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Primeira edição: Vperiod, nº 11, 10(23) de março de 1905. V. I. Lênin, Obras, 4ª ed. em russo, t. 8, págs. 204/209
Fonte: A aliança operário-camponesa, Editorial Vitória, Rio de Janeiro, Edição anterior a 1966 - págs. 160-164
Tradução: Renato Guimarães, Fausto Cupertino Regina Maria Mello e Helga Hoffman de "La Alianza de la Clase Obrera y el Campesinado", publicado por Ediciones en Lenguas Extranjeiras, Moscou, 1957, que por sua vez foi traduzido da edição soviética em russo, preparada pelo Instituto de Marxismo-Leninismo adjunto ao CC do PCUS, Editorial Política do Estado, 1954. Capa e apresentação gráfica de Mauro Vinhas de Queiroz
HTML: Fernando Araújo.
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Iniciaram-se os levantes camponeses. De diferentes províncias chegam notícias de assaltos dos camponeses às propriedades dos latifundiários e de confisco do trigo e do gado destes últimos por aqueles. As tropas tsaristas, derrotadas em toda a linha pelos japoneses na Manchúria, vingam-se sobre o povo inerme empreendendo expedições contra o inimigo interno: contra os pobres do campo. O movimento operário urbano adquire um novo aliado: o campesinato revolucionário. O problema da atitude que a vanguarda consciente do proletariado, a social-democracia, deve manter em face do movimento camponês assume uma importância prática direta e deve ser colocado na ordem-do-dia imediata em todas as organizações de nosso Partido, em cada intervenção de nossos propagandistas e agitadores.
A social-democracia assinalou repetidas vezes que o movimento camponês coloca diante dela uma dupla tarefa. É absolutamente necessário apoiá-lo e impulsioná-lo porquanto é um movimento democrático-revolucionário. Ao mesmo tempo, devemos manter firmemente nosso ponto-de-vista proletário de classe, organizando o proletariado agrícola, à semelhança do proletariado urbano e junto com ele, num partido de classe independente, explicando-lhe a contraposição hostil de seus interesses e dos do campesinato burguês, exortando-o a lutar pela revolução socialista, indicando-lhe que o caminho para emancipar-se da pressão e da miséria não consiste em transformar várias camadas do campesinato em pequeno-burgueses, e sim em substituir todo o regime burguês pelo regime socialista.
Esta dupla tarefa da social-democracia foi mais de uma vez assinalada na velha Iskra a partir do número 3,(1) isto é, antes mesmo do primeiro movimento camponês de 1902; foi expressa também no programa de nosso Partido, e repetida do mesmo modo em nosso jornal (nº 3)(2). Agora, quando a explicação desta tarefa em sua colocação prática adquire singular importância, é interessante mencionar as observações feitas por Karl Kautsky em seu artigo Os Camponeses e a Revolução na Rússia, publicado na revista social-democrata alemã Die Neue Zeit.(3) Como social-democrata, Kautsky defende inflexivelmente a verdade de que nossa revolução não se coloca hoje a tarefa de levar a cabo a revolução socialista, e sim de eliminar os obstáculos políticos do caminho de desenvolvimento do modo de produção existente, isto é, do capitalista. E Kautsky acrescenta: «O movimento revolucionário urbano deve manter-se neutro na questão das relações entre o campesinato e o latifundiário. Carece de todo fundamento para situar-se entre os camponeses e o latifundiário, para defender o último contra os primeiros; sua simpatia está integralmente do lado do campesinato. Mas, a tarefa do movimento revolucionário urbano não é tampouco, de modo algum, atiçar os camponeses contra os latifundiários, que na Rússia contemporânea não desempenham, em absoluto, o papel que desempenhou, por exemplo, a nobreza feudal francesa nos tempos do velho regime. Diga-se de passagem que a influência que os revolucionários da cidade poderiam exercer sobre as relações entre os latifundiários e os camponeses, mesmo que o quisessem, seria muito pequena. Estas relações serão determinadas pelos próprios latifundiários e camponeses entre si. Para compreender a que se devem estas observações de Kautsky, que tomadas isoladamente poderiam dar origem a não poucas incompreensões, é preciso do mesmo modo não deixar de levar em conta a seguinte observação que faz no final do artigo. «A revolução vitoriosa — diz — não encontraria, certamente, dificuldades especiais ao utilizar os grandes latifúndios dos inimigos jurados da revolução para melhorar as condições de existência dos proletários e dos camponeses.»
