A Social-Democracia e o Governo Provisório Revolucionário

V. I. Lénine

5 e 12 de Abril (23 e 30 de Março) de 1905

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Primeira Edição: Publicado em 5 e 12 de Abril (23 e 30 de Março) de 1905 no jornal Vperiod n.os 13 e 14.

Fonte: Obras Escolhidas em seis tomos, Edições "Avante!", 1986, t1, pp 146-160.

Tradução: Edições "Avante!" com base nas Obras Completas de V. I. Lénine, 5.ª ed. em russo, t.10, pp. 1-19.

Transcrição: Manuel Gouveia

HTML: Fernando A. S. Araújo.

Direitos de Reprodução: © Direitos de tradução em língua portuguesa reservados por Edições "Avante!" — Edições Progresso Lisboa — Moscovo.


I

capa

Há apenas cinco anos a palavra de ordem «abaixo a autocracia!» parecia a muitos representantes da social-democracia prematura e incompreensível para a massa operária. Estes representantes eram justamente classificados como oportunistas. Foi-lhes explicado e tornado a explicar que eles estavam atrasados em relação ao movimento, que eles não compreendiam as tarefas do partido como destacamento de vanguarda da classe, como seu dirigente e organizador, como representante do movimento no seu conjunto, dos seus objectivos fundamentais e principais. Estes objectivos podem ser temporariamente encobertos pelo corriqueiro trabalho quotidiano, mas não devem nunca perder a importância de estrela orientadora para o proletariado combatente.

E agora chegou o tempo em que a chama da revolução envolveu todo o país, em que os mais incrédulos passaram a acreditar na inevitabilidade do derrubamento da autocracia num futuro próximo. Mas a social-democracia, como que por qualquer ironia da história, tem mais uma vez de fazer frente às mesmas tentativas reaccionárias e oportunistas de puxar o movimento para trás, de rebaixar as suas tarefas, de obscurecer as suas palavras de ordem. A polémica com os representantes destas tentativas torna-se a tarefa do dia, adquire (contra a opinião de muitos e muitos que não gostam de polémicas dentro do partido) uma imensa importância prática. É que quanto mais nos aproximamos da realização directa das nossas tarefas políticas imediatas, tanto maior é a necessidade de compreender de modo perfeitamente claro estas tarefas, tanto mais prejudicial é qualquer ambiguidade, reticência ou irreflexão nesta questão.

E há não pouca irreflexão entre os sociais-democratas do campo novo-iskrista ou (o que é quase o mesmo) rabotchedelista. Abaixo a autocracia! — com isto todos estão de acordo, não só todos os sociais-democratas como também todos os democratas, mesmo todos os liberais, a acreditar nas suas actuais declarações. Mas que significa isto? Precisamente de que maneira é que deve ter lugar este derrubamento do actual governo? Quem deve convocar a assembleia constituinte, que agora até os osvobojdenistas estão prontos a apresentar, com aceitação do sufrágio universal, etc., como sua palavra de ordem (ver o n.° 67 da Osvobojdénie)! Em quê precisamente deve consistir a garantia real de eleições para essa assembleia que sejam livres e exprimam os interesses de todo o povo?

Quem não tiver uma resposta clara e precisa para estas perguntas não percebe a palavra de ordem «abaixo a autocracia!». E estas perguntas conduzem-nos inevitavelmente à questão do governo previsório revolucionário; não é difícil de perceber que sob a autocracia eleições verdadeiramente livres de todo o povo para a assembleia constituinte, com plena garantia de votação realmente universal, igual, directa e secreta, são não só improváveis mas simplesmente impossíveis. E se nós não avançamos gratuitamente a exigência prática do derrubamento do governo autocrático, devemos ter claro para nós próprios precisamente por que outro governo queremos substituir o governo derrubado, ou, por outras palavras: como é que encaramos a atitude da social-democracia em relação ao governo provisório revolucionário?

Os oportunistas da social-democracia actual, isto é, os novo-iskristas, puxam tão esforçadamente o partido para trás nesta questão como há cinco anos o faziam os rabotchedelistas na questão da luta política em geral. As suas concepções reaccionárias sobre este ponto estão desenvolvidas do modo mais completo na brochura de Martínov Duas Ditaduras, que o Iskra (n.° 84) aprovou e recomendou com uma nota especial e para a qual nós já chamámos mais de uma vez a atenção dos nossos leitores.

Logo ao princípio da sua brochura Martínov mete-nos medo com a horrível perspectiva seguinte: se uma sólida organização da social-democracia revolucionária pudesse «marcar e levar a cabo a insurreição armada de todo o povo» contra a autocracia com que sonhava Lénine, então

«não é evidente que a vontade de todo o povo designaria logo a seguir à revolução precisamente este partido como governo provisório? Não é evidente que o povo entregaria precisamente a este partido, e não a qualquer outro, o destino imediato da revolução?».

