O programa agrário da social-democracia russa

Vladimir Ilitch Lênin

Março de 1902


Primeira edição: Escrito durante fevereiro e a primeira quinzena de março de 1902. Publicado, pela primeira vez, com a assinatura de N. Lênin, em agosto de 1902, no nº 4 da revista Zariá. V. I. Lênin, Obras, 4ª ed. em russo, t. 6, págs. 89/130.

Fonte: A aliança operário-camponesa, Editorial Vitória, Rio de Janeiro, Edição anterior a 1966 - págs. 59-96

Tradução: Renato Guimarães, Fausto Cupertino Regina Maria Mello e Helga Hoffman de "La Alianza de la Clase Obrera y el Campesinado", publicado por Ediciones en Lenguas Extranjeiras, Moscou, 1957, que por sua vez foi traduzido da edição soviética em russo, preparada pelo Instituto de Marxismo-Leninismo adjunto ao CC do PCUS, Editorial Política do Estado, 1954. Capa e apresentação gráfica de Mauro Vinhas de Queiroz

HTML: Fernando Araújo.

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I

capa

Não acho que seja preciso demonstrar detalhadamente a necessidade de um «programa agrário» para o Partido Social-Democrata russo. Entendemos por programa agrário a definição dos princípios que orientam a política social-democrata no problema agrário, isto é, em relação à agricultura, às diferentes classes, camadas e grupos da população do campo. Como é natural, num país tão «camponês» como a Rússia, o programa agrário dos socialistas deve ser primordialmente, senão exclusivamente, um «programa camponês», um programa que defina a atitude frente ao problema camponês. Em qualquer país capitalista, inclusive a Rússia, os três grupos principais que integram a população agrícola são: grandes proprietários de terras, operários agrícolas assalariados e «camponeses». O quanto há, por si mesmo, de claro e preciso na atitude dos social-democratas para com os dois primeiros grupos citado (proprietários de terras e operários), há de impreciso no conceito mesmo de «campesinato», e por maior razão ainda em nossa política em relação aos problemas cardiais de sua vida e evolução. Se no Ocidente toda a medula do programa agrário dos social-democratas reside precisamente no «problema camponês», na Rússia deve acontecer o mesmo, mas em grau muito maior. Nos, os social-democratas russos, necessitamos muito mais de definir de modo inequívoco nossa política no problema camponês, pois nossa tendência ainda é, na Rússia, uma tendência muito jovem, e porque todo o velho socialismo russo era, em última instância, um socialismo «camponês». É certo que essa massa de «radicais» russos, que se consideram os destinatários da herança legada por nossos socialistas populistas dos mais diversos matizes, já quase nada resta de socialista. Mas, todos eles tanto mais se empenham em colocar em primeiro plano suas divergências conosco no problema «camponês» quanto mais prazer encontram em esconder o fato de que já surgiu no cenário da vida social e política da Rússia a questão «operária», que nesta questão carecem de toda base firme e que, nove décimos deles desempenham nela fundamentalmente o papel de reformadores sociais, burgueses dos mais vulgares. Finalmente, os numerosos «críticos do marxismo», quase totalmente fundidos sob este aspecto com os radicais (ou liberais?) russos, também procuram fazer finca-pé justamente na questão camponesa, que é, segundo afirmam, aquela em que o «marxismo ortodoxo» mais foi desprestigiado pelos «novíssimos trabalhos» dos Bernstein, dos Bulgakov, dos David, dos Hertz e inclusive. . . dos Chernov!

Pois bem, além das incompreensões teóricas e da luta entre as tendências «avançadas», as exigências puramente práticas do próprio movimento colocam nestes últimos tempos a tarefa de organizar a propaganda e a agitação no campo. Mas, é impossível levar isto a cabo de uma maneira mais ou menos séria e ampla sem um programa que se atenha firmemente aos princípios e seja congruente do ponto-de-vista político. É os social-democratas reconheceram toda a importância do «problema camponês» desde o momento mesmo em que surgiram como tendência independente. Recordemos que no projeto de programa dos social-democratas, elaborado pelo grupo Emancipação do Trabalho e publicado em 1885, figura a exigência de uma «revisão radical das relações agrárias (condições do resgate e da entrega de terras aos camponeses)».(1) Na brochura As Tarefas dos Socialistas na Luta Contra a Fome na Rússia (1892), G. Plekhanov também fala da política social-democrata na questão camponesa.

É muito natural, portanto, que Iskra(23) tivesse publicado em um de seus primeiros números (nº 3, abril de 1901) um esboço de programa agrário, definindo no artigo O Partido Operário e o Campesinato(2) sua atitude ante os princípios fundamentais da política agrária dos social-democratas russos. O artigo em questão provocou incompreensões em numerosos social-democratas russos. Recebemos na redação numerosas observações e cartas por motivo da publicação deste artigo. O ponto que mais objeções despertou é o que se refere à devolução das parcelas, e já nos dispúnhamos a abrir um debate em torno deste problema nas páginas de Zariá(24) quando apareceu o n° 10 de Rabotcheie Dielo(25) com um artigo de Martinov, no qual analisa, entre outras coisas, o programa agrário de Iskra. Em vista do fato de Rabotcheie Dielo resumir muitas das objeções em curso, esperamos que nossos correspondentes não levem a mal que, per enquanto, apenas respondamos a Martinov.

Digo e ressalto por enquanto devido às seguintes circunstâncias. O artigo publicado em Iskra foi escrito por um dos membros de seu conselho de redação, e os demais, ainda que se solidarizando com o autor na colocação geral da questão, podiam, como é natural, sustentar opiniões diferentes quanto aos detalhes particulares, quanto a tais ou quais pontos. Por isso então, todo o nosso conselho de redação (isto é, inclusive o grupo Emancipação do Trabalho) estava dedicado a elaborar coletivamente o projeto de programa de nosso Partido, que haveria de expressar o ponto-de-vista de toda a redação. Este trabalho se prolongou (em parte por causa de diversos assuntos do Partido e de circunstâncias ligadas às necessidades conspirativas, e em parte pela necessidade de convocar um congresso para discutir todos os aspectos do programa) e não havia terminado até estes últimos dias. Ainda que o ponto relativo à devolução das parcelas não representasse senão minha opinião particular, não me apressei a defendê-lo pois me importava muito mais a colocação geral de nossa política agrária do que este ponto concreto, que ainda poderia ser rechaçado ou modificado substancialmente em nosso projeto comum. Agora me dedicarei a defender este projeto comum. É ao «leitor amigo» que não foi inconveniente ao comunicar-nos suas observações críticas a nosso programa agrário, pedir-lhe-emos que se disponha agora a criticar nosso projeto comum.

II

Exporemos integralmente a parte «agrária» deste projeto. «A fim de acabar com os restos do velho regime da servidão e em interesse do livre desenvolvimento da luta de classes no campo, o Partido Operário Social-Democrata da Rússia lutará para:

  1. Que se suprimam os resgates e os tributos, assim como todas as cargas a que está submetido atualmente o campesinato como casta tributável;
  2. Que se suprimam a caução solidária e todas as leis que impedem o camponês de dispor de sua terra;
  3. Que se devolva ao povo o dinheiro que lhe foi arrebatado em forma de resgates e tributos; que se confisquem com este objetivo os bens da Igreja e as propriedades da coroa e se institua um imposto especial que grave as propriedades dos grandes latifundiários da nobreza, os quais lucraram com o subsídio do resgate; que se forme um fundo popular especial constituído pelas somas assim obtidas e destinado às necessidades culturais e beneficentes das comunidades rurais;
  4. Que se instituam comitês camponeses:
  1. para devolver às comunidades rurais (mediante expropriação, resgate — no caso de as terras terem passado por várias mãos, etc.) as terras que foram arrebatadas aos camponeses pelo parcelamento durante a abolição do regime da servidão e que em mãos dos latifundiários são um instrumento para avassalar os camponeses;
  2. para acabar com os restos do regime da servidão, que ainda persistem nos Urais, no Altai, no Território Ocidental e em outras zonas do país;
  1. Que se conceda aos tribunais o direito de rebaixar os preços abusivos dos arrendamentos e a declarar nulos os contratos de caráter leonino.»

O leitor talvez se surpreenda com o fato de que no «programa agrário» não figure qualquer reivindicação em favor dos operários assalariados do campo. A este propósito, diremos que tais reivindicações foram incluídas no capítulo precedente do programa, em que figuram as reivindicações que nosso Partido propõe «para preservar a classe operária da degeneração física e moral e para elevar sua capacidade de luta por sua emancipação». As palavras sublinhadas compreendem todos os operários assalariados, inclusive os operários agrícolas, e os 16 pontos deste capítulo do programa se referem também aos operários agrícolas.

Este agrupamento dos operários industriais e agrícolas num mesmo capítulo, deixando para a parte «agrária» do programa tão-somente as reivindicações «camponesas» tem certamente o inconveniente de que as reivindicações em favor dos operários não saltam à vista, não são advertidas à primeira vista. Um exame superficial do programa pode dar inclusive a impressão totalmente falsa de que deixamos intencionalmente à sombra as reivindicações em favor dos operários assalariados agrícolas. É inútil dizer que semelhante ideia é profundamente errônea. Este inconveniente tem um caráter puramente externo e é facilmente superável quando se examina com mais atenção o programa e os comentários ao mesmo programa (é claro que o programa de nosso Partido «irá ao povo» acompanhado obrigatoriamente de comentários, tanto escritos como — e isto é o mais importante — orais). Se algum grupo quer dirigir-se de um modo especial aos operários agrícolas, terá apenas de destacar entre todas as reivindicações em favor dos operários justamente aquelas que têm mais importância para os assalariados agrícolas, diaristas, etc., e expô-las num folheto à parte, num jornal ou numa série de palestras.

Do ponto-de-vista dos princípios, a única forma correta de redigir os capítulos em questão do programa consiste precisamente em agrupar todas as reivindicações em favor dos operários assalariados de todos os ramos da economia nacional, separando rigorosamente num capítulo especial as reivindicações em favor dos «camponeses», pois o critério básico que servirá para determinar o que podemos e devemos exigir é completamente diferente em um ou outro caso. As palavras que no projeto servem de introdução a cada capítulo expressam a diferença de princípio que existe entre os dois capítulos em questão.

Para os operários assalariados exigimos reformas que os «preservem da degenerescência física e moral e elevem sua capacidade de luta»; em troca, para os camponeses só exigimos transformações que contribuam para «acabar com os restos do velho regime da servidão e para o livre desenvolvimento da luta de classes no campo». Vemos, pois, que nossas reivindicações em favor dos camponeses são muito mais restritas, estão marcadas por exigências muito mais modestas e têm limites mais estreitos. No que concerne aos operários assalariados, assumimos a defesa de seus interesses como classe da sociedade contemporânea; e assim fazemos porque consideramos seu movimento de classe como o único movimento verdadeiramente revolucionário (comparem- -se na exposição de princípios do programa as palavras que se referem à atitude da classe operária ante as demais classes) e porque nosso empenho é organizar, orientar e esclarecer com a luz da consciência socialista justamente este movimento. Por outro lado, no que diz respeito ao campesinato, não assumimos de modo algum a defesa de seus interesses como classe de pequenos proprietários e agricultores da sociedade contemporânea. Nada disso. «A emancipação da classe operária deve ser obra da própria classe operária», e, por isso, a social-democracia representa — de um modo integral e imediato — exclusivamente os interesses do proletariado e aspira a fundir-se em um todo indissolúvel tão-somente com seu movimento de classe. Todas as demais classes da sociedade contemporânea são partidárias de que sejam conservados os fundamentos do regime econômico vigente, razão pela qual a social-democracia só pode assumir a defesa dos interesses destas classes em determinadas circunstâncias e sob condições muito precisas.

