A Guerra Civil em França

Karl Marx

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Mensagem do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores[N121]


A todos os membros da Associação na Europa e nos Estados Unidos

I

capa

A 4 de Setembro de 1870, quando os operários de Paris proclamaram a República, que foi quase instantaneamente aclamada através da França, sem uma só voz discordante, uma cabala de advogados à caça de lugares, com Thiers como seu homem de Estado e Trochu como seu general, tomou o Hotel de Ville(1*). Estavam nesse momento imbuídos de uma fé tão fanática na missão de Paris para representar a França em todas as épocas de crise histórica, que julgaram suficiente para legitimar os seus títulos como governantes da França, apresentar os seus mandatos caducados de representantes de Paris. Na nossa segunda mensagem sobre a última guerra, cinco dias após o advento destes homens, dissemo-vos quem eles eram.(2*) Contudo, na agitação da surpresa, com os verdadeiros dirigentes da classe operária ainda fechados nas prisões bonapartistas e os prussianos já em marcha sobre Paris, tolerou Paris a sua tomada do poder, na condição expressa de ser exercido com o único propósito de defesa nacional. Paris, entretanto, não tinha defesa sem armar a sua classe operária, sem a organizar numa força efectiva e sem treinar as suas fileiras na própria guerra. Mas Paris armada era a revolução armada. Uma vitória de Paris sobre o agressor prussiano teria sido uma vitória do operário francês sobre o capitalista francês e os seus parasitas de Estado. Neste conflito entre dever nacional e interesse de classe, o Governo de Defesa Nacional não hesitou um momento em tornar-se um Governo de Defecção Nacional.

O primeiro passo que deram foi o de enviar Thiers em peregrinação por todas as cortes da Europa para ali pedir mediação oferecendo a troca da República por um rei. Quatro meses após o começo do cerco, quando julgaram chegado o momento oportuno para atirar a primeira palavra de capitulação, Trochu, na presença de Jules Favre e de outros seus colegas, dirigiu-se nestes termos aos administradores de bairro de Paris reunidos:

«A primeira pergunta que me puseram os meus colegas, na própria noite do 4 de Setembro, foi esta: pode Paris, com alguma probabilidade de êxito, suportar um cerco e resistir ao exército prussiano? Não hesitei em responder negativamente. Alguns dos meus colegas que me escutam podem certificar que digo a verdade e que não mudei de opinião. Expliquei-lhes, nestes mesmos termos, que seria uma loucura, no estado actual das coisas, tentar sustentar um cerco contra o exército prussiano. Sem dúvida, acrescentei, seria uma loucura heróica, mas é tudo... Os acontecimentos» (dirigidos por ele próprio) «não desmentiram as minhas previsões.»

Este bonito discursinho de Trochu foi posteriormente publicado por M. Corbon, um dos administradores de bairro presentes.

Assim, na própria noite da proclamação da República, o «plano» de Trochu ficou conhecido pelos seus colegas como a capitulação de Paris. Se a defesa nacional tivesse sido mais do que um pretexto para o governo pessoal de Thiers, Favre e C.a, os arrivistas do 4 de Setembro teriam abdicado a 5 — teriam informado o povo de Paris do «plano» de Trochu, e apelado para que se rendesse imediatamente ou para que tomasse o seu próprio destino nas suas próprias mãos. Em vez disto, os impostores infames resolveram curar a loucura heróica de Paris com um regime de fome e de cabeças partidas, ludibriando-o entretanto com manifestos grandiloquentes, perorando: Trochu, «o governador de Paris, não capitulará nunca»; Jules Favre, o ministro dos Negócios Estrangeiros, não cederá «nem uma polegada do nosso território! Nem uma pedra das nossas fortalezas!» Numa carta a Gambetta, este mesmíssimo Jules Favre confessa que de quem se estavam «defendendo» não era dos soldados prussianos mas dos operários de Paris. Durante todo o cerco, os corta-goelas bonapartistas — a quem Trochu, avisadamente, confiara o comando do exército de Paris — trocaram, na sua correspondência, piadas sem vergonha sobre esta bem entendida farsa da defesa (ver, por exemplo, a correspondência de Alphonse Simon Guiod, comandante-chefe da artilharia do exército de defesa de Paris e grã-cruz da Legião de Honra, com Susane, general de divisão de artilharia, correspondência publicada pelo Journal officiel[N149] da Comuna). A máscara da impostura caiu finalmente em 28 de Janeiro de 1871[N150]. Com o verdadeiro heroísmo do auto-aviltamento completo, o Governo de Defesa Nacional, apareceu na sua capitulação, como o governo da França por prisioneiros de Bismarck — um papel tão vil que o próprio Louis Bonaparte, em Sedan[N109], teve repugnância de o aceitar. Depois dos acontecimentos do 18 de Março, os capitularás[N151], na sua fuga desordenada para Versalhes, deixaram nas mãos de Paris as provas documentais da sua traição, para destruir as quais, como diz a Comuna no seu manifesto às províncias

«esses homens não hesitariam em fazer de Paris um montão de ruínas num mar de sangue».

