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Entre os rebentos gerados pelo socialismo alemão nos anos 1840 do século passado, a poesia socialista não era das mais débeis. Ainda estava viva na literatura a forte tradição da época clássica da burguesia alemã, e o apelo do proletariado por ajuda encontrava sonoro eco. Este eco era mais fraco na Alemanha Oriental, mais poderoso na Alemanha Ocidental, mas particularmente potente sobretudo entre os emigrantes alemães, entre os poetas que, segundo a expressão de um deles "ihrer Lieder Schwert westwarts hat getrieben" ("a espada de suas canções os jogou no ocidente").
As poesias de Karl Beck, Meissner, Lenau eram repletas de uma revolta ainda contida e cheias de nebulosa esperança por libertação. Nas canções sobre o pobre, Beck levanta contra a família dos Rotschild – esse rei dos reis – um conjunto de pesadas acusações, e ameaça a este dominador dos escravos com o julgamento dos livres. Meissner via as faces anêmicas das crianças ali onde "as altas chaminés das fábricas vomitavam fumo e onde as rodas de ferro em meio a um grande ardor marcavam o ritmo de uma dança pesada"; ele exprimiu sua revolta contra o Messias que prometera às crianças o reino dos céus. Lenau sentia mais profundamente que eles a pesada agonia da morte na semi-escuridão antes da aurora, com desejos ardentes, com ingentes sofrimentos; compreendia mais claramente do que eles que havia ingressado numa época nova, como tinham ingressado outrora seus albigenses(1). Seu tumultuado pressentimento de liberdade ele exprimiu na maravilhosa Visão, a qual Marx, em apoio à sua verdade inteiramente filosófica, repetiu mesmo quando o Sol da ciência derramara em sua obra raios de luz.
À luz do sol não se impede o caminho
Como não se encobre o nascer do sol com
mantos vermelhos ou com sotainas negras.
Depois dos albigenses vêm os hussitas(2) e
recebem o pagamento sangrento pelos
sofrimentos dos antepassados.
Logo depois de Huss e Ziska(3) vêm Lutero,
Hutten(4),
A Guerra de 30 anos, os combatentes
de Zevenn(5),
os destruidores da Bastilha e outros.
Em Heine ouvem-se notas completamente diferentes. Ele se encontrava diariamente com Marx, quando vivia em Paris, e precisamente neste período, em 1844, foi publicada a imortal poesia Contos de Inverno"(6) de Heine, iluminada pelas luzes do socialismo que estavam surgindo, tanto quanto as sombras do romantismo influíram o poema Atta Trol(7) publicado três anos antes. No espírito de Heine entrelaçaram-se desde cedo as idéias de três grandes concepções de mundo, e precisamente este tipo magnífico de cores e de formas, apesar das suas acentuadas contradições fundirem-se numa agradável harmonia, forma seu gênio, incomparável entre seus contemporâneos. Heine nunca pôde esquecer completamente a flor azul(8) do romantismo e não pôde jamais sufocar completamente em sua poesia o temor ao comunismo. Mas Contos de Inverno permanece como sua canção mais livre, com uma ironia fulminante, com uma paixão realista, com uma sonoridade ardente que incinera o mundo apodrecido, duma maneira que, de suas cinzas, renasce como a Fênix(9) o novo mundo. De quando em quando ecoam nas lutas emancipadoras do proletariado esses versos marcados pela confiança na vitória, pela seriedade alegre e pela desmedida coragem burlesca.
Uma nova canção, uma canção melhor,
Oh! amigos, quero compor para vocês.
Vamos construir na terra cheios de alegria
O infinito reino celeste.
Queremos viver felizes na terra
Não queremos mais dores e gemidos
Não queremos mais que a barriga preguiçosa
saqueie
O que as mãos trabalhadoras produziram Aqui há pão para todos
Para cada ser no mundo
E rosas, beleza, alegria
Inclusive ervilha-doce.
Bastante ervilha-doce para todos,
quando as cascas se abrem sozinhas,
Aos pássaros e aos anjos
Deixemos os céus.
