Vasco Gonçalves: Perfil de um Homem

Fernando Luso Soares


A Morte Política do Poder Econômico


capa

«Eu penso que os responsáveis pelo crescimento das organizações reaccionárias e das organizações fascistas, a que hoje nós assistimos em Portugal, são os mesmos — são os mesmos responsáveis pela política da recuperação capitalista, da restauração do capitalismo em Portugal, política essa que foi iniciada com o VI Governo Provisório, intensificada com o I Governo Constitucional, e tudo leva a crer que vai ser agravada agora com o II Governo Constitucional. São essas mesmas forças as responsáveis por esta situação.»

Vasco Gonçalves entrevista no Diário de Lisboa 4 de Maio de 1978

Desde a primeira hora, e mais clarificadamente a partir do 11 de Março, teve Vasco Gonçalves a atenção voltada para o projecto que a Constituição de 1976 viria consagrar juridicamente, a nível superior. Demasiada razão havia, aliás, para isso. Se os Governos de hoje — que agem sob o seu domínio — e os políticos burgueses não traírem (mais) aquela que deliberaram ser a lei fundamental do país, há-de a nossa sociedade progressivamente organizar-se como uma República de trabalhadores. Para isso foi feito o 25 de Abril.

«A República Portuguesa — reconhece nesta ordem de ideias e preceitua inequívoco o artigo 2.° da Constituição — é um Estado democrático, baseado na soberania popular, no respeito e na garantia dos direitos e liberdades fundamentais e no pluralismo de expressão e organização política democráticas, que tem por objectivo assegurar a transição para o socialismo mediante a criação de condições para o exercício democrático do poder pelas classes trabalhadoras.»

Uma república ãe trabalhadores — repare-se. E construída mediante a criação de condições para se exercer o poder político dos trabalhadores. Que pensar destes parâmetros ?

Desde o primeiro momento, tal foi o desígnio histórico do Companheiro General. Mas este seria, do mesmo passo, o horizonte visível que acirradamente suscitou o ódio da classe dominante, contra quem lhe ameaçava os privilégios. Se a Vasco Gonçalves lograram derrubar (não, evidentemente, do coração do povo-povo), a Constituição, porém, vingou e ficou. Por isso, na lógica sequência de uma linha contra-revolucionária, hoje ela representa o fulcro capital dos ataques da reacção conservadora e do fascismo.

Tudo o que, com efeito, vem acontecendo nos últimos tempos, a propósito (ou despropósito) de uma revisão Constitucional antecipada, não passa de significar a ambiciosa e inconstitucional manifestação dos que acharam (mal, é evidente) este o momento oportuno para liquidar, de uma vez por todas, o Portugal de Abril.

Diante de uma norma como a do artigo 290.° da Constituição, eles fremem e sacodem-se de raiva. Como suportar... — pensam os Sá Carneiros, os Lucas Pires e quejandos — como suportar regras da igualha daquela, impondo que as leis de revisão constitucional terão de respeitar os direitos, as liberdades e as garantias dos cidadãos, os direitos dos trabalhadores e das associações sindicais, o princípio da apropriação colectiva dos principais meios de produção e dos solos, a eliminação dos monopólios e latifúndios, a planificação democrática da economia e a participação das organizações populares de base no exercício do poder local?

A par de uma onda de novos constitucionalistas ter ocasionado dúvidas sobre aquela célebre «pureza de coração» que invocava José Luís Nunes, deputado do PS(83) (isto, evidentemente, por sustentarem a necessidade de tal revisão antecipada), também o professor Soares Martinez alvitrou que o artigo 290.°, correspondendo a um propósito de perpetuar certos princípios fundamentais, «poderá ser julgado incompatível com a soberania popular consagrada nos artigos 1.° e 2.°» (a comunidade nacional, porque soberana, poderia alterar a Constituição), pelo que aquele preceito «conteria normas constitucionais feridas de inconstitucionalidade»(84).

Posta a questão, ela resulta num patente e descabelado sofisma. Temos, antes de mais, de nos advertirmos sobre o facto de que o poder de revisão constitucional é sempre um poder vinculado ou derivado. Ele encontra-se, por conseguinte, subordinado ao poder constituinte que o antecede, justifica e define. E que se materializou, afinal, no texto da própria Constituição. O que tudo significa que as normas constitucionais sobre a revisão funcionam como uma inafastável baliza do poder de revisão.

Com efeito, a inibição legal de certo procedimento por parte de alguém implica, por força, para o destinatário dessa inibição, a impossibilidade de eliminá-la ou superá-la. Qualquer pessoa sensata tem o sentido disto. Em conclusão, portanto, os limites materiais do artigo 290.° da Constituição da República devem entender-se como limites absolutos do poder de revisão(85).

Não é que eu tenha a descrença de Frederico da Prússia, enquanto afirmava a sua convicção daquilo para que servia o direito: «O Direito serve para tudo», respondeu o imperador a quem lho havia perguntado.

A verdade, porém, é que só abordei, aqui neste capítulo, a problemática da revisão constitucional, para salientar como as ânsias pela antecipação daquela revisão se referem, no final das contas, às mesmas impaciências que a grande burguesia capitalista portuguesa sente por uma plena ressurreição do seu abalado poder económico. Enquanto Sá Carneiro projecta uma nova Constituição de carácter reaccionário(86) e Marcelo Caetano nega qualquer eficácia jurídica ao para ele tão incomodativo artigo 290.°(87), as «grandes famílias», ensaiam o regresso(88).

Quando Carlos Coutinho perguntou a Vasco Gonçalves se considerava a Constituição de 1976 sintonizada com o nosso processo revolucionário, o Companheiro General respondeu assim:

«A nível da superstrutura política e jurídica, a Constituição corresponde às profundas transformações económicas e sociais introduzidas na sociedade portuguesa, ao longo do processo revolucionário e até ao fim do V Governo Provisório.»(89)

Desde a primeira hora, o Primeiro-Ministro, dos II ao V Governos Provisórios, defendeu e efectivamente propiciou o alcançar desta estrutura. Assim pudessem dizer, quanto à criação daquelas condições a que alude o artigo 2.° — «condições para o exercício democrático do poder pelas classes trabalhadoras» — todos os que já governaram no domínio e na efectiva vigência do diploma constitucional de 1976!

Coisa difícil, no entanto, reconhece-se: tal como assinalava Eduardo Lourenço num artigo de Dezembro de 1977, que intitulou «A Revolução à deriva», «havia, e há no PS socialistas, mas não foram nunca a maioria»(90).

Só a 11 de Março liquidou as ambiguidades a nível de Poder político. Sabemo-lo já. Mas o estatuto revolucionário dele decorrente viera tendo gestação na dialéctica dos acontecimentos em que se traduziram, e falharam, tentativas reaccionárias anteriores.

Logo no dia imediato ao da intentona de 28 de Setembro de 1974, fazia Vasco Gonçalves, corajosamente, cônscio dos objectivos de uma Revolução que era do povo contra os seus exploradores, esta alocução pela Rádio e pela TV:

«Nós acabámos de viver o primeiro ataque em forma da reacção [...]. Fizemos uma revolução cujas consequências ainda vão em pleno desenvolvimento [...]. Nós defendemos os verdadeiros interesses do povo português, que estão traduzidos no programa que elaborámos e pretendemos levar ao fim, e que levaremos ao fim, contra tudo e contra todos [...]. E daqui mesmo nós exortamos o nosso povo, para comemorar esta vitória sobre a reacção, que o próximo domingo seja um domingo de trabalho nacional, um domingo em que o povo vá para as oficinas, vá para os campos, vá para as fábricas trabalhar, como manifestação de alegria por esta vitória que obtivemos sobre a reacção. Estamos convencidos de que o povo isso compreenderá e que poderá fazer do próximo domingo uma jornada de vitória nacional, de vitória do 25 de Abril. E no trabalho demonstrar que está de facto interessado, verdadeiramente interessado no progresso da Nação.»(91)

Recordamos todas estas palavras, decerto, como coisa nossa.

O povo identifica logo, como suas irmãs, as vozes que falam a sua linguagem. Vasco Gonçalves ficara conhecido da generalidade dos portugueses, desde o 18 de Julho anterior, data em que havia tomado posse do cargo de Primeiro-Ministro do II Governo Provisório. Acorreram todos, em massa, quando ele fez este apelo para uma jornada simbólica de trabalho.

Uma piedosa senhora observou-me, ao tempo, que aquele convite constituía um pecado:

«Trabalhar ao domingo?! Que dirá Deus Nosso Senhor?!»

Quanto a mim, não tendo sofrido tão preocupantes angústias, enveredei pelo caminho simples dessa «desvirtuosa» transgressão para que me incitava alguém que eu já entendera puro e heróico. Só não tinha suspeitado ainda que ele, Vasco Gonçalves, era o irmão do António Gonçalves, um velho condiscípulo e colega de turma que eu tivera, há uns trinta e tantos anos antes, no Liceu de Camões.

A singular interpelação, vinda desse homem franco e transparente que nos tocava dentro, entusiasmou-me. Fui ao ponto de ter escrito meia dúzia de linhas de lembrança — «Um domingo de trabalho» — que vieram publicadas no Diário de Notícias desse própria dia. No Diário de Noticias de então, claro.

Uma data emocionante, essa do 6 de Outubro de 1974! E se reproduzo aqui a pequena nota sobre a efeméride, não é evidentemente porque o justifique o texto, mas directa e vivamente o significado do facto.

Ei-la:

«Ainda não nos saíram dos olhos e dos ouvidos as imagens de um paraíso perdido e a harmonia enleante de um mutismo de ouro — que tudo isso nos queriam oferecer os da tal maioria silenciosa. Num decidido repente, porém, a vontade férrea e tenaz do povo e a coerência programática do Movimento das Forças Armadas preservaram-nos da tragicomédia que aquela gente queria representar à nossa custa. E os órgãos truculentos da imprensa sediciosa (os “Bandarras”, as “Tribunas Populares” e outros símiles) desenharam-se-nos como fantasmas de um pesadelo ultrapassado.

Nesta crença, eis-me (ontem) a ler os jornais e as revistas do dia, na faina de um esclarecimento político que constitui dever prioritário de todos, amputados ou iludidos por várias décadas de mordaça, espartilho e cantilena. E fui lendo. Fui lendo aqui e ali, até que chegou a vez do Jornal Português de Economia e Finanças. Mais concretamente do seu n.° 324, relativo ao período de 1 a 15 deste Outubro que decorre. E a bem poucos dias do 28 de Setembro, o que nos diria a capitalíssima revista?...

