira de encarar este ou aquele facto engendrava por vezes discussões. Mas os juízes soviéticos tinham o mérito de sempre fazerem ressaltar, nas suas relações com os seus confrades ocidentais, o que os unia e não o que os separava.
Jona Nikitchenko e Aleksandre Voltchkov só eram intransigentes nas questões de princípio. Aí a sua «dureza» manifestava-se em grande. Foi o que nomeadamente aconteceu quando os juízes ocidentais, ao decidirem da sorte de Fritzsche, recusaram, em suma, declarar criminosa a propaganda de agressão. E também a propósito de Schacht, quando o Tribunal teve de resolver o problema da responsabilidade dos que financiaram o programa hitleriano de armamento. No que respeita a estas questões os juízes soviéticos não hesitaram em se dessolidarizarem com a maioria burguesa do Tribunal, fazendo a este propósito uma declaração de voto.
Tinha conhecido o tenente-coronel Aleksandre Voltchkov antes da guerra: eu trabalhava então com ele no Comissariado do Povo para os Negócios Estrangeiros. Ele trabalhou durante anos no Ministério Público e depois na embaixada soviética em Londres. Especialista de Direito Internacional, tinha o grau de docente e durante as hostilidades trabalhou como eu nos tribunais militares.
Os seus conhecimentos de Direito Internacional e de inglês, bem como os adquiridos na carreira diplomática, decidiram sem dúvida da sua nomeação para o elevado cargo de juiz suplente do Tribunal Internacional.
Na mesa dos juízes, os nossos representantes eram fáceis de reconhecer: só eles vestiam uniforme. Foi em vão que os outros os aconselharam a envergar a beca negra. Nikitchenko e Voltchkov estavam persuadidos que o uniforme era mais conveniente para juízes de um tribunal militar.
Durante um ano inteiro assistiu-se a uma colaboração entre juízes que diferiam tanto pela sua educação como pela sua visão do mundo e que representavam sistemas jurídicos absolutamente dissemelhantes. Isso não os impediu de encontrarem uma linguagem comum para a resolução dos problemas essenciais, pelo facto de o Tribunal de Nuremberga ter a tarefa democrática de combater a agressão, a ameaça de guerra que paira sobre a humanidade. Todos os povos tinham interesse não só em castigar os agressores alemães mas também em prevenir uma ressurreição do militarismo na Alemanha.
O processo de Nuremberga é um belo exemplo de colaboração entre países de sistemas sociais diferentes, com finalidades democráticas, a principal das quais é a luta pela paz.
Afortunados dos juízes e procuradores de um processo ordinário em que a responsabilidade do réu e as formas processuais são claramente definidas pelas leis de um país! Em Nuremberga a coisa era infinitamente mais complicada. O leitor viu já a que chicanas recorriam advogados de defesa e réus, aproveitando-se da imperfeição da lei internacional contra a agressão. A Defesa, já o dissemos, contava com grandes especialistas de Direito Penal e Internacional, de doutos professores que desde há anos se vinham exercitando na arte de justificar os actos arbitrários típicos da política da Alemanha em relação aos outros povos.
Juízes e procuradores de Nuremberga eram criminalistas muito competentes. Mas isso não bastava. Era-lhes necessário estarem sempre prontos a rechaçar com argumentos sólidos as tentativas de a Defesa arrancar os grandes criminosos o braço vingador da Justiça.
O Estatuto do Tribunal não era, sob este aspecto, uma panaceia. Codificava nas suas grandes linhas o princípio da responsabilidade dos que haviam violado o Direito Internacional. Era preciso, além disso, saber utilizar grande número de acordos e usos internacionais, bem como diversos precedentes judiciais. Foi nesse campo que eminentes historiadores do Direito aplicaram a sua preciosa contribuição.
Na nossa delegação ao processo de Nuremberga, o delicado papel de conselheiro científico cabia ao professor Aaron Trainine, membro correspondente da Academia das Ciências da URSS. Apesar de uma sensível diferença de idade e posição, fizemos amizade. Viria a compreender muito depois que esta benevolência para comigo da parte de um erudito de reputação mundial se devia inteiramente ao carácter de Trainine. Este homem de estatura média, rosto vivo e olhos cintilantes de inteligência, de malícia mesmo, tinha um coração de ouro. Tinha inúmeros alunos aos quais prodigalizou os seus conselhos e o seu saber até ao fim dos seus dias.
Trainine manteve por muitos anos relações com a Universidade de Moscovo, onde tinha feito os seus estudos de Direito. Já desde antes da sua licenciatura ele se apaixonara pelo trabalho teórico. Foi aí que ele se ligou ao movimento revolucionário, o que lhe valeu ser por duas vezes encarcerado pelas autoridades czaristas. Logo que foi libertado voltou à Universidade e aí continuou a sua fecunda actividade durante cinquenta anos.