O leitor que confrontar atentamente todas estas afirmações de Kautsky verá com facilidade nelas a colocação social-democrata da questão que acabamos de esboçar. Certa falta de exatidão e precisão nas expressões de Kautsky podem ser explicadas pela superficialidade de suas observações e pelo insuficiente conhecimento do programa agrário da social-democracia russa. A essência da questão reside em que a atitude do proletariado revolucionário para com a luta entre os camponeses e os latifundiários não pode ser idêntica em todos os casos e em todas as circunstâncias, diante das diversas peripécias da revolução russa. Em certas condições, em determinadas conjunturas, essa atitude deve ser não só de simpatia, como também de apoio direto, e não só de apoio como de «aguçamento». Em outras condições, esta atitude pode e deve ser de neutralidade. A julgar pelas observações citadas, Kautsky captou fielmente o duplo aspecto de nossa tarefa, diferentemente de nossos «socialistas revolucionários», completamente perdidos nas ilusões vulgares da democracia revolucionária, e de numerosos social-democratas que, à semelhança de Riazanov ou de X., procuravam uma solução «simples» da tarefa, idêntica para todas as combinações. O erro fundamental de tais social-democratas (e de todos os socialistas revolucionários) consiste em que não se atêm ao ponto-de-vista de classe e, procurando uma solução idêntica para todas as combinações, esquecem a dupla natureza do camponês acomodado e do camponês médio. Em seus cálculos, operam, em essência, com apenas duas classes: ou com os latifundiários e a «classe operário-camponesa», ou com os proprietários e os proletários. Mas a realidade é que temos diante de nós três classes diferentes por seus objetivos imediatos e finais: os latifundiários, os camponeses acomodados e, em parte, os camponeses médios e, finalmente, o proletariado. Com semelhante estado de coisas, a tarefa do proletariado não pode, de fato, deixar de ser bilateral, e toda a dificuldade do programa agrário social-democrata e da tática agrária na Rússia consiste em determinar com a maior clareza e exatidão possíveis em que condições é obrigatória para o proletariado a neutralidade, e em que outras, o apoio e o «aguçamento».
A solução deste problema só pode ser uma: junto com a burguesia rural, contra todo o regime da servidão e contra os latifundiários feudais; junto com o proletariado urbano, contra a burguesia rural e contra toda a burguesia: tal é a «linha» do proletariado agrícola e de seu ideólogo social-democrata. Em outras palavras: apoiar e impulsionar o campesinato, inclusive qualquer tipo de apropriação de qualquer «sacrossanta propriedade» senhorial, na medida em que este campesinato atua com espírito democrático-revolucionário. Manter uma atitude de desconfiança em relação ao campesinato, organizar-se à parte dele, estar disposto a lutar contra ele na medida em que atua com espírito reacionário ou anti- proletário. Dito de outra forma: ajuda ao camponês quando sua luta contra o latifundiário é útil ao desenvolvimento e fortalecimento da democracia; neutralidade em relação ao camponês quando sua luta contra o latifundiário se limita a um ajuste de contas, indiferente para o proletariado e para a democracia, entre duas frações da classe dos proprietários agrícolas.