Hoje é 6 de Outubro, o nosso domingo de trabalho — dia simbólico pela excepção e ao mesmo tempo prático pelos efeitos. O Primeiro-Ministro Vasco Gonçalves lançou o repto a todos os portugueses de boa vontade. A todos os trabalhadores. Portanto a todos aqueles que produzem a riqueza nacional. E como reagiu, ao apelo, o Jornal Português de Economia e Finanças"!... Muito simplesmente, dizendo duas coisas falsas e injuriosas.

A pp. 14-15 diz o Economia e Finanças:

“... é bem sabido que o português nasceu para ser negociante, vendedor ambulante, contínuo, membro de comissões, actor ou escritor, mas não para trabalhador. As razões dessa tendência são complexas, mas o que importa é que ela existe de há muito, e não parece fácil de eliminar. Nem mesmo com uma ‘verdadeira revolução’.”

E depois de expor esta teoria, que afirma um congénito demérito do trabalhador português; depois, também, de excluir do seio dos trabalhadores todos os ociosos inveterados, tais assim os contínuos e os engraxadores, os actores e os escritores —o Economia e Finanças remata as suas tristes páginas com uma afirmação terrorista:

“Aumentar a produção é bom. Vai ser grato ver um povo que não trabalha, trabalhar ao domingo.”

O que lamento, sinceramente — finalizava assim o meu pequeno texto desse 6 de Outubro — é que talvez estejam a estas horas e hoje — domingo — alguns trabalhadores tipógrafos a produzir o próximo número de semelhante revista. Estranho sistema este, em que, para viver, tem o trabalhador de participar na produção da arma que o tenta matar.»

Releio, com natural transporte de saudade, este breve apontamento de um quotidiano que passou. Mas o que em boa verdade agora nos interessa é uma coisa diferente. É a confiança — diria melhor, a certeza histórica, científica— de que hão-de voltar outros «domingos de trabalho» e de que os homens que fazem da política um permanente e autêntico diálogo com os trabalhadores regressarão.

Vasco Gonçalves foi, precisamente, a expressão aberta desse diálogo. E o povo trabalhador o afã de escutá-lo. De um lado, a franqueza extrema; do outro o sentido atento e o empenho activo — modo de ser de dois protagonistas socialmente convergentes. Todo o comportamento governativo de Vasco Gonçalves constituiu uma prática coloquial sempre paralela à sua actuação política.

Actuar e esclarecer — esclarecer e actuar — eis o lema que lhe está implícito, e que será objecto particular das matérias do próximo capítulo deste livro. E Vasco (assim passou, familiarmente, o povo a denominá-lo) não teve nunca o menor receio de ser directo e objectivo, sincero e descarnado perante as coisas novas, não habituais ou difíceis, muito simplesmente porque elas tinham estreitamente a ver com a realidade.

Vasco Gonçalves teve sempre, aliás, a arte de simplificar as questões que discutia em público.

Ouvindo-o, lendo-o, quantas vezes pensei nesse exemplar revolucionário que foi Brecht, quando nos seus estudos de Teatro observa que a inteligibilidade da obra não é apenas assegurada pelo facto de ela porventura estar escrita da mesma maneira que outras já entendidas pelo povo. A obra nem sempre é semelhante daquelas que a precederam, mas alguma coisa de si própria a toma igualmente compreensível. Além daquilo que é popular — concluiu Bertolt Brecht muito certeiramente — existe também aquilo que se torna popular(92). Eis, digamos, uma explicação para a arte prática natural de Vasco Gonçalves.

Na comunicação feita ao país, em 11 de Março de 1975, logo que dominado o golpe spinolista, uma vez mais ele se dirigiu apelativamente aos trabalhadores. Agora o que o preocupava mais determinantemente era a unidade deles. Vasco Gonçalves estava consciente de como a burguesia instalada promove sempre, e por todas as formas ao seu dispor, o divisionismo das massas laboriosas:

«Eu daqui exorto as massas trabalhadoras para que não se deixem desunir nos seus sindicatos, para que se unam, para que vejam bem onde estão os seus inimigos e os seus amigos.»(93)

As semanas iriam correr, agitadas e polémicas. Ao cabo de tantas e tantas mais vezes, ainda em 27 de Julho do mesmo ano, no Congresso dos Sindicatos, cerca de mês e meio antes da sua queda, voltou o Companheiro General a incitar o povo trabalhador para que não desertasse da vanguarda que tem de constituir e manter:

«Nós demos um golpe mortal no capitalismo monopolista de Estado. A infraestrutura económica está, de facto, ferida mortalmente [...]. Nós devemos avançar neste processo com vanguardas, mas não devemos afastar camadas da população, que deverão ser, na prática, nossos aliados. Isto tudo deve ser assumido conscientemente. Porque nós não estamos interessados em que ao longo do caminho para o socialismo, se invertam as relações de classe. Não é isso que eu estou aqui a propor. Este processo tem uma vanguarda, tem a consciência de que deve ter determinados aliados.»(94)

De acordo com a temática específica deste capítulo, perguntaremos agora como se viabilizou esse tal golpe mortal no capitalismo monopolista de Estado, a que Vasco Gonçalves aludia neste trecho?

Iremos responder a esta pergunta, mas regressando aos primeiros meses da Revolução de Abril, quando a grande burguesia ainda se mantinha na convicção de que de modo algum perderia as rédeas do Poder e a balança da Economia.

Pouco antes da tentativa oportunista e reaccionária do professor Palma Carlos, já o secretário de Estado norte-americano Kissinger havia declarado textualmente a um jornalista brasileiro:

«A grande preocupação dos Estados Unidos, neste momento, é Portugal.»(95)

Em 11 de Julho, por seu turno, o então Presidente da República António de Spínola expendera, de conluio com o imperialismo ianque, este solícito diagnóstico:

«A Pátria continua doente; a Pátria continua em perigo.»

Porque, enfim, ele lá sabia! Mas uma série eficaz de medidas democratizantes, tomadas a tempo no seio do MFA, impediram-no de «curar a Pátria», mercê de qualquer decisão pela qual dispusesse homens seus na hierarquia militar e na arena política.

Frustrada a «receita», deram os jornais do dia 15 a notícia de que o novo Governo seria chefiado pelo então Coronal Vasco Gonçalves. E este — que coligadamente se compôs de elementos do PS, PPD, PCP, MDP e militares — tomou posse em 18 de Julho de 1974.

Não vendo, bem contra a sua vontade, azado ou propício o momento para reagir contra aquela concretização, preferiu limitar-se Spínola, no discurso de posse, a reconhecer a verdade:

«Limitar-me-ei, entretanto — resmungou ele — a destacar a estatura moral e intelectual do Coronel Vasco Gonçalves e o facto de ser o cérebro da Comissão Coordenadora do Movimento das Forças Armadas e, como tal, o principal responsável pelo seu ideário.»(96)

Não obstante este insofismável elogio, desde logo se tomou manifesto que as teorias políticas do discurso proferido pelo então Presidente Spínola contrastavam, polarmente, com as do Primeiro-Ministro empossado.

Spínola falou de «excessos», de «inversões de ética», de uma «situação a que urge pôr cobro» (sic):

«O País —disse ele remoendo e trejeitando, pelo menos mentalmente, seu germaníssimo monóculo— viveu nestes últimos dois meses uma intensa experiência sobre o que é e o que não é liberdade e democracia; experiência suficientemente válida para que tenha tomado consciência da gravidade das ameaças que enfrentamos e formado um juízo completamente claro da situação.»

E continuou assim, numa provocadora insinuação :

«Ao constatar a perfeita orquestração dos excessos que se repetem por toda a parte; ao constatar ser impossível atribuir a reacções espontâneas a inversão a que se assiste quotidianamente nas ruas, nas empresas, nas escolas e até nos sectores da função pública de alta responsabilidade social; ao analisar, enfim, todo este quadro de flagrante anomalia, ressaltam à evidência as linhas de força que estão na origem da situação a que urge pôr cobro, pois encontram-se em jogo o prestígio do povo português e a liberdade de que desejamos usufruir.»

Spínola chegou mesmo ao ponto de ter procurado indicar ao empossado as linhas reaccionárias que pretendia ver impostas ao II Governo Provisório:

«Creio não ser necessário documentar quanto afirmo, pois a grande maioria dos portugueses decerto bem o reconhece. Mas não importa que a ameaça seja enfrentada a tempo, pois não poderemos consentir que à sombra da liberdade se instalem ditaduras; nem poderemos consentir que se continue a atribuir apenas às forças da reacção as origens dos desmandos que, a pouco e pouco, começam a revelar o contexto em que se inserem. Não se fez uma revolução para que o poder passasse de um extremo a outro à custa do povo português.»(97)

É, aliás, de Spínola que logo de seguida «arranca» o conhecido argumento americano da «maioria silenciosa». Aliás, ele já fora usado pelo reaccionaríssimo PDC—Partido da Democracia Cristã— e, posteriormente, pelo professor Palma Carlos:

«Ou a maioria silenciosa deste País acorda e toma a defesa da sua liberdade, ou o 25 de Abril terá perdido, perante o Mundo, a História e nós mesmos, o sentido da gesta heróica de um povo que se encontrou a si próprio. E com esse desengano se esfumarão as nossas esperanças na democracia.»(98)

Eram claríssimos os desígnios do general autor de Portugal e o Futuro e de País sem Rumo — Contributo para Historia de uma Revolução. As tensões entre o MFA e Spínola, este último, no final de contas, o mandatário do grande capital e dos interesses monopolistas e colonialistas, foram naturalmente aumentando.

No final do mês de Julho — em 27 — essas tensões agudizaram-se ao máximo.

Nessa data o Movimento dos Capitães impõe ao Presidente da República, bem a contragosto dele, o reconhecimento do direito à independência por parte das colónias. Por isso, o mês de Agosto inicia-se e decorre sob o lema da descolonização enquanto Spínola procura «driblar» a questão, mercê das imprecisões conceptuais da Lei n.° 7/74, de 27 de Julho, relativamente ao que sejam as situações jurídico-internacionais de autodeterminação e de independência. Spínola tenta o impossível para ver se logra satisfazer as esperanças que nele depositam os grandes interesses do imperialismo.

