Um Passo em Frente, Dois Passos Atrás

Vladimir Ilitch Lénine


Prefácio


Quando se trava uma luta prolongada, tenaz e apaixonada começam a delinear-se, geralmente ao fim de certo tempo, os pontos de divergência centrais, essenciais, de cuja solução depende o resultado definitivo da campanha, e em comparação com os quais os episódios menores e insignificantes da luta passam cada vez mais para segundo plano.

E o que se passa também com o combate que se trava no seio do nosso partido e que, há já meio ano, chama a atenção de todos os membros do partido. E precisamente porque foi necessário, no esboço de toda a luta que ofereço ao leitor, aludir a uma série de pormenores de interesse mínimo e a inúmeras querelas que não oferecem no fundo qualquer interesse, eu queria, desde o início, chamar a atenção do leitor para duas questões verdadeiramente centrais, essenciais, de enorme interesse e de projecção histórica incontestável, que constituem as questões políticas mais urgentes na ordem do dia do nosso partido.

A primeira diz respeito ao significado político da divisão do nosso partido em «maioria» e «minoria», divisão que tomou forma no segundo congresso do partido(1) e que deixou muito para trás todas as anteriores divisões dos sociais-democratas russos.

A segunda questão diz respeito ao significado de princípio da posição do novo Iskra em matéria de organização, tanto quanto se trata de uma posição efectivamente de princípio.

A primeira questão é a do ponto de partida da luta no nosso partido, a questão da sua origem, das suas causas, do seu carácter político fundamental. A segunda questão é a do resultado final da luta, do seu desenlace, do balanço que, no terreno dos princípios, se obtém somando tudo o que se refere aos princípios e subtraindo tudo o que se refere a querelas mesquinhas. A primeira questão resolve-se analisando a luta no congresso do partido; a segunda analisando o novo conteúdo de princípios do novo Iskra. Uma e outra destas análises, que constituem nove décimos desta brochura, levam à conclusão de que a «maioria» é a ala revolucionária do nosso partido, e que a «minoria» é a sua ala oportunista; as divergências que separam actualmente estas duas alas dizem respeito sobretudo a questões de organização, e não a questões de programa ou de táctica; o novo sistema de concepções que se desenha no novo Iskra com tanto mais clareza quanto mais ele procura aprofundar a sua posição, quanto mais esta posição se vai libertando de todas as querelas sobre a cooptação, é oportunismo em matéria de organização.

O principal defeito da literatura de que dispomos sobre a crise do nosso partido é, no que diz respeito ao estudo e esclarecimento dos factos, a ausência quase total duma análise das actas do congresso do partido, e no que respeita ao esclarecimento dos princípios fundamentais do problema de organização, é a falta de uma análise da ligação que inegavelmente existe entre o erro cometido pelo camarada Mártov e pelo camarada Axelrod na formulação do parágrafo primeiro dos estatutos e a defesa desta formulação, por um lado, e todo o «sistema» (tanto quanto se pode falar aqui de um sistema) dos princípios actuais do Iskra em matéria de organização, por outro lado. Pelos vistos a actual redacção do Iskra não nota sequer esta ligação, embora a importância da discussão do parágrafo primeiro tenha sido já muitas vezes assinalada nas publicações da «maioria». Hoje, os camaradas Axelrod e Mártov em essência não fazem mais do que desenvolver e alargar o seu erro inicial sobre o parágrafo primeiro. Em essência, toda a posição dos oportunistas em matéria de organização começou a revelar-se já na discussão do parágrafo primeiro: na sua defesa de uma organização do partido difusa e não fortemente cimentada; na sua hostilidade à ideia (à ideia «burocrática») da edificação do partido de cima para baixo, a partir do congresso do partido e dos organismos por ele criados; na sua tendência para actuar de baixo para cima, permitindo a qualquer professor, a qualquer estudante do liceu e a «qualquer grevista» declarar-se membro do partido; na sua hostilidade ao «formalismo», que exige a um membro do partido que pertença a uma organização reconhecida pelo partido; na sua tendência para uma mentalidade de intelectual burguês, pronto apenas a «reconhecer platonicamente as relações de organização»; na sua inclinação para essa subtileza de espírito oportunista e as frases anarquistas; na sua tendência para o autonomismo contra o centralismo; numa palavra, em tudo o que hoje floresce tão exuberantemente no novo Iskra, e que contribui para o esclarecimento cada vez mais profundo e evidente do erro inicial.