Muito antes da Segunda Guerra Mundial, Trainine tinha consagrado todos os seus talentos ao problema do Direito Internacional, à luta contra a agressão e os crimes de lesa-humanidade. As suas obras A Intervenção Criminosa e A Defesa da Paz e o Código Penal eram populares tanto na URSS como no estrangeiro. E durante a guerra, em 1944, publicou A Criminalidade dos Hitlerianos.
Este livro, como aliás toda a actividade de Trainine visando estabelecer as bases jurídicas do castigo aos agressores, exasperou os reaccionários de todo o mundo. O chefe de redacção do American journal of International Law foi ao ponto de lhe censurar o ter feito triunfar, pela sua atitude tendenciosa, a «ideologia marxista» em Nuremberga.
Mas seria injusto atribuir a prioridade desta «descoberta» ao jurista americano acima mencionado. Ele mais não fez do que repetir o que o professor Woll, advogado alemão ocidental, dizia em 1948 em Nuremberga, quando aí eram julgados os chefes do grande consórcio «I. G. Farbenindustrie». Os monopolizadores eram inculpados de agressão, de crimes de guerra muito graves. A Defesa afectou ter ficado surpreendida com o pretenso absurdo destas acusações: desde quando particulares, pessoas que nunca se tinham metido na política, deviam ser responsabilizados pela guerra? E M. Woll embrenhou-se a vilipendiar Trainine. Lembrou ao Tribunal que era este jurista soviético quem, durante anos, tinha elaborado os fundamentos jurídicos da punibilidade da agressão, e que era a sua nefasta obra A Criminalidade dos Hitlerianos que tinha «inopinadamente influenciado, em Londres, a elaboração do Estatuto do Tribunal de Nuremberga». Woll invocou o relatório que Jackson fez ao presidente dos Estados Unidos a 6 de Junho de 1945 e no qual pretensamente figuravam «as mesmas reflexões que as contidas no livro de Trainine». Woll «acusava» com veemência o jurista soviético de sabotar as respeitáveis tradições do mundo civilizado», isto é, a impunidade da agressão.
Estes furiosos ataques contra o erudito soviético tinham a sua razão de ser. Trainine foi o primeiro a edificar em bases sólidas um sistema coerente de leis para os crimes de guerra cometidos pelos nazis. E no ano seguinte o autor de A Criminalidade dos Hitlerianos vai com Nikitchenko à conferência quadripartida de Londres para aí apresentar o seu projecto de Estatuto do Tribunal Militar Internacional.
O Estatuto foi ratificado, mas uma luta áspera se iria desencadear, em Nuremberga mesmo, entre os partidários da paz e os da agressão. Trainine foi para lá enviado a título de conselheiro. Já não é jovem, mas a sua alma continua a sê-lo. É orgulhoso do seu país, do nosso glorioso exército que, pelas suas vitórias sobre as hordas hitlerianas, permitiu mover o processo de Nuremberga contra os culpados. E eu, que na altura o encontrava com muita frequência, estava orgulhoso dele, da nossa escola de Direito.
Tive o prazer de assistir a uma das últimas audiências do Tribunal Internacional, quando os juízes decidiram por unanimidade agradecer a Aaron Trainine, professor no Instituto de Direito, membro correspondente da Academia das Ciências da URSS, o seu eficaz contributo.
Havia vinte homens no banco dos réus de Nuremberga. Cada um deles tinha causado incalculáveis malefícios a milhões de pessoas. Ora, não podia sequer conceber-se a camarilha hitleriana sem Goering que tanto tinha contribuído para o aparecimento dos nazis na Alemanha e para a consolidação do seu poder; sem Ribbentrop que durante anos personificara a política externa do fascismo; sem Keitel e Jodl que, com Blomberg, tinham posto a Reichswehr ao serviço do nazismo, sem Kaltenbrunner que fazia reinar o terror da Gestapo no país; sem Schacht que tinha assegurado ao regime nazi o apoio dos monopólios alemães e levado a cabo a preparação económica da agressão... Em suma, todos sem excepção tinham desempenhado um importante papel na conjura contra a humanidade, impossível de conceber sem eles.
Valerá a pena voltar ao assunto? Voltar a falar deles? Evocar indivíduos depois da sua desaparição?
Acho que sim. Estou até muito convencido de que vale a pena.
O domínio do fascismo na Alemanha e em outros países, por mais sinistro que seja, nem por isso deixa de representar uma época da História universal. É impossível traçar-lhe um risco por cima, apagá -la da nossa memória. A geração aparecida após a Segunda Guerra Mundial deve saber o que humanidade sofreu por causa do fascismo, tirar disso a devida lição e impedir que os actuais inimigos da paz repitam a sangrenta experiência dos hitlerianos.