Isto é inacreditável, mas é um facto. O futuro historiador da social-democracia russa terá de constatar com surpresa que mesmo no início da revolução russa os girondinos da social-democracia metiam medo ao proletariado revolucionário com semelhante perspectiva! Todo o conteúdo da brochura de Martínov (e toda uma série de artigos e de passagens nos artigos do novo Iskra) se reduz a pintar grosseiramente os «horrores» desta perspectiva. O chefe ideológico dos novo-iskristas é assaltado pela visão da «tomada do poder», pelo medo do espantalho do «jacobinismo», do bakuninismo, do tkatchovismo e outros terríveis ismos com que diferentes amas-secas da revolução gostam de meter medo às crianças da política. E, evidentemente, ao fazê-lo não se passa sem «citações» de Marx e Engels. Pobres Marx e Engels, que abusos não sofreram através de citações das suas obras! Lembram-se de como se referiram à verdade de que «todas as lutas de classes são lutas políticas»(1) para justificar a estreiteza e atraso das nossas tarefas políticas e métodos de agitação e luta políticas? Agora é Engels que é apresentado como falsa testemunha a favor do seguidismo. Ele escreveu em A Guerra dos Camponeses Alemães:

«O pior que pode acontecer ao chefe de um partido extremo é ser obrigado a apoderar-se do poder numa altura em que o movimento ainda não está suficientemente maduro para o domínio da classe que ele representa e para a aplicação das medidas que assegurem este domínio.»

Basta ler cuidadosamente este começo da longa passagem citada por Martínov para nos convencermos de como o nosso seguidista deturpa o pensamento do autor. Engels fala do poder que assegura o domínio de uma classe. Não será isto claro? Em relação ao proletariado é, consequentemente, o poder que assegura o domínio do proletariado, isto é, a ditadura do proletariado para realizar a revolução socialista. Martínov não compreende isto, confundindo o governo provisório revolucionário na época do derrubamento da autocracia com o domínio assegurado do proletariado na época do derrubamento da burguesia, confundindo a ditadura democrática do proletariado e do campesinato com a ditadura socialista da classe operária. E entretanto, com a sequência da citação de Engels o seu pensamento torna-se ainda mais claro. O chefe do partido extremo — diz ele — terá de «defender interesses de uma classe que lhe é alheia e de livrar-se da sua própria classe com frases, promessas e garantias de que os interesses da outra classe são os seus próprios. Quem caiu nesta posição falsa está irreversivelmente perdido».

As passagens sublinhadas mostram claramente que Engels previne precisamente contra a posição falsa que é o resultado da incompreensão pelo chefe dos interesses reais da «sua própria» classe e do conteúdo de classe real da revolução. Por uma questão de clareza, tentaremos mastigar isto ao nosso profundíssimo Martínov com um exemplo simples. Quando os narodovolistas, pensando representar os interesses do «trabalho», garantiram a si próprios e aos outros que na futura assembleia constituinte russa 90% dos camponeses seriam socialistas, caíram desse modo numa posição falsa que tinha inevitavelmente de conduzir à sua perdição política irreversível, pois estas «promessas e garantias» não correspondiam à realidade objectiva. De facto eles aplicariam os interesses da democracia burguesa, «os interesses de outra classe». Não começa a perceber alguma coisa, respeitabilíssimo Martínov? Quando os socialistas-revolucionários representam as futuras transformações agrárias inevitáveis na Rússia como «socialização», como «entrega da terra ao povo», como princípio da «utilização igualitária», eles colocam-se numa posição falsa que tem inevitavelmente de conduzir à sua perdição política irreversível, porque de facto exactamente as transformações que eles se esforçam por alcançar assegurarão o domínio de outra classe, da burguesia camponesa, de modo que as suas frases, promessas e garantias serão tanto mais cedo refutadas pela realidade quanto mais rápido for o desenvolvimento da revolução. Ainda não compreende de que é que se trata, respeitabilíssimo Martínov? Ainda não compreende que a essência do pensamento de Engels consiste em indicar que é fatal a incompreensão das tarefas históricas reais da revolução, que as palavras de Engels são aplicáveis, por conseguinte, aos narodovolistas e aos «socialistas-revolucionários»?