Mesmo que não houvesse o testemunho direto de Ruge, por um lado, as poesias de Heine naquele tempo demonstram a poderosa influência de Marx sobre ele. Freqüentemente os dois pesavam cada palavra em algum poema de poucos versos, limando-o incansavelmente até sair inteiramente perfeito. Mas, por outro, também Heine exerceu profunda influência sobre Marx e Engels; seus versos são freqüentemente repetidos em artigos de Marx e Engels dos anos 1845-1850. Aquilo que o pequeno burguês radical Börne não pôde fazer, e que muito menos podia fazer o filisteu reacionário de hoje, foi um trabalho fácil para Marx e Engels, como também consegue fazer o atual proletariado consciente. Eles tinham compreendido a grandeza e as debilidades de Heine.
Marx compreendia historicamente por que Heine não poderia ser diferente do que era e via a causa social da vida de Heine como a grande causa da libertação das classes oprimidas, enquanto considerava as debilidades pessoais de Heine como coisa de somenos, que não podia senão despertar o inconformismo ético dos pregadores bem nutridos e desocupados. Por outro lado, o respeito que Ruge desfrutava nos círculos burgueses não impediu Marx de se expressar de modo decidido e cortante contra os estreitos pontos de vista burgueses de Ruge.
Também Herwegh tentou criar no estilo de Heine, mas não saiu outra coisa senão um sarcasmo cheio de ódio mordaz, não um humor fino que liberta o mundo. Sua liberdade de criação foi, e permaneceu, mutilada. Tão mais poderosa se ergueu a musa socialista de seu opositor de outrora, Freiligrat, que agora reconquistara o respeito que havia perdido pelas ironias com a viagem triunfal de Herwegh. O repugnante despotismo que predominou sobre sua querida Alemanha despertou nesse poeta da terra vermelha o antigo espírito insurreto dos saxões: ele voltou à Pátria de seus vôos exóticos e se jogou no coração da Pátria, modificado, mas, apesar disso, o mesmo que tinha sido. Em seu Glaubensbekenntnis (“Confissão”) ele abriu-mão da reação romântica e, expulso da Alemanha por ela, mandou ao país sua coletânea Ça ira(10): canções repletas de ardente ímpeto, cuja poderosa e abaladora influência foi testemunhada em nossos dias por um ministro da Guerra da Prússia que as denominou obra de uma louca fantasia. No navio que leva o rei à descida do curso cristalino do Reno, este poeta viu a figura do Estado e pôs estas palavras nos lábios do maquinista proletário, vociferando:
Oh! Rei, és menos Zeus do que eu Titã!
Acaso não domino o vulcão que ferve
eternamente, sobre o qual caminhas?
Está em minhas mãos: basta neste momento
que eu dê um só impulso, um só golpe
Para que caia todo o edifício cujo topo és tu!
A terra explodirá, a massa de fogo golpeará
com fúria e te lançará aos ares com alarido!
Enquanto nós, que somos resistentes ao fogo,
levantamos de nossas casas subterrâneas,
rumo ao alto, à luz!
Nós somos a força! Nós forjamos de outra
forma o velho Estado, putrefacto – nós
que até hoje, com o ódio de Deus, nos tornamos
o proletariado!
Nos últimos dias de sua existência a Nova Gazeta Renana lançou algumas flechas afiadas contra Freiligrat, mas quando Marx, expulso de Paris, chegou a Bruxelas, praticamente as primeiras palavras que disse a Bürgers, que o acompanhava, foram:
"Nós devemos visitar hoje Freiligrat; eu devo redimir a culpa que a Gazeta Renana tem com ele quando ele ainda não estava nas primeiras fileiras do Partido; sua Glaubensbekenntnis (Confissão) o perdoou tudo".
Logo depois disso Freiligrat escrevia:
"Há uma semana que se encontra aqui Marx, um homem que desperta interesse, uma boa pessoa e sem pretensões".