Por exemplo, a classe dos pequenos produtores, inclusive os pequenos agricultores, é, em sua luta contra a burguesia, uma classe reacionária, e, por isso, «procurar salvar o campesinato defendendo a pequena exploração e a pequena propriedade contra a pressão do capitalismo, significaria frear inutilmente o desenvolvimento social, enganar o camponês com a ilusão de um possível bem-estar sob o capitalismo e dividir as classes trabalhadoras, criando uma situação privilegiada para uma minoria às expensas da maioria» (Iskra, nº 3).(3) Por isso, em nosso projeto de programa as reivindicações «camponesas» estão marcadas por duas condições muito estreitas. Subordinamos a legitimidade das «reivindicações camponesas» no programa social-democrata, em primeiro lugar, à condição de que conduzam à supressão dos restos do regime da servidão, e, em segundo lugar, à condição de que contribuam para o livre desenvolvimento da luta de classes no campo.

Examinemos mais detalhadamente cada uma destas condições, já ligeiramente esboçadas no n.º 3 de Iskra.

«Os restos do velho regime da servidão» são ainda muito grandes em nosso campo. Este é um fato bem notório. Os pagamentos em trabalho e o avassalamento, o regime de desigualdade de castas e de estado civil em que se encontra o camponês, sua submissão pelo latifundiário privilegiado, que o trata a chicotadas, sua vida oprimida, que o converte num verdadeiro bárbaro, tudo isto não é uma exceção, mas sim uma regra do campo russo e constitui, em última instância, uma sobrevivência direta do regime da servidão. Nos casos e nas condições em que ainda impera este regime, e tanto quanto ele ainda impera, seu inimigo é o campesinato como um todo. Frente à servidão, frente aos latifundiários feudais e o Estado a seu serviço, o campesinato ainda contínua sendo uma classe, mas não uma classe da sociedade capitalista, e sim precisamente uma classe da sociedade do regime da servidão, isto é, uma classe-casta.(4) É uma vez que em nosso campo ainda persiste este antagonismo de classe, próprio da sociedade do regime da servidão, entre o «campesinato» e os latifundiários privilegiados, o partido operário deve estar, indubitavelmente, do lado do «campesinato», deve apoiar sua luta e impeli-lo a lutar contra todos os restos da servidão.

Colocamos entre aspas a palavra campesinato para indicar a existência neste caso de uma contradição que está fora de qualquer dúvida: na sociedade contemporânea, o campesinato já não é, naturalmente, uma classe unida. É se alguém se surpreende com tal contradição é porque se esquece de que não se trata de uma contradição derivada da exposição ou implícita na doutrina, e sim de uma contradição da própria vida. Não é uma contradição inventada, e sim uma contradição dialética viva. Uma vez que a sociedade do regime da servidão está sendo substituída em nosso campo pela sociedade «contemporânea» (burguesa), o campesinato deixa de ser uma classe, dividindo-se em proletariado agrícola e burguesia rural (grande, média, pequena e pequeníssima). Uma vez que ainda se conservam as relações do regime da servidão, o «campesinato» contínua sendo uma classe, isto é, repetimos, uma classe não da sociedade burguesa, mas sim da sociedade do regime da servidão. Estes «uma vez que» representam uma realidade viva que se manifesta neste extremamente complexo entrelaçamento das relações próprias do regime da servidão e do regime burguês que se observa atualmente no campo russo. Expressando-nos em termos usados por Marx, diremos que a renda em trabalho, a renda em mercadoria, a renda em dinheiro e a renda capitalista se entrelaçam em nosso país do modo mais caprichoso. Empenhamo-nos em destacar esta circunstância, estabelecida por todas as pesquisas econômicas referentes à Rússia, porque ela é necessária e inevitavelmente a origem dessa complexidade, dessa confusão, dessa artificialidade, se se prefere, de algumas de nossas reivindicações «agrárias» que tanto surpreendem a_ muitos à primeira vista. Quem se limitar em suas objeções a expressar um descontentamento geral por esta complexidade e «artificialidade» das soluções propostas, esquece que não se pode dar uma solução fácil a problemas tão complicados. Temos de lutar contra todos os restos das relações do regime da servidão. Este é um fato que não oferece qualquer dúvida para os social-democratas. Mas, como tais relações se entrelaçam da forma mais complexa com as relações burguesas, vemo-nos obrigados a entrar no próprio miolo, por assim dizer, desta confusão, sem nos deixarmos intimidar pela complexidade de nossa tarefa. Como solução «simples» não pode haver mais do que uma: isolar-se, passar ao largo, deixar que o «elemento espontâneo» desfaça todo este embrulho. Mas esta «simplicidade» tão do agrado de todos esses burgueses e «economistas»(26) de todo ipo, que rendem culto à espontaneidade, é indigna de um social-democrata. O Partido do proletariado não só deve apoiar o campesinato em sua luta contra todos os restos do regime da servidão, mas deve, também, impulsioná-lo nessa luta, e para isso não basta limitar-se a expressar desejos gerais, mas é preciso dar uma orientação revolucionária concreta, é preciso saber ajudar a ver claro em toda essa confusão das relações agrárias.

III

Para que o leitor possa compreender mais claramente a inevitabilidade de uma solução complexa do problema agrário, pedir-lhe-emos que compare neste sentido o capítulo operário e o capítulo camponês do programa. No primeiro, todas as soluções são extremamente simples, estão ao alcance até de pessoas muito pouco versadas e muito pouco acostumadas a meditar; são soluções «naturais», próximas, facilmente realizáveis. No segundo, ao contrário, a maioria das soluções é extraordinariamente complexa, «incompreensível» à primeira vista, artificial, conta com poucas probabilidades e é de difícil realização. Como se explica esta diferença? Não será porque no primeiro caso os autores do programa meditaram sobre as coisas com lucidez e espírito prático, enquanto que na segunda se desorientaram e se enrascaram, caindo no romanticismo e no jogo de palavras? Para dizer a verdade, tal explicação seria demasiado «simples», seria de uma simplicidade infantil, e não estranhamos que Martinov se tenha agarrado a ela. Ele não pensou que o próprio desenvolvimento econômico facilitou e simplificou ao extremo a solução prática dos pequenos problemas operários. As relações econômico-sociais na grande produção capitalista chegaram a ser a tal ponto transparentes, claras e simples (e o são cada vez mais), que os passos mais imediatos do avanço tornam-se evidentes por si mesmos e saltam aos olhos à primeira vista. Pelo contrário, a substituição da servidão no campo pelo capitalismo embrulhou e complicou de tal modo as relações econômico-sociais, que é preciso meditar muito sobre a solução dos problemas práticos mais imediatos (no espírito da social-democracia revolucionária), podendo-se afirmar de antemão, com toda segurança, que não será possível imaginar uma solução «simples».

A propósito. Já que nos pusemos a comparar o capítulo operário e o capítulo camponês do programa, apontaremos outra diferença de princípio entre ambos. Em poucas palavras, esta diferença poderia ser expressa assim: no capítulo operário não estamos autorizados a rebaixar o limite das reivindicações que se referem a reformas sociais, enquanto que no capítulo camponês não devemos deter-nos nem mesmo ante as reivindicações sociais revolucionárias. Em outras palavras: no capítulo operário estamos indubitavelmente limitados ao marco do programa mínimo, enquanto que no capítulo camponês podemos e devemos dar o programa máximo.(5) Explicar-nos-emos.

Nos dois capítulos não expomos nosso objetivo final, e sim nossas reivindicações imediatas. Por conseguinte, tanto em um como em outro devemos ater-nos à sociedade contemporânea (= burguesa). Nisto consiste a analogia entre os dois capítulos. Mas, sua diferença radical consiste em que o capítulo operário contém reivindicações dirigidas contra a burguesia, enquanto que o capítulo camponês contém reivindicações dirigidas contra os senhores latifundiários (contra os senhores feudais, diria eu, se a possibilidade de aplicar este termo a nossa nobreza latifundiária não fosse uma questão tão debatida).(6) No capítulo operário devemos limitar-nos a exigir melhoras parciais do regime existente, do regime burguês. No capítulo camponês, devemos aspirar a depurar integralmente este regime de todos os vestígios da servidão. No capítulo operário não podemos colocar reivindicações que equivalham por seu significado ao esfacelamento definitivo do domínio da burguesia; quando alcançarmos este nosso objetivo final — suficientemente destacado em outro lugar do programa e que não perdemos de vista «nem um só instante» ao lutar pelas reivindicações imediatas —, então nós, o partido do proletariado, já não nos limitaremos a problemas como o da responsabilidade dos patrões ou o das casas para operários nas fábricas, mas tomaremos em nossas mãos e disporemos integralmente de toda a produção social e, por conseguinte, também da distribuição. No capítulo camponês, pelo contrário, podemos e devemos colocar reivindicações que equivalham por seu significado à liquidação definitiva do domínio dos senhores latifundiários, a fim de limpar completamente nosso campo de todos os vestígios da servidão. No capítulo operário não podemos colocar como reivindicações imediatas as de caráter social revolucionário, pois uma revolução social que derrube o domínio da burguesia já é a revolução do proletariado e põe em prática nosso objetivo final. No capítulo camponês colocamos também reivindicações sociais revolucionárias, pois uma revolução social que derrube o domínio dos senhores latifundiários (quer dizer, uma revolução social da burguesia como foi a grande Revolução Francesa) também é possível sobre a base do regime existente, do regime burguês. No capítulo operário continuamos a nos ater às reformas sociais (por enquanto e condicionalmente, com nossos propósitos objetivos e intenções, mas, apesar de tudo, continuamos a nos ater a elas), pois nele só exigimos o que a burguesia nos pode (em princípio) ceder sem ainda perder o seu domínio (e que por isso mesmo os Sombart, os Bulgakov, os Struve, os Prokopovitch e companhia lhe aconselham de antemão a cederem razoavelmente de boa vontade). Ao contrário, no capítulo camponês, devemos exigir, também, diferentemente dos reformadores sociais, o que nunca nos cederão nem nos podem ceder (ou aos camponeses) os senhores latifundiários; devemos exigir também o que o movimento revolucionário do campesinato só pode conquistar pela força.

IV

Essa é a razão de ser insuficiente e inaceitável o «simples» critério da «factibilidade» com que Martinov «pulveriza» tão «facilmente» nosso programa agrário. Este critério da «factibilidade» próxima e imediata só é aplicável em geral aos capítulos e pontos do nosso programa que têm um caráter claramente reformador, mas de modo algum ao programa de um partido revolucionário em geral. Em outras palavras: este critério só é aplicável a nosso programa a título de exceção, mas de modo algum como regra geral. Nosso programa deve ser realizável unicamente no amplo sentido desta palavra, em seu sentido filosófico, de modo que nem uma só de suas palavras se ache em contradição com a tendência de toda a evolução econômico-social. É uma vez que determinamos acertadamente esta tendência (no geral ou no particular), estamos obrigados, em nome de nossos princípios revolucionários e de nosso dever revolucionário, a lutar com todas as nossas forças, sempre e em toda parte, por nossas reivindicações máximas. Decidir de antemão, antes do desenlace definitivo da luta e no curso da mesma, que provavelmente não alcançaremos todas as nossas reivindicações máximas, significa cair no mais puro filisteísmo.

Tais considerações conduzem sempre ao oportunismo, mesmo que seus autores não o queiram.