Para estarem avidamente determinados a um tal desfecho, é porque alguns dos membros dirigentes do Governo de Defesa tinham, além disso, razões próprias muito peculiares.

Pouco depois da conclusão do armistício, M. Millière, um dos representantes de Paris à Assembleia Nacional, agora fuzilado por ordem expressa de Jules Favre, publicou uma série de documentos judiciais autênticos como prova de que Jules Favre, que vivia em concubinagem com a mulher de um bêbedo residente em Argel, tinha conseguido apoderar-se, pelo mais audacioso cozinhado de falsificações ao longo de muitos anos — em nome dos filhos do seu adultério —, de uma importante herança que fez dele um homem rico; e de que, num processo intentado pelos legítimos herdeiros, só escapou ao desmascaramento com a conivência dos tribunais bonapartistas. Como estes secos documentos judiciais não podiam ser descartados por nenhum volume de cavalos-vapor de retórica, Jules Favre, pela primeira vez na vida, conteve a língua, esperando em silêncio a explosão da guerra civil para, então, denunciar freneticamente o povo de Paris como um bando de reclusos evadidos em revolta aberta contra a família, a religião, a ordem e a propriedade. Mal este mesmo falsário chegou ao poder após o 4 de Setembro, tratou de pôr à solta, por simpatia, Pie e Taillefer, condenados por falsificação mesmo durante o Império, no escandaloso caso do Étendard[N152]. Um destes homens, Taillefer, tendo ousado regressar a Paris durante a Comuna, foi imediatamente reinstalado na prisão; e Jules Favre exclamou então, da tribuna da Assembleia Nacional, que Paris estava a pôr fora da gaiola todos os seus passarões!

Ernest Picard, o Joe Miller(3*) do governo de Defesa Nacional que a si próprio se designou ministro das Finanças(4*) da República depois de ter, em vão, tentado ser ministro do Interior do Império, é irmão de um certo Arthur Picard, indivíduo expulso da Bolsa de Paris como vigarista (ver relatório da Prefeitura de Polícia, datado de 31 de Julho de 1867) e condenado, com base na sua própria confissão, por um roubo de 300 000 francos enquanto gerente de uma das sucursais da Societé générale[N153], rue Palestro, n.° 5 (ver relatório da Prefeitura de Polícia de 11 de Dezembro de 1868). Este Arthur Picard foi feito director, por Ernest Picard, do jornal deste, l'Electeur libre[N154]. Enquanto o comum dos jogadores da bolsa era enganado pelas mentiras oficiais desta folha do Ministério das Finanças, Arthur fazia o vaivém entre o Ministério das Finanças e a Bolsa para ali tirar lucro dos desastres do exército francês. Toda a correspondência financeira deste digno par de irmãos caiu nas mãos da Comuna.

Jules Ferry, um advogado sem vintém antes do 4 de Setembro, conseguiu, como presidente do município de Paris durante o cerco, amealhar uma fortuna à custa da fome. O dia em que tivesse de prestar contas da sua malversação seria o dia da sua condenação.

Estes homens, pois, só nas ruínas de Paris podiam encontrar os seus tickets-of-leave(5*); eram precisamente estes os homens de que Bismarck precisava. Com a ajuda de algumas baralhadelas de cartas, Thiers, até então ponto [prompter] secreto do governo, aparecia agora à cabeça deste, com os ticket-of-leave-men por ministros.