II

Engels aponta o perigo da incompreensão pelos chefes do proletariado do carácter não proletário da revolução, mas o inteligente Martínov deduz daqui o perigo de que os chefes do pr oletariado, que se demarcaram da democracia revolucionária pelo programa e pela táctica (isto é, por toda a propaganda e agitação) e pela organização, desempenhem um papel dirigente na criação da república democrática. Engels vê o perigo em que o chefe confunda o conteúdo ficticiamente socialista e realmente democrático da revolução, mas o inteligente Martínov deduz daqui o perigo de o proletariado, juntamente com o campesinato, assumir conscientemente a ditadura no estabelecimento da república democrática, como última forma do domínio burguês e como a melhor forma para a luta de classe do proletariado contra a burguesia. Engels vê o perigo numa posição falsa, quando se diz uma coisa e se faz outra, quando se promete o domínio de uma classe mas se assegura de facto o domínio de outra classe; Engels vê nesta posição falsa a inevitabilidade da perdição política irreversível, mas o inteligente Martínov deduz daqui o perigo de perdição devido ao facto de os partidários burgueses da democracia não deixarem o proletariado e o campesinato assegurarem uma república realmente democrática. O inteligente Martínov não consegue de modo nenhum compreender que essa perdição, a perdição do chefe do proletariado, a perdição de milhares de proletários na luta por uma república realmente democrática, sendo uma perdição física, não só não é uma perdição política como, pelo contrário, é uma grandiosa conquista política do proletariado, uma grandiosa realização por ele da sua hegemonia na luta pela liberdade. Engels fala da perdição política daquele que inconscientemente se desvia do seu caminho de classe para um caminho de classe alheio, mas o inteligente Martínov, citando Engels com veneração, fala da perdição daquele que avança mais e mais pelo caminho de classe correcto.

A diferença de pontos de vista da social-democracia revolucionária e do seguidismo manifesta-se aqui com toda a evidência. Martínov e o novo Iskra recuam perante a tarefa que recai sobre o proletariado juntamente com o campesinato, a tarefa da mais radical revolução democrática, recuam perante a direcção social-democrata desta revolução, entregando deste modo, ainda que inconscientemente, os interesses do proletariado nas mãos da democracia burguesa. Da justa ideia de Marx de que devemos preparar não um partido de governo mas um partido de oposição do futuro, tira Martínov a conclusão de que devemos formar uma oposição seguidista à revolução presente. A isto se reduz a sua sabedoria política. Eis o seu raciocínio, sobre o qual muito recomendaríamos que o leitor meditasse:

«O proletariado não pode obter nem todo nem uma parte do poder político no Estado enquanto não fizer a revolução socialista. É esta a tese indiscutível que nos separa do jauressismo oportunista...» (Martínov, p. 58)

e que, acrescentamos nós, demonstra indiscutivelmente a incapacidade do respeitável Martínov para compreender de que é que se trata. Confundir a participação do proletariado num poder que resiste à revolução socialista com a participação do proletariado numa revolução democrática significa não compreender irremediavelmente de que é que se trata. É o mesmo que confundir a participação de Millerand no ministério do assassino Galiffet com a participação de Varlin na Comuna, que defendia e defendeu a república.

Mas oiçam mais para ver como o nosso autor se embrulha:

«... Mas se é assim, é evidente que a próxima revolução não pode realizar nenhumas formas políticas contra a vontade de toda (sublinhado de Martínov) a burguesia, pois ela será a senhora de amanhã...»

Em primeiro lugar, por que é que se fala aqui apenas das formas políticas, quando na frase anterior se tratava do poder do proletariado em geral, mesmo até à revolução socialista? por que é que o autor não fala da realização das formas económicas? Porque, sem ele próprio o notar, ele saltou já da revolução socialista para a democrática. Mas se é assim (isto em segundo lugar), é perfeitamente errado o autor falar tout court (simplesmente) da «vontade de toda a burguesia», porque a época da revolução democrática se distingue precisamente pela diferença de vontade das diversas camadas da burguesia, que está apenas a libertar-se do absolutismo. Falar de revolução democrática e limitar-se à simples contraposição do proletariado e da burguesia é uma pura inconsequência, pois esta revolução assinala precisamente o período de desenvolvimento da sociedade em que a sua massa no fundo se encontra entre o proletariado e a burguesia, constitui uma vastíssima camada pequeno-burguesa, camponesa. Esta gigantesca camada, precisamente porque a revolução democrática ainda não foi consumada, tem muito mais interesses comuns com o proletariado na realização das formas políticas do que a «burguesia» no sentido próprio e estrito desta palavra. É na incompreensão desta coisa simples que reside uma das fontes principais da embrulhada de Martínov.

Continuemos:

«... Se assim é, a luta revolucionária do proletariado, através da simples intimidação da maioria dos elementos burgueses, só pode conduzir a uma coisa — à restauração do absolutismo na sua forma original -, e o proletariado, naturalmente, não se deterá perante este possível resultado, ele não renunciará a intimidar a burguesia no pior dos casos, se as coisas se inclinarem decididamente para um reviver e um reforço do poder autocrático em decomposição por meio de uma concessão constitucional fictícia. Mas, ao entrar na luta, o proletariado, como é evidente, não tem em vista este pior dos casos.»