Recordar o passado permite que se explica por que na Alemanha ocidental se fazem tantos esforços para reabilitar o nazismo no seu conjunto e até «prestar homenagem» a Hitler, a Goering, a Keitel, a Hess.
As origens desta campanha de reabilitação remontam aos tempos de Nuremberga. Os nazis citados como testemunhas no processo tinham há demonstrado a tendência de pintarem os seus chefes como «cavaleiros sem medo e sem mácula». Assim, o general Bodenschatz tentou convencer os juízes de que «nada era mais estranho a Goering que a ideia da guerra». Encorajado pelo olhar de gratidão que lhe lançou o réu, o general afoitou-se ao ponto de pretender que Goering foi «benfeitor de todos os necessitados», que «ele tomava a peito a ajuda à classe operária». Ao desenvolver o panegírico de Goering, igualmente em termos da mesma pomposidade, o ex-secretário de Estado Koerner anunciou solenemente ao Tribunal que considerava o Reichsmarschall como «o último grande homem do Renascimento». Os outros réus eram contemplados com análogos elogios.
O processo terminou. Passaram-se os anos. O governo de Bona foi formado. Na Alemanha ocidental foram reconstituídas as forças armadas por vontade dos monopólios imperialistas. Os generais hitlerianos gloriam-se da sua «experiência adquirida no Leste» e doutrinam o Pentágono. Antigos SS organizam marchas com archotes nas ruas das cidades alemãs ocidentais, de vez em quando aparece nos muros, a cruz gamada. Tudo coisas que já tinham sido vistas em Munique, em Nuremberga.
Hans Fritzsche é conhecido na Alemanha como a mão direita de Goebbels. No processo de Nuremberga mostrava-se ele de cabeça baixa, indignava-se com as atrocidades do nazismo. Tratava Goering de «monte de carne malcheirosa». Foi absolvido, se bem que o juiz soviético tenha feito uma declaração de voto contra. E ei-lo que retoma o seu ofício: escreveu um livro no qual põe Goering nos cornos da lua como já fazia no tempo de Hitler. Sustenta Fritzsche que, no momento de Hermann Goering fazer as suas declarações perante o Tribunal, o público
«via esboçar-se o retrato de um homem íntegro, enérgico, que foi ao mesmo tempo um brilhante soldado e um homem de Estado consciente das suas responsabilidades».
E um tal Fritz Tobias apresentou em 1959 em Bona novos «factos» que pretensamente demonstrariam que nem Goering nem os outros nazis tinham incendiado o Reichstag. Publicando esta atoarda, a revista Der Spiegel clamou triunfalmente:
«Mais uma lenda do século desflorada».
O tema interessou também a rádio inglesa que lhe dedicou uma emissão escolar em 1963. A BBC anunciava aos professores primários que Jorge Dimitrov tinha tido a «boa ideia» de atribuir o incêndio aos nazis, após o que os comunistas fabricaram um monte de provas para sustentar esta ficção.
E aqui vai um sensacional testemunho de Kelley, médico prisional americano, autor de um livro intitulado Vinte e Duas Celas. Em Nuremberga ele via com frequência Goering e os outros réus. Conhecia bem os documentos do processo. Pois fez questão de informar os seus leitores americanos que, segundo ele, Goering era um homem que «tinha um visão de grande alcance». Avaliando os resultados do processo e a sua influência na reputação de Goering, tem ele a audácia de afirmar que
«Hermann Goering sem dúvida que reencontrou o seu lugar no coração do seu povo» e que «o processo de Nuremberga mais não fez do que realçar o seu prestígio».
Alfred Rosenberg também teve o seu quinhão de boas atenções. As suas memórias, escritas na prisão de Nuremberga, são publicadas com um prefácio que o qualifica de
«grande idealista, morto com a sincera e profunda fé no nacional-socialismo».
Goering e Rosenberg não são os únicos a ser chorados pelos nazis que conseguiram escapar são e salvos e pelos seus epígonos, longe disso. As lágrimas que sobre eles hoje se derramam são de um tipo muito especial. Os que actualmente defendem a «reputação manchada», de Goering e de Hess, de Rosenberg e de Doenitz, só pensam no fundo em si próprios. Ao reabilitarem os cabecilhas do fascismo, eles esperam reabilitar-se a si mesmos.
O antigo grande-almirante Karl Doenitz, depois de ter purgado a sua pena decidida pelo Tribunal de Nuremberga, circulou por toda a Alemanha ocidental a dar conferências. Sobre quê? Sobre a frota de submarinos que ele tinha criado na Alemanha nazi, essa alcateia de ferozes lobos–do-mar. A imprensa militarista de Bona deu-lhe uma cobertura propagandística espaventosa e o governo federal pagou ao pirata uma reforma avultada.