Thiers, esse gnomo monstruoso, seduziu a burguesia francesa durante cerca de meio século porque é a expressão intelectual mais acabada da sua própria corrupção de classe. Antes de se tornar homem de Estado, já ele tinha dado provas, como historiador, da sua capacidade de mentir. A crónica da sua vida pública é o registo das desgraças da França. Ligado, antes de 1830, aos republicanos, meteu-se na carreira sob Louis-Philippe traindo o seu protector Laffitte, insinuou-se junto do rei provocando motins contra o clero, durante os quais a Igreja de Saint-Germain-l'Auxerrois e o palácio do arcebispo foram saqueados, e agindo como ministro-espião e carcereiro-accoucheur(6*) da duquesa de Berry[N155]. Foram obra sua o massacre dos republicanos na rue Transnonain e as infames leis de Setembro subsequentes contra a imprensa e contra o direito de associação[N156]. Ao reaparecer, em Março de 1840, como chefe do governo, deixou a França atónita com o seu plano de fortificação de Paris[N157]. Aos republicanos, que denunciaram este plano como uma intriga sinistra contra a liberdade de Paris, replicou ele da tribuna da Câmara dos Deputados:

«Mas quê! Imaginar que alguma vez fortificações possam pôr em perigo a liberdade! E, antes de mais, calunia-se um governo, seja ele qual for, quando se supõe que ele possa um dia tentar manter-se bombardeando a capital... Mas esse governo seria cem vezes mais impossível após a sua vitória.»

Na verdade, nenhum governo jamais ousaria bombardear Paris a partir dos fortes, a não ser esse governo, que entregara previamente estes fortes aos prussianos.

Quando o rei Bomba(7*), em Janeiro de 1848, fez uma tentativa contra Palermo, Thiers, então há muito fora do ministério, surgiu de novo na Câmara dos Deputados:

«Sabeis, senhores, o que se passa em Palermo; todos vós estremecestes de horror» (no sentido parlamentar) «ao tomar conhecimento de que, durante quarenta e oito horas, uma grande cidade foi bombardeada. Por quem? Foi por um inimigo estrangeiro, exercendo os direitos da guerra? Não, senhores, foi pelo seu próprio governo. E porquê? Porque esta cidade infortunada reclamava os seus direitos. Ora, por ter reclamado os seus direitos, Palermo teve quarenta e oito horas de bombardeamento! Permiti que eu apele para a opinião europeia. É prestar um serviço à humanidade, vir, do alto da maior tribuna, talvez, da Europa, fazer ressoar palavras» (palavras, de facto) «de indignação contra tais actos... Quando o regente Espartero, que tinha prestado serviços ao seu país» (coisa que M. Thiers nunca fez), «pretendeu bombardear Barcelona para reprimir a insurreição, por toda a parte se elevou no mundo um grande grito de indignação.»

Dezoito meses mais tarde, M. Thiers estava entre os mais ferozes defensores do bombardeamento de Roma por um exército francês[N158]. Na realidade, a culpa do rei Bomba parece ter sido só a de limitar o seu bombardeamento a quarenta e oito horas.

Poucos dias antes da Revolução de Fevereiro[N159], azedo pelo longo exílio de cargos e benefícios a que Guizot o condenara e farejando no ar o odor de um levantamento popular iminente, Thiers, naquele estilo pseudo-heróico que lhe valeu a alcunha de Mirabeau-mouche(8*), declarou à Câmara dos Deputados:

«Eu sou do partido da Revolução, não só em França mas na Europa. Desejo que o governo da Revolução fique nas mãos dos moderados; mas se o governo caísse nas mãos dos ardentes, nem que fosse dos radicais, eu não abandonaria apesar disso a minha causa. Seria sempre do partido da Revolução.»