Compreende alguma coisa, leitor? O proletariado não se deterá perante a intimidação, que conduz à restauração do absolutismo, no caso de haver a ameaça de uma concessão constitucional fictícia! É o mesmo que se eu dissesse: eu estou ameaçado por uma praga do Egipto sob a forma de uma conversa de um dia apenas com Martínov; por isso no pior dos casos eu recorro à intimidação, que só pode conduzir a uma conversa de dois dias com Martínov e Mártov. Isto é um puro disparate, respeitabilíssimo!

A ideia que assaltava Martínov quando ele escreveu o absurdo por nós citado consiste no seguinte: se na época da revolução democrática o proletariado se põe a intimidar a burguesia com a revolução socialista, isto só conduzirá à reacção, que enfraquecerá também as conquistas democráticas. Só isto e mais nada. Nem se pode falar, é claro, nem da restauração do absolutismo na forma original nem da disposição do proletariado para no pior dos casos recorrer à pior estupidez. Tudo se reduz novamente à diferença entre revolução democrática e revolução socialista que Martínov esquece, à existência da gigantesca população camponesa e pequeno-burguesa que é capaz de apoiar a revolução democrática mas não é capaz no momento actual de apoiar a revolução socialista.

Ouçamos mais uma vez o nosso inteligente Martínov:

«... É evidente que a luta entre o proletariado e a burguesia em vésperas da revolução burguesa tem de se diferenciar em alguns aspectos desta mesma luta no seu estádio final, em vésperas da revolução socialista...»

Sim, isto é evidente, e se Martínov meditasse em quê precisamente consiste esta diferença, dificilmente escreveria a anterior algaraviada, do mesmo modo que toda a brochura.

«... A luta para influenciar o curso e o desenlace da revolução burguesa só se pode exprimir no facto de o proletariado exercer uma pressão revolucionária sobre a vontade da burguesia liberal e radical, de as "camadas baixas" mais democráticas da sociedade obrigarem as suas "camadas altas" a concordar em levar a revolução burguesa até ao seu fim lógico. Ela exprimir-se-á no facto de o proletariado colocar em cada caso a burguesia perante o dilema: ou para trás, para as garras do absolutismo, entre as quais ela sufoca, ou para a frente com o povo.»

Esta tirada é o ponto central da brochura de Martínov. É aqui que está o seu sal, todas as suas «ideias» fundamentais. E quais são estas inteligentes ideias? Veja-se: que são estas «camadas baixas» da sociedade, este «povo» de que finalmente se lembrou o nosso sabichão? É precisamente a camada pequeno-burguesa urbana e rural de milhões de homens que é perfeitamente capaz de actuar de modo democrático revolucionário. E que é essa pressão do proletariado mais do campesinato sobre as camadas altas da sociedade, que é esse movimento para a frente do proletariado juntamente com o povo apesar das camadas altas da sociedade? É precisamente a ditadura democrática revolucionária do proletariado e do campesinato contra a qual pugna o nosso seguidista! Só que ele tem medo de pensar até ao fim, tem medo de chamar as coisas pelo seu próprio nome. Diz por isso palavras cujo significado não compreende, repete timidamente, com ridículos e tolos floreados(2), palavras de ordem cujo verdadeiro sentido lhe escapa. Por isso só com um seguidista é possível esta coisa esquisita na parte mais «interessante» das duas conclusões finais: pressão revolucionaria tanto do proletariado como do «povo» sobre as camadas altas da sociedade, mas sem ditadura democrática revolucionária do proletariado e do campesinato — só Martínov podia chegar a este extremo! Martínov quer que o proletariado ameace as camadas altas da sociedade, que ele avance com o povo, mas que ao mesmo tempo o proletariado decida firmemente com os seus chefes novo-iskristas não avançar pelo caminho democrático, pois este é o caminho da ditadura democrática revolucionária. Martínov quer que o proletariado exerça pressão sobre a vontade das camadas superiores revelando a sua própria falta de vontade. Martínov quer que o proletariado leve as camadas superiores a «concordar» com levar a revolução até ao seu fim republicano democrático e que ele o faça exprimindo o seu próprio medo de assumir, juntamente com o povo, este levar da revolução até ao fim, de assumir o poder e a ditadura democrática. Martínov quer que o proletariado seja a vanguarda na revolução democrática, e portanto o inteligente Martínov mete medo ao proletariado com a perspectiva da participação no governo provisório revolucionário em caso de êxito da insurreição!