Quanto às actas do congresso do partido, a falta de atenção verdadeiramente imerecida de que são objecto só pode explicãr-se pelas querelas que envenenam as nossas discussões e possivelmente, além disso, pelo excesso de verdades demasiado amargas que essas actas contêm. As actas do congresso apresentam o quadro da verdadeira situação do nosso partido, quadro único no seu género, insubstituível pela sua exactidão, plenitude, diversidade, riqueza e autenticidade; um quadro das concepções, do estado de espírito e dos planos traçados pelos próprios participantes do movimento, um quadro dos matizes políticos existentes no nosso partido e que mostra a sua força relativa, as suas relações mútuas e a sua luta. As actas do congresso do partido, e só elas, mostram-nos em que medida nós conseguimos verdadeiramente varrer tudo o que restava das velhas relações puramente de círculos e conseguimos substituí-las por uma única grande ligação, a de partido. Todo o membro do partido desejoso de participar conscientemente nos assuntos do seu partido deve estudar com cuidado o nosso congresso do partido, precisamente: estudar, porque a simples leitura do amontoado de materiais brutos que as actas contém é insuficiente para dar um quadro do congresso. Só com um estudo minucioso e independente se pode conseguir (e deve-se procurar fazê-lo) fundir num todo os resumos sucintos dos discursos, os excertos secos dos debates, as pequenas controvérsias sobre questões secundárias (secundárias na aparência), para que ante os membros do partido surja o rosto vivo de cada orador destacado, se revele com precisão a fisionomia política de cada um dos grupos de delegados ao congresso do partido. O autor destas linhas considerará que o seu trabalho não terá sido em vão se conseguir pelo menos dar um impulso ao estudo, amplo e individual, das actas do congresso do partido.

Ainda uma palavra a respeito dos adversários da social-democracia. Eles seguem com caretas de alegria maligna as nossas discussões; evidentemente procurarão utilizar para os seus fins algumas passagens isoladas desta brochura dedicada aos defeitos e lacunas do nosso partido. Os sociais-democratas russos estão já suficientemente temperados nas batalhas para não se deixarem perturbar por essas alfinetadas, e para prosseguir, apesar delas, o seu trabalho de autocrítica, continuando a revelar implacavelmente as suas próprias lacunas, que serão corrigidas, necessária e seguramente, pelo crescimento do movimento operário. E que os senhores adversários tentem apresentar-nos da situação verdadeira dos seus próprios «partidos» um quadro que se pareça, mesmo de longe, com o que apresentam as actas do nosso segundo congresso!

Maio de 1904.

N. Lénine


Nota de rodapé:

(1) O II Congresso do POSDR realizou-se de 17 (30) de Julho a 10 (23) de Agosto de 1903. As primeiras 13 sessões do congresso efectuaram-se em Bruxelas. Depois, devido às perseguições por parte da polícia, as sessões do congresso foram transferidas para Londres.

As mais importantes questões do congresso eram a aprovação do programa e dos estatutos do partido, e as eleições dos seus centros dirigentes. Lénine e os seus partidários travaram no congresso uma luta decidida contra os oportunistas.

O congresso aprovou por unanimidade (com uma abstenção) o programa do partido, em que foram formuladas tanto as tarefas imediatas do proletariado e da próxima revolução democrático-burguesa (programa mínimo), como as tarefas que visavam a vitória da revolução socialista e o estabelecimento da ditadura do proletariado (programa máximo).

No decurso das discussões sobre os estatutos do partido travou-se uma luta aguda quanto à questão dos princípios organizativos da edificação do partido.

Lénine e os seus partidários lutavam pela criação de um partido revolucionário combativo da classe operária e consideravam necessário que se adoptassem estatutos que dificultassem a adesão ao partido de todos os elementos instáveis e vacilantes. A formulação de Mártov, que tornava mais fácil a adesão ao partido de todos os elementos instáveis, foi apoiada no congresso não só pelos anti-iskristas e pelo «pântano» («centro»), como também pelos iskristas brandos, e foi aprovada pelo congresso por uma insignificante maioria de votos. Mas, no fundamental, o congresso aprovou os estatutos elaborados por Lénine. O congresso aprovou também uma série de resoluções sobre as questões de táctica.

No congresso deu-se a cisão entre os partidários consequentes da orientação iskrista, leninistas, e os iskristas brandos partidários de Mártov. Os partidários da orientação leninista obtiveram a maioria dos votos durante as eleições dos organismos centrais do partido e passaram a ser denominados bolcheviques (da palavra russa bolchinstvó, que quer dizer maioria), enquanto os oportunistas, que obtiveram a minoria, receberam a denominação de mencheviques (da palavra russa menchinstvó, que quer dizer minoria).

O congresso teve um enorme significado para o desenvolvimento do movimento operário na Rússia. Ele acabou com o trabalho artesanal e com o espírito de círculo no movimento social-democrata e deu início a um partido marxista revolucionário na Rússia, o partido dos bolcheviques. (retornar ao texto)

Inclusão: 27/12/2002
Última modificação: 04/03/2024