Dentro desta ordem de ideias, compreende-se bem a competência que ele para si reserva no artigo 3.° daquela mesma lei(99) — a qual, porém, no anterior dia 19 de Julho já viera publicada com outra forma e outro número (como Lei n.° 6/74), não atribuindo ao Presidente da República os poderes dessa competência(100). Este representa um indisfarçável aspecto, a nível formal-legal, da luta intestina que vinha a desenvolver-se entre um Movimento das Forças Armadas verdadeiramente progressista e um Spínola ao serviço do imperial-colonialismo.

Mas o processo de libertação e de independência das colónias viria a ser de todo irreversível. Spínola reconhecê-lo-á no seu discurso de 10 de Setembro, em que declara o reconhecimento de Portugal quanto à independência da Guiné-Bissau.

Aí, entretanto, mesmo assim ainda pretende afirmar a sua autoridade (?) de «supremo responsável» (?) pela execução do Programa do Movimento das Forças Armadas. E volta ao argumento que ele queria salvar:

«A maioria silenciosa do povo português terá de despertar e de se defender activamente dos totalitarismos extremistas que se degladiam na sombra, servindo-se das técnicas bem conhecidas de manipulação de massas para conduzir e condicionar a emotividade e o comportamento de um povo perplexo.»(101)

Mas a desajeitada manobra de Spínola era por demais evidente. É a partir deste discurso que vai intensificar-se, dia a dia, a tentativa reaccionária cujo remate será o frustrado lance do 28 de Setembro.

Logo em 29, o Primeiro-Ministro Vasco Gonçalves dá contas do acontecimento numa comunicação feita ao País:

«Nós acabamos de viver um primeiro ataque em forma da reacção ao Movimento do 25 de Abril, nos moldes que, digamos, já são clássicos, porque eles são adoptados pela reacção em todas as partes do Mundo.»(102)

Em todas as partes do Mundo?!... — perguntaríamos, desconfiados de tão vasta generalização.

É oportuno recordarmos aqui as inquietações de Kissinger, esse motor e promotor de infiltrações ciescas. Fica-nos, justificadamente, a pairar a suspeita (a forte convicção) de que desde o início do governo de Vasco Gonçalves o capitalismo internacional se mostrara inquieto (e só inquieto?), intencionando reagir.

É provável, porém, que o espírito ciesco dos norte-americanos ainda se tivesse mantido em relativa tranquilidade durante todo aquele tempo em que Spínola e Nixon contactaram nos Açores, em que Sá Carneiro deu boas notícias de cordialidade patenteada pelos dois presidentes, em que Galvão de Melo foi ao Brasil comparar o 25 de Abril português com o 1 de Abril brasileiro — que é a sinistra data do golpe de Estado desferido contra o Governo de João Goulart.

Spínola passaria, rápido, à História dos emplastros. Com a definitiva intervenção das Forças Armadas a par do desenvolvimento da luta de classes (intervenção que se verificou mais intensamente a partir do 28 de Setembro) tudo se alterou.

Entra-se, decisivamente, no período anti-monopolista. É o momento do importantíssimo texto «O MFA — do político ao económico», em que desassombradamente se põe em causa a ambígua política dos economistas do III Governo Provisório:

«Poder-se-á dizer que neste momento o poder político é detido por forças progressistas da sociedade portuguesa. Contudo, é importante não esquecer que, numa sociedade com as características da nossa, em que predominam as estruturas capitalistas, o elemento económico é o determinante, e este encontra-se, tal como em 24 de Abril, em poder dos grandes grupos capitalistas (capital financeiro) e dos grandes proprietários rurais, que algumas perturbações têm causado ao progresso de democratização em curso.»(103)

Entretanto, se bem que desembaraçada a Revolução de Spínolas e quejandos, em 17 de Janeiro de 1975, chegava a Lisboa Frank Carlucci, o novo embaixador americano.

A CIA não desiste: Carlucci é homem que terá um fácil contactar com as pessoas já que fala o português, e tem um vasto palmarés como sabotador de revoluções.

Tomara-se, na verdade, grande a intranquilidade do senhor Kissinger. E agudizava a sua malícia traiçoeira.

O primeiro cuidado do novo embaixador foi, muito solenemente, o de assegurar a não-ingerência (!?!) dos Estados Unidos nos assuntos portugueses — com o que, aliás, o senhor Carlucci nem sequer «incorreu» em qualquer originalidade. Isso mesmo ele já o dissera nos países por onde tinha andado a sabotar. E a prova da sua hipócrita insinceridade veio até às escâncaras quando, pouco tempo depois, o seu «libérrimo» país recusou o visto de livre entrada a um representante do Partido Comunista Português. Como se sabe, tal como os outros partidos da coligação governamental, pretendia este contactar os emigrantes portugueses para fins eleitorais.

A propósito da vinda de Carlucci para Portugal, ocorreria também um episódio jornalístico que não é despiciendo de contar.

Publicou o vespertino A Capital alguns fragmentos de dois artigos da revista alemã Extra, nos quais se analisava a marcha do plano de golpe, que a CIA preparava para executar no nosso país. Este efectivar-se-ia «antes do fim de Março» (sic), envolvendo o PS e o seu secretário-geral Dr. Mário Soares, o Partido Social-Democrata de Willy Brandt, os embaixadores da República Federal Alemã e dos Estados Unidos da América do Norte em Lisboa, respectivamente Fritz Gaspari e Frank Carlucci, o então secretário de Estado do Planeamento Vítor Constâncio e ainda algumas organizações políticas instaladas em Portugal(104).

Muito barulho causou este estranho episódio jornalístico (?!?). Houve até uma carta de protesto do Dr. Mário Soares, alvitrando tratar-se de

«uma operação montada por serviços secretos rivais [...] para espalhar a confusão e intoxicar os espíritos»(105).

Sobreveio mesmo um comunicado do Conselho de Ministros em que se alertava a necessidade de se evitarem «especulações fantasiosas». E circulou até uma declaração da Embaixada da República Federal Alemã, onde se pretendia que o objectivo daqueles textos era só o de «perturbar» as relações de amizade «entre os dois países»(106).

Como observou, porém, um periódico do tempo, o embaixador Carlucci manteve sempre, a este propósito, um silêncio de sepulcro.

Porquê?

Mas deixemos quietos estes tão controversos acidentes de chancelaria, que mais não nos dizem, além daquilo que toda a gente sabe, quanto a interferências imperialistas atentatórias da independência dos Estados. A realidade nacional interna era ao tempo motivo de sobra para reflexão sobre as causas e consequências económicas e políticas do 11 de Março: foi a Revolução nos campos e nas fábricas, o derrubar da estrutura bancária do capitalismo, as grandes nacionalizações, o controle operário...

País de terras e agricultura enfeudadas e sacrificadas ao capital financeiro, os senhores dos campos terão sido dos primeiros a sentir os ventos de uma nova História. Do apoio do MFA neste domínio já, por exemplo, em 26 de Novembro de 1974 tinha o respectivo «Boletim» publicado palavras como estas:

«A Revolução do 25 de Abril, e agora a melhor clarificação política, após o 28 de Setembro, impõem medidas urgentes neste sector de forma a começar um processo necessariamente complexo de reforma das estruturas agrárias, previsto no programa do MFA e sentido especialmente por aqueles que trabalham a terra.»(107)

Em 2 de Fevereiro de 1975, o Conselho de Ministros anunciava que dias antes —exactamente em 20 de Janeiro —, mas com votos contra do PS e do pepedista Magalhães Mota, se decidira a expropriação das terras de regadio na zona das grandes propriedades.

Este era já o reflexo, no plano do Poder Executivo, da acção directa dos trabalhadores agrícolas no seu movimento de ocupações e reivindicações e que, no plano legislativo, só viria a consumar-se depois do 11 de Março(108).

Dias depois, no jogo das contradições pró e contra-revolucionárias, aliás mais vivamente verificável no seio de um Governo de coligação e de um MFA com progressistas e outros mais ou menos, a 7 de Fevereiro aprovaria o mesmo Conselho de Ministros aquele que veio a resultar no «Programa Económico-Social». Foi um nado-morto, esse texto produzido pela equipa Melo Antunes, em Sesimbra. Na verdade, precipitaram-se os acontecimentos, a grande burguesia tentou o 11 de Março e as consequências que logo se extraíram do frustrado golpe, tornaram de imediato obsoleto aquele Programa.

Desta maneira, viu-se de todo ultrapassada a solução melantunista, que propunha um mero controle estatal relativamente à banca privada(109). Era uma solução controversa, considerada por uns como uma simples proposta de estabilidade social, e por outros como o limite máximo possível da influência pública naquele sector. Resultava patente, nestes dois sentidos, a oposição entre o PCP e o PS, numa divergência que era um evidente sinal da luta de classes a nível dos partidos(110).

Mas podemos apontar mais alguns factos pertinentes ao fenómeno social e histórico da luta de classes em Portugal, nos começos de 1975, os quais fundiram, numa só acção comum, os trabalhadores, o MFA e o Governo.

Em 9 de Fevereiro, por exemplo, realizou-se a Primeira Conferência dos Trabalhadores Agrícolas do Sul, sob estas palavras de ordem, que viriam, mais tarde, a ficar consagradas no n.° 1 do artigo 97.° da Constituição: Liquidação das latifúndios; a terra a quem a trabalha.

Logo seis dias depois, a 15 do mesmo mês e na sequência daquelas palavras de ordem, reuniram-se no Porto e em Beja numerosíssimos pequenos agricultores reclamando um Ministério da Agricultura ao serviço do povo. E os sucessos foram progredindo, na fusão (isto é, na aliança) deste com as Forças Armadas: em 20, também de Fevereiro, teve lugar uma sessão de dinamização do MFA no Sabugo, durante a qual Vasco Gonçalves só falou, praticamente, de Socialismo. Constantes foram então, nesse dia, as referências aos conceitos de «povo», de «trabalhadores», de «democracia económica e social».

Esclareceu, então, Vasco Gonçalves, no Sabugo:

«Eu gostaria também de dizer o seguinte: por Povo nós não entendemos apenas as classes trabalhadoras mais desfavorecidas; nós entendemos também uma pequena burguesia, uns quadros da média burguesia, os homens da cidade e do campo, todos aqueles que não estejam interessados em explorar nas condições que nós todos sabemos como eram antes do 25 de Abril, todos aqueles que não façam da sua vida, não tenham por fim na sua vida, a exploração do Povo português.

