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O marxismo tem, com a ciência, uma dupla conexão. Em primeiro lugar, os marxistas a estudam como parte de outras atividades humanas e procuram mostrar como as atividades científicas de qualquer sociedade dependem de suas variáveis necessidades e, assim sendo, em um sentido mais amplo, de seus métodos de produção; e, finalmente, como a ciência transforma esses métodos de produção e, dessa forma, tende a modificar a sociedade no seu conjunto. Essa análise é necessária, qualquer que seja o fato histórico a ser cientificamente examinado, havendo inclusive investigadores não marxistas que aceitam hoje esse processo, embora em parte. Em segundo lugar, porém, Marx e Engels não se contentaram com analisar as transformações sociais. Viam, na dialética, a ciência das leis gerais da transformação, não apenas na sociedade e no pensamento humano, mas também no mundo exterior que é refletido pela mente humana. Isso quer dizer que a mesma pode ser aplicada não somente aos problemas da ciência pura, como também às relações sociais da ciência.
Os homens de ciência já se estão familiarizando com a aplicação das ideias marxistas à posição da ciência na sociedade. Alguns aceitam-nas no todo ou em parte, outros combatem-nas vigorosamente e dizem que procuram o conhecimento puro por si mesmo. Muitos deles, no entanto, não têm consciência de que o marxismo tenha alguma relação, com os problemas científicos isolados de seu vínculo com a sociedade, tais como, por exemplo, os problemas do tautomerismo em química ou o da individualidade em biologia. E alguns marxistas se inclinam a considerar o estudo de tais problemas científicos e filosóficos como carentes de importância. Entretanto, têm diante de si o exemplo de Lenin. Em 1908, a revolução russa já havia fracassado. Era necessário reconstruir o movimento revolucionário. Lenin viu que isso só poderia ser feito sobre uma firme base teórica. Assim foi que escreveu Materialismo e Empirocriticismo. Isso implicava um estudo de filósofos tais como Mach e Pierson, a quem criticou, mas também de físicos tais como Hertz, J. J. Thomson e Becquerel, cujos descobrimentos podiam ser interpretados quer sob o ponto de vista materialista, quer sob o idealista. Apesar de tudo, Lenin não procurou abarcar todas as ciências.
Preocupou-se principalmente com a revolução que se verificava então na física e pouco teve a dizer a respeito da astronomia, da geologia, da química ou da biologia.
Trinta anos antes de Lenin, porém, Engels havia procurado examinar o conjunto das ciências, sob o ponto de vista marxista. Tinha sido sempre um estudioso delas. Desde 1861, mantivera estreito contato com o químico Schorlemmer, de Manchester e, durante muitos anos, discutira problemas científicos com ele e com Marx. Em 1871, foi a Londres e começou a ler livros e revistas científicos, em larga escala. Alimentou então o propósito de escrever um grande livro para demonstrar
“que na Natureza se aplicam, na confusão de suas inumeráveis transformações, as mesmas leis dialéticas do movimento, leis essas que governam a aparente contingência dos fatos históricos”.
Se esse livro tivesse sido escrito, haveria sido de imensa importância para o desenvolvimento da ciência.
Mas, além do trabalho político, Engels enfrentava outras tarefas intelectuais. Fazia-se necessário contestar a obra de Dühring, e talvez o Anti-Dühring, que abrange todo o campo do conhecimento humano, seja um livro mais importante do que teria sido Dialética da Natureza, caso Engels o tivesse completado. Depois da morte de Marx, ocorrida em 1883, teve o trabalho gigantesco de completar e editar O Capital, além do qual escreveu o Feuerbach e A Origem da Família. Eis a razão pela qual Dialética da Natureza nunca foi terminado. O manuscrito compreende quatro volumes (embrulhos), todos com a letra de Engels, salvo certo número de citações de filósofos gregos, transcritas por Marx. Parte do manuscrito estava pronta para a publicação, uma vez que, como veremos, é quase certo que havia sido revista. Em grande parte, consiste apenas de notas esboçadas que Engels esperava poder desenvolver mais adiante. São, com frequência, difíceis de ler, estando cheias de abreviaturas como, por exemplo, Mag. por ímã ou magnetismo. Ocasionalmente são encontrados garatujas e desenhos à margem. E finalmente: apesar de quase todo o texto estar escrito em alemão, é preciso notar que Engels escrevia também em francês e inglês, razão pela qual, em certos trechos, lhe saíam algumas frases híbridas, tais como: “Wenn Coulomb von particles of electricity sprincht, which repeal each other inversely as the square of the distance, so nimmt Thompson das ruhig hin ais bewiesen”. Ou ainda: “In der heutigen Gesellschaft, dans le méchanisme civilisé, herscht duplicité d’action, contrariété de Vinterêt individuel avec le col-lectif; es ist une queue universelle des individus contre les masses”. A tradução desse trabalho foi uma difícil tarefa, sendo que a ordem dos diversos manuscritos não é de todo segura.