De fato, acaso não é filisteísmo esse raciocínio de Martinov, que acusa de «romanticismo» o programa agrário de Iskra «porque a incorporação da massa camponesa a nosso movimento é, nas condições atuais, muito problemática?» (Rabotchele Dielo, n° 10, pág. 58, assinalado por mim). Eis aí uma boa amostra desses raciocínios falaciosos tão «plausíveis» e baratos, utilizados para simplificar a social-democracia russa e convertê-la em economismo. Mas, se se pensar bem, este raciocínio «plausível» se converte numa bolha de sabão. «Nosso movimento» é o movimento operário social-democrata. A massa camponesa não pode, de modo algum, «incorporar-se» a ele; isto não é problemático, e sim impossível, e jamais se tratou disto. Mas a massa camponesa não pode deixar de se incorporar ao «movimento» dirigido contra todos os vestígios da servidão (e inclusive contra o absolutismo). Martinov complicou o problema com a expressão «nosso movimento», sem parar para meditar sobre a diferença essencial que existe entre o caráter do movimento dirigido contra a burguesia e do movimento dirigido contra a servidão.(7)

O que se pode qualificar de problemático não é de modo algum a incorporação da massa camponesa ao movimento dirigido contra os vestígios da servidão, mas tão-somente o grau desta incorporação: as relações do regime da servidão estão no campo terrivelmente entrelaçadas com as relações burguesas, e os camponeses (os pequenos agricultores), como classe da sociedade burguesa, são um elemento muito mais conservador do que revolucionário (sobretudo porque a evolução burguesa das relações agrárias ainda se acha em nosso país em estado incipiente). Por isso que, na época das transformações políticas, será muito mais fácil ao governo dividir os camponeses (do que, por exemplo, os operários), lhe será muito mais fácil debilitar (ou paralisar, no pior dos casos) seu espírito revolucionário fazendo pequenas concessões de pouca importância a um número relativamente reduzido de pequenos proprietários.

Tudo isto é assim. Mas, que se deduz disto? Quanto mais fácil for ao governo chegar a um acordo com os elementos conservadores do campesinato, mais nos devemos esforçar e apressar para chegar a um acordo com seus elementos revolucionários. Nosso dever consiste em determinar com a máxima exatidão científica possível em que direção temos de apoiar estes elementos e, em seguida, impeli-los a uma luta resoluta e incondicional contra todos os vestígios da servidão, impeli-los sempre, em todas as circunstâncias e com todos os meios a nosso alcance. É acaso não é puro filisteísmo esta tentativa de «prefixar» até que ponto terá êxito o nosso impulso? A vida encarregar-se-á de resolvê-lo e a história de consigná-lo, e, no que diz respeito, nosso dever atual é lutar em todos os casos, lutar até o fim. Acaso um soldado que já se lançou ao ataque se atreveria a parar e pensar que talvez não se consiga aniquilar todo o corpo inimigo, mas tão-somente suas três quintas partes? Acaso não é também problemática, no sentido martinoviano, uma reivindicação como, por exemplo, a que exige a implantação da república? Será ainda mais fácil ao governo livrar-se deste título com uma pequena amortização, do que livrar-se do título das reivindicações camponesas tendentes a abolir todos os vestígios da servidão. Mas, que nos importa isso? Embolsaremos a pequena amortização, naturalmente, mas sem deixar nem um só momento de lutar encarniçadamente para que se nos pague todo o título. Precisamos difundir mais amplamente a ideia de que só com a república pode ter lugar a batalha decisiva entre o proletariado e a burguesia, precisamos criar(8) e consolidar uma tradição republicana entre todos os revolucionários russos e entre as mais amplas massas operárias russas, precisamos dizer com a palavra-de-ordem «república» que na luta pela democratização do regime político iremos até o fim, sem olhar para trás, e a própria luta se encarregará de decidir quando, de que modo e que parte deste título conseguiremos que nos paguem. Seria estúpido procurar calcular esta parte antes que tenhamos feito sentir ao inimigo toda a força de nossos golpes e antes que nós mesmos tenhamos experimentado toda a força de seus golpes. Do mesmo modo, e no que diz respeito às reivindicações camponesas, nossa missão é determinar, à base dos dados científicos, quais serão as reivindicações máximas e ajudar os camaradas a lutar por elas, deixando que se riam de seu caráter «problemático» os sensatos críticos legais, e os «seguidores» ilegais tão amantes da tangibilidade dos resultados.(9)

V

Passemos à segunda tese geral, que é a que determina o caráter de todas as nossas reivindicações camponesas e está expressa nas palavras: «...no interesse do livre desenvolvimento da luta de classes no campo...»

Estas palavras têm extraordinária importância, tanto para a colocação de princípio do problema agrário em geral, como para a valorização das distintas reivindicações agrárias em particular. A reivindicação de acabar com os restos do regime da servidão é colocada por nós e por todos os liberais consequentes, pelos populistas, pelos reformistas sociais, pelos críticos do marxismo na questão agrária, etc. Ao formular esta reivindicação, o que nos distingue de todos esses senhores não é uma questão de princípio, e sim uma questão de grau: neste ponto, eles também ficaram, sempre e inevitavelmente, no marco das reformas, enquanto que nós nem sequer nos deteremos (no sentido indicado mais acima) ante as reivindicações sociais revolucionárias. Pelo contrário, ao exigir que se garanta «o livre desenvolvimento da luta de classes no campo», contrapomo-nos no terreno dos princípios a todos esses senhores e inclusive a todos os revolucionários e socialistas não social-democratas. Estes últimos tampouco se deterão ante as reivindicações sociais revolucionárias no problema agrário, mas não quererão subordiná-las precisamente à condição do livre desenvolvimento da luta de classes no campo. Esta condição é o ponto central e fundamental da teoria do marxismo revolucionário na questão agrária.(10) Reconhecer esta condição significa reconhecer que a evolução da agricultura, apesar de toda a sua complicação e complexidade, apesar de toda a variedade de suas formas, é também uma evolução capitalista; que também ela (como a evolução da indústria) engendra a luta de classes entre o proletariado e a burguesia; que justamente esta luta de classes deve constituir nossa primeira e fundamental preocupação, deve ser a pedra de toque em que haveremos de contrastar as questões de princípio, as tarefas políticas e os métodos de propaganda agitação e organização. Reconhecer esta condição significa que no problema particularmente espinhoso da participação do pequeno camponês no movimento social-democrata também se adota um ponto-de-vista rigorosamente classista, significa que não se renuncia nem um pouco ao ponto-de-vista do proletariado em favor dos interesses da pequena burguesia, mas que, pelo contrário, se exige que o pequeno camponês, que está sendo arruinado e oprimido por todo o capitalismo moderno, abandone seu ponto-de-vista classista e adote o ponto-de-vista do proletariado.

Ao colocar esta condição criaremos um abismo que nos separará resoluta e definitivamente não só de nossos inimigos (isto é, dos partidários diretos ou indiretos, conscientes ou inconscientes da burguesia, que são nossos aliados temporários e parciais na luta contra os restos do regime da servidão), mas também daqueles amigos inseguros que com sua ambígua colocação da questão agrária podem causar um grave prejuízo (de fato o causam) ao movimento revolucionário do proletariado.

Ao colocar esta condição, estendemos o fio condutor, sob cuja orientação os social-democratas, mesmo os que vivem isolados em qualquer aldeia perdida, mesmo os que têm de se enfrentar com as relações agrárias mais embrulhadas, que colocam em primeiro plano as tarefas de caráter democrático geral, podem aplicar e destacar seu ponto-de-vista proletário ao resolver estas tarefas; exatamente do mesmo modo como nós continuamos sendo social-democratas ao resolver as tarefas políticas de caráter democrático geral.

Ao colocar esta condição, já damos uma resposta a essa objeção que a muitos ocorre ao conhecer superficialmente as reivindicações concretas de nosso programa agrário: «Devolver os resgates e as parcelas às comunidades rurais?» Que foi feito então de nosso particularismo proletário e de nossa independência proletária? Não representará isso, no fundo, um presente para a burguesia rural?

Claro que sim; mas unicamente no sentido em que a própria destruição do regime da servidão foi também «um presente para a burguesia», quer dizer, uma libertação do desenvolvimento burguês — precisamente do burguês e não e qualquer outro — dos obstáculos e empecilhos feudais. O proletariado se distingue das demais classes oprimidas pela burguesia e opostas a ela precisamente porque não deposita suas esperanças na detenção do desenvolvimento burguês, estagnação ou na suavização da luta de classes e sim, pelo contrário, em seu desenvolvimento mais livre e completo, na aceleração do progresso burguês.(11) Na sociedade capitalista em desenvolvimento não se pode destruir os restos da servidão que obstaculizam esse desenvolvimento sem reforçar e consolidar com isso a burguesia. «Perturbar-se» com isto significa repetir o erro daqueles socialistas que diziam que não necessitávamos em absoluto da liberdade política, pois esta fortaleceria e consolidaria a burguesia.

VI

Depois de haver examinado a «parte geral» de nosso programa agrário, passemos à análise de algumas de suas reivindicações. Aqui tomaremos a liberdade de não começar pelo primeiro ponto, e sim pelo quarto (o que se refere às parcelas), pois é, precisamente, o ponto central, o mais importante, o que dá um caráter particular ao programa agrário e, ao mesmo tempo, o mais vulnerável (pelo menos no entender da maioria dos que expressaram sua opinião sobre o artigo publicado no n° 3 de Iskra).

Recordemos que o conteúdo deste ponto consta das seguintes partes:

  1. Exige a instituição de comitês camponeses autorizados para estabelecer novas normas naquelas relações agrárias que são uma sobrevivência direta da servidão. A expressão «comitês camponeses» foi escolhida pan» indicar claramente que, em oposição à «reforma» de 1861, com seus comitês de nobres, a nova regulamentação deverá estar nas mãos dos camponeses e não dos latifundiários. Em outras palavras: a liquidação definitiva das relações do regime da servidão não é encomendada aos opressores, e sim à parte da população oprimida por essas relações; não é encomendada à minoria, e sim à maioria das pessoas interessadas nessa liquidação. No fundo, não se trata mais de uma revisão democrática da reforma camponesa (isto é, o que reivindicava, precisamente, o primeiro projeto de programa confeccionado pelo grupo «Emancipação do Trabalho»), É, se não escolhemos esta última expressão, é tão-somente porque indica de forma menos definida e menos expressiva o verdadeiro caráter e conteúdo concreto dessa revisão. Portanto, se Martinov, por exemplo, tivesse realmente algo a dizer sobre a questão agrária, seu dever seria manifestar claramente se rechaça a ideia mesma de uma revisão democrática da reforma camponesa ou, em caso contrário, dizer como ele a imagina.(12)
  2. Concede-se aos comitês camponeses o direito a expropriar e resgatar a terra dos latifundiários, a permutar terras, etc. (ponto 4,b), com a particularidade de que este direito se limita tão-somente aos casos de sobrevivência direta das relações da servidão. Concede-se o direito de expropriação e resgate taxativamente (3) em relação àquelas terras que, em primeiro lugar, «foram arrebatadas aos camponeses em forma de parcelas durante a abolição do regime da servidão» (estas terras haviam servido desde tempos imemoriais como elemento imprescindível da exploração camponesa, eram uma parte integrante desta exploração e foram destacadas artificialmente dela por esse latrocínio legalizado ao qual se dá o nome de grande reforma camponesa) e, em segundo lugar, às que «são um instrumento nas mãos dos latifundiários para avassalar os camponeses».