Veio a Revolução de Fevereiro. Em vez de substituir o gabinete Guizot pelo gabinete Thiers, como o homenzinho tinha sonhado, ela suplantou Louis-Philippe com a República. No primeiro dia da vitória popular, teve o cuidado de se esconder, esquecendo que o desprezo dos operários o protegia do seu ódio. No entanto, com a sua coragem lendária, continuou a evitar a cena pública até que os massacres de Junho[N21] a limpassem para o seu género de acção. Tornou-se então o cérebro dirigente do «partido da ordem»[N160] e da sua república parlamentar, esse interregno anónimo no qual todas as facções da classe dirigente rivais conspiravam juntas para esmagar o povo, e conspiravam umas contra as outras para restaurar, cada uma, a sua própria monarquia. Então, como agora, Thiers denunciava os republicanos como único obstáculo para a consolidação da república; então, como agora, ele falava à república como o carrasco a Don Carlos: — «Tenho de assassinar-te, mas para teu bem.» Agora, como então, terá de exclamar, no dia a seguir ao da sua vitória: «L'Empire est fait» — O Império está consumado. Apesar das suas homilias hipócritas sobre as liberdades necessárias e do seu rancor pessoal contra Louis Bonaparte, que o tinha ludibriado e tinha corrido com o parlamentarismo — e fora da atmosfera factícia deste, o homenzinho está consciente de ficar reduzido à nulidade —, a mão dele esteve em todas as infâmias do segundo Império, desde a ocupação de Roma pelas tropas francesas até à guerra com a Prússia, que ele incitou com as suas invectivas ferozes contra a unidade alemã, não por esta ser um disfarce do despotismo prussiano mas por ser um ataque ao direito adquirido da França sobre a desunião alemã. Gostando de brandir à face da Europa, com os seus braços de anão, a espada do primeiro Napoleão, do qual se tornou o limpa-botas histórico, a sua política externa culminou sempre na total humilhação da França, desde a convenção de Londres[N161] de 1840 até à capitulação de Paris de 1871 e à presente guerra civil, em que atira contra Paris os prisioneiros de Sedan e de Metz[N162] por especial autorização de Bismarck. Apesar da versatilidade do talento e da inconstância de propósitos, este homem esteve durante toda a sua vida amarrado à mais fóssil rotina. É óbvio que as correntes mais profundas da sociedade moderna ficaram-lhe para sempre escondidas; mas mesmo as mudanças mais palpáveis à superfície daquela repugnavam a um cérebro cuja vitalidade se tinha refugiado toda na língua. Por isso nunca se cansou de denunciar como um sacrilégio qualquer desvio do velho sistema proteccionista francês. Quando ministro de Louis-Philippe, invectivou os caminhos-de-ferro como uma louca quimera; e quando na oposição, sob Louis Bonaparte, estigmatizou como uma profanação qualquer tentativa para reformar o apodrecido sistema do exército francês. Nunca, na sua longa carreira política, se tornou culpado de uma só medida de qualquer utilidade prática, por mais pequena que fosse. Thiers só foi consequente na sua avidez de riqueza e no seu ódio pelos homens que a produzem. Tendo entrado no seu primeiro ministério, sob Louis-Philippe, pobre como Job, saiu dele milionário. O seu último ministério sob o mesmo rei (de 1 de Março de 1840) expô-lo a sarcasmos públicos de corrupção na Câmara dos Deputados, aos quais se contentou em responder com lágrimas — artigo que ele fornece tão livremente como Jules Favre ou qualquer outro crocodilo. Em Bordéus[N163], a sua primeira medida para salvar a França da ruína financeira iminente foi a de dotar-se a si mesmo com três milhões por ano, a primeira e a última palavra da «república económica», cuja perspectiva ele abrira aos seus eleitores de Paris em 1869. Um dos seus antigos colegas da Câmara dos Deputados de 1830, M. Beslay, ele próprio um capitalista e, apesar disso, membro dedicado da Comuna de Paris, dirigia-se ultimamente assim a Thiers, num cartaz público:

«A escravização do Trabalho pelo Capital foi sempre a pedra angular da vossa política, e desde o próprio dia em que vistes a República do trabalho instalada no Hotel de Ville, nunca deixastes de gritar à França: "são criminosos!".»

Mestre em pequenas patifarias de Estado, virtuoso em perjúrio e traição, qualificado em todos os estratagemas baixos, expedientes manhosos e perfídias vis da luta parlamentar dos partidos; sempre sem escrúpulos, quando fora do governo, em atear uma revolução e em afogá-la em sangue quando ao leme do Estado; com preconceitos de classe fazendo as vezes de ideias e vaidade as vezes de coração; com uma vida privada tão infame como a sua vida pública é odiosa — mesmo agora, quando desempenha o papel de um Sila francês, não pode deixar de realçar a abominação dos seus actos pelo ridículo da sua ostentação.