Assim se falsifica a história, se altera a verdade sobre os que mergulharam a humanidade numa guerra mundial e são responsáveis pela morte de milhões de homens. Ao inventarem os mitos sobre o regime nazi e os seus chefes, os falsificadores da História evitam cuidadosamente o processo de Nuremberga, que é para eles um perigoso escolho.
A história autêntica da Segunda Guerra Mundial, a questão da responsabilidade dos agressores fascistas culpados de crimes monstruosos, são dos problemas cruciais na luta entre os partidários da paz, por um lado, e os seus inimigos por outro. Os ideólogos do imperialismo sabem muito bem que para desencadear uma nova guerra é preciso ter não só bombas atómicas e mísseis, mas também um povo moralmente preparado para a matança.
Trazer à memória dos nossos contemporâneos os documentos do processo de Nuremberga, as confissões feitas contra a sua vontade mas tão sensacionais dos próprios chefes do Terceiro Reich, é contribuir para escrever rectamente a história da Segunda Guerra Mundial e para desmascarar os falsificadores neonazis.
Há ainda uma outra consideração de indubitável interesse concernente à evocação dos réus nazis. A historiografia marxista regista muitos reveladores retratos políticos de estadistas imperialistas. O processo de Nuremberga dá azo a que se trace toda uma galeria desses retratos. Os mais sucintos esboços de Nuremberga devem, parece-me, enriquecer de chocantes pormenores a imagem típica do político imperialista actual.
Não podendo debruçar-me detalhadamente neste livro sobre todos os réus, escolhi os principais: Goering, Ribbentrop, Keitel, Jodl, Kaltenbrunner, Schacht. É inútil, suponho, precisar que estes seis estiveram à cabeça do governo hitleriano e, portanto, no lugar de mais destaque do banco dos réus.
Não pretendo escrever a sua biografia e limitar-me-ei a contar o que vi e ouvi no processo.
Notas de rodapé:
(2) Internal Security Office (Serviço de Segurança Interna). (retornar ao texto)
(3) O Diário de Nuremberga. (retornar ao texto)
(4) Além dos grandes criminosos de guerra, encontravam-se aí em detenção preventiva outras personalidades da Alemanha nazi, generais, industriais. (retornar ao texto)
(5) A geopolítica é uma teoria reaccionária anticientífica que apresenta o meio geográfico como factor decisivo da vida da sociedade e que justifica a política de conquista imperialista, falsificando os dados da geografia física, económica e política. (retornar ao texto)
(6) Comité de Defesa, organismo supremo do poder executivo na URSS durante a Grande Guerra Pátria (1941-1945). (retornar ao texto)
(7) 20 de Julho de 1944, dia do atentado frustrado contra Hitler. (retornar ao texto)
(8) Acordo de Munique sobre a partilha da Checoslováquia, assinado a 30 de Setembro de 1938 pelo primeiro-ministro britânico Chamberlain, pelo Presidente do Conselho francês Daladier, pelo ditador nazi Hitler e pelo ditador fascista italiano Mussolini. A Checoslováquia devia ceder a região dos Sudetas à Alemanha e satisfazer as reivindicações territoriais da Polónia e da Hungria. O acordo de Munique predeterminou a posse de toda a Checoslováquia pela Alemanha em Março de 1939. O acordo de Munique foi uma manifestação gritante da política de «apaziguamento» do agressor e de «não intervenção», que os meios dirigentes do Ocidente praticaram durante vários anos e que culminou na Segunda Guerra Mundial. Esta política visava um entendimento com o agressor, em primeiro lugar com o imperialismo alemão, em prejuízo dos países da Europa Central e do Sudeste, visava lançar a agressão hitleriana para Leste, contra a União Soviética. Esta funesta política teve o apoio constante dos EUA. O governo soviético mostrou-se solidário com a Checoslováquia nesta época perigosa. Declarou-se decidido, em caso de agressão da Alemanha contra este país, a respeitar os acordos previstos pelo pacto de entreajuda soviético-checoslovaco de 1935. Mas o governo burguês da Checoslováquia rejeitou essa proposta. Os meios dirigentes da Inglaterra e da França obrigaram a Checoslováquia a capitular perante a Alemanha nazi. Impediram a união dos povos pacíficos, encorajaram de facto a Alemanha hitleriana a desencadear a Segunda Guerra Mundial e viram-se eles próprios isolados face à agressão fascista. (retornar ao texto)
(9) David Maxwell-Fyfe, procurador-geral-adjunto britânico no processo de Nuremberga. (retornar ao texto)
(10) Trata-se da guerra civil e da intervenção estrangeira no País dos Sovietes (1918-1920). (retornar ao texto)
(11) Uma das frentes da guerra civil e da intervenção estrangeira no País dos Sovietes. (retornar ao texto)
Inclusão | 16/09/2015 |
Última atualização | 05/04/2016 |