Esta segunda condição limita ainda mais o direito de resgate e expropriação, pois não o faz extensivo a todas as «parcelas», não tão-somente àquelas que continuam sendo um instrumento de avassalamento e «que segundo a formulação de Iskra — servem para manter em vigor o trabalho acorrentado, avassalado, baseado na corveia, isto é, a manter, de fato, as mesmas formas de trabalho da época da servidão». Em outras palavras: nos casos em que nossa minguada reforma camponesa deixou, ao parcelar as terras dos camponeses, que permanecessem de pé até agora as formas econômicas da servidão; nesses casos, concede-se aos camponeses o direito de acabar imediata e definitivamente com estes vestígios da servidão, inclusive mediante expropriação, concede-se-lhes o direito de exigir a «devolução das parcelas».

Por isso, podemos tranquilizar o nosso caro Martinov, que tão alarmado perguntava: «que se vai fazer agora com as parcelas que se encontram em mãos dos latifundiários ou que foram compradas por indivíduos de origem plebeia e que são exploradas de um modo exemplar, de um modo capitalista?» Não se trata dessas parcelas isoladas, respeitabilíssimo senhor, e sim de parcelas típicas (e muito numerosas), que continuam sendo a base dos vestígios ainda persistentes na economia da servidão.

Por último, 4. O ponto 4, b, concede aos comitês o direito a eliminar os vestígios do regime da servidão que ainda persistem em alguns lugares do país (servidões, dotação de terras e demarcações ainda não terminadas, etc., etc.).

Vemos, por conseguinte, que todo o conteúdo do ponto 4 pode, para simplificar, ser expresso em três palavras: «devolver as parcelas». Pois bem, como surgiu a ideia desta reivindicação? Como consequência direta da tese geral e fundamental de que devemos ajudar os camponeses e estimulá-los a acabar do modo mais completo possível com todos os vestígios da servidão. Com isto «todos estão de acordo», não é? Pois bem, se todos concordam em ir por esse caminho, tenham a bondade de segui-lo com as próprias pernas, sem que haja necessidade de arrastá-los e não se assustem com o aspecto «insólito» deste caminho, não se deixem desconcertar pelo fato de que em muitos lugares não acharão nenhum caminho trilhado, mas que terão de se arrastar à beira de um abismo, abrir passagem por bosques intrincados e saltar por cima dos buracos. Não se queixem da falta de caminhos: seriam lamúrias inúteis, pois todos deviam saber de antemão que não seguiam um caminho real, nivelado e retificado por todas as forças do progresso social, mas sim por veredas de rincões perdidos e desolados, que têm saída, mas para as quais jamais lhes será possível – como a nós ou a qualquer um — achar uma saída reta, simples e fácil: «jamais», isto é, de uma maneira geral, enquanto continuarem existindo esses rincões perdidos e desolados, que morrem com uma agonia lenta e dolorosa.

E se não querem meter-se nesses despenhadeiros, digam-no claramente, e não procurem sair-se com simples frases.(13)

Todos estão de acordo em lutar pela supressão dos vestígios da servidão? Perfeitamente. Mas, neste caso levem em conta que não há nenhuma instituição jurídica única que expresse ou condicione esses vestígios. Refiro-me, é claro, aos vestígios da servidão exclusivamente no terreno das relações agrárias, de que agora nos ocupamos, e não no terreno da legislação de castas, financeira, etc. As sobrevivências diretas da economia baseada na corveia — apontadas inúmeras vezes em todas as pesquisas econômicas relativas à Rússia — não se mantêm em virtude de uma lei especial que as proteja, e sim pela força das relações agrárias existentes de fato. É tanto isto é assim, que nas declarações das testemunhas ante a Comissão Valúiev(28) se diz sem rodeios que o regime da servidão sem dúvida alguma ressurgiria, se não estivesse proibido explicitamente pela lei. Por conseguinte, de duas uma: ou não se toca em absoluto no problema das relações agrárias entre os camponeses e os latifundiários, caso em que todos os demais problemas se resolveriam muito «simplesmente»; mas então não se tocaria tampouco na fonte principal de todas as sobrevivências da servidão no campo, então se afastaria «simplesmente» um problema muito premente, que afeta os interesses mais profundos dos senhores latifundiários e dos camponeses avassalados e que amanhã ou depois se pode converter facilmente num dos mais cruciantes problemas político-sociais da Rússia. Ou então se toca também nesta fonte das «formas atrasadas de avassalamento econômico» representada pelas relações agrárias, caso em que se deveria aceitar a complexidade e o aspecto intrincado dessas relações, que tornam totalmente impossível uma solução fácil e simples.

Assim sendo, os que estão descontentes com a solução concreta que nós propomos a este complicado problema não têm direito a eludir a questão «queixando-se» simplesmente de seu aspecto intrincado, mas eles mesmos devem procurar desembaraçá-la e propor outra solução concreta.

A grande importância das parcelas na atual economia camponesa é um fato. É o notável é que por muito profundo que seja o abismo existente entre o populismo (no sentido amplo da palavra) e o marxismo na apreciação do regime econômico e da evolução econômica da Rússia, nesta questão não há divergências entre eles. Os representantes de ambas as tendências concordam em que no campo russo há uma infinidade de vestígios da servidão e em que (note-se bem) o sistema de economia privada dominante nas províncias centrais da Rússia («o sistema econômico baseado no pagamento em trabalho») é uma sobrevivência direta da servidão. Também concordam em que o parcelamento das terras camponesas em benefício dos latifundiários, isto é, tanto o parcelamento no sentido direto e imediato, como a proibição de que os camponeses possam aproveitar os bosques, etc., etc., é uma das bases mais importantes (senão a mais importante) do sistema de pagamento em trabalho. Bastará recordar que, segundo dados muito recentes, o sistema de pagamento em trabalho nas explorações dos latifundiários é o predominante em 17 províncias, pelo menos, da Rússia europeia. Que procurem refutar este fato aqueles que consideram o ponto relativo às parcelas algo artificial e astutamente inventado por meio de «penosas escavações»!

O sistema econômico baseado no pagamento em trabalho significa o seguinte. Praticamente, isto é, não pelo direito de propriedade, e sim pela exploração da terra, as terras do latifundiário e dos camponeses não estão definitivamente separadas, mas continuam fundidas; parte da terra dos camponeses serve, por exemplo, para manter os animais de tração que não trabalham nas terras do camponês, e sim nas do latifundiário; parte das terras do latifundiário é indubitavelmente necessária para a exploração camponesa vizinha dado o atual sistema (bebedouros, pastagens, etc.). É este entrelaçamento efetivo da exploração da terra engendra inevitavelmente certas relações entre o mujique e o senhor exatamente iguais às que existiram sob o regime da servidão (ou melhor, mantém certas relações que têm sua origem muna história milenar). O mujique contínua sendo de fato um servo, contínua trabalhando com suas ferramentas seculares, com a rotina secular do cultivo com arado para três sulcos e contínua trabalhando para seu secular «senhor feudal». Que mais se quer, quando em muitíssimos lugares os próprios camponeses dão a este sistema de pagamento em trabalho o nome de panschina ou barschina,(15) quando os próprios latifundiários descrevem suas fazendas com estas palavras: «os camponeses .. . que antes me pertenciam» (isto é, não só antes, mas agora também!) trabalham a terra para mim, com seus instrumentos, em troca de que eu lhes permita utilizarem minhas pastagens?

Quando se resolve algum problema econômico-social complexo e embrulhado, as regras mais elementares exigem que antes de tudo se tome o caso mais típico, o mais livre de influências e circunstâncias alheias que o complicam, e só então partir da solução deste caso e prosseguir, levando em consideração uma após outra todas essas circunstâncias alheias que complicam o problema em questão. Tomemos também aqui o caso mais «típico»: os filhos dos antigos camponeses servos trabalham para os filhos do antigo senhor, em troca da utilização, as pastagens. O sistema de pagamento em trabalho determina a estagnação da técnica agrícola e de todas as relações econômico-sociais no campo, pois impede o desenvolvimento da economia monetária e a diferenciação do campesinato, liberta (relativamente) o latifundiário do estimulante da competição, (em lugar de melhorar a técnica, o latifundiário reduz a parte que corresponde ao meeiro; certamente esta redução verificou-se em numerosos lugares no transcurso de muitos anos do período posterior à reforma), prende o camponês à terra, freia assim o desenvolvimento da emigração e dos ofícios auxiliares, etc.

Pode qualquer social-democrata duvidar de que neste caso puro» é muito natural, desejável e possível a expropriação da parte correspondente das terras do senhor em benefício do camponês? Tal expropriação sacudirá Oblomov(29) e o obrigará a empregar numa extensão menor de suas terras métodos de exploração mais perfeitos; enfraquecerá (não destruirá, e sim precisamente enfraquecerá) o sistema de pagamento em trabalho, elevará a independência e o espírito democrático do camponês, melhorará seu nível de vida e impulsionará o desenvolvimento da economia monetária e do progresso do capitalismo na agricultura.

Quanto ao mais, posto que é reconhecido por todo mundo que as parcelas são a fonte principal do sistema de pagamento em trabalho e que este sistema é uma sobrevivência direta da servidão, que freia o desenvolvimento do capitalismo, como se pode duvidar de que a devolução das parcelas enfraquecerá o sistema de pagamento em trabalho e acelerará o desenvolvimento econômico-social?

VII

Entretanto, são muitos os que puseram isso em dúvida, e agora passaremos à análise dos argumentos expostos pelos céticos. Todos esses argumentos podem enquadrar-se nos seguintes pontos:

  1. corresponde aos fundamentos teóricos do marxismo e aos princípios programáticos da social-democracia a exigência de que sejam devolvidas as parcelas?
  2. é razoável, do ponto-de-vista da conveniência política, exigir que se corrija uma injustiça histórica cuja significação se debilita a cada passo do desenvolvimento econômico?
  3. é realizável na prática esta reivindicação?
  4. se se reconhece que podemos e devemos colocar uma reivindicação deste gênero e dar em nosso programa agrário não o mínimo mas o máximo, é consequente, deste ponto-de-vista, a reivindicação de que sejam devolvidas as parcelas? é, na realidade, esta reivindicação o máximo?

Pelo que posso julgar, todas as objeções «contra as parcelas» podem ser incluídas em um ou em outro destes quatro pontos, e a maioria dos objetantes (inclusive Martinov) deu uma resposta negativa às quatro perguntas, reconhecendo que a reivindicação de que sejam devolvidas as parcelas é incorreta do ponto-de-vista dos princípios, inconveniente do ponto-de-vista político, irrealizável na prática e inconsequente do ponto-de-vista da lógica.

Examinemos por ordem de importância todas estas questões;

a) Dois são os argumentos aduzidos para considerar incorreta do ponto-de-vista dos princípios a reivindicação de que sejam devolvidas as parcelas. Em primeiro lugar, asseguram, isto «afetará» a agricultura capitalista, isto é, deterá ou freará o desenvolvimento do capitalismo; em segundo lugar, dizem, essa reivindicação não só fortalecerá a pequena propriedade, mas também contribuirá diretamente para multiplicá-la. O primeiro destes argumentos (que Martinov destaca de um modo particular) é completamente infundado, pois, pelo contrário, o que freia o desenvolvimento do capitalismo são as parcelas típicas, e sua devolução impulsionará esse desenvolvimento; no que concerne aos casos que não são típicos (sem falar de que as exceções são sempre possíveis em toda parte e que sua existência não faz senão confirmar a regra), já são feitas as reservas correspondentes tanto em Iskra quanto no programa («.. . as terras que foram arrebatadas... e são.. . um instrumento para avassalar. . .»). Esta objeção se baseia simplesmente num desconhecimento da verdadeira significação que as parcelas e o sistema de pagamento em trabalho têm na economia do campo russo.