A capitulação de Paris, entregando à Prússia não apenas Paris mas toda a França, encerrou as intrigas de traição prosseguidas de há muito com o inimigo, as quais tinham sido iniciadas pelos usurpadores de 4 de Setembro nesse mesmo dia, como disse o próprio Trochu. Por outro lado, ela dava início à guerra civil que eles estavam agora a mover, com a ajuda da Prússia, contra a República e contra Paris. A armadilha estava nos próprios termos da capitulação. Nesse momento, mais de um terço do território estava nas mãos do inimigo, a capital estava cortada das províncias, todas as comunicações estavam desorganizadas. Era impossível, em tais circunstâncias, eleger uma verdadeira representação da França sem que fosse dado um amplo prazo para os preparativos. Tendo isto em conta, a capitulação estipulava que a Assembleia Nacional tinha de ser eleita em oito dias; de modo que, em muitos pontos da França, a notícia da eleição iminente só chegou na véspera. Além disso, por uma cláusula expressa da capitulação, esta Assembleia devia ser eleita com o único propósito de decidir da paz ou da guerra e, eventualmente, para concluir um tratado de paz. A população não podia deixar de sentir que os termos do armistício tornavam impossível a continuação da guerra e que, para ratificar a paz, imposta por Bismarck, os piores homens eram os melhores. Mas, não contente com estas precauções, Thiers, antes mesmo de quebrado em Paris o segredo do armistício, partiu para uma digressão eleitoral pelas províncias, para ali galvanizar e ressuscitar o partido legitimista, que tinha agora, ao lado dos orleanistas, de tomar o lugar que então os bonapartistas não podiam ocupar. Ele não os receava. Impossíveis como governo da França moderna e, por isso, desprezíveis como rivais, que partido era mais elegível como instrumento da contra-revolução do que o partido cuja acção, nas palavras do próprio Thiers (Câmara dos Deputados, 5 de Janeiro de 1833),

«se tinha sempre confinado aos três recursos da invasão estrangeira, da guerra civil e da anarquia»?

Eles acreditavam verdadeiramente no advento do seu milénio retrospectivo longamente esperado. Havia as botas da invasão estrangeira calcando a França; havia a queda de um império e o cativeiro de um Bonaparte; e havia eles próprios. A roda da história tinha manifestamente girado para trás, para se deter na «Chambre introuvable» de 1816[N164]. Nas assembleias da República, de 1848 a 1851, eles tinham estado representados pelos seus campeões parlamentares, educados e experimentados; agora eram os soldados rasos do partido que se precipitavam para elas — todos os Pourceaugnac da França.

Assim que esta Assembleia de «Rurais»[N165] se reuniu em Bordéus, Thiers tornou-lhes claro que os preliminares de paz tinham de ter assentimento imediato, mesmo sem as honras de um debate parlamentar, condição sem a qual a Prússia não lhes permitiria desencadear a guerra contra a República e Paris, sua cidadela. A contra-revolução, de facto, não tinha tempo a perder. O segundo Império tinha mais do que duplicado a dívida nacional e mergulhado todas as grandes cidades em pesadas dívidas municipais. A guerra tinha dilatado terrivelmente os encargos e destruído sem piedade os recursos da nação. Para completar a ruína, estava lá o Shylock prussiano com o seu título de dívida da manutenção, em solo francês, de meio milhão de soldados seus, com a sua indemnização de cinco mil milhões[131] e juros de 5 por cento sobre as prestações não pagas. Quem ia pagar a conta? Só pelo derrubamento violento da República os apropriadores de riqueza podiam esperar pôr aos ombros dos produtores desta o custo de uma guerra que eles, apropriadores, tinham provocado. Assim, a imensa ruína da França impelia estes patrióticos representantes da terra e do capital, sob os próprios olhos e o patrocínio do invasor, a enxertar na guerra estrangeira uma guerra civil — uma rebelião de proprietários de escravos.

Havia no caminho desta conspiração um grande obstáculo — Paris. Desarmar Paris era a primeira condição de sucesso. Paris foi pois intimada por Thiers a entregar as suas armas. Paris foi então exasperada pelas frenéticas manifestações anti-republicanas da Assembleia dos «Rurais» e pelas equivocações do próprio Thiers sobre o estatuto legal da República; pela ameaça de decapitar e descapitalizar Paris; pela nomeação de embaixadores orleanistas; pelas leis de Dufaure sobre letras comerciais e rendas de casa vencidas[N166], que impunham a ruína ao comércio e à indústria de Paris; pela taxa de Pouyer-Quertier de dois cêntimos sobre qualquer exemplar de qualquer publicação imaginável; pelas sentenças de morte contra Blanqui e Flourens; pela supressão dos jornais republicanos; pela transferência da Assembleia Nacional para Versalhes; pelo prolongamento do estado de sítio declarado por Palikao e expirado a 4 de Setembro; pela nomeação de Vinoy, o Décembriseur[N167], como governador de Paris, de Valentin, o gendarme imperialista(9*), como prefeito de polícia, e de Aurelle de Paladines, o general jesuíta, como comandante-chefe da Guarda Nacional parisiense.