Desde esse tempo Marx e Freiligrat se tornaram amigos íntimos, e em muitas canções revolucionárias deste sente-se a inspiração de Marx, até mesmo em pensamentos e expressões especiais. Por exemplo, o significado interno da majestosa fantasia "Califórnia" é iluminado por uma luz cristalina somente se se compara com o que Marx disse mais tarde sobre a descoberta do ouro na Califórnia do ponto de vista histórico e econômico. Isto não deve ser visto como um reproche para Freiligrat. Pelo contrário, tudo o que se diga sobre a retórica poética ou sobre a poesia retórica, a palavra rimada, a seqüência rítmica das sílabas conhece objetivos mais altos do que o simples despertar de sensações agradáveis nos ouvidos dos leitores.
Assim como Freiligrat, também George Weerth era de Detmold (Alemanha). Ele morava em Bradford (Inglaterra) onde trabalhava como comissionado de uma firma alemã e se encontrava freqüentemente com Engels que o chamava o primeiro e o mais importante poeta do proletariado alemão. Weerth urdiu uma canção para os tecelões da Silésia (Alemanha), totalmente digna de ocupar um lugar ao lado da rigorosa e tripla maldição de Heine e da poesia cheia de bílis e ódio de Freiligrat, o poema Rübezahl(11): ele pintou com fortes pinceladas as figuras viris dos cartistas, dos valentes de York e Lancaster que se levantaram com amargor e entusiasmo quando tomaram conhecimento da batalha dos tecelões da Silésia. Weerth cantou a indústria como escravizadora e ao mesmo tempo como libertadora da humanidade: sombria e com um látego selvagem na mão ela açoita o pobre a um trabalho escravo extraordinariamente pesado.
(A indústria) Imolando pessoas de novo
permanece diante de nós o desejo insaciável
dum erro.
Um encobre sua cabeça chorando,
enquanto outro brilha com vestes de ouro.
Mas as lágrimas correm em cada grande guerra,
A pobreza leva a uma vitória ainda mais segura.
E quem aprendeu a forjar espadas e cadeias,
aquele com espadas pode salvar-se das cadeias.
Aquilo que a mente brilhante
do homem produziu
não pertence a um só homem mas a todos!
E com o rompimento do último elo da cadeia,
com a revolta do último braço, vê:
Transfigurada aparece a deusa sombria,
alegra-se tudo o que ela tem perto de si!
A miséria operária que ninguém quis abrandar,
ela própria removeu a rocha.
Frequentemente Weerth usou a métrica de Heine: o único imitador do inimitável que soube refundir em formas tomadas de empréstimo uma nova inspiração, avivá-las com o ardor das emoções, ardor que, com seu brilho, Heine apagou e se elevou até a escala das emoções naturais de Goethe. Mantendo-se homem livre também como poeta, Weerth abriu-mão completamente das convenções da corporação poética: ele não remexia em suas poesias quando elas estavam escritas e quando tinha dado uma cópia a Marx e a Engels, com os quais morou mais tarde em Bruxelas. Sua musa era a revolução; uma vez ele escreveu a Marx:
"Não sei se existe pior desgraça do que se tornar vão e leviano, inventar piadas banais para provocar o riso idiota das pessoas grotescas e patrioteiras".
Püttmann e outros não podem ser comparados a esses poetas do socialismo do período anterior a março(12). Nem mesmo Ernest Dronke: verdadeiramente, suas canções e novelas se elevavam acima do nível médio, mas seu talento original se exprimiu mais claramente no livro sobre a capital da Prússia, a melhor descrição de Berlim do período anterior a março. Dronke tinha um julgamento saudável e uma refinada capacidade de observação; além disso, ele tinha adquirido conhecimentos profundos em vários campos. Ele soube compreender claramente e refletir o antagonismo das classes, enquanto seu dote poético e a simpatia profunda que sentia pelo proletariado davam a suas obras frescor e vitalidade. Embora seu livro esteja agora ultrapassado, até hoje não se escreveu nada sobre Berlim que se aproxime ao seu.