O segundo argumento (desenvolvido com especial detalhe em algumas cartas particulares) é muito mais sério e, em geral, o mais forte de quantos se apresentaram contra o programa que defendemos. Falando em termos gerais, desenvolver a pequena exploração e a pequena propriedade, apoiá-la, fortalecê-la e, com maior razão ainda, multiplicá-la, não é, de modo algum, uma tarefa da qual a social-democracia se incumba. Isso é absolutamente certo. Mas o que acontece é que neste caso não temos diante de nós um exemplo «geral», e sim precisamente um exemplo excepcional de pequena exploração, e este caráter excepcional está claramente expresso na introdução de nosso programa agrário; «acabar com os restos do regime da servidão no interesse do livre desenvolvimento da luta de classes no campo». Falando em termos gerais, o apoio à pequena propriedade é uma medida reacionária, pois está dirigida contra a grande exploração capitalista, freando, por conseguinte, o desenvolvimento social e contribuindo para encobrir e embotar a luta de classes. Mas neste caso o que nós queremos não é apoiar a pequena propriedade contra o capitalismo, mas sim exatamente contra a servidão; neste caso, ao apoiar o pequeno camponês damos um poderoso impulso ao desenvolvimento da luta de classes. De fato, por um lado, ao proceder assim fazemos a última tentativa de avivar os restos do ódio de classe (de casta) do camponês contra o senhor latifundiário. Por outro lado, desbravamos o caminho para o desenvolvimento do antagonismo classista burguês no campo, pois esse antagonismo está encoberto agora pela opressão comum e aparentemente igual que sofrem todos os camponeses em consequência dos vestígios da servidão.

Mas no mundo todas as coisas têm duas faces. O camponês-proprietário já desempenhou no Ocidente seu papel no movimento democrático e agora defende sua situação privilegiada em relação à do proletariado. O camponês-proprietario ainda se acha situado na Rússia no umbral de um movimento decisivo popular e democrático, com o qual não pode deixar, pelo menos, de simpatizar. Seus olhos ainda se voltam mais para frente do que para trás. Ainda luta muito mais contra os privilégios de casta próprios da servidão, ainda tão grandes na Rússia, do que para defender sua situação privilegiada. Neste momento histórico temos a obrigação ineludível de apoiar o campesinato e de procurar dirigir seu descontentamento, ainda vago e impreciso, contra seu verdadeiro inimigo. É de modo algum incorreremos em contradição conosco mesmos, se no período histórico seguinte, quando desaparecerem as condições particulares desta «conjuntura» político-social, quando o campesinato, suponhamos, satisfeito com as dádivas insignificantes de uma parte insignificante dos proprietários, dirigir então resolutamente seus «rugidos» contra o proletariado, se nesse período retiramos de nosso programa a luta contra todos os vestígios da servidão. Então, provavelmente, teremos de retirar do programa a luta contra o absolutismo, pois não cabe esperar de modo algum que o campesinato se liberte da opressão mais dura e odiosa da servidão antes de ter conseguido a liberdade política.

Sob o domínio da economia capitalista, a pequena propriedade freia o desenvolvimento das forças produtivas, pois prende o produtor à pequena parcela, mantém a técnica rotineira e entorpece a elevação do rendimento mercantil da terra. Sob o domínio da economia baseada no pagamento em trabalho, a pequena propriedade territorial, ao libertar- -se deste sistema de pagamento em trabalho, impulsiona o desenvolvimento das forças produtivas, liberta o camponês do avassalamento que o mantém preso a um mesmo lugar, liberta o latifundiário dos servidores «gratuitos», impede que os melhoramentos técnicos possam ser substituídos por uma intensificação ilimitada da exploração «patriarcal», facilitando a elevação do rendimento mercantil da terra. Numa palavra, a situação contraditória do pequeno camponês na passagem da economia feudal à economia capitalista justifica plenamente este apoio excepcional e passageiro à pequena propriedade pela social-democracia. Repetimo-lo uma vez mais: não se trata de uma contradição implícita na redação ou na formulação de nosso programa, e sim de uma contradição da vida real.

Podem contestar-nos dizendo que: por muito dificilmente que a economia baseada no pagamento em trabalho ceda ante o impulso capitalista, ela cede apesar de tudo; mais ainda, está condenada a desaparecer completamente. A grande exploração baseada no pagamento em trabalho vai cedendo e cederá diretamente seu lugar à grande exploração Capitalista. Nós, em troca, queremos acelerar o processo de liquidação da servidão com uma medida que, no fundo, representa a fragmentação da grande exploração (e que mesmo sendo parcial não deixa por isso de ser uma fragmentação). Não sacrificaremos com isso os interesses do futuro aos interesses do presente? Por uma problemática probabilidade de que os camponeses se revoltem num futuro imediato contra a servidão dificultamos num futuro mais ou menos distante a revolta do proletariado agrícola contra o capitalismo!

Este raciocínio, por muito convincente que pareça à primeira vista, peca por grande unilateralidade. Em primeiro lugar, o pequeno camponês também cede (dificilmente, mas cede) ao impulso do capitalismo, e também está condenado, no final das contas, a uma substituição inevitável. Em segundo lugar, a grande exploração baseada no pagamento em trabalho não cede sempre «diretamente» seu lugar à grande exploração capitalista, mas muitíssimas vezes o faz criando uma camada de elementos semidependentes, semi-assalariados, semiproprietários, enquanto que uma medida revolucionária como a devolução das parcelas prestaria um imenso serviço pelo fato mesmo de substituir, ainda que seja por uma vez, o «método» da transformação gradual e imperceptível da dependência feudal em dependência burguesa pelo «método» da franca transformação revolucionária, o qual não deixaria de exercer a mais profunda influência sobre o espírito de protesto e de luta independente de toda a população trabalhadora do campo. Em terceiro lugar, também nós, os social-democratas russos, procuraremos aproveitar a experiência da Europa, e nos dedicaremos a incorporar a «gente rústica» ao movimento operário socialista, com muito mais rapidez e intensidade do que o conseguiram nossos camaradas ocidentais, que depois de haver conquistado a liberdade política ficaram durante muito tempo «às tontas» procurando caminhos para o movimento dos operários industriais. Neste terreno tomaremos muito do que já foi feito «pelos alemães», mas no domínio agrário é provável que elaboremos algo novo. É para facilitar no futuro a nossos assalariados e semi-assalariados agrícolas sua passagem ao socialismo, é muito importante que o partido socialista comece desde agora mesmo a «intervir em defesa» dos pequenos camponeses, fazendo para eles «tudo o que puder», sem se negar a participar na solução de problemas «alheios» (não proletários) cruciantes e embrulhados e acostumando as massas trabalhadoras e exploradas a ver nele seu chefe e representante.

Prossigamos, b) A exigência de que se devolvam as parcelas é considerada inconveniente do ponto-de-vista político, pois, segundo afirmam, não cabe desviar a atenção do Partido para a correção de toda a sorte de injustiças históricas que já vão perdendo toda a significação atual, afastando-a do problema da luta entre o proletariado e a burguesia, que e a fundamental e que está cada vez mais próximo. Que acontecimento — ironiza Martinov — «voltar a libertar os camponeses com um atraso de quarenta anos»!

Também este raciocínio parece plausível apenas à primeira vista. De fato, as injustiças históricas podem ser de natureza muito diferente. Há injustiças históricas situadas, por sim dizer, à margem do curso principal da história, sem entorpecê-lo nem atrapalhá-lo, sem impedir que se aprofunde e se estenda a luta proletária de classe. Naturalmente, não teria sentido dedicar-se a corrigir tais injustiças históricas. Citaremos, por exemplo, a anexação da Alsácia e Lorena pela Alemanha. A nenhum partido social-democrata ocorrerá exigir em seu programa a correção dessa injustiça, ainda que, ao mesmo tempo, nenhum deles renuncie a seu dever de protestar contra tal injustiça e de estigmatizar todas as classes dominantes, responsáveis por ela. É se para fundamentar a exigência de que sejam devolvidas as parcelas empregássemos única e exclusivamente o argumento de que se cometeu uma injustiça e que é preciso corrigi-la, essa reivindicação não representaria mais do que uma frase democrática vazia. Mas nós não fundamentamos nossa reivindicação com lamentos em torno da injustiça histórica, e sim apelando para a necessidade de acabar com os vestígios da servidão e de desbravar o caminho para a luta de classes no campo, isto é, de uma necessidade muito «prática» e muito imperiosa para o proletariado.

Aqui vemos o exemplo de outra injustiça histórica, que desta vez contínua entorpecendo diretamente o desenvolvimento social e a luta de classes. Renunciar à tentativa de corrigir tais injustiças históricas equivaleria a «defender o chicote pela simples razão de que se trata de um chicote histórico». O problema de libertar o nosso campo da opressão que os vestígios do «velho regime» exercem sobre ele, é um dos mais agudos problemas da época atual, colocado por todas as tendências e por todos os partidos (exceto o partido da servidão), de modo que a alusão ao atraso está completamente deslocada e, na boca de Martinov, torna-se simplesmente divertida. Quem se «atrasou» foi a burguesia russa em sua tarefa, propriamente dita, de varrer todos os vestígios do velho regime, e nós somos obrigados a corrigir esta falha — e assim o faremos —, não recuando enquanto não for corrigida, enquanto não tenhamos a liberdade política, enquanto a situação do campesinato continuar provocando o descontentamento de quase toda a sociedade burguesa culta (como vemos na Rússia), e não um sentimento de satisfação conservadora ante a «frieza» do que, aparentemente, é o baluarte mais poderoso contra o socialismo (como vemos no Ocidente, onde se observa essa satisfação em todos os partidos da ordem, começando pelos agrários e pelos conservadores pur sang,(16) passando pelos burgueses liberais e livres pensadores e indo até.. ., seja dito sem rancor, aos Chernov e ao Vestnik Russkoi Revolutsii!.. . até os «críticos do marxismo» na questão agrária, que estão hoje tão em moda. Além disso, também se «atrasaram», é claro, os social-democratas russos, que, por princípio, vão a reboque do movimento, dedicando-se unicamente às questões que «prometem resultados tangíveis». Com seu atraso em dar também uma orientação concreta na questão agrária estes «reboquistas» não fazem senão pôr nas mãos das tendências revolucionárias não social-democratas uma arma das mais fortes e das mais precisas.

No que concerne (c) à objeção (que Martinov destaca de um modo particular) de que a exigência da devolução das parcelas é praticamente «irrealizável», diremos que tal objeção é uma das mais débeis. Por existir a liberdade política, os comitês camponeses poderiam decidir em que casos e de que modo, precisamente, se deveria levar a cabo a expropriação, o resgate, a permuta, a demarcação, etc., e poderiam fazê-lo com muito mais facilidade do que os comitês de nobres, integrados por representantes da minoria e defensores dos interesses dessa mesma minoria. Só aqueles que estão acostumados a estimar muito pouco a atividade das massas podem conceder importância a essa objeção.

Aqui se faz a quarta e última objeção: já que se conta com a atividade revolucionária do campesinato, e se coloca para ele não o programa mínimo e sim o programa máximo, deve-se ser consequente e exigir a «repartição negra»(30) camponesa ou a nacionalização burguesa da terra. «Se quiséssemos — diz Martinov — achar uma verdadeira (sic!) palavra-de-ordem de classe para as massas camponesas que têm pouca terra, deveríamos ir mais além e exigir a «repartição negra», mas então teríamos que nos despedir do programa social-democrata».

Este raciocínio nos mostra de corpo inteiro o «economista» e faz com que venha a nossa memória o refrão relativo a essa gente que quando é obrigada a rezar acaba partindo a testa de tanto dar cabeçadas.