E temos agora uma questão a pôr a M. Thiers e aos homens da defesa nacional, seus subordinados. É sabido que através de M. Pouyer-Quertier, seu ministro das Finanças, Thiers contraiu um empréstimo de dois mil milhões. É então verdade ou não:

  1. que o negócio estava arranjado de tal maneira que uma recompensa de várias centenas de
    milhões estava assegurada para benefício privado de Thiers, Jules Favre, Ernest Picard, Pouyer-Quertier e Jules Simon?
  2. e que nenhum pagamento havia de ser efectuado senão depois da «pacificação» de Paris?[N168]

Em todo o caso, algo de muito urgente tinha de haver na matéria, para que Thiers e Jules Favre, em nome da maioria da Assembleia de Bordéus solicitassem despudoradamente a imediata ocupação de Paris pelas tropas prussianas. Tal não era, contudo, o jogo de Bismarck, como ele o disse sarcasticamente e em público, aos admirativos filisteus de Frankfurt, no seu regresso à Alemanha.


Notas de rodapé:

(1*) Em francês no texto: Câmara Municipal. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(2*) Ver o presente tomo pp 217-218 (Nota de edição portuguesa) (retornar ao texto)

(3*) Nas edições alemãs de 1871 e de 1891: «Karl Vogt». Na edição francesa de 1871: «Falstaff». (retornar ao texto)

(4*) Nas edições alemã e francesa: «ministro do Interior». (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(5*) Em Inglaterra, dá-se frequentemente a criminosos comuns, após cumprimento da maior parte da sua pena, licenças de saída com as quais são soltos e postos sob a vigilância da polícia. Estas licenças chamam-se ticket-of-leave e os seus detentores ticket-of-leave-men. (Nota de Engels à edição alemã de 1871.) (retornar ao texto)

(6*) Em francês no texto: parteiro. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(7*) Fernando II. (retornar ao texto)

(8*) Em francês no texto: Mirabeau-mosca. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(9*) Aqui no sentido de imperial. (Nota da edição portuguesa) (retornar ao texto)

Notas de fim de tomo:

[N21] Insurreição de Junho: insurreição heróica dos operários de Paris em 23-26 de Junho de 1848, reprimida com excepcional crueldade pela burguesia francesa. A insurreição foi a primeira grande guerra civil da história entre o proletariado e a burguesia. (retornar ao texto)

[N109] A 2 de Setembro o exército francês foi derrotado em Sedan e feito prisioneiro, juntamente com o imperador. Entre 5 de Setembro de 1870 e 19 de Março de 1871 Napoleão III e os comandantes do exército estiveram presos em Wilhelmshöle (perto de Kassel), num castelo do rei da Prússia. A catastrofe de Sedan acelerou a derrocada do Segundo Império e levou à proclamação da república em França a 4 de Setembro de 1870. Foi formado um novo governo, o chamado "governo de defes nacional". (retornar ao texto)

[N121] A Guerra Civil em França: uma das mais importantes obras do comunismo científico, na qual, na base da experiência da Comuna de Paris, foram desenvolvidas as principais teses da doutrina marxista sobre a luta de classes, o Estado, a revolução e a ditadura do proletariado. Redigida como mensagem do Conselho Geral da I Internacional a todos os membros da Associação na Europa e nos Estados Unidos, teve como objectivo armar a classe operária de todos os países com a compreensão da essência e do significado da luta heróica dos communards, colocar ao alcance de todo o proletariado a experiência histórica-mundial desta luta.
Neste trabalho foi confirmada e desenvolvida a tese, exposta por Marx na Obra "O 18 de Brumário de Louis Bonaparte" (ver Obras Escolhidas de Marx e Engels em III Tomos, t.1, pp422-516), da necessidade de o proletariado quebrar a máquina de Estado burguesa. Marx chega à conclusão de que a "classe operária não pode apossar-se simplesmente da maquinaria de Estado já pronta e fazê-la funcionar para os seus próprios objectivos". Deve quebrá-la e substituí-la por um Estado do tipo da Comuna de Paris. Esta conclusão de Marx sobre o Estado de novo tipo - do tipo da Comuna de Paris - como forma actual da ditadura do proletariado constitui o principal conteúdo da nova contribuição dada por Marx para a teoria revolucionária.
A Obra de Marx "A Guerra Civil em França" teve uma ampla difusão. Em 1871-1872 foi traduzida para várias línguas e publicada em diversos países da Europa e nos Estados Unidos. (retornar ao texto)