Não se pode ir mais longe no seguidismo reaccionário. Temos de reverenciar Martínov como um santo por ele ter levado até ao fim as tendências seguidistas do novo Iskra e as ter expresso com relevo e sistematicamente a propósito da questão política mais actual e fundamental (3).

III

Qual é a fonte da embrulhada de Martínov? É a confusão da revolução democrática e da revolução socialista, o esquecimento do papel da camada popular intermédia que está entre a «burguesia» e o «proletariado» (a massa pequeno-burguesa dos pobres da cidade e do campo, os «semiproletários», os semiproprietários), a incompreensão do verdadeiro significado do nosso programa mínimo (4). Martínov ouviu dizer que é indecoroso para um socialista participar num ministério burguês (quando o proletariado luta pela revolução socialista) e apressou-se a «compreender» isto no sentido de que não se deve participar juntamente com a democracia burguesa revolucionária na revolução democrática e na ditadura que é necessária para a completa realização desta revolução. Martínov leu o nosso programa mínimo, mas não reparou que a rigorosa distinção que aí é feita entre as transformações realizáveis no terreno da sociedade burguesa e as transformações socialistas não tem apenas um significado livresco mas o significado mais vital e prático; não reparou que num período revolucionário o programa sofre uma imediata comprovação e aplicação na prática. Martínov não pensou que rejeitar a ideia da ditadura democrática revolucionária na época da queda da autocracia equivale a rejeitar a realização do nosso programa mínimo. De facto, recorde-se apenas todas as transformações económicas e políticas apresentadas nesse programa, as reivindicações da república, do armamento do povo, da separação da Igreja do Estado, de plenas liberdades democráticas, de reformas económicas decididas. Não será claro que a aplicação destas transformações no terreno do regime burguês é inconcebível sem a ditadura democrática revolucionária das classes inferiores? Não será claro que aqui não se trata apenas do proletariado, em contraste com a «burguesia», mas das «classes inferiores», que são o impulsionador activo de qualquer revolução democrática? Estas classes são o proletariado mais as dezenas de milhões de pobres da cidade e do campo, cujas condições de existência são pequeno-burguesas. É indubitável que muitíssimos representantes desta massa pertencem à burguesia. Mas é ainda mais indubitável que a plena realização da democracia é do interesse desta massa e que quanto mais esclarecida for esta massa mais inevitável é a sua luta por esta plena realização. Um social-democrata naturalmente nunca esquecerá a natureza político-económica dupla da massa pequeno-burguesa da cidade e do campo, nunca esquecerá a necessidade da organização de classe separada e independente do proletariado que luta pelo socialismo. Mas ele não esquecerá também que esta massa tem, «além de um passado, um futuro, além de preconceitos, uma razão»(5) que a empurra para a frente, para a ditadura democrática revolucionária; ele não esquecerá que o esclarecimento não é dado só pelos livros, e até nem tanto pelos livros quanto pelo próprio curso da revolução, que abre os olhos e serve de escola política. Em tais condições, uma teoria que rejeita a ideia de ditadura democrática revolucionária não pode ser chamada senão justificação filosófica do atraso político.

O social-democrata revolucionário afastará de si com desprezo semelhante teoria. Em vésperas da revolução ele não se limitará a apontar o «pior dos casos» dela. Não, ele apontará também a possibilidade do melhor dos casos. Ele sonhará — é obrigado a sonhar se não for um irremediável filisteu — que, depois da gigantesca experiência da Europa, depois da envergadura sem precedentes da energia da classe operária da Rússia, conseguiremos avivar como nunca o farol da luz revolucionária perante a massa ignorante e oprimida, conseguiremos — graças ao facto de estarmos em cima dos ombros de toda uma série de gerações revolucionárias da Europa — realizar, com uma amplitude ainda nunca vista, todas as transformações revolucionárias, todo o nosso programa mínimo; conseguiremos fazer com que a revolução russa não seja um movimento de alguns meses, mas um movimento de muitos anos, com que ela não conduza apenas a pequenas concessões da parte das autoridades existentes mas ao completo derrubamento destas autoridades. E se conseguirmos isto, então... então o incêndio revolucionário inflamará a Europa; o operário europeu, que se consome na reacção burguesa, erguer-se-á por sua vez e mostrar-nos-á «como é que se faz»; então o ascenso revolucionário da Europa terá um efeito reverso sobre a Rússia e fará de uma época de alguns anos revolucionários uma época de alguns decénios revolucionários, então... mas teremos ainda mais de uma vez ocasião de falar daquilo que faremos «então», de falar não da maldita distância de Genebra mas perante assembleias de milhares de operários nas ruas de Moscovo e Sampetersburgo, perante reuniões livres de «mujiques» (6) russos.