Já que nos manifestamos em favor de uma reivindicação que corresponde a certos interesses de certa camada de pequenos produtores, isso quer dizer que devemos abandonar nosso ponto-de-vista e adotar o ponto-de-vista dessa camada!! Nada disso. Só podem raciocinar assim os «reboquistas», que confundem a elaboração de um programa em consonância com os interesses amplamente compreendidos de uma classe o servilismo ante essa classe. Mesmo sendo representantes do proletariado, nós condenamos francamente esse preconceito dos proletários pouco desenvolvidos, segundo o qual só se deve lutar pelas reivindicações que «prometem resultados tangíveis». Ao apoiar as reivindicações e os interesses progressistas do campesinato, rechaçamos resolutamente suas reivindicações reacionárias. É a «repartição negra», uma das palavras-de-ordem mais destacadas do velho populismo, contém, precisamente, um entrelaçamento de elementos revolucionários e reacionários. Os social-democratas repetiram dezenas de vezes que de modo algum eles jogam fora todo o populismo com a teimosia própria de certa ave muito pouco inteligente, mas, sim, que destacam dele seus elementos revolucionários, seus elementos democráticos gerais, e os endossam. Na reivindicação da repartição negra é reacionária a utopia de querer socializar e perpetuar a pequena produção camponesa, mas nela há também (além da utopia de que o «campesinato» pode ser condutor da revolução socialista) um aspecto revolucionário, a saber: o desejo de varrer com uma insurreição camponesa todos os vestígios do regime da servidão. A nosso ver, a reivindicação de devolver as parcelas destaca de todas as reivindicações ambíguas e contraditórias do campesinato precisamente o que pode atuar de um modo revolucionário exclusivamente na direção de todo o desenvolvimento social e que, por isso mesmo, merece o apoio do proletariado. O convite de Martinov a «ir mais além» conduz, na realidade, unicamente ao absurdo de pretender que determinemos a «verdadeira» palavra-de-ordem de classe do campesinato a partir do ponto-de-vista dos verdadeiros preconceitos deste e não a partir do ponto-de-vista dos interesses verdadeiramente compreendidos do proletariado.

Outra coisa diferente é a nacionalização da terra. Esta reivindicação (se se entende no sentido burguês e no sentido, socialista) vai realmente «mais além» da reivindicação de devolver as parcelas, e, em princípio, nós a compartilhamos inteiramente. Em determinado momento revolucionário não nos negaremos, naturalmente, a colocá-la. Mas elaboramos o nosso atual programa não apenas para a época da insurreição revolucionária, e mesmo menos para ela do que para a época da escravidão política, para a época que precede a liberdade política. É, nesta época, a reivindicação da nacionalização da terra expressa muito mais debilmente as tarefas imediatas do movimento democrático no que concerne à luta contra a servidão. A reivindicação de que se instituam comitês camponeses e de que se devolvam as parcelas aviva diretamente esta luta de classes no campo, razão por que não pode dar lugar a nenhuma experiência do tipo do socialismo de Estado. Pelo contrário, a exigência de que se nacionalize a terra desvia até certo ponto a atenção das manifestações mais patentes e das sobrevivências mais fortes da servidão. Por isso, nosso programa agrário pode e deve ser apresentado agora mesmo como um dos meios de estimular o movimento democrático entre o campesinato. Em troca, seria francamente errôneo apresentar a reivindicação da nacionalização tanto sob o absolutismo como sob uma monarquia semiconstitucional, pois, não existindo instituições políticas de caráter democrático definitivamente consolidadas e profundamente arraigadas, esta reivindicação, em vez de impulsionar o «livre desenvolvimento da luta de classes no campo», faria pensar em experiências absurdas de socialismo de Estado.(17)

Por isso, cremos que, dado o atual regime social, o máximo de nosso programa agrário não deve ir além de uma revisão democrática da reforma camponesa. A reivindicação da nacionalização da terra, que, do ponto-de-vista dos princípios é completamente acertada e útil em determinados momentos, não convém politicamente no momento atual.

É interessante assinalar que Nadiezhdin, em seu empenho de chegar justamente a esse máximo, à nacionalização da terra, acabou por perder-se (em parte por causa de sua decisão de se limitar no programa a «reivindicações compreensíveis e necessárias para o mujique»). Nadiezhdin formula do seguinte modo a exigência de nacionalização da terra: «conversão das terras do Estado, da coroa, da Igreja e dos latifundiários em propriedade do povo, num fundo nacional, para serem distribuídas entre os camponeses trabalhadores mediante arrendamentos a longo prazo concedidos nas condições mais vantajosas». Não cabe dúvida de que esta reivindicação será compreensível para o «mujique», mas certamente não o será para os social-democratas. A reivindicação da nacionalização da terra pode ser justa do ponto-de-vista dos princípios num programa social-democrata, apenas a título de medida burguesa, mas não como medida socialista, pois neste último sentido exigimos a nacionalização de todos os meios de produção. Pois bem, mantendo-nos nos quadros da sociedade burguesa, unicamente podemos exigir que se passe ao Estado a renda da terra, medida esta que, isolada, longe de frear a evolução capitalista da agricultura, inclusive contribuiria para acelerá-la. Por isso, um social-democrata, ao apoiar a nacionalização burguesa da terra, deveria, em primeiro lugar, não excluir de modo algum as terras camponesas, como o fez Nadiezhdin. Se mantemos a exploração privada da terra, suprimido apenas a propriedade privada sobre a mesma, seria francamente reacionário fazer aqui uma exceção para o pequeno proprietário. Em segundo lugar, se se procedesse a essa nacionalização, o social-democrata estaria decididamente

contrário a que, ao entregar a terra nacional em arrendamento, se desse preferência aos «camponeses trabalhadores» frente aos capitalistas, frente aos patrões na agricultura. Tal preferência seria também reacionária sempre e quando predominasse ou se mantivesse o modo de produção capitalista. Se houvesse um país democrático que empreendesse a nacionalização burguesa da terra, o proletariado deste país não deveria dar preferência nem aos pequenos nem aos grandes arrendatários, e sim exigir que todos eles cumprissem escrupulosamente as regras de proteção do trabalho estabelecidas pela lei (jornada máxima, observância das disposições sanitárias, etc., etc.,), assim como uma exploração racional da terra e do gado. De fato, tal conduta do proletariado na nacionalização burguesa equivaleria, logicamente, a acelerar o triunfo da grande produção sobre a pequena (como ocorre na indústria com a legislação trabalhista).

O empenho de «ser compreendido» a todo custo pelo «mu- jique» levou, neste caso, Nadiezhdin ao labirinto da reacionária utopia pequeno-burguesa.(18)

Vemos, pois, que o exame das objeções contra a reivindicação de que sejam devolvidas as parcelas nos convence da inconsistência dessas objeções. Devemos reivindicar a revisão democrática da reforma camponesa, e, em especial, de suas transformações agrárias. É, para determinar, com toda a precisão, o caráter, os limites e o modo de levar a cabo esta revisão, devemos exigir a instituição de comitês camponeses que tenham o direito de expropriar, resgatar, permutar, etc., as «parcelas» que servem de base às sobrevivências da economia feudal.

VIII

O quarto ponto de nosso programa agrário se acha estreitamente relacionado ao seu quinto ponto, que exige «que se conceda aos tribunais o direito de rebaixar os preços abusivos dos arrendamentos e de declarar nulos os contratos de caráter leonino». Assim como o quarto ponto, este também está dirigido contra o avassalamento, mas, diferentemente daquele, não exige um ato único de revisão e transformação das relações agrárias, e sim a revisão constante das relações jurídicas civis. Encarregam-se desta revisão os «tribunais» com a particularidade de que, naturalmente, não se pensa nessa mísera paródia de tribunal que é conhecida pelo nome de «instituição» dos «zemskie natchalniki» (nem sequer nos juízes de paz, eleitos pelas classes proprietárias entre os indivíduos pertencentes a essas mesmas classes), e sim dos tribunais de que se fala no parágrafo 16 do capítulo precedente de nosso projeto de programa, no qual se pede a «instituição de tribunais industriais em todos os ramos da economia nacional...» (e, por conseguinte, também na agricultura) «... integrados por igual número de representantes dos operários e dos patrões». Tal composição dos tribunais asseguraria seu caráter democrático e a livre expressão dos diferentes interesses de classe das diferentes camadas da população agrícola. Então o antagonismo de classe não se ocultaria com as folhas de parreira de um burocratismo podre — ataúde envernizado para os restos mortais da liberdade do povo —, mas apareceria ante todo o mundo clara e abertamente, sacudindo assim os habitantes do campo e fazendo-os sair de seu vegetar patriarcal. O perfeito conhecimento da vida agrária em geral e das particularidades locais ficaria plenamente garantido pelo fato de que os juízes seriam eleitos entre os próprios moradores do lugar. Para aquelas massas camponesas que não pudessem ser incluídas definitivamente nas categorias de «operários» ou «patrões», seriam estabelecidas, como é natural, normas especiais que assegurassem a representação equitativa de todos os elementos da população rural, com a particularidade de que nós, os social-democratas, sempre haveríamos de insistir em todas as circunstâncias em que, primeiro, os operários assalariados do campo, por pouco numerosos que fossem, tivessem uma representação à parte, e, segundo, em que também tivessem representação à parte, na medida do possível, os camponeses que possuíssem alguma coisa e os camponeses acomodados (pois a indiferenciação entre estas duas categorias não só conduz a falseamento das estatísticas, mas também à opressão e à postergação da primeira categoria nela segunda em todos os domínios da vida).

A competência destes tribunais seria dupla: em primeiro lugar, teriam direitos de rebaixar os preços «abusivos». Estas palavras do programa já expressam por si um reconhecimento indireto da ampla difusão deste fenômeno. Um juízo contencioso público que examinasse o preço do arrendamento seria de extraordinária importância, independentemente de sua resolução. As rebaixas dos preços (mesmo no caso de não serem frequentes) desempenhariam seu papel na supressão dos restos da servidão, pois é sabido que em nosso campo os arrendamentos têm mais frequentemente um caráter feudal do que burguês, e a renda é muito mais uma renda «em dinheiro» (isto é, uma modificação da renda feudal), do que uma renda capitalista (ou seja, um excedente sobre o lucro do patrão). Por conseguinte, a rebaixa da renda contribuiria de maneira direta para substituir as formas econômicas da servidão pelas capitalistas.

Em segundo lugar, os tribunais teriam o direito de «declarar nulos os contratos de caráter leonino». Não se especifica aqui o caráter do «avassalamento», pois não seria nada conveniente limitar a liberdade dos juízes eleitos para aplicar este ponto. O mujique russo sabe muito bem o que é o avassalamento! De um ponto-de-vista científico, este conceito abarca todos os contratos que têm um caráter usurário (os contratos de inverno,(31) etc.) ou feudal (os trabalhos para indenizar os danos causados pelo gado dos camponeses nos campos do senhor, etc.).

O ponto 3, que se refere à devolução dos resgates ao povo, tem um caráter um pouco diferente. Aqui não surgem as dúvidas em relação à pequena propriedade que são despertadas pelo ponto 4, mas, em troca, os impugnadores indicam a impossibilidade de levar à prática esta reivindicação e a ausência de conexão lógica entre este ponto e a parte geral de nosso programa agrário (= «acabar com os restos do regime da servidão e livre desenvolvimento da luta de classes no campo»), Não obstante, ninguém negará que os restos do regime da servidão, em seu conjunto, são precisamente os que determinam essas constantes epidemias de fome que afetam milhões de camponeses e que fazem com que a Rússia se distinga entre todos os países civilizados. Até a autocracia se vê obrigada por isso a criar, cada vez com maior frequência, fundos especiais (absolutamente insignificantes, como é natural, e que em vez de beneficiar os famintos se perdem nos bolsos dos concessionários e dos burocratas) destinados «às necessidades culturais e benéficas das comunidades rurais». Tampouco podemos deixar de exigir, entre as transformações democráticas, a instituição de semelhantes fundos. Esta é uma questão dificilmente contestável.