«Todos esses cabem na nossa concepção de Povo. Portanto, na nossa concepção de Povo cabem todos aqueles que querem lutar por uma instauração de uma verdadeira democracia económica e social no nosso país. Nós não somos sectários e, quando damos relevo, sobretudo, às classes trabalhadoras, é porque isso está inscrito no Movimento das Forças Armadas.»(111)

Verdade ainda é que, dias depois (em 25 de Fevereiro), aquela que ficou designada por «Comissão dos Oito» (Rosa Coutinho, Pinho Freire, Vasco Gonçalves, Melo Antunes, Costa Martins, Pereira Pinto, Almada Contreiras e Vasco Lourenço) veio a ter os primeiros contactos com os partidos para se dar início ao estudo da forma e do modo de ser de uma estrutura jurídico e institucional do MFA. Logo, porém, na noite de 11 de Março —gorado o golpe de Spínola — uma assembleia revolucionária de oficiais, sargentos e praças decidiu, sem mais ou quaisquer delongas, a institucionalização imediata do Movimento e a criação, também imediata, do Conselho da Revolução(112).

Para o fim deste capítulo darei conta do «estrondo» nacional e internacional (estrondo é, ao mesmo tempo, admiração e temor) espalhado pelo acontecimento de 11 de Março. Por agora, passo em exame a mais importante e imediata das consequências do frustrado golpe.

Refiro-me, obviamente, às nacionalizações, fulcro de uma morte política do poder económico verificada pela primeira vez na História do nosso país.

Na reclamação que apresentou ao Conselho da Revolução em 16 de Fevereiro de 1976, relativa à sua passagem à reserva (a qual veio aparentemente baseada em razões de ordem militar, mas que sem dúvida simulava uma providência de saneamento político), escreveu o General Vasco Gonçalves a propósito da acção do IV Governo Provisório no domínio económico:

«Além da nacionalização da Banca e dos Seguros, realizada pelo Conselho da Revolução, é declarada por este a opção socialista da revolução portuguesa e definidas algumas orientações gerais para as grandes reformas económicas de fundo a levar a cabo, procurando identificar a classe trabalhadora com um projecto de construção do Socialismo. Reveste especial destaque a proclamação do princípio do controle organizado da produção pelos trabalhadores com objectivos de produção e eficiência.»(113)

Mas por que motivo cito esta passagem?

Ela dá-nos a ideia de uma conjuntura política, onde as nacionalizações se integram, com vista à transformação estrutural da sociedade portuguesa. Pelo menos para mim, não obstante a sua «realização» se atribuir, neste texto, ao Conselho da Revolução, o motor íntimo das nacionalizações constituiu-o Vasco Gonçalves. E não seria difícil explicar desenvolvidamente porquê. A minha ideia é simples, mas julgo que exacta.

Basta lembrar — repare-se — que, sendo Vasco Gonçalves e Melo Antunes os dois teóricos do MFA, o segundo foi a cabeça responsável do «Programa Económico e Social», texto objectiva e subjectivamente alheio às grandes nacionalizações — texto, enfim, que a noite de 11 de Março converteria de repente em nada.

As medias tomadas a partir do dia 11, maxime a nacionalização da banca, constituíram, evidentemente, saltos bruscos. Só por si, eles ofenderiam todas as cadências de todos os ritmos — isto é, a própria ideia de um ritmo plácido.

Saltos destes impõem-nos os caminhos a cada passo agudizados das revoluções. Por isso mesmo, considerou Vasco Gonçalves na sua longa entrevista do volume colectivo Companheiro Vasco:

«Devemos (...) ter consciência de que as medidas que se iam tomando eram, na realidade, muito avançadas. B certo que apareciam num contexto cada vez mais agudo da luta de classes...»(114)

É verdade, cumpre dizer, que já antes da aprovação do «Programa Económico e Social», de Melo Antunes — o qual apenas se limitava, como sabemos, a um relativo controle estatal da banca — fora pedida a sua nacionalização. Tinha sido autor da iniciativa, muito compreensivelmente, o Sindicato dos Bancários do Distrito de Lisboa: ninguém melhor do que estes trabalhadores se encontraria em reais condições de bem conhecer, através da movimentação diária de contas e dinheiros, aquilo que Abril podia esperar de banqueiros e gente a eles semelhante ou atrelada(115).

Uma vez efectivada tal medida — em 14 de Março de 1975 — mediante o Decreto-Lei n.° 132-A/75, do Conselho da Revolução, Vasco Gonçalves justificou-a em entrevista que deu ao Jornal de Notícias do dia 15:

«A banca estava interessada em que a Revolução de 25 de Abril fosse esmagada.»

E como lhe perguntassem qual o significado político e social desta nacionalização, o então Primeiro-Ministro do III Governo Provisório respondeu:

«Significa que o dinheiro do povo, depositado nos bancos, vai deixar de servir para especulações fraudulentas de uma minoria privilegiada, para operações em benefício de um grupo minoritário, operações essas feitas sobretudo dentro dos seus próprios interesses; vai passar a servir as verdadeiras necessidades do povo, no desenvolvimento da agricultura, da indústria, do comércio interno e externo. O Estado fica com possibilidades de orientar a política de crédito concretamente. Fica com a possibilidade de aumentar o crédito para aqueles sectores onde ele é mais necessário, para o desenvolvimento global do nosso País.»(116)

Os considerandos daquele Decreto-Lei n.° 132-A/75, por meio do qual o Conselho de Revolução nacionalizou a banca, identificavam — significativos — uma situação de crise: a necessidade de se concretizar uma política económica anti- monopolista que servisse as classes trabalhadoras e as camadas mais desfavorecidas da população; a circunstância de o sistema bancário, na sua função privada, se ter caracterizado como um elemento ao serviço dos grandes grupos monopolistas; o facto de o mesmo sistema vir constituindo «a alavanca fundamental do comando da economia»; e a evidência dos «acontecimentos do dia», patenteando eles, claramente, os perigos que para «os superiores interesses da Revolução» existiam, acaso não fossem tomadas medidas imediatas.

A nacionalização da banca valeu, sem sombra de dúvida, a providência mais revolucionária das tomadas entre nós desde a queda do fascismo em 1974. Ninguém de boa fé, e com um mínimo de sentido histórico e político, põe isto em dúvida.

Mais ainda: com a nacionalização da banca o poder político autonomizou-se e sobrepôs-se ao poder económico. Deste modo dir-se-ia ficar ferido de morte, em Portugal, o capitalismo monopolista de Estado.

«Penso que hoje é um dia histórico para o nosso povo. O 14 de Março — começaria Vasco Gonçalves por dizer para o matutino portuense — fica grande na História do nosso povo, como uma data que corresponde a um passo muito importante dado na sua libertação, na via do progresso, na via do País dominar os seus próprios recursos. Portanto julgo que hoje é um dia de alegria para todos, menos para aqueles que beneficiavam largamente com o sistema anterior vigente.»(117)

Em certo passo desta entrevista operou, entretanto, o Primeiro-Ministro Vasco Gonçalves, aliás articuladamente, a conjugação de três ideias:

Preceitua o n.° 1 deste artigo:

«Todas as nacionalizações efectuadas depois de 25 de Abril de 1974 são conquistas irreversíveis das classes trabalhadoras.»

Trata-se de um comando jurídico-constitucional da maior relevância para a democracia social e económica; mas decerto que, precisamente por isso, ele é daqueles que de forma mais descarada têm sido (vêm sendo) desrespeitados pelo «Estado de Direito» (!?!) dos Governos ditos constitucionais.

Em matéria de Reforma Agrária, por exemplo, não obstante a nacionalização geral de terras de regadio de determinados perímetros (Decreto-Lei n.° 407-A/75) e das portarias expropriativas a que o artigo 9.° daquele Decreto-Lei atribuiu natureza e efeitos de nacionalização, os actos de «desexpropriação» ou de «desnacionalização» têm sido espectacularmente monstruosos.

Os ensaios de afrontosa inconstitucionalidade vão campeando, entretanto, noutros domínios, como foi o caso recentemente levado a cabo pelo catastrófico governo Mota Pinto. Este preparava, descaradamente, (contra as imposições do Decreto-Lei n.° 135-A/75, de 15 de Março), um diploma «legal» (?!) com vista a desnacionalizar uma companhia de seguros. Era um escândalo mais que passaria em silêncio, não fosse a notícia que deu dele o semanário O Jornal(118).

Relativamente ao artigo 83.° da Constituição da República, escreveram Vital Moreira e Gomes Canotilho:

«Norma preceptiva imediata, o alcance directo do n.° 1 está na proibição de desnacionalização em relação aos bens nacionalizados, desde 25 de Abril de 1974.» E esclareciam: «Por desnacionalização deve entender-se quer a revogação dos actos de nacionalização —salvo, obviamente se inconstitucionais ou ilegais— quer a alienação das empresas ou explorações nacionalizadas. Mas a irreversibilidade das nacionalizações, como conquista dos trabalhadores, há-de incluir também a proibição de reprivatização integral ou parcial das empresas nacionalizadas} mesmo que por transferência para entidades privadas apenas de direito de exploração sem transferência do direito de propriedade.»(119)

Eis uma boa leitura para a legião de traidores da Revolução de Abril e sabotadores da economia nacional, que por aí anda impunemente! Talvez ela seja mesmo um motivo de séria meditação (possível?!?) para aquele Dr. Mário Soares que declarou, aquando da apresentação do II Governo Constitucional, que o objectivo político de momento era a recuperação económica (?), não a construção do Socialismo (?!).

Falando assim, deste modo arrepiante da razão de ser do seu próprio partido, o secretário-geral do PS não fez mais do que dar a entender que o Socialismo será uma teoria, uma doutrina, uma política incapaz de recuperar a economia. Temos, todavia, de nos esquecer que foi perante um «socialismo» (?) descrente de si próprio que a Direita, a reacção, todos os Nobres da Costa e pavoneante legião dos Mota Pintos que por aí crescem, se atreveram já e continuam a atrever-se a tanto.

Intencional, evidentemente, é a integração (neste texto sobre Vasco Gonçalves) de um apontamento jurídico relativo à irreversibilidade das nacionalizações. Não se trata só de reagir contra a traição — aquela traição que levou Chévènement, do Partido Socialista Francês, a dizer no Congresso de 1977:

«Nem morrer como no Chile nem trair como em Portugal.»

Há, na verdade, motivos prementes, motivos de todos os momentos, a aconselhar-nos que clarifiquemos os problemas fundamentais da Revolução. De todos os cantos, com efeito, os «reprivatistas» espreitam pelas portas ou imaginam estratagemas de formas possíveis, por meio dos quais eles possam bloquear e inutilizar o 25 de Abril.