IV

Estes sonhos são evidentemente alheios e estranhos para os filisteus do novo Iskra e para o seu «senhor dos pensamentos», o nosso bom escolástico Martínov. Eles têm medo da completa realização do nosso programa mínimo por meio da ditadura revolucionária do povo simples e comum. Eles têm medo pela sua própria consciência, têm medo de perder as prescrições do livro decorado (mas não assimilado), têm medo de não se mostrarem em condições de distinguir entre os passos correctos e audaciosos das transformações democráticas e os saltos aventureiristas do socialismo ou anarquismo não de classe, populista. A sua alma filistina sugere-lhes com razão que numa rápida marcha para a frente será mais difícil distinguir o caminho seguro e resolver rapidamente questões complexas e novas do que na rotina do pequeno trabalho diário; por isso eles murmuram instintivamente: longe de mim, longe de mim! que esta taça da ditadura democrática revolucionária me evite! tomara que não pereça! senhores! mais vos vale andar «a passo lento, em tímidos ziguezagues»(7)...

Não é de espantar que para Parvus, que tão generosamente apoiava os novo-iskristas enquanto se tratava predominantemente da cooptação dos mais veneráveis e dos merecedores, as coisas tenham acabado por se tornar penosas em semelhante companhia pantanosa. Não é de espantar que nela ele tenha começado a sentir cada vez mais frequentemente o taedium vitae, o tédio da vida. E por fim ele rebelou-se. Ele não se limitou à defesa da palavra de ordem «organizar a revolução», que assustara mortalmente o novo Iskra, não se limitou a apelos que o Iskra publicava em folhetos separados, ocultando mesmo, devido aos horrores «jacobinos», a referência ao partido operário social-democrata(8). Não. Depois de se libertar do pesadelo da sapientíssima teoria axelrodista (ou luxemburguista?) da organização-processo, Parvus soube finalmente avançar, em vez de andar para trás como um caranguejo. Ele não quis fazer o «trabalho de Sísifo»(9) de corrigir infindavelmente os disparates de Martínov e de Mártov. Ele interveio directamente (infelizmente, juntamente com Trótski) em defesa da ideia de ditadura democrática revolucionária(10), da ideia de que é dever da social-democracia participar no governo provisório revolucionário depois do derrubamento da autocracia. Parvus tem mil vezes razão quando diz que a social-democracia não deve ter medo de passos audaciosos em frente, não deve recear desferir «golpes» conjuntos ao inimigo ombro a ombro com a democracia burguesa revolucionária, com a condição obrigatória (muito oportunamente lembrada) de não misturar a organização; caminhar separadamente, golpear em conjunto; não ocultar a diversidade de interesses; vigiar o aliado como vigiamos o inimigo, etc.

Mas quanto mais calorosa é a nossa simpatia por todas estas palavras de ordem de um social-democrata revolucionário que se afastou dos seguidistas(11) mais desagradavelmente nos surpreenderam algumas notas falsas tocadas por Parvus. E não é por critiquice que nós notamos estas pequenas incorrecções, mas porque a quem muito se dá muito se pede. O mais perigoso seria agora que a posição correcta de Parvus fosse comprometida pela sua própria imprudência. Precisamente entre as frases pelo menos imprudentes do prefácio de Parvus que estamos a analisar à brochura de Trótski conta-se a seguinte:

«Se queremos isolar o proletariado revolucionário das outras correntes políticas, temos de saber estar ideologicamente à cabeça do movimento revolucionário» (isto é correcto), «ser mais revolucionários do que todos». Isto é incorrecto.