Pois bem, de onde são tirados esses fundos? Aqui, pelo que vemos, poder-se-ia indicar o imposto progressivo sobre a renda, elevando especialmente as taxas que afetam as rendas dos ricos e invertendo este dinheiro na constituição dos fundos mencionados. Seria muito justo que fossem os elementos mais ricos que se encarregassem de uma parte maior na sustentação dos famintos e nos gastos destinados a suprimir no possível as calamidades causadas pela fome. Tampouco nada teríamos a objetar a essa medida, da qual não há necessidade de falar especialmente no programa, pois é incluída inteiramente na reivindicação do imposto progressivo sobre a renda, que nele figura como uma reivindicação à parte. Pois bem, haveremos de nos limitar a essa fonte exclusiva? Por que não haveremos de tentar, além disso, devolver ao povo mesmo que seja apenas uma parte desse tributo que os escravistas de ontem, ajudados pelo Estado policial, impunham e continuam impondo aos camponeses? Acaso esse tributo não guarda a mais estreita relação com as atuais epidemias de fome? Acaso a exigência de sua devolução não nos será de extraordinária utilidade para estender e aprofundar a indignação revolucionária dos camponeses contra todos os defensores da servidão e contra todas as manifestações do feudalismo?

Mas esses tributos — dizem nossos impugnadores — não podem ser devolvidos integralmente. Exato (como tampouco podem ser devolvidas todas as parcelas). Mas, se não se pode exigir toda a dívida, porque não se há de cobrar uma parte dela? Que se poderia objetar ao estabelecimento de um imposto especial sobre a terra que gravasse os grandes latifundiários da nobreza que se aproveitaram do subsídio do resgate? Os donos desses latifúndios (convertidos inclusive, às vezes, em domínio fechado) são muito numerosos na Rússia, e seria muito justo exigir-lhes responsabilidades especiais pelas epidemias de fome que açoitam os camponeses. Ainda mais justo seria o confisco de todos os bens da Igreja e das terras da coroa, por ser o tipo de propriedade que mais tradições conserva da servidão e serve para enriquecer os parasitas mais reacionários e mais daninhos à sociedade, contribuindo ao mesmo tempo para retirar da circulação civil e comercial uma superfície de terras bastante considerável. O confisco dessas terras representaria, portanto, um benefício exclusivo para todo o desenvolvimento social;(19) seria precisamente uma nacionalização burguesa parcial da terra que, de modo algum, conduziria aos escamoteamentos do «socialismo de Estado»; teria, como caráter imediato, uma enorme importância política para o fortalecimento das instituições democráticas da nova Rússia e proporcionaria, ao mesmo tempo, recursos adicionais para ajudar os famintos.

IX

Finalmente, no que concerne aos dois primeiros pontos de nosso programa agrário, não há necessidade de nos estendermos sobre eles. «A supressão dos resgates e tributos, assim como todas as prestações a que está sujeito atualmente o campesinato como casta tributável» (ponto 1) é algo evidente por si mesmo para qualquer social-democrata. Tampouco, na nossa opinião, há qualquer dúvida acerca da possibilidade de levar à prática esta medida. O segundo ponto exige «que se suprima a caução solidária e todas as leis que impedem ao camponês...» (observe-se que se diz «ao camponês» e não «aos camponeses») «... dispor de sua terra». Aqui convém dizer algumas palavras acerca da famosa e memorável «comunidade rural». Como é natural, a supressão da caução solidária (esta sim é a reforma que o senhor Witte poderia fazer antes da revolução), a abolição das divisões de casta, a liberdade de movimento e a liberdade de cada camponês para dispor individualmente da terra conduzirão de fato à inevitável e rápida destruição da atual posse comunal da terra, que em seus três quartos é uma carga de tipo fiscal-feudal. Mas este resultado não fará senão demonstrar a justeza de nossas ideias sobre a comunidade rural, sua incompatibilidade com todo o desenvolvimento social e econômico do capitalismo. Tal resultado não obedecerá, de modo algum, a qualquer medida proposta por nós «contra a comunidade rural», pois jamais defendemos nem defenderemos qualquer medida que vá diretamente contra tal ou qual sistema de propriedade territorial dos camponeses. Mais ainda: defenderemos sempre a comunidade enquanto organização democrática da administração local, como sociedade ou união entre moradores, contra todos os atentados dos burocratas, contra os atentados para os quais se sentem tão inclinados os inimigos da comunidade rural, procedentes do grupo de Moskovskie Viedomosti.(32) Jamais ajudaremos alguém a «destruir a comunidade rural», mas sempre propugnaremos a supressão de todas as instituições que se acham em contradição com a democracia, qualquer que seja a influência que essa supressão possa ter sobre as repartições funda, tentais e parciais da terra, etc. Isto é c que nos distingue radicalmente dos populistas declarados ou encobertos, consequentes ou inconsequentes, tímidos ou audazes, aqueles que, por um lado, são, «naturalmente», democratas, enquanto que, por outro, temem definir resoluta e inequivocamente sua atitude ante reivindicações democráticas tão elementares como a plena liberdade de movimento, a supressão total das divisões em castas na comunidade camponesa e, por conseguinte, a completa abolição da caução solidária e de todas as leis que impedem o camponês de dispor livremente de sua terra.(20)

Pode-se contestar a nós dizendo que esta última medida, que consagra a vontade individual de cada camponês, é precisamente a que destrói a comunidade rural, não só como sistema de repartições periódicas, etc., mas inclusive como sociedade ou união entre moradores. Cada camponês, a despeito da vontade da maioria, poderá exigir que se lhe entregue sua parcela de terra à parte. Não se acha isto em contradição com a tendência geral de todos os socialistas a ampliar, e não a restringir, os direitos coletivos frente ao indivíduo?

Diremos a isto que o direito de cada camponês de exigir que se lhe entregue sua terra necessariamente em parcela à parte não se deduz de nossa fórmula. Só se deduz dela a livre venda da terra, e o direito de que a terra à venda seja comprada preferentemente pelos membros da comunidade não contradiz esta liberdade.

A supressão da caução solidária deve converter todos os membros da comunidade camponesa em livres coproprietários de certa superfície de terra, e a forma em que em seguida disponham dessa terra já é assunto seu e dependerá das leis civis gerais, assim como dos acordos especiais firmados entre eles. No que concerne à ampliação dos direitos coletivos frente ao indivíduo, diremos que os socialistas só a defendem quando beneficia o progresso técnico e social.(21) Com essa condição, também defenderíamos, naturalmente, qualquer lei nesse sentido, sempre e quando não se referisse exclusivamente aos pequenos proprietários, aos camponeses, mas a todos os donos de terras em geral.

X

Para terminar, resumiremos as teses fundamentais em que se apoia nosso programa agrário. Todo aquele que já teve a ocasião de trabalhar na elaboração de um programa ou de conhecer os detalhes de sua formulação, em outros países, sabe que uma mesma ideia pode ser formulada de muitas maneiras diferentes. Por isso, o que nos importa é que os camaradas a cuja apreciação submetemos agora nosso projeto concordem antes de tudo e sobretudo no que concerne aos princípios fundamentais, pois as distintas particularidades da formulação não têm uma importância decisiva.

Reconhecemos que, também no terreno das condições agrárias russas, a luta de classes constitui o fato central. Baseamos toda a nossa política agrária (e por conseguinte também nosso programa agrário) no reconhecimento indubitável deste fato, com todas as consequências que dele derivam. Nosso principal objetivo imediato consiste em desbravar o caminho para o livre desenvolvimento da luta de classes no campo, da luta de classe do proletariado, destinada a alcançar o objetivo final da social-democracia mundial: a conquista do Poder político pelo proletariado e a criação das bases da sociedade socialista. Ao proclamar a luta de classes como fio condutor de nossa atividade em todos os «problemas agrários», afastamo-nos resoluta e definitivamente dos partidários — tão numerosos na Rússia — das teorias ambíguas e nebulosas: «populista», «ético-sociológica», «crítica», social-reformadora ou como quer que se chamem.

Para abrir o caminho ao livre desenvolvimento da luta de classes no campo, é preciso eliminar todos os restos de tipo feudal que agora encobrem os germes dos antagonismos capitalistas entre a população rural, impedindo seu desenvolvimento. É fazemos a última tentativa de ajudar os camponeses a varrer todos os restos com um golpe decisivo. Dizemos «última» porque o próprio capitalismo russo em seu desenvolvimento realiza espontaneamente esse mesmo trabalho, marcha para esse mesmo objetivo, mas o faz por seu caminho, pelo caminho da violência e da opressão, da ruína e da morte pela fome. A passagem da exploração feudal à exploração capitalista é inevitável, e procurar freá-la, «eludi-la», seria uma ilusão perniciosa e reacionária. Mas essa passagem também pode ser concebida como uma derrota violenta daqueles herdeiros dos senhores feudais, que, apoiando-se nas tradições do antigo poder escravista, e não no «poder do dinheiro», extraem agora as últimas gotas de sangue do campesinato patriarcal. Este campesinato patriarcal, que vive num sistema de economia natural e se mantém com o esforço de seus braços, está condenado a desaparecer, mas não está condenado «obrigatoriamente», nem há nenhuma lei «imanente» da evolução econômico-social que o condene a padecer as torturas da «extorsão dos tributos», a sofrer o martírio do açoite e de uma morte por fome espantosamente lenta e prolongada .

Pois bem, sem forjarmos ilusões quanto à possibilidade de que os pequenos produtores cheguem a prosperar ou inclusive a viver passavelmente na sociedade capitalista (e a Rússia é cada vez mais um país capitalista), exigimos que todos os restos da servidão sejam suprimidos e destruídos total e absolutamente, mas não mediante reformas, e sim pela via revolucionária; reconhecemos o direito dos camponeses àquelas terras que lhes foram arrebatadas em forma de parcelamento pelo governo dos nobres e que são a causa de que hoje em dia continuem sujeitos, de fato, à escravidão. Deste modo, nos convertemos — a título de exceção e em virtude de condições históricas especiais — em defensores da pequena propriedade, mas defendemo-la unicamente em sua luta contra o que perdura do «velho regime» e tão-somente com a condição de que sejam abolidas as instituições que freiam a transformação do oblomovismo patriarcal, petrificado em sua imobilidade, em seu atraso e abandono; unicamente com a condição de que se outorgue plena liberdade de movimento e de compra e venda da terra, e se suprimam por completo as divisões em casta. Queremos completar a revisão democrática das leis estatais e civis da Rússia com uma revisão democrática, revolucionária, da tão falada «reforma camponesa».

Guiando-se por estes princípios da política agrária, todo social-democrata russo que chegue ao campo poderá orientar-se na emaranhada rede das relações ali existentes, poderá «adaptar» a essas relações sua propaganda e sua agitação de rigoroso conteúdo revolucionário. Os possíveis movimentos camponeses (que em alguns casos já parecem começar) não poderão tomá-lo de surpresa. Em sua atividade não se limitará às reivindicações em defesa dos operários assalariados do campo, detalhadamente expostas no capítulo das reivindicações «operárias» imediatas de nosso programa e que ele, naturalmente, defenderá sempre e em toda parte. O social-democrata estará em condições de impulsionar, também entre o campesinato, o movimento democrático geral, que começará (se de fato está destinado em nosso campo a ultrapassar os limites de um estado embrionário) pela luta contra os senhores feudais do campo e terminará por uma insurreição contra esse resíduo poderosíssimo e odioso da servidão a que se dá o nome de absolutismo tzarista.