A maior parte do manuscrito parece ter sido elaborada entre 1872 e 1882, o que significa dizer que se refere aos conhecimentos científicos de sessenta anos atrás. Por conseguinte, torna-se muitas vezes difícil acompanhar o seu raciocínio, caso não se conheça a história da prática e da teoria científicas dessa época. A ideia do que atualmente se denomina conservação da energia, começava a ser introduzida na física, na química e na biologia. Mas não estava ainda completamente elaborada e muito menos integralmente aplicada. Empregavam-se palavras tais como forca, movimento e vis viva em lugar do que atualmente chamaríamos de energia. Os ensaios sobre Formas Fundamentais do Movimento, A Medida do Movimento: o Trabalho e O Calor ocupam-se amplamente. das controvérsias provocadas por teorias incompletas ou incorretas a respeito da energia. São interessantes na medida em que mostram a maneira pela qual se desenvolveram as ideias sobre esse assunto e como encarava Engels as controvérsias de seu tempo. Atualmente, muitas dessas controvérsias não existem mais. A expressão vis viva já não se emprega para designar o dobro da energia cinética e o termo forca adquiriu, em física, um sentido definitivo. Engels não as havia empregado em sua forma atual como se conclui pelo simples fato de que, no ensaio posterior, sobre a fricção das marés, emprega uma terminologia mais moderna. O interesse dessas controvérsias não reside tanto na detalhada crítica das teorias, muitas das quais deixaram de ter qualquer importância, mas sim no mostrar a maneira pela qual Engels encarava os problemas intelectuais. O ensaio sobre a eletricidade é ainda mais antiquado. Seu interesse reside nas críticas feitas às contradições de Wiedemann e nas suas conclusões em favor de uma investigação mais profunda no que diz respeito às conexões entre a ação química e a elétrica, a qual, como dizia Engels, “conduzirá a importantes resultados em ambos esses campos de investigação”. Essa profecia foi, logo após, realizada. A teoria iônica de Arrhenius transformou a química e a teoria de Thomson sobre o elétron, revolucionou a física. Nesse ponto também o manuscrito havia sido, seguramente, revisto antes de sua publicação. Em uma carta a Marx, de 23 de novembro de 1882, é assinalado o fato de que Siemens, em sua dissertação como presidente da British Association, definira uma nova unidade, a de potência elétrica, o watt, que é proporcional à resistência multiplicada pela corrente, enquanto que a força eletromotriz é proporcional à resistência multiplicada pela corrente. Compara estas com as expressões do impulso e da energia, examinadas no ensaio sobre A Medida do Movimento: o Trabalho, assinalando que, em cada um dos casos, temos uma simples proporcionalidade (o impulso, como velocidade, e a força motriz como corrente) quando não consideramos a transformação de uma forma de energia em outra. Mas quando a energia se transforma em calor (ou trabalho), o exato valor é obtido elevando ao quadrado a velocidade ou a corrente. “De maneira que se trata de uma lei geral do movimento que fui eu o primeiro a formular”. Podemos agora ver por que tal se verifica. O impulso e a força eletromotriz, pelo fato de terem uma determinada direção, invertem-se quando são invertidas a velocidade e a corrente. Mas a energia não se modifica. Por conseguinte, a velocidade ou a corrente devem entrar, na fórmula, elevadas ao quadrado ou a outra potência par) uma vez que (— X)2 = X2.
No ensaio sobre A Fricção das Marés, Engels cometeu um sério erro, ou mais exatamente, um erro que teria sido sério caso o houvesse publicado. Mas duvido muito de que o tivesse feito. Nas notas manuscritas ao Anti-Dühring, sustentou a opinião, muito corrente no século dezenove, de que consideramos evidentes verdades tais como os axiomas matemáticos, porque nossos antepassados estavam convencidos de sua validade ao passo que não pareceriam evidentes a um bosquímano ou a um negro australiano. Pois bem, essa opinião é quase seguramente incorreta e, possivelmente, Engels admitiu sua falácia e não a publicou. Duvido apenas de que ele ou alguns de seus amigos cientistas, tais como Schor, houvessem descoberto o erro existente no ensaio sobre A Fricção das Marés. Mas inclusive como erro é interessante, porque é um desses erros que conduzem a um resultado positivo (a saber, que o dia se encurtaria mesmo quando não existissem oceanos) através de um raciocínio equivocado.