Mas falava Vasco Gonçalves da nacionalização da banca. Mesmo em cima do acontecimento ele enunciaria assim o princípio (hoje constitucional, repito) da irreversibilidade:

«Não se transformam sistemas políticos, económicos e sociais, com varinhas mágicas ou de condão. De maneira nenhuma! Um futuro duro temos à nossa frente. Vamos ter de o enfrentar. Vamos ter novas dificuldades porque aqueles que não estão interessados na nacionalização da banca portuguesa vão mover-nos ataques a todos os níveis, externo e interno. O povo português tem de se preparar para uma vida dura, para uma vida de sacrifícios, mas são sacrifícios feitos em seu próprio beneficio. Espero que este exemplo da nacionalização da banca mostre bem que o Movimento das Forças Armadas deseja concretizar — firmemente concretizar— os passos do seu programa. A nacionalização da banca é o seu primeiro passo firme e irreversível daquela alínea que diz: uma política anti-monopolista ao serviço das classes mais desfavorecidas do País.»(120)

Insere-se aqui uma dúvida cuja dissipação, entretanto, nos importa. Se ela subsistisse, nem uma decantação rigorosa permitiria que os espíritos de muita gente se libertassem do peso fundo do equívoco.

Vejamos.

A irreversibilidade das nacionalizações, é necessário que se entenda, não significa um desejo político sem outro futuro que elas próprias. Por outras palavras: as nacionalizações não se consumam na instauração de um capitalismo de Estado. Elas constituem um meio, não um fim. Deste modo, a irreversibilidade que lhes respeita não sofre prejuízo algum quando se transfigura pelo seu devir.

Repare-se: todo o processo de apropriação colectiva se mostra dominado, constitucionalmente, pela solução de se conceder o fundamental do poder económico às cooperativas (artigos 84.° e 97.° da Constituição da República) e aos colectivos de trabalhadores (artigos 90.° e 97.°). Ninguém, nem jurídica nem politicamente falando, e sob pena de cometer grave «despautério», diria que nestas normas se encontram ou vislumbram quaisquer sinais, ou mesmo sequer gérmenes, de um «capitalismo de Estado». Para lá do sentido abstruso de tal expressão, semelhante tese nada, absolutamente nada, colheria de real.

Em momento algum, é preciso que se acentue bem, a Constituição de 1976 refere a existência de uma propriedade estatal. Acontece mesmo que, segundo ela, «as unidades de produção geridas pelo Estado e por outras pessoas colectivas públicas devem evoluir, na medida do possível, para formas autogestionárias» (n.° 3 do artigo 90.°); e que, em geral, «a propriedade social tenderá a ser predominante» (n.° 1 do mesmo artigo); e até que o n.° 2 desse preceito considera as nacionalizações — eis o que mais especificamente importa salientar— uma das condições de desenvolvimento daquela forma de propriedade (não estatal, portanto) .

Numa resposta ao jornal El Sol de Méjico, de 14 de Maio de 1975, Vasco Gonçalves chegava, muito lucidamente, a ironizar sobre a incoerente ideia de um «capitalismo de Estado». É que semelhante «categoria» teórica implica uma contradição em si mesma: por um lado o capitalismo designa um sistema social em que o capital é propriedade 'privada', mas pelo outro, à noção de Estado prendem-se as noções de bens e serviços públicos(121). Eis, na verdade, uma contradição irremediável.

Patenteando a sua honestidade intelectual e política, declarou Vasco Gonçalves ao periódico mexicano:

«Começo por dizer que não compreendo que realidade se pretende caracterizar com a expressão «capitalismo de Estado»; conheço a expressão «capitalismo monopolista de Estado»; como expressão caracterizadora de uma fase de desenvolvimento do capitalismo; e esta fase, com as nacionalizações já feitas e com as que se irão seguir, está em vias de ser ultrapassada em Portugal. É pois, em minha opinião, cientificamente incorrecta a expressão «capitalismo de Estado» e não corresponde a um risco para a Revolução Portuguesa.

«Além disso convém não esquecer que o órgão de direcção política, o Conselho da Revolução, já afirmou que a Revolução Portuguesa há-de ser sobretudo obra dos trabalhadores. Assim, quando falo em controle da produção pelos trabalhadores, não tenho em mente um qualquer perigo de «capitalismo de Estado», mas tenho antes presente na consciência que a verdade de uma Revolução passa sobretudo pelo papel de direcção que os trabalhadores deverão ter na Revolução.»(122)

A natureza intermediária do capitalismo de Estado resulta, como bem se sabe, de numerosos passos da obra ao mesmo tempo teórica e prática de Lénine(123). Pois não obstante este ensinamento, o esquerdismo contra cujos malefícios tão claramente advertiria o ponto 1.4 da «Análise da Situação Política», da segunda semana de Julho de 1975, desde logo rompeu com um impertinente coro de protestos.

Obedientes a palavras de ordem da reacção e da extrema-direita, começaram os esquerdistas, com efeito, a fazer as suas gratuitas acusações: que as nacionalizações eram o caminho para a «sovietização» do País; que a propriedade dos meios de produção deveria pertencer aos trabalhadores e não ao Estado; que, enfim, a propriedade estatal falseava o Socialismo.

O MFA fora, aliás, o primeiro a referir o carácter transitório das nacionalizações. Isto, designadamente, quanto à nacionalização da banca:

«As nacionalizações não são uma fórmula mágica, pois constituem apenas um acto político-jurídico, e seria utópico pensar que elas iriam decidir e garantir o nascimento de um novo modo de produção. Sendo o socialismo caracterizado pela posse social dos bens de produção, cabe aos trabalhadores desde já participar na definição das etapas de transição para a economia socialista, através do controle organizado da produção para objectivos de eficiência, devidamente coordenados com os órgãos centrais de planeamento, nos quais deverão estar representados. Quer isto dizer que a socialização das empresas nacionalizadas deverá ser agora a meta a atingir. E que deverá ser feita exactamente à velocidade que as condições concretas da sociedade portuguesa permitam, na medida em que a consciencialização política dos trabalhadores os impulsione a tomarem nas suas mãos os destinos da economia. Terá de haver uma grande participação na base, terão os trabalhadores que, a cada instante, ter presente quais os objectivos fundamentais e os secundários, terão os trabalhadores que meditar naquilo que são reivindicações justas, isto é, os trabalhadores terão de se mobilizar para a construção da sociedade socialista pelo aumento da produtividade e pela luta contra os terríveis vícios herdados da sociedade exploradora e opressora que vivemos desde há meio século.»(124)

Em 14 de Maio, seis dias antes da publicação deste texto, dera-se um passo mais para a conquista do poder económico pelo poder político. Refiro-me às nacionalizações das indústrias do Tabaco, do Cimento e da Celulose. Depois, vieram em Junho, as da Carris e do Metropolitano. E, decorrida mais outra semana, procedeu ainda o Conselho da Revolução à nacionalização de cinquenta e quatro empresas ligadas ao sector rodoviário do Norte e do Sul do País.

Toda esta acção tinha, decerto, um desiderato económico insofismável. No ponto 2.2.1 da «Análise da Situação Política», explicavam-se os objectivos daquelas medidas, bem assim o seu volume. Por uma parte, tinha-se em vista a «eliminação dos privilégios da grande burguesia e outros sectores favorecidos». Por outra, a «eliminação do poder económico e privilégios dos grandes grupos monopolistas e latifundiários e a expropriação colectiva dos meios de produção»(125).

O povo, oprimido como fora por cinco décadas de fascismo, ansiava ver feita a Revolução e definida e solucionada esta em meia dúzia de dias. Vasco Gonçalves acalentava-lhe objectivamente a esperança, mas recomendava serenidade, que é coisa compatível com a firmeza e a tenacidade.

Vejam-se as considerações que fez durante a Conferência de Imprensa de 8 de Abril de 1975, na Fundação Gulbenkian:

«Ora nós procuramos que os passos que vamos dar na via socializante, a caminho do nosso objectivo final, sejam passos adequados. Nós não desejamos nem que sejam acelerados, nem que sejam retardados.»(126)

Isso mesmo tornaria a afirmar o Companheiro General na resposta que deu ao Jornal de Lafões, em 24 de Junho seguinte:

«Nunca houve nenhuma revolução no mundo que, num ano, tivesse cumprido todas as suas intenções e promessas. No nosso caso, além das dificuldades normais do desenvolvimento de qualquer processo revolucionário, viemos encontrar um país degradado por quarenta e oito anos de fascismo e opressão.»(127)

Que se andava devagar, questionavam uns. Outros pensavam o contrário.

Neste último ponto de vista situaram-se (vítimas alguns do seu histórico erro, outros do seu receio burguês, outros ainda do seu orgulho) aqueles militares que vieram a constituir o Grupo dos Nove. Eles foram, no final de contas, os contemporizadores, os conformados com o stato quo da burguesia — ainda instalada ou disposta a reinstalar-se.

Em Março, numa entrevista publicada no dia 30 pela revista espanhola Câmbio 16, Vasco Gonçalves tinha dito, categórico:

«As condições objectivas, e as de carácter subjectivo, marcarão os ritmos do processo.»(128)

Face às nacionalizações, porém, o «Documento dos Nove» — típica construção só intelectualista, edifício superstrutural, sem estrutura básica, massa de intenções desgarradas do concreto condicionalismo da luta que se travava— veio alegar e pretender que o seu ritmo era demasiadamente rápido.

Poderíamos falar mais duramente deste «Documento», aliás sinceramente saudado por um ror de ingénuos, pelo grémio dos castrados e hesitantes, por toda uma legião de «tecnocratas» e de inveterados calculistas. Poderia dizer que, talvez coincidentemente, por serem da quantidade que foram, o «Documento dos Nove» constituiu o primeiro Nono Termidor da Revolução de Abril — que o segundo (quem disso terá hoje, honestamente, quaisquer dúvidas?) foi esse 25 de Novembro, intentador maquiavélico, não do termo de desatinos e ilusões, mas do período mais revolucionário da nossa Revolução.

Por agora, vejamos antes a questão do ritmo, mas nas palavras mais recentes do General.

«A revolução democrática, anti-imperialista e anti-monopolista — observou Vasco Gonçalves — é que tem de criar, entre nós, as condições necessárias à passagem para a revolução socialista. E, quanto mais avançada for a revolução democrática, tanto mais depressa se aproximará a revolução socialista.»