Ou seja, isto é incorrecto se se tomar esta afirmação no sentido geral que lhe é dado pela frase de Parvus, é incorrecto do ponto de vista do leitor que toma este prefácio como algo de autónomo, independente de Martínov e dos novo-iskristas, que não são mencionados por Parvus. Se examinar esta afirmação dialecticamente, isto é, relativamente, concretamente, por todos os lados, sem imitar os cavaleiros da literatura que, mesmo muitos anos depois, arrancam frases soltas de uma obra integral e deturpam o seu sentido, então tornar-se-á claro que Parvus dirige isto precisamente contra o seguidismo e nessa medida isto é justo (compare-se particularmente as palavras seguintes de Parvus: «se nós nos atrasarmos em relação ao desenvolvimento revolucionário», etc.). Mas o leitor não pode ter em vista apenas os seguidistas, e, entre os amigos perigosos da revolução no campo dos revolucionários, além dos seguidistas, há ainda pessoas muito diferentes, há os «socialistas-revolucionários», há pessoas atraídas pela torrente dos acontecimentos, impotentes perante a frase revolucionária, como os Nadéjdines, ou aquelas em que o instinto substitui a visão do mundo revolucionária (como Gapone). Parvus esqueceu-os, e esqueceu-os porque a sua exposição, o desenvolvimento do seu pensamento, não corriam livremente, mas ligados à agradável recordação do martinovismo contra o qual ele se esforça por prevenir o leitor. A exposição de Parvus é insuficientemente concreta, pois ele não tem em conta toda a soma de diferentes correntes revolucionárias que existem na Rússia, as quais são inevitáveis numa época de revolução democrática e reflectem naturalmente a fraca diferenciação de classes da sociedade nesta época. Ideias socialistas vagas, por vezes mesmo reaccionárias, revestem muito naturalmente nesta época programas democráticos revolucionários, escondendo-se por trás da frase revolucionária (recorde-se os socialistas-revolucionários e Nadéjdine, o qual, parece, apenas mudou a sua designação ao passar dos «socialistas-revolucionários» para o novo Iskra). E em semelhantes condições nós, sociais-democratas, nunca podemos avançar e nunca avançaremos a palavra de ordem «ser mais revolucionários do que todos». Nós nem sonhamos em alcançar o revolucionarismo do democrata separado da base de classe, que alardeia belas frases, ávido de palavras de ordem em voga e baratas (particularmente no domínio agrário); pelo contrário, sempre teremos para com ele uma atitude crítica, sempre desmascararemos o significado real das palavras, o conteúdo real dos grandes acontecimentos idealizados, ensinando a ter em conta sobriamente as classes e os matizes dentro das classes nos momentos mais quentes da revolução.

São igualmente incorrectas, e pela mesma razão, as afirmações de Parvus de que «o governo provisório revolucionário na Rússia será o governo da democracia operária», de que «se a social-democracia estiver à cabeça do movimento revolucionário do proletáriado russo, esse governo será social-democrata», de que o governo provisório social-democrata «será um governo integral com uma maioria social-democrata». Isto é impossível se se falar não de episódios casuais, efémeros, mas de uma ditadura revolucionária minimamente durável e minimamente capaz de deixar uma marca na história. Isto é impossível, porque só pode ser minimamente sólida (é claro que não absolutamente mas relativamente) uma ditadura revolucionária que se apoie na imensa maioria do povo. Mas o proletariado russo constitui actualmente uma minoria da população da Rússia. Ele só se pode tornar a imensa, a esmagadora maioria se se unir à massa dos semiproletários, dos semiproprietários, isto é, à massa dos pobres pequeno-burgueses da cidade e do campo. E esta composição da base social de uma ditadura democrática revolucionária possível e desejável reflecte-se, naturalmente, na composição do governo revolucionário, torna inevitável a participação nele ou mesmo a predominância nele dos mais variados representantes da democracia revolucionária. Seria extremamente prejudicial ter a este respeito quaisquer ilusões. Se o palrador Trótski escreve agora (infelizmente ao lado de Parvus) que «o padre Gapone só podia aparecer uma vez», que «não há lugar para um segundo Gapone», isto é exclusivamente porque ele é um palrador. Se na Rússia não houvesse lugar para um segundo Gapone, no nosso país não haveria também lugar para uma revolução democrática realmente «grande», que vá até ao fim. Para se tornar grande, para lembrar 1789-1793 e não 1848-1850, e para ultrapassar esses anos, ela tem de elevar massas gigantescas à vida activa, aos esforços heróicos, à «criatividade histórica fundamental», de as elevar de uma ignorância terrível, de um embrutecimento inaudito, de um selvagismo incrível e de um embotamento abissal. Ela já as está a elevar e elevá-las-á completamente — o próprio governo facilita isto com a sua resistência convulsiva, mas, evidentemente, nem se pode falar de consciência política reflectida, de consciência social-democrata destas massas e dos seus numerosos chefes «originais», populares e mesmo camponeses. Eles não se podem tornar sociais-democratas imediatamente, sem passar por uma série de provações revolucionárias, não só devido à ignorância (a revolução educa, repetimos, com uma rapidez fantástica) mas porque a sua situação de classe não é proletária, porque a lógica objectiva do desenvolvimento históricc os coloca no momento presente perante as tarefas não de uma revolução socialista mas democrática.

Nesta revolução, o proletariado revolucionário também participará com toda a energia, varrendo para longe de si o miserável seguidismo de uns e a frase revolucionária de outros, introduzindo a definição e a consciência de classe no torvelinho vertiginoso dos acontecimentos, avançando constante e audaciosamente, não temendo a ditadura democrática revolucionária, antes a desejando apaixonadamente, lutando pela república e pela plena liberdade republicana, por reformas económicas sérias, para criar para si uma arena de luta pelo socialismo realmente ampla e realmente digna do século xx.