Como é natural, semelhante resposta não satisfará os que abordam o problema camponês sem opiniões teóricas meditadas, os que andam à caça de lemas «revolucionários» (de palavra) oportunos e de grande acolhida, os que compreendem o enorme e sério perigo que representa o aventureirismo revolucionário precisamente na questão camponesa. Em relação a esses elementos — que já agora não são poucos entre nós, pois entre eles figuram os socialistas revolucionários, e que tem o aumento de suas fileiras garantido pelo desenvolvimento da revolução juntamente com o movimento camponês – em relação a esses elementos, os social-democratas devem defender inflexivelmente o ponto-de-vista da luta de classes frente a qualquer vacuidade revolucionária, o cálculo sereno dos elementos heterogêneos do campesinato frente à fraseologia revolucionária. Falando de maneira prática e concreta, a melhor forma de nos aproximarmos da verdade é fazendo a seguinte afirmação: todos os inimigos da social-democracia na questão agrária não levam em consideração que em nosso país, na Rússia europeia, existe toda uma camada de camponeses acomodados (entre 1 500 000 e 2 000 000 de propriedades num total de quase 10 000 000). Esta camada tem em suas mãos não menos da metade de todos os instrumentos de produção e de toda a propriedade de que dispõe o campesinato. Esta camada não pode existir sem contratar assalariados agrícolas e diaristas. É, indubitavelmente, hostil ao regime da servidão, aos latifundiários e ao burocratismo, é capaz de se tornar democrática, mas é ainda mais indubitável sua hostilidade em relação ao proletariado agrícola. Toda tentativa de ocultar, de deixar de lado esta hostilidade de classe no programa e na tática agrários significa abandonar, consciente ou inconscientemente, o ponto-de-vista socialista.
Entre o proletariado agrícola e a burguesia rural se encontra a camada do campesinato médio, em cuja situação existem traços de um e de outro antípoda. Os traços comuns da situação de todas estas camadas, de todo o campesinato em seu conjunto, tornam, sem dúvida, democrático todo o seu movimento, por grandes que sejam umas ou outras manifestações de inconsciência e de espírito reacionário. Nossa tarefa consiste em não nos afastarmos nunca do ponto-de-vista de classe e organizar a mais estreita aliança entre o proletariado urbano e rural. Nossa tarefa consiste em esclarecer, para nós mesmos, e para o povo, o conteúdo autênticamente democrático e revolucionário que encerra a aspiração geral, porém, nebulosa, de «terra e liberdade». Nossa tarefa consiste, por isso, em apoiar e impulsionar com a maior energia esta aspiração, ao mesmo tempo em que preparamos os elementos de luta socialista também no campo.
Para definir exatamente a atitude que deve manter na prática o Partido Operário Social-Democrata diante do movimento camponês, o III Congresso do nosso Partido deve aprovar uma resolução em apoio a esse movimento. É o seguinte o projeto dessa resolução, que formula os pontos-de-vista expostos acima e repetidas vezes desenvolvidos na literatura social-democrata e que deve ser discutido agora pelo maior número possível de militantes do Partido:
«O Partido Operário Social-Democrata da Rússia, como partido do proletariado consciente, aspira a libertar por completo todos os trabalhadores de qualquer exploração e apoia todo movimento revolucionário contra o regime social e político existente. Por isso, o POSDR apoia também com a maior energia o atual movimento camponês, defendendo todas as medidas revolucionárias capazes de melhorar a situação do campesinato, sem se deter para isso diante da expropriação da terra dos latifundiários. Como partido de classe do proletariado, o POSDR aspira invariavelmente à organização de classe independente do proletariado agrícola, sem esquecer um só instante a tarefa de explicar-lhe a contraposição hostil entre seus interesses e os da burguesia rural, de explicar-lhe que só a luta conjunta do proletariado rural e urbano contra toda a sociedade burguesa pode conduzir à revolução socialista, única capaz de libertar autenticamente da miséria e da exploração toda a massa de camponeses pobres.
«Como palavra-de-ordem prática de agitação entre o campesinato e como meio para dar a maior consciência a este movimento, o POSDR lança a de constituição imediata de comitês revolucionários de camponeses a fim de apoiar plenamente todas as transformações democráticas e sua realização em cada caso concreto. Nestes comitês, o POSDR tenderá também à organização independente dos proletários agrícolas, com o objetivo de, por um lado, apoiar todo o campesinato em todas as suas lutas revolucionário-democráticas, e, por outro lado, proteger os verdadeiros interesses do proletariado agrícola em sua luta contra a burguesia rural.»
Notas de rodapé:
(1) Ver a presente recopilação, págs 51/58 [O partido operário e o campesinato]. (Nota da Compilação) (retornar ao texto)
(2) V. I. Lênin, Do Populismo ao Marxismo, Obras, 4.ª ed. em russo, t. 8, págs. 64/70. (Nota da Compilação) (retornar ao texto)
(3) Tempos Novos (Nota da Compilação) (retornar ao texto)