«Esta sua última frase — replicou-lhe, como entrevistador, Carlos Coutinho — recorda-me uma controvérsia que está, ainda hoje, longe de serenar: é a questão do ritmo do processo revolucionário.»

E esclareceu de imediato o Companheiro General:

«Creio que uma crítica ou uma autocrítica, em termos fundamentados ou definitivos, não pode ser feita por enquanto. Além de não dispormos ainda do necessário distanciamento histórico, estão também por realizar análises globais e especializadas do complexíssimo fenómeno político desencadeado em Portugal com o 25 de Abril. Não é da minha natureza proferir sentenças. Mas não me desagrada reflectir. Como toda a gente sabe, a instauração dum regime verdadeiramente democrático, nas condições em que tínhamos emergido do fascismo, implicava que o novo poder pusesse a economia nacional em condições de servir fundamentalmente o nosso povo. Em consequência de tudo isto, era inevitável que, ao longo dessa etapa democrática, aparecessem e se desenvolvessem novas relações de produção. Era inevitável que as relações de produção decorrentes, por exemplo, das nacionalizações e da Reforma Agrária do Sul, fossem precisamente o que são, ao eclodirem com expressão de vanguarda de uma política anti- monopolista e anti-latifundiária.»(129)

Um pouco mais adiante, pondo — como se costuma dizer— o dedo na ferida, reencontraria Vasco Gonçalves os dados exactos do problema. É, reafirmada uma vez mais, a sua resposta ao «Documento dos Nove»:

«Entre nós — rematou ele — a questão do ritmo, as criticas ao “ritmo acelerado” da revolução foram sendo postas à medida que se definia o caminho das profundas transformações sócio-económicas que deviam caracterizar a via de transição para o socialismo. Falou-se de um “ritmo para a revolução”, de “nacionalizações que se sucediam a um ritmo impossível de absorver sem grave risco de ruptura do tecido social e cultural preexistente”, etc., etc. Tais críticas ficaram sempre no domínio da falácia, do verbalismo, da contestação infundamentada. Nenhuma crítica científica, assente em dados concretos, demonstrativa, explicativa, com carácter de regra, foi produzida por ninguém. De resto, a experiência decorrida com a adopção de medidas como as nacionalizações, e Reforma Agrária e a intervenção do Estado nas empresas mostra ainda hoje que esse é que era o caminho correcto. É evidente que, quando se operam transformações económico-sociais profundas, as “rupturas do tecido social preexistente” são inevitáveis. Aliás, esse é um dos objectivos das próprias transformações, quando a meta em perspectiva é o socialismo. Se o “tecido social” anterior não fosse rompido, que transformações é que haveria de facto, e qual seria o seu sentido? Só a preocupação de manter as relações económico-sociais características do Portugal do tempo do fascismo pode levar ao temor da ruptura do “tecido social” desse mesmo fascismo. Que significa a “ruptura do tecido social preexistente” nos campos do Alentejo e Ribatejo, nas terras da Reforma Agrária? Não terão os assalariados rurais e pequenos e médios camponeses dessas regiões demonstrado pela prática, ao longo de mais de um ano, que se encontravam em condições de absorverem as transformações económicas e sociais profundas que se realizaram à sua volta? Não foram eles, aliás, o sujeito de todas essas transformações?»(130)

São por demais conhecidos os termos em que o «Documento dos Nove» — ou «Documento Melo Antunes» em atenção à sua autoria — acusou, entre outros pontos, a política das nacionalizações publicada pelo Governo, atribuindo-lhe um ritmo desajustado da realidade.

Afirmava-se nele, por exemplo:

«Lutam (os nove signatários) por um projecto político de esquerda, onde a construção de uma sociedade socialista — isto é, uma sociedade sem classes, onde tenha sido posto fim à exploração do homem pelo homem— se realize aos ritmos adequados à realidade social concreta portuguesa, por forma que a transição se realize gradualmente, sem convulsões e pacificamente.»(131)

Dados palpáveis, que se disseram concretamente contrapostos e analisados em oposição à política de Vasco Gonçalves, na verdade nenhuns se encontram no «Documento dos Nove». Vasco Gonçalves tinha razão. As críticas que lhe eram feitas modelavam-se, a maior parte das vezes, pelas comparações inconsequentes, pelas figuras de mera (mas frouxa) retórica. E, de um modo geral, as soluções que o Grupo dos Nove propunha eram, todas elas, puramente voluntaristas.

Isto, como já atrás acentuei, constituía o reflexo de uma tendência exclusivamente formal, irrealista, do processo revolucionário português, a qual nunca poderia conduzir a nada. Ou por outra: como grande erro histórico que o «Documento dos Nove» foi, conduziria por força ao que conduziu.

«Trata-se de construir uma sociedade de tolerância e de paz, e não uma sociedade aberta a novos mecanismos de opressão e de exploração, o que não pode ser feito com a equipa dirigente no Governo, ainda que parcialmente renovada, tendo em vista a sua falta de credibilidade e a sua manifesta incapacidade para governar»

— pretendia muito linearmente o «Documento dos Nove»(132). Mas os resultados deste ataque assim tão idealisticamente feito contra Vasco Gonçalves não se fizeram esperar.

É certo que os Nove pertenciam ao núcleo de elementos iniciais do Movimento das Forças Armadas. Quanto à sua opção ideológica e à sua meta política, era também certo que eles se pronunciavam como declaradamente favoráveis ao Socialismo. Estes parâmetros, porém, de modo algum obstaram a que se lhes «colassem» todas as forças reaccionárias e contra-revolucionárias, numa muito passageira unidade de ruptura (agremiando, evidentemente, o PS) cujo escopo foi o do derrube do Companheiro General.

Sem dúvida, Vasco Gonçalves viu o extraordinário perigo em que o ataque, que lhe era dirigido, colocava a sua política de intrépido e resoluto xeque ao poder económico do grande capital. Daí, o não ter perdido tempo.

Foi assim, precisamente, que o V Governo, não obstante a precariedade e a brevidade da sua existência, ainda nacionalizou a CUF em 12 de Agosto, gigantesco grupo de cento e cinquenta empresas, só por si controlador de 10 % do produto nacional bruto de Portugal e de mais de um décimo do capital social de todas as empresas existentes no País(133). Esta medida, e as circunstâncias de «emergência» política em que foi decretada, dá-nos a ideia exacta do carácter intrépido de Vasco Gonçalves.

À beira de ser derrubado pelo complot interno-externo contra si organizado, ele deu-nos ainda este magnífico exemplo da sua indómita coragem, do seu afã revolucionário. Compreende-se bem que o Decreto-Lei n.° 532/75, de 25 de Setembro, por meio do qual a CUF foi nacionalizada, haja sido saudado como a morte simbólica do capital monopolista em Portugal. No Barreiro, capital do reino de Alfredo da Silva, toda a população saiu para as ruas e a bandeira nacional foi patrioticamente içada numa das suas praças.

A nacionalização da banca constituiu um primeiro passo para, dominando o crédito, conseguir o poder político revolucionário dominar a alta burguesia. Contudo, se bem que as nacionalizações posteriores se tivessem definido segundo uma fronteira-limite («... isto não significa que nós vamos nacionalizar toda a economia portuguesa, que vamos acabar com a iniciativa privada» — tinha dito Vasco Gonçalves, em 14 de Março, ao Jornal de Notícias) o eco da política do Companheiro General passou a constituir uma espécie de «terror», tanto a nível interno como no plano internacional.

Esta era uma Revolução a sério. Por isso mesmo ela resultava inquietante e grave para os senhores e empórios dos grandes interesses, bem assim para os respectivos apendiculares e pequena burguesia lacaia ou desconsciencializada.

A nível interno pode evocar-se, por exemplo, a inquietação «europeia» do Dr. Mário Soares. Recordo o testemunho de Carlos Coutinho, na entrevista de Companheiro Vasco:

«Lembro-me perfeitamente do malogro que constituiu para certas esperanças do PS o desfecho do 11 de Março. Quem tivesse visto, como eu vi, o pesado ar de derrota com que o Dr. Mário Soares apareceu na manifestação popular dessa noite, ficaria sem dúvidas quanto a este malogro.»(134)

E a nível internacional, qual foi o volume do estridor?

Ao tempo constituiu Portugal, por esse mundo fora, um simultâneo e enorme motivo de júbilo, de pavor e de preocupadas interrogações. E também até da curiosidade de pensadores e filósofos. Sartre e Louis Althusser, aí vieram ambos ao nosso país, a ver e a analisar de perto os acontecimentos revolucionários.

E a Imprensa?

O Borba, de Belgrado, e o Berliner Zeitung, de Berlim — ambos do dia 13 — referiram-se às implicações imperialistas do golpe spinolista de 11 de Março:

«A preocupação de certos meios do Pacto do Atlântico quanto ao futuro de Portugal —escreveu-se no Borba — tomou proporções inquietantes nestes últimos tempos (...). As acusações feitas à embaixada dos Estados Unidos abrirão um delicado processo de ajustamento das relações de Portugal com os seus aliados atlânticos e, deste modo, um processo de reforço da soberania e independência de Portugal.»

E o Berliner acrescentava:

«Uma série de potências imperialistas prestou ajuda maciça, propagandística e financeira, na preparação da intentona. Políticos da República Federal da Alemanha, entre os quais o vice-presidente do Parlamento, Von Hasse, admitiram-no abertamente. A fuga de alguns dirigentes do golpe para a embaixada da RFA não pode ser considerada uma pura casualidade.»

Jornais de quadrantes muito diferentes, todos também do dia 13, consideraram o 11 de Março, ou um acto de desespero cometido por forças conservadoras vítimas de maquiavélicas manobras de esquerda, ou uma precipitação em que teria incorrido «a direita mais estúpida do mundo» (sic).

Segundo o Rude Pravo, de Praga, a versão real teria sido esta:

«Forças reaccionárias, que em voz alta proclamam por toda a parte o alegado medo dos comunistas às eleições, mostraram a sua própria falta de confiança na evolução democrática do país, o seu medo do Governo. Pretendem assim virar o resultado das eleições, sem se importarem com o resultado delas, um mês antes até da sua data.»