Notas de rodapé:

(1) K. Marx /F. Engels, Manifesto do Partido Comunista, in Obras Escolhidas em seis tomos, Edições Avante – Edições Progresso, Lisboa-Moscovo, 1982, t.1, pag. 115. (retornar ao texto)

(2) Já assinalámos o absurdo da ideia de o proletariado, mesmo no pior dos casos, poder empurrar a burguesia para trás. (retornar ao texto)

(3) O artigo já estava composto quando recebemos o n.° 93 do Iskra, ao qual teremos ainda de voltar (Nota do Editor: O nº 93 do Iskra menchevique saiu em 17 de Março de 1905. Nele foi publicado o artrigo de L. Mártov «Na ordem do dia. O partido operário e a “tomada do poder” como tarefa imediata». Lénine critica este artigo na obra «A Ditadura Democrática Revolucionária do Proletariado e do Campesinato – ver pp 161-168 do I Tomo das Obras Escolhidas de Lénine em VI Tomos, Edições Avante – 1984) (retornar ao texto)

(4) Programa mínimo do POSDR: parte integrante do primeiro programa do partido, aprovado pelo II Congresso do POSDR; definia as tarefas da revolução democrática burguesa: derrubamento do tsarismo e estabelecimento de uma república democrática; introdução da jornada de trabalho de 8 horas; igualdade de direitos das nações e seu direito à autodeterminação; liquidação dos vestígios da servidão no campo. A segunda parte do programa – o programa máximo – definia as tarefas da revolução socialista: derrubamento do capitalismo e estabelecimento da ditadura do proletariado. O primeiro programa do partido foi realizado em 1917 em resultado da revolução democrática burguesa de Fevereiro e da Grande Revolução Socialista de Outubro. (retornar ao texto)

(5) Lénine cita a obra de Karl Marx O 18 de Brumário de Louis Bonaparte. (retornar ao texto)

(6) Camponeses. (N. Ed.) (retornar ao texto)

(7) Palavras do Hino do Moderno Socialismo Russo, que foi publicado em Abril de 1901 na revista Zariá. Nele ridicularizavam-se os «economistas», com a sua adaptação ao movimento espontâneo. O autor dos versos é Mártov. (retornar ao texto)

(8) Não sei se os nossos leitores notaram um facto característico: entre o monte de lixo publicado pelo novo Iskra sob a forma de folhetos, houve bons folhetos assinados por Parvus. A redacção do Iskra afastou-se precisamente destes folhetos, não tendo querido mencionar nem o nosso partido nem a sua editora. (retornar ao texto)

(9) Trabalho de Sísifo: sinónimo de trabalho duro e fatigante, mas estéril. Esta expressão deriva do mito do antigo rei grego Sísifo. Por uma falta perante os deuses, Sísifo foi severamente castigado: tinha eternamente que empurrar por uma alta montanha uma grande pedra, que, sem atingir o cume, lhe escapava das mãos e rolava para baixo. Sísifo tinha de começar tudo do ínicio, mas não podia nunca atingir o objectivo — o cimo da montanha. Ao utilizar a expressão «trabalho de Sísifo», Lénine alude a uma caricatura de P. Lepechinsky que representava Plekhánov tentando inutilmente arrancar Mártov do pântano menchevique. (retornar ao texto)

(10) No manuscrito : «Ele interveio directamente (infelizmente, juntamente com o palrador Trótski no prefácio à sua palradora brochura Antes do 9 de Janeiro) em defesa da ideia de ditadura democrática revolucionária...» (N. Ed.) (retornar ao texto)

(11) No manuscrito há a seguinte nota de pé de página: «Sobre a brochura de Trótski com um prefácio de Parvus publicada na tipografia do partido, o lskra guarda um discreto silêncio quanto à essência da questão levantada. Evidentemente que não lhe é vantajoso desemaranhar a embrulhada: Martínov puxa para um lado, Parvus puxa para o outro, e nós ficaremos calados enquanto Plekhánov puxa as orelhas de Mártov! Entre nós chama-se a isto "direcção ideológica do partido"! A propósito, uma curiosidade "formalista". Os nossos Salomões do Conselho decidiram que o cabeçalho do partido só é admissível nas brochuras editadas por encargo das organizações do partido. Seria interessante que estes Salomões dissessem qual foi a organização que encarregou de editar as brochuras de Nadéjdine, Trótski e outros? Ou terão razão aqueles que declararam que a mencionada "decisão" é um ruim ataque no espírito de círculo contra a editora de Lénine?» (N. Ed.) (retornar ao texto)

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Inclusão: 27/09/2015
Última atualização: 03/02/2024