[N128] Legitimistas: partidários da dinastia «legítima» dos Bourbons, derrubada em França em 1792, que representava os interesses dos detentores da grandes aristocracia rural e do alto clero; formou-se como partido em 1830, depois do segundo derrubamento desta dinastia. Em 1871 os legitimistas participaram da campanha geral das forças contra-revolucionárias contra a Comuna de Paris.
Orleanistas: partidários dos duques de Orleães, ramo da dinastia dos Bourbons que subiu ao poder durante a Revolução de Julho de 1830 e que foi derrubado com a revolução de 1848; representavam os interesses da aristocracia financeira e da grande burguesia. (retornar ao texto)

[N131] Trata-se do tratado de paz preliminar entre a França e a Alemanha, subscrito em Versalhes em 26 de Fevereiro de 1871 por Thiers e J. Favre, por um lado, e por Bismarck, por outro lado. De acordo com as condições deste tratado, a França cedia à Alemanha a Alsácia e a Lorena Oriental e pagava uma indemnização de cinco mil milhões de francos. O tratado de paz definitivo foi assinado em Frankfurt am Main a 10 de Maio de 1871. (retornar ao texto)

[N149] O Journal Officiel de la Republique Française (Jornal Oficial da República Francesa) publicou-se de 20 de Março a 24 de Maio de 1871, e foi o órgão oficial da Comuna de Paris; conservou o título do jornal oficial do governo da República Francesa, editado em Paris desde 5 de Setembro de 1870 (durante a Comuna de Paris publicou-se sob este mesmo título em Versailles o jornal do governo de Thiers). O número de 30 de Maio saiu com o título de Journal Officiel de la Commune de Paris (Jornal Oficial da Comuna de Paris). A carta de Simon Guiod foi publicada no número de 25 de Abril de 1871. (retornar ao texto)

[N150] A 28 de Janeiro de 1871 Bismarck e Favre, representante do Governo de Defesa Nacional, assinaram uma «Convenção sobre o Armistício e a Capitulação de Paris». Esta vergonhosa capitulação constituiu uma traição aos interesses nacionais da França. Ao assinar a convenção, Favre aceitou as humilhantes exigências apresentadas pelos prussianos: o pagamento no prazo de duas semanas de uma indemnização de 200 milhões de francos, a rendição de uma grande parte dos fortes de Paris, a entrega da artilharia de campanha e das munições do exército de Paris. (retornar ao texto)

[N151] Capitulards (capitulacionistas): alcunha desdenhosa dos partidários da capitulação de Paris durante o cerco de 1870-1871. Posteriormente passou a designar os capitulacionistas em geral. (retornar ao texto)

[N152] L'Etendard (O Estandarte): jornal francês de orientação bonapartista, que se publicou em Paris de 1866 a 1868. A sua publicação cessou com a descoberta de operações fraudulentas para financiamento do jornal. (retornar ao texto)

[N153] Trata-se da Société Générale du Credit Mobilier, grande banco francês por acções, criado em 1852. A principal fonte de rendimentos do banco era a especulação com títulos. O Crédit Mobilier estava estreitamente ligado aos círculos governamentais do Segundo Império. Em 1867 a sociedade faliu e em 1871 foi liquidada.(retornar ao texto)

[N154] L'Electeur libre (O Eleitor Livre): jornal francês, órgão dos republicanos de direita, publicou-se em Paris de 1868 a 1871; em 1870-1871 esteve ligado ao Ministério das Finanças do Governo de Defesa Nacional. (retornar ao texto)

[N155] A 14 e 15 de Fevereiro de 1831, em Paris, em sinal de protesto contra uma manifestação legitimista numa missa em memória do duque de Berry, uma multidão destruíra igreja de Saint-Germain-l'Auxerrois e o palácio do arcebispo de Quelen. Thiers, que presenciou a destruição da igreja e do palácio do arcebispo, convenceu os guardas nacionais a não se oporem à acção da multidão.
Em 1832, por decisão de Thiers, nessa altura ministro do Interior, a duquesa de Berry, mãe do pretendente legitimista ao trono francês, conde Chambord, foi presa e submetida a um exame médico humilhante com o objectivo de tornar público o seu casamento secreto e comprometê-la politicamente. (retornar ao texto)