Mas para Le Fígaro a hipótese teria sido outra:

«A um mês das eleições, quando o escrutínio deveria assegurar-lhes, logicamente, uma confortável maioria legal, os adversários do comunismo tentaram em Portugal um pronunciamento mal preparado, que fracassou de maneira lamentável (...). Duas interpretações dos acontecimentos são possíveis: ou a direita portuguesa é a mais idiota do mundo, ou os “duros” do regime comportaram-se com surpreendente maquiavelismo, para eliminar da cena política os seus adversários.»(135)

De qualquer modo, enquanto Le Monde procurou desenhar a verdadeira imagem do Portugal 75

— «após o 11 de Março, Portugal aproxima-se um pouco mais da sua verdadeira imagem, um país que se quer independente das grandes potências e sonha edificar um socialismo à portuguesa»

—, o britânico The Guardian, de Manchester, traduzia, a dois dias do golpe frustrado, a extrema inquietação do mundo capitalista perante a Revolução de Abril:

«A não ser que os próximos dias tragam novas informações sobre o estado das coisas em Portugal, a rebelião de anteontem por parte de para-quedistas e unidades da Força Aérea continuará a parecer, como agora parece, um acto de desespero político desnecessário e autodestruidor (...). A evolução de Portugal é motivo de preocupação para toda a Europa ocidental.»

Com o 11 de Março — que o senhor general Galvão de Melo, com a sua singularíssima «acuidade» (?), qualificou de «uma saloiada» — ganhara a Revolução, efectivamente, um poder político em vias de se autonomizar da classe dominante própria dos países capitalistas.

São de Vasco Gonçalves estas palavras sobre o acontecimento:

«O 11 de Março, antes de mais, mostrou claramente que a democracia em Portugal era incompatível com a existência dos monopólios. Mas esse golpe fez também que a correlação de forças se definisse nitidamente a favor das correntes democráticas e progressistas, civis e militares. Do anterior sabia-se que a nacionalização da banca, dos seguros, dos sectores básicos da nossa economia era tecnicamente realizável. Faltavam apenas as condições políticas e sociais. Isto, claro, sem perder de vista o boicote permanente dos países capitalistas da Europa e dos Estados Unidos e o seu reflexo nas nossas relações externas. Ora, com a nova arrumação de forças que o 11 de Março determinou, isto é, com as tais condições políticas e sociais necessárias — e que podiam ter surgido noutra altura— o processo das nacionalizações foi naturalmente desencadeado. Porque a verdadeira questão, que já antes se punha, era esta: realizar ou não realizar as transformações profundas necessárias à instauração de uma democracia avançada, a caminho do socialismo, estar ou não estar a favor do movimento da sociedade no sentido da concretização dos interesses das massas trabalhado- das e do povo.»(136)

Mas o capital «não chegou a morrer», apesar do fundo golpe que lhe foi desferido pelas nacionalizações, pela Reforma Agrária, pelo controle operário. É uma hidra cujo renascer de cabeças exige, em cada momento, a acção de um Hércules que venha matá-la.

Na «Análise da Situação Política» sintetizavam-se, entretanto, as formas por que vinha então a realizar-se «o ataque do capital» contra a Revolução(137).

Muitas delas, sem dúvida, pertencem já à crónica dos factos passados. Precisamos, porém, de ter (hoje) a consciência certa e segura de que as suas maléficas investidas contra o muito que subsiste da Revolução de Abril, se não são contidas, trar-nos-ão fundas contrariedades e largos prejuízos para a democracia social e económica. Precisamos de ter, enfim, a consciência de que a luta de classes é (e será) a realidade irrecusável numa sociedade em que as classes existem.

Vasco Gonçalves insistia, ainda há poucos meses, nesta ideia. Em «Primeiros-Ministros analisam Portugal de Abril», que o Diário de Lisboa publicou nos finais do Verão de 78, o Companheiro General declarou assim:

«Não é possível conciliarmos a oposição entre o capital monopolista e os latifundiários, por um lado, e os interesses das massas populares, das massas trabalhadoras e também, claro, da pequena e média burguesia, por outro.»(138)

Esta é a realidade insofismável — realidade por demais visível, quando se coloca o problema das relações entre o poder económico, centrado nas mãos da classe dominante, e o poder político. Dizermos que «a luta continua» não nos pode limitar, portanto, ao enunciado corriqueiro de uma palavra de ordem. Todas as conclusões de uma lógica política correcta apelam, assim, para uma vigilância popular em todos os sentidos.

Acaso não estará o fascismo a tentar o seu trágico regresso pelas mãos da social-democracia?

E da democracia (dita) cristã?

Dos governos que desprezam a legalidade democrática?

Dos Mota Pinto, dos Proença de Carvalho, dos Vaz de Portugal e outros?

Enfim, e numa palavra, pela mão e pela manifestação dos grandes interesses?!

Note-se, porém, que seria pouco provável — se o deixássemos, ao fascismo, vir — que ele assumisse a orgânica que teve no terrorismo policial pidesco e salazarista. A via tecno-policiária de hoje é, evidentemente, muito outra. E não nos implica num esforço difícil o «suspeitarmos» de que já existe uma moderna tecnologia da repressão, toda ela posta ao serviço do capitalismo europeu e do imperialismo norte-americano.

Eis, tristemente, um vasto e labiríntico domínio para as subtilezas de um estudo sociológico. Valendo a continuação da ditadura do poder económico da burguesia, um fascismo assim não seria entre nós menos violento, não obstante o «suavizar» de todos os seus pressurosos disfarces.


Notas de rodapé:

(83) Palavras do deputado José Luís Nunes, segundo o Diário das Sessões, n.° 128, p. 4258: «... se [...] todos os senhores deputados votaram de coração puro e sem qualquer espécie de pensamento reservado, esse artigo sobre os limites materiais da revisão, em Portugal terminou qualquer possibilidade de ser dado um golpe de Estado Constitucional.» (retornar ao texto)

(84) Soares Martinez, Comentários à Constituição Portuguesa de 1976, p. 293, nota 1 e 294, idem. (retornar ao texto)

(85) Neste sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, anotada, p. 494, e Amâncio Ferreira, «Reflexões sobre o Poder Constituinte em Portugal», na revista Fronteira, n.° 43, Julho de 1978, pp. 87-98. Contra: Jorge Miranda, A Constituição de 1976, Livraria Petrony, 1978, pp. 238 e segs. (retornar ao texto)

(86) Francisco Sá Carneiro. (retornar ao texto)

(87) Marcelo Caetano, Constituição Portuguesa, Lisboa, 1978, p. 157, onde sustenta que o respeito dos princípios que apontam a transição para o socialismo «só pode ser imposto pela permanência, para além do chamado período de transição, da ditadura do Conselho da Revolução» (sic). (retornar ao texto)

(88) Um exemplo muito recente deste ensaio é-nos noticiado, insuspeitadamente, pela revista Business Week, ligada à alta finança internacional, em cujo n.° 22, de Janeiro de 1979, lemos: «Os capitalistas portugueses estão de regresso a casa. Uma das famílias mais poderosas do país, os Mellos, alguns dos quais estiveram presos e depois se exilaram [...], encontram agora estendida a passadeira para a sua chegada — graças, em parte, ao aperto provocado na economia do país por um programa de austeridade do Fundo Monetário Internacional. O veículo do seu bem sucedido regresso é a Estudos Técnicos e Financeiros [...], empresa em que estão associados à Morgan Guaranty Trust Co. e ao Deutsche Bank. A expansão da Morgan-Deutsch-Mello (M-D-M) faz crer que poderá ela vir a rivalizar com o império que os Mellos possuíam antes da revolução. (retornar ao texto)

(89) In Companheiro Vasco, p. 79. Sublinhado meu. (retornar ao texto)

(90) Eduardo Lourenço, in Opção, n.° 86, de 15 de Dezembro de 1977. A frase transcrita inseria-se no seguinte contexto: «A falência política não se pode imputar apenas a Mário Soares, mas a um PS tornado “a sua coisa”, sem que por isso adquirisse a coerência, a eficácia que uma vontade soberana imprime aos acontecimentos. Na verdade essa vontade soberana era aparente, da ordem do capricho ou da afeição mais que da ordem objectiva dos imperativos impessoais de uma política digna de rotular-se de “socialista”. Havia, e há no PS socialistas, mas não foram nunca a maioria. No melhor dos casos o PS é um partido social-democrata envergonhado de confessar que o é, mas actuando como se o fosse. Pode pensar-se que se o PS tivesse tido a coragem de se assumir como social-democrata o País teria lucrado com isso. Com o que não lucrou nada, nem o PS, nem o País, nem a perspectiva socialista aberta e inscrita na Constituição, foi com a ambiguidade permanente e a cisão objectiva por ela criada de um partido que se dizia socialista sem poder sê-lo. E em muitos dos seus eminentes membros, com horror de sê-lo.» (retornar ao texto)

(91) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, p. 58. (retornar ao texto)

(92) Bertolt Brecht, Teatro Dialéctico, Civilização Brasileira, 1967, p. 122. (retornar ao texto)

(93) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, p. 175. (retornar ao texto)

(94) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, pp. 452-454. (retornar ao texto)

(95) Diário de uma Revolução, Editora Mil Dias, I volume, pp. 146-147. (retornar ao texto)

(96) Ver Textos Históricos da Revolução, Diabril, organização e introdução de Orlando Neves, I volume, p. 95. (retornar ao texto)

(97) Orlando Neves, Textos Históricos da Revolução, volume I, pp. 95-96. (retornar ao texto)

(98) Idem, p. 96. Hoje, desfeita a hipocrisia então utilizada, Spínola nega aquele carácter de «gesta heróica de um povo», relativamente ao 25 de Abril. O Movimento foi antes, para ele, uma espécie de gangrena social, de canceração política: «... mais do que uma real vitória, representa o epílogo do processo de desagregação de um regime que se auto-destruiu...» (Cf. António de Spínola, País sem RumoContributo para a História de uma Revolução, SCIRE, 1978, p. 15). (retornar ao texto)

(99) Este o teor dos três artigos da Lei n.° 7/74, de 27 de Julho: «Artigo 1.° — O princípio de que a solução das guerras do ultramar é política e não militar, consagrado no n.° 8, alínea a), do capítulo B do Programa do Movimento das Forças Armadas, implica, de acordo com a Carta das Nações Unidas, o reconhecimento por Portugal do direito dos povos à autodeterminação. Artigo 2.° — O reconhecimento do direito à autodeterminação, com todas as suas consequências, inclui aceitação da independência dos territórios ultramarinos e a derrogação da parte correspondente do artigo 1.° da Constituição Política de 1933. Artigo 3.° — Compete ao Presidente da República, ouvidos a Junta de Salvação Nacional, o Conselho de Estado e o Governo Provisório, concluir os acordos relativos ao exercício do direito reconhecido nos artigos antecedentes.» (retornar ao texto)