Este livro teve sua história. Depois de concluir em Berlim o curso de Ciências Jurídicas, Dronke foi expulso pela polícia como "estrangeiro" somente porque seu pai, que havia sido diretor de ginásio em Koblenz, tinha trabalhado durante alguns anos na mesma profissão em Fulda(13) onde nasceu Ernest Dronke. Depois de sua expulsão ele permaneceu como escritor em Frankfurt e através de uma empresa editorial dessa cidade autônoma publicou seu livro sobre Berlim. Os agentes da polícia prussiana farejaram nesse livro uma suposta ofensa a sua majestade. Quando Dronke partiu para Klobenz para ver seus pais foi preso e julgado. Em vão tentou inocentar-se dizendo que como "estrangeiro" ele podia publicar "fora do país" o que quisesse.
Os juízes prussianos que faziam de tudo para prendê-lo condenaram-no a dois anos de reclusão porque tinha mandado à Prússia duas cópias de seu livro, tendo dessa maneira ofendido sua majestade o rei, diretamente da fronteira prussiana. Dronke estava pagando pena em Wesel, quando eclodiu a revolução de fevereiro. Para evitar o perdão por parte do rei da Prússia ele fez um esforço corajoso para fugir e teve sorte. Atravessou a fronteira holandesa e foi para Bruxelas para junto de Marx e Engels.
Nos dias da luta os poetas socialistas se mostraram à altura de sua tarefa. Dronke, Freiligrat e Weerth entraram na redação do jornal Nova Gazeta Renana.
Adeus pois, adeus, mundo combatente!
Adeus pois, exército pelejante,
Adeus pois, campo sujo de pólvora,
Adeus pois, gládios e lanças!
Adeus pois – mas não para sempre!
Porque não matarão o espírito, ó meus irmãos!
Em breve me levantarei em armas nas alturas,
Em breve regressarei!
(...)
Pela palavra, pelo gládio, no Danúbio, no
Reno,
Por toda parte serei a companheira fiel
do povo que esmaga o trono,
A proscrita, a rebelde!
(Poema de Ferdinand Freiligrat, escrito a pedido de Marx como adeus da Nova Gazeta Renana)
Notas de rodapé:
(1) Albigenses – hereges do sul da França (século XII e XIII) que professavam a doutrina dualista maniquéia. (retornar ao texto)
(2) Hussitas – seguidores de John Huss, hereges, contrários à Igreja corrompida. (retornar ao texto)
(3) Ziska – um dos lideres dos Hussitas. (retornar ao texto)
(4) Hutten – humanista, protestante, participou da reforma luterana. Ajudou os camponeses nas guerras camponesas de 1525. (retornar ao texto)
(5) Zevenn – região montanhosa da França. (retornar ao texto)
(6) Marx publicou "Contos de Inverno" no jornal proletário Vorwârtsl (“Avante”). (retornar ao texto)
(7) Atta Troll – este poema foi publicado com o subtítulo "Sonho de uma Noite de Verão". O Título alude ao "Grande Troll", figura legendária dos contos nórdicos. Representa uma força natural do homem, do povo, em contato com a natureza, que assusta as forças do mal. No poema de Heine o personagem principal é um urso chamado Atta Troll, através do qual, satiricamente, o autor evidencia o caos e as contradições na concepção de mundo dos radicais de "esquerda" de seu tempo. (retornar ao texto)
(8) Flor azul – figura poética que simboliza na literatura romântica alemã a saudade e o anseio a uma vida feliz. (retornar ao texto)
(9) Fênix – divindade mitológica grega. Ave fabulosa que, segundo os egípcios, durava muitos séculos e, queimada, renascia das próprias cinzas. (retornar ao texto)
(10) Ça Ira – expressão francesa dos "Sans Culotte", como eram conhecidos os revolucionários da Revolução Francesa de 1789. Em suas manifestações os "Sans Culotte" gritavam Ça Ira, que significa “Isto vai, Isto irá”. (retornar ao texto)
(11) Rübezahl – figura legendária, tipo de monstro, dos contos alemães. (retornar ao texto)
(12) Refere-se ao período anterior à revolução de 1848 na Alemanha. (retornar ao texto)
(13) Cidade do Estado de Hessen, que não fazia parte da Prússia. (retornar ao texto)
Inclusão | 05/02/2014 |