[N156] Marx refere-se ao papel miserável de Thiers (nessa altura ministro do Interior) no esmagamento da insurreição das massas populares de Paris contra o regime da monarquia de Julho, a 13-14 de Abril de 1834. O esmagamento desta insurreição foi acompanhado de atrocidades por parte da camarilha militar que, em particular, matou todos os moradores de uma casa da Rua Transnonain.
Leis de Setembro: leis reaccionárias contra a imprensa, promulgadas pelo governo francês em Setembro de 1835. De acordo com estas leis, eram condenados a penas de prisão e a grandes multas em dinheiro os actos contra a propriedade e contra o regime existente. (retornar ao texto)

[N157] Em Janeiro de 1841, Thiers propôs na Câmara dos Deputados um projecto de construção de fortificações militares em torno de Paris. Nos meios revolucionários-democráticos este projecto foi acolhido como uma medida preparatória para o esmagamento dos movimentos populares. No projecto de Thiers previa-se a construção de poderosos fortins nas proximidades dos bairros operários. (retornar ao texto)

[N158] Em Abril de 1849, a França, em aliança com a Áustria e Nápoles, organizou uma intervenção contra a República Romana com o objectivo de a esmagar e de restabelecer o poder temporal do papa. As tropas francesas submeteram Roma a um cruel bombardeamento. Apesar de uma resistência heróica, a República Romana foi derrubada e Roma ocupada pelas tropas francesas. (retornar ao texto)

[N159] Trata-se da revolução de 1848. (retornar ao texto)

[N160] Partido da Ordem: partido da grande burguesia conservadora criado em 1848; constituía uma coligação das duas fracções monárquicas de França: os legitimistas e os orleanistas (ver nota 128); de 1849 até ao golpe de Estado de 2 de Dezembro de 1851 ocupou uma posição dirigente na Assembleia Legislativa da Segunda República. (retornar ao texto)

[N161] A 15 de Julho de 1840, a Inglaterra, a Rússia, a Prússia, a Áustria e a Turquia assinaram em Londres, sem a participação da França, uma convenção sobre a ajuda ao sultão turco contra o governante egípcio Mohammed Ali, que era apoiado pela França. Em resultado da conclusão da convenção surgiu a ameaça de uma guerra entre a França e a coligação de potências europeias; no entanto, o rei Luís Filipe não ousou iniciar as hostilidades e retirou o apoio a Mohammed Ali. (retornar ao texto)

[N162] Desejando reforçar o exército de Versalhes para esmagar a Paris revolucionária, Thiers pediu a Bismarck que o autorizasse a integrar no contingente prisioneiros de guerra franceses, sobretudo do exército que capitulou em Sedan e Metz. (retornar ao texto)

[N163] Em Bordéus reuniu-se a Assembleia Nacional da França em 1871. (retornar ao texto)

[N164] «Chambre introuvable» («Câmara impossível de encontrar»): Câmara dos Deputados em França em 1815-1816 (primeiros anos do regime da Restauração), composta por ultra-reaccionários. (retornar ao texto)

[N165] «Câmara de latifundiários», «assembleia de rurais»: designações desdenhosas da Assembleia Nacional de 1871, que se reuniu em Bordéus e que era composta na sua maioria por monárquicos reaccionários: latifundiários da província, funcionários, rentiers e negociantes, eleitos em círculos eleitorais rurais. Dos 630 deputados a Assembleia, cerca de 430 eram monárquicos. (retornar ao texto)

[N166] A 10 de Março de 1871, a Assembleia Nacional aprovou uma lei sobre o adiamento do pagamento das dívidas contraídas entre 13 de Agosto e 12 de Novembro de 1870; quanto ao pagamento das dívidas contraídas depois de 12 de Novembro não havia adiamento. Deste modo, a lei desferiu um duro golpe nos operários e nas camadas mais pobres da população, provocando também a bancarrota de muitos pequenos comerciantes e industriais. (retornar ao texto)

[N167] Décembriseur: participante no golpe de Estado bonapartista de 2 de Dezembro de 1851 e partidário das acções no espírito deste golpe. (retornar ao texto)

[N168] Segundo as informações dos jornais, do empréstimo interno que o governo de Thiers decidiu lançar, o próprio Thiers e outros membros do seu governo deviam receber mais de 300 milhões de francos a título de «comissão». A lei sobre o empréstimo foi aprovada a 20 de Junho de 1871, depois do esmagamento da Comuna. (retornar ao texto)

Inclusão 17/11/2008