Em outras partes existem afirmações incorretas, como por exemplo, sobre as estrelas e os protozoários. Mas nesse caso não se pode culpar a Engels por seguir a doutrina de alguns dos melhores astrônomos e zoólogos de seu tempo. O aperfeiçoamento técnico do telescópio e do microscópio conduziram, logo depois, a grandes progressos em nossos conhecimentos a esses respeitos, durante os últimos sessenta anos.
Em contraposição, as observações de Engels sobre o cálculo diferencial, conquanto inaplicáveis a esse ramo da matemática tal como é hoje ensinado, eram corretas no seu tempo e continuaram a sê-lo durante algum tempo depois. Engels observa que aquela se desenvolveu por contradição e que nem por isso deixou de dar bons resultados. Hoje em dia são dadas provas rigorosas de muitos dos teoremas a que se refere e alguns matemáticos sustentam haver eliminado as possíveis contradições. Na realidade, porém, o que fizeram foi apenas transferir as contradições para outra área, para o domínio da lógica matemática, onde continuam a existir. Não somente fracassaram todos os esforços destinados a deduzir a matemática, na sua totalidade, de um conjunto de axiomas (e de algumas regras para aplicá-los) como também Cödel demonstrou que semelhante tentativa estava destinada a fracassar. Em consequência, o fato de que a análise matemática possa ser ensinada sem conter as contradições particulares mencionadas por Engels, de maneira nenhuma impugna a validade de seu argumento dialético.
Uma vez feitas todas essas críticas, é surpreendente a maneira pela qual Engels antecipou o progresso das ciências durante os sessenta anos transcorridos desde que escreveu. É provável que não concordasse com a teoria atômica da eletricidade, a qual se afirmou entre os anos de 1900 e 1930; e sabendo-se que o elétron comporta-se não apenas como uma partícula, mas também como um sistema de ondas em movimento, bem poderia ter pensado haver tomado um caminho errado. Sua insistência no fato de que a vida é o modo característico de comportamento das proteínas, parecia muito unilateral à maior parte dos bioquímicos, visto como cada cédula contêm muitas outras substâncias orgânicas complicadas, além das proteínas. Somente nos últimos quatro anos verificou-se que certas proteínas puras apresentam um dos aspectos mais importantes dos seres vivos: o de reproduzir-se em diversos meios.
Se bem que, em todos os ramos possamos estudar com vantagem o método de pensamento de Engels, creio que as partes do livro que tratam de biologia, sejam as de mais valor imediato para os homens de ciência da época atual. Naturalmente que isso pode ser devido a que, como biólogo, posso descobrir sutilezas do pensamento de Engels que me poderão ter escapado nas seções que tratam de física; pode ser também devido a que a biologia sofreu, nas últimas gerações, menos mudanças espetaculares do que a física.
A fim de ajudar os leitores a acompanhar o desenvolvimento da ciência desde a época de Engels, acrescentei à obra algumas notas. Certos leitores poderão refutar minha afirmação de que, em alguns casos, Engels se equivocou. Ele, entretanto, não me teria contestado. Tinha perfeita consciência de que não era infalível e de que o movimento operário não deseja Papas ou escrituras reveladas. A Situação da Classe Operária na Inglaterra em 1844 (da qual havia aparecido, nos Estados Unidos, uma tradução em 1845) foi publicada pela primeira vez, na Inglaterra, em 1892. Em seu prefácio, escrito quarenta e oito anos depois, diz Engels o seguinte:
“Tive grande cuidado em não suprimir do texto muitas profecias, entre outras a de uma iminente revolução social na Inglaterra, aventura a que fui induzido pelo meu ardor juvenil. O surpreendente, não é que muitas delas tenham sido desmentidas, mas sim que algumas se tenham, de fato, realizado.”
Creio que os leitores de Dialética da Natureza acabarão chegando a uma conclusão semelhante a essa.
Não mencionei, entretanto, as seções relativas à história da ciência. Essas figuram entre as passagens mais brilhantes de todo o livro, mas representam uma linha de pensamento seguida por Marx e Engels em muitos de seus livros e que, desde então, foi desenvolvida por outros investigadores, razão pela qual a maioria dos leitores poderá achá-las menos interessantes. Finalmente, temos o delicioso ensaio denominado A Investigação Científica no Mundo dos Espectros. Entre os materialistas, existe a tendência a descuidar os problemas aí tratados. É digno de ser assinalado que Engels não se descuidou dos mesmos. Pelo contrário, examinou certo número de fenômenos considerados em sua época como ocultos e misteriosos, tendo chegado às mesmas conclusões a que chegou a maioria dos investigadores neste campo, sempre que, como Engels, imprimiram ao seu trabalho um robusto senso comum e também um certo sentimento de humor.