(100) Este, por seu turno, o teor da Lei n.° 6/74, de 19 de Julho (no Diário do Governo, I Série, n.° 167, a não confundir com a Lei n.° 6/74, de 24 de Julho, no Diário do Governo, I Série, n.° 171, cujos dois únicos artigos não atribuíam, com efeito, qualquer competência específica e exclusiva ao Presidente da República em matéria de descolonização: «Artigo 1.°-—O princípio de que a solução das guerras no ultramar é política e não militar, consagrada no n.° 8, alínea a), do capítulo B do Programa do Movimento das Forças Armadas, implica de acordo com a Carta das Nações Unidas, o reconhecimento por Portugal do direito à autodeterminação dos povos. Artigo 2.° — O reconhecimento do princípio da autodeterminação, com todas as consequências, inclui a aceitação da independência dos territórios ultramarinos e a correspondente derrogação do artigo 1.° da Constituição Política de 1933.» (retornar ao texto)

(101) Orlando Neves, Textos Históricos da Revolução, I volume, p. 130. (retornar ao texto)

(102) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, p. 53. (retornar ao texto)

(103) Cf. Boletim do MFA, de 12 de Novembro de 1974. (retornar ao texto)

(104) A Capital, de 3 de Março de 1975. (retornar ao texto)

(105) Idem, 5 de Março. (retornar ao texto)

(106) A Capital, de 5 de Março de 1975. (retornar ao texto)

(107) In MFA, motor da Revolução Portuguesa, Diabril, 1975, p. 385. (retornar ao texto)

(108) A par do Decreto-Lei n.° 406-A/75, de 29 de Julho, cujo relatório preambular diria que a Reforma Agrária «responde a um imperativo de libertação das forças produtivas relativamente aos estrangulamentos produzidos por formas de propriedade da terra e dos meios de produção que passaram a contrariar aquelas forças», o artigo 1.° do Decreto-Lei n.° 407-A/75, de 30 de Julho, preceituou assim: «São nacionalizados os prédios rústicos beneficiados, no todo ou em parte, pelos aproveitamentos hidroagrícolas do Caia, Campilhas, São Domingos e Alto Sado, Divor, Loures, Idanha, Mira, Odivelas, Roxo, Vale do Sado e Vale do Sorraia, pertencentes a pessoas singulares, sociedades ou pessoas colectivas de direito privado, incluindo as de utilidade pública, que sejam proprietárias no seu conjunto dos perímetros daqueles aproveitamentos, de uma área beneficiada que, mediante aplicação da tabela anexa ao* Decreto-Lei n.° 406-A/75, de 29 de Julho, se verifique corresponder a mais de 50 000 pontos.» (retornar ao texto)

(109) Cf. Programa de Política Económica e Social, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1975, IV Capítulo: «Políticas globais», p. 32. (retornar ao texto)

(110) O Século publicou, em 21 de Fevereiro de 1975, entrevistas com dirigentes partidários a propósito do aludido plano. Álvaro Cunhal, secretário-geral do PCP, observou assim: «É um plano mais voltado para a estabilidade do que para o desenvolvimento, ainda que as possibilidades deste último dependam, naturalmente, da primeira.» E Jorge Campinos, do PS, afirmou por seu turno: «Face ao "contrato social” que o Programa do MFA representa e que é a plataforma de entendimento dos partidos da coligação, não se poderiam encarar outros critérios de economia política. Mais conservador, deixaria de ser um plano e nem talvez mesmo um programa minimamente coerente com as realidades pós-25 de Abril; mais radical, obrigaria a uma ruptura nas estruturas económicas que não é contemplada no Programa do MFA.» Destas últimas palavras de Jorge Campinos resulta óbvio que em 21 de Fevereiro de 1975 —a cerca de três semanas da nacionalização da banca, conquista irreversível da Revolução — os dirigentes do Partido Socialista não o admitiam, sequer, como possível. (retornar ao texto)

(111) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, p. 142. (retornar ao texto)

(112) O Conselho da Revolução foi instituído pela Lei n.° 5/75, de 14 de Março, ao qual foram atribuídos poderes constituintes (artigo 6.°). O Decreto-Lei n.° 147-B/75, de 21 de Março, criou uma comissão consultiva daquele Conselho, cuja composição-primeira incluiu o conjunto dos militares referidos no Decreto-Lei n." 137-A/75, de 17 de Março. Naturalmente que, de entre eles, era designado em segundo lugar o então Brigadeiro Vasco Gonçalves, logo após o General Costa Gomes, Presidente da República e Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas. (retornar ao texto)

(113) In Companheiro Vasco, p. 37. No n.° 43 desta reclamação observava o General com alguma amarga ironia: «A avaliar pelos textos programáticos do VI Governo Provisório e do Conselho da Revolução, as grandes conquistas alcançadas ao longo do processo revolucionário (descolonização, liberdades fundamentais, melhoria da situação das classes mais desfavorecidas, nacionalizações e reforma agrária) não são renegadas, antes se proclama a propósito de as defender. A minha consciência recusa-se, pois, a compreender como pode ser punido, em nome do respeito pelo Programa do MFA, quem pensa ter contribuído, o melhor que foi capaz, para se alcançarem tais conquistas, que se desejam irreversíveis, dos trabalhadores e das classes desfavorecidas do nosso país. Ao longo de todos estes meses, julgo nunca me ter comportado como um fascista ou um reaccionário; julgo que nunca combati a democratização da sociedade portuguesa nos planos político, económico e social; julgo que nunca combati a estratégia antimonopolista proclamada no Programa do MFA; julgo que nunca entravei o processo de descolonização. Antes pelo contrário. A norma da alínea a) do artigo 1.° do Decreto-Lei n.° 147-C/75, de 21 de Março, foi claramente prevista para sanear as Forças Armadas dos elementos que tivessem comportamento contrário àquele que foi o meu durante toda a minha vida. Não pode, pois, sob pena de manifesto abuso do poder, ser aplicado à minha pessoa.» (retornar ao texto)

(114) In Companheiro Vasco, p. 81. (retornar ao texto)

(115) A este propósito, ver por exemplo, o livro Sabotagem Económica Diabril, 1975. (retornar ao texto)

(116) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, pp. 188 e 180. (retornar ao texto)

(117) Idem, ibidem. Em 14 de Março de 1979 Vasco Gonçalves participou e discursou num jantar comemorativo da nacionalização da banca, que teve lugar no Mercado do Povo, onde reafirmou a validade actual da tese das nacionalizações — aliás tão traída, como é facto notório, desde o VI Governo Provisório para cá. (retornar ao texto)

(118) In O Jornal, de 23 de Janeiro de 1979: Governo tenta desnacionalizar Companhia de Seguros: — «O Conselho da Revolução considerou inconstitucional um diploma do Governo Mota Pinto que pretendia desnacionalizar uma companhia de seguros sediada em Lisboa. De acordo com fontes qualificadas, os conselheiros da Revolução aprovaram por unanimidade o parecer da Comissão Constitucional que havia exercido, nos termos constitucionais, o seu direito de ‘fiscalização preventiva da constitucionalidade’. Segundo apurou O Jornal, o Governo tentou uma reinterpretação do diploma de 1975 que nacionalizou as companhias de seguros com o objectivo de devolver ao sector privado a empresa ‘Continental de Resseguros’, que tem participação de capital espanhol. Os observadores políticos consideram de ‘extrema importância’ este processo, fundamentalmente por dois motivos: por um lado, a tentativa governamental de atentar contra a nacionalização dos seguros e, por outro, a firme decisão do Conselho da Revolução de não permitir tal acto inconstitucional e, simultaneamente, ao declarar com força obrigatória geral a sua decisão. O parecer da Comissão Constitucional que ‘chumbou’ todo o diploma governamental foi também aprovado por unanimidade.» (retornar ao texto)

(119) Vital Moreira e Joaquim Gomes Canotilho, Constituição da República Portuguesa Anotada, 1978, p. 307. (retornar ao texto)

(120) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, p. 179. Sublinhado meu. (retornar ao texto)

(121) Cf. em «Enciclopédia do Mundo Actual — EDMA», volume A Economia, Publicações Dom Quixote, 1976, rubrica Capitalismo de Estado, p. 54. (retornar ao texto)

(122) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, pp. 302-303. Sublinhado meu. (retornar ao texto)

(123) Lénine, Obras, Progresso, Moscovo-Paris, edição em língua francesa — volumes 27.°, 32.º, 33.°, 35.º, 36.°, 42.°, 44.° e 45.° nos locais indicados a p. 75 do índice n.° 2, rubrica Capitalismo de Estado sob a ditadura do proletariado. (retornar ao texto)

(124) In Boletim das Forças Armadas, n.° 18, de 20 de Maio de 1975. Sublinhado meu. (retornar ao texto)

(125) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, p. 424. (retornar ao texto)

(126) Idem, p. 220. (retornar ao texto)

(127) Idem, p. 391. (retornar ao texto)

(128) Idem, p. 190. (retornar ao texto)

(129) In Companheiro Vasco, p. 65. (retornar ao texto)

(130) Idem, pp. 73-74. É evidente que Vasco Gonçalves alude, neste fragmento, a várias passagens do «Documento dos Nove». (retornar ao texto)

(131) No Jornal Novo, de 7 de Agosto de 1975. (retornar ao texto)

(132) Idem. (retornar ao texto)

(133) Para uma análise descritiva do chamado Grupo CUF ver, de Maria Belmira Martins, Sociedades e Grupos em Portugal, Estampa, 1973, pp. 21 a 30. (retornar ao texto)

(134) In Companheiro Vasco, p. 111. (retornar ao texto)

(135) A propósito do golpismo do Dr. Sá Carneiro face à discussão parlamentar do Orçamento Geral do Estado e do Plano para 1979, Marcelo Rebelo de Sousa retomava o uso deste qualificativo da Direita portuguesa no seu artigo do Expresso de 31 de Março. Não hesita, com efeito, esse comentarista político em referir-se a estes como «a Direita mais estúpida do mundo». (retornar ao texto)

(136) In Companheiro Vasco, pp. 72-73. (retornar ao texto)

(137) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, pp. 417-418. (retornar ao texto)

(138) No Diário de Lisboa, suplemento «Sempre Fixe», de 28 de Setembro de 1978. (retornar ao texto)

Inclusão 25/04/2015