Foi uma grande desgraça, não só para o marxismo como também para todos os ramos da ciência da Natureza, o fato de que Bernstein, com quem ficou o manuscrito após a morte de Engels, não o tivesse publicado. Em 1924, foi o trabalho submetido (ou parte dele) à consideração de Einstein que, apesar de não o considerar muito interessante sob o ponto de vista da física moderna, mostrou-se contudo partidário de sua publicação. Se, como parece provável, Einstein examinou apenas o ensaio sobre a eletricidade, é facilmente compreensível sua vacilação, uma vez que ali são tratadas, quase que inteiramente, questões agora consideradas como superadas. O manuscrito foi editado, pela primeira vez, por Riazanov, em 1927. Mas a edição de Adoratski, de 1935, é mais satisfatória, por isso que várias passagens que careciam de sentido, na primeira edição, foram então esclarecidas.
Se o método de pensamento de Engels se tivesse tornado mais familiar, a evolução de nossas ideias sobre a física, ocorrida nos últimos trinta anos, teria sido menos trabalhosa. Se as suas observações sobre o darwinismo fossem mais geralmente conhecidas, pelo menos a mim teriam poupado uma certa quantidade de raciocínios confusos. Eis por que dou as boas vindas à publicação de uma tradução, para o inglês, de Dialética da Natureza, esperando que as futuras gerações de homens de ciência aí encontrem a necessária ajuda para maior elasticidade de seu pensamento.
Não se deve pensar, no entanto, que Dialética da Natureza seja apenas interessante para o homem de ciência. Qualquer pessoa culta e, sobretudo, qualquer estudioso da filosofia, encontrará ao longo de todo o livro muita coisa útil, especialmente nos Capítulos I, II, VII, IX e X. Uma das razões pelas quais Engels se tornou um escritor de tão grande projeção é devida provavelmente ao fato de ter sido ele o homem de mais vasta cultura de seu tempo. Possuía, não só profundos conhecimentos de economia e de história, como sabia o suficiente para discutir o sentido de uma obscura sentença latina referente à lei matrimonial romana e ainda explicar o processo químico que se verifica quando se mergulha um pedaço de zinco puro em ácido sulfúrico. E, para acumular seus vastos conhecimentos, não foi necessário enclausurar-se no estudo, mas, sim, desempenhava uma ativa parte nas coisas da política ao mesmo tempo que realizava um negócio e, inclusive, tomava parte na caça à raposa.
Necessitava desses conhecimentos, porque o materialismo dialético, filosofia que criou juntamente com Marx, não é apenas uma filosofia da história, mas uma filosofia que ilumina toda classe de acontecimentos, desde a queda de uma pedra até as imaginosas criações de um poeta. Ele empresta um particular interesse à interconexão de todos os processos naturais e o caráter artificial das distinções estabelecidas pelos homens, não só entre vertebrados e invertebrados ou líquidos e gases, mas também entre os diferentes domínios do conhecimento humano, tais como a economia, a história e as ciências naturais.
O Cap. II contém um esboço dessa filosofia em suas relações com a ciência da Natureza. No Cap. IV da História do P. C. (b) da U.R.S.S. encontra-se um resumo cuidadoso e condensado da mesma, mas as fontes principais para seu perfeito estudo são o Feuerbach e o Anti-Dühring, de Engels; Materialismo e Empirocriticismo, de Lenin; e algumas passagens das obras de Marx. Devido exatamente a ser ela uma filosofia viva, com inúmeras aplicações concretas, só se pode compreender toda sua força e importância quando a vemos aplicada à história, à ciência ou a qualquer outro campo de estudo que nos interesse. Por essa razão, um leitor que se ocupe fundamentalmente no que diz respeito ao campo político, ou ao econômico, retornará aos estudos que mais o seduzam transformado em um materialista dialético e, dessa forma, como um político ou economista de visão mais clara, depois de haver aprendido o método usado por Engels no que diz respeito à aplicação da dialética à Natureza.
No momento atual, é vitalmente necessária uma grande clareza de pensamento, se quisermos compreender a situação extremamente complicada com que se defronta toda a espécie humana e, em particular, nosso país, sobretudo se procuramos encontrar uma saída para um mundo melhor. O estudo de Engels nos acautelará contra algumas das fáceis soluções que nos são propostas hoje em dia e nos ajudará a desempenhar um papel inteligente e valoroso nos maiores sucessos de nosso próprio tempo.
J. B. S. Haldane
Novembro de 1939.
Inclusão | 10/07/2018 |