★ ★ ★

P. S. O presente artigo foi escrito antes que começassem no sul da Rússia os levantes camponeses desta primavera. Os acontecimentos confirmaram plenamente os princípios nele expostos. No que diz respeito às tarefas táticas colocadas agora com particular força ante nosso Partido e que se referem a seu trabalho «rural», confiamos em que na próxima vez poderemos falar delas.


Notas de rodapé:

(1) Veja-se o anexo à brochura de P. Axelrod A Propósito das Tarefas Atuais e da Tática dos Social-Democratas Russos, Genebra, 1898. (retornar ao texto)

(2) Ver a presente recopilação, [O partido operário e o campesinato], págs. 51/58. (Nota da Compilação) (retornar ao texto)

(3) Ver a presente recopilação, pág. 53. (Nota da Compilação) (retornar ao texto)

(4) É sabido que nas sociedades escravista e feudal as diferenças entre as classes também eram fixadas na divisão da população por castas, designando-se a cada classe um lugar jurídico especial no Estado. Por isso, as classes das sociedades escravista e feudal (e também da sociedade do regime da servidão) eram por sua vez castas distintas. Pelo contrário, na sociedade capitalista. na sociedade burguesa, todos os cidadãos são juridicamente iguais, a divisão por castas foi abolida (pelo menos em princípio) e, por isso, as classes deixaram de ser castas. A divisão da sociedade em classes é comum às sociedades escravista, feudal e burguesa, mas nas duas primeiras existiam as classes-castas, enquanto que na última as classes já não são castas. (retornar ao texto)

(5) A objeção afirmando que a exigência de que sejam devolvidas as parcelas não representa, de modo algum, o máximo de nossas reivindicações era favor do campesinato (ou de nossas reivindicações agrárias em geral) e de portanto, ao colocá-la não somos consequentes, será examinada mais adiante, quando falarmos dos pontos concretos do programa que estamos defendendo. Afirmamos — e procuraremos demonstrá-lo — que a reivindicação de que se “devolvam as parcelas” é o máximo que podemos colocar por agora em nosso programa agrário. (retornar ao texto)

(6) Pessoalmente, inclino-me a resolver esta questão no sentido afirmativo, mas, e claro, não é esse o momento nem o lugar apropriado para fundamentar e nem sequer para propor a solução, pois do que se trata agora é de defender o Projeto de programa agrário apresentado coletivamente por toda a redação. (retornar ao texto)

(7) A seguinte frase do artigo de Martinov mostra-nos palpavelmente até que ponto ele não se deteve para pensar na questão sobre a qual escreve: “Uma vez que durante muito tempo ainda continuará tendo uma importância prática relativamente pequena a parte agrária de nosso programa, esta oferecerá amplo campo para a tagarelice revolucionária.” É nas palavras sublinhadas que reside precisamente a confusão apontada no texto. Martinov ouviu dizer que no Ocidente só se apresentam programas agrários quando o movimento operário está muito desenvolvido. Em nosso país este movimento está apenas em seu início. Por conseguinte, nosso publicista se apressa em concluir que durante mu to tempo ainda". Martinov não percebe um detalhe: no Ocidente, os programas agrários são escritos para atrair os semicamponeses, os semi-operários ao movimento social-democrata dirigido contra a burguesia; ao contrário, em nosso país, são escritos para atrair a massa camponesa ao movimento democrático dirigido contra os vestígios da servidão. Por isso, no Ocidente, os programas agrários irão adquirindo tanto mais importância quanto mais se desenvolva o capitalismo no campo. Nosso programa agrário, no que se refere à maior parte de suas reivindicações, irá tendo tanto menos importância prática quanto mais se for desenvolvendo o capitalismo no campo, pois vestígios do regime da servidão, contra os quais o programa está dirigido, o extinguindo-se por si mesmos e sob a influência da política do governo. Por isso, nosso programa agrário está planejado em sua parte prática principalmente para o futuro mais imediato, para antes da queda do absolutismo. A revolução política implicará sempre e inevitavelmente na Rússia tais transformações radicais das relações agrárias mais atrasadas, de modo que nos veremos forçosamente obrigados a rever nosso programa agrário. Mas Martinov só sabe uma coisa: que o livro de Kautsky é bom (o que é certo) e que basta imitar e copiar Kautsky, sem pensar no que diferencia radicalmente a Rússia no que diz respeito ao programa agrário (o que é uma necessidade). (retornar ao texto)

(8) Dizemos “criar”, porque os velhos revolucionários russos jamais prestaram grande atenção ao problema da república, jamais o consideraram um problema prático: os populistas, os “amotinados” e outros, porque consideraram a política com um desprezo de anarquistas; os da Vontade do Povo,(27) porque queriam saltar diretamente do absolutismo para a revolução socialista. A nós (se não nos referimos às ideias republicanas dos dezembristas, há muito esquecidas) e aos social-democratas. nos toca difundir entre as massas a reivindicação da república e criar uma tradição republicana entre os revolucionários russos. (retornar ao texto)

(9) Talvez não seja demais recordar, a propósito da “factibilidade” das reivindicações do programa social-democrata, a polêmica sustentada por Kautsky contra R. Luxemburgo em 1896. R. Luxemburgo dizia que a reivindicação do restabelecimento da independência polonesa estava deslocada no programa prático dos social-democratas poloneses, pois essa reivindicação era irrealizável na sociedade contemporânea. K. Kautsky contestou-a dizendo que tal argumento “se baseava numa estranha incompreensão do que deve ser a essência de um programa socialista”. Nossas reivindicações práticas, quer estejam diretamente expostas no programa, quer sejam postulados aceitos tacitamente, devem estar de acordo (werden... darnach bemessen) não com o fato de que sejam factíveis sob a atual correlação de forças, e sim com o fato de que sejam compatíveis com o regime social existente, se sua realização pode aliviar a luta de classe do proletariado, impulsionar seu desenvolvimento (förden) e desbravar (ebnen) para o proletariado o caminho da dominação política. Aqui não levamos cm conta de forma alguma a atual correlação de forças. O programa social-democrata não está feito para um momento dado (“den”), mas deve, na medida do possível, orientar (ausrcichen) em todas e em cada uma das situações que possam surgir na sociedade contemporânea. Não só deve servir para a ação prática (der Action), mas também para a propaganda. Com suas reivindicações concretas deve assinalar, mais claramente do que possam fazê-lo as investigações abstratas, a direção que desejamos seguir em nosso avanço. Quanto mais remotos forem neste caso os objetivos práticos que podemos colocar sem nos perdermos em utópicas especulações, tanto melhor, tanto mais claramente verão as massas — inclusive aquelas que não estão em condições de compreender (erfassen) nossos raciocínios teóricos – qual é a direção seguida por nós. O programa deve mostrar o que exigimos da sociedade atual ou do Estado atual e não o que esperamos deles. Tomemos, por exemplo, o programa da social-democracia alemã. Nele se exige a eleição dos funcionários pelo povo. Esta reivindicação, se a medimos com a escala de R. Luxemburgo, é tão utópica como a que exige a criação de um Estado nacional polonês. Ninguém cairá na ilusão de crer que nas atuais condições políticas possa ser uma realidade a reivindicação de que no Império alemão o povo eleja os funcionários públicos. As mesmas razões que temos para considerar que o Estado nacional polonês só pode ser uma realidade quando o proletariado conquistar o poder politico, também as temos para afirmar o mesmo no que diz respeito a esta reivindicação. Mas, acaso isto é motivo suficiente para não incluí-la em nosso programa prático?" (Neue Zeit. XIV. 2. S. 513 u. 514 [Tempos Novos. XIV, 2, págs. 513 e 514. — Nota da Compilação] Grifado por K. Kautsky.) (retornar ao texto)

(10) No fundo, todas as confusões e todos os extravios dos "críticos" do marxismo na questão agrária se reduzem justamente ã incompreensão deste ponto, e o mais audaz, o mais consequente (e, por conseguinte, o mais honrado) deles, o senhor Bulgákov, declara suave e mansamente em sua "pesquisa" que a doutrina da luta de classes é totalmente inaplicável às relações agrárias. (O Capitalismo e a Agricultura, t. 2, pág. 289) (retornar ao texto)

(11) Está claro que o proletariado não defende todas as medidas que aceleram o progresso burguês, mas tão somente aquelas que aumentam diretamente a capacidade da classe operária para lutar por sua emancipação. E o “pagamento em trabalho” e o avassalamento pesam muito mais sobre a parte pobre do campesinato — a que está mais próxima do proletariado — do que sobre sua parte acomodada. (retornar ao texto)

(12) Assinalemos a inconsequência (ou a omissão?) de Nadiejdin, que em seu esboço de programa agrário utiliza, pelo visto, a ideia de Iskra acerca dos comitês camponeses, mas a formula muito infortunadamente ao dizer: “Criação de um tribunal especial integrado por representantes do povo para examinar as queixas e reclamações dos camponeses contra as operações efetuadas durante a libertação” (Vésperas da Revolução, pág. 65, grifado por mim). As queixas só são admissíveis contra as infrações da lei. A “libertação” do 19 de fevereiro, com todas as suas “operações”, já é uma lei. A instituição de tribunais especiais para examinar as queixas contra as injustiças de uma lei não tem nenhum sentido enquanto não for abolida essa lei, enquanto não se ditarem novas normas legislativas para substituí-la (ou para anulá-la parcialmente). Dar-se-á aos tribunais” não só direito de aceitar “queixas” contra o parcelamento das pastagens, mas também o de devolver (ou resgatar, etc.) essas pastagens; mas então, e em primeiro lugar, um “tribunal” que tenha o direito de promulgar leis já não será tal tribunal; e, em segundo lugar, é preciso indicar clara e taxativamente quais são os direitos de expropriação, resgate, etc. de que goza esse tribunal”. Porém, por infeliz que seja a formulação de Nadiejdin. este compreendeu muito melhor do que Martinov a necessidade de uma revisão democrática da reforma camponesa. (retornar ao texto)

(13) Por exemplo, Martinov acusa Iskra de “tagarelice”, quando esta lhe deu os fundamentos gerais de sua política agrária ("introduzir a luta de classes no campo ) e a solução prática para o problema das reivindicações concretas do programa. Sem substituir estes fundamentos gerais por outros quaisquer, sem refletir nem um pouco sobre estes fundamentos e sem procurar elaborar um programa concreto, Martinov se sai com esta magnífica frase: “... Devemos exigir que se os proteja (aos camponeses, como pequenos proprietários) ... contra as diversas formas atrasadas de avassalamento econômico...”, muito fácil, não é verdade? Poderia ele ter a amabilidade de nos indicar concretamente ainda que só seja um caso em que se tenha protegido os camponeses ainda que não seja senão de uma forma atrasada (já não digamos de “diversas”!) de avassalamento? (Pelo visto também há ‘‘formas de avassalamento que não são atrasadas!!) Pois existe o pequeno crédito, existem cooperativas para venda de leite, as reciprocidades de empréstimos e economias, as associações de pequenos proprietários, o Banco Camponês e os agrônomos dos “zemstvos”(14), que também “protegem contra as diversas formas atrasadas de avassalamento econômico”. Acredita ele, por conseguinte, que “devemos exigir” tudo isso? Meu caro senhor Martinov, primeiro deve-se pensar as coisas e depois pôr-se a falar dos programas! (retornar ao texto)

(14) Zemstvos — Administrações locais ou provinciais, eleitas pela nobreza e as classes possuidoras, na Rússia tzarista. (Nota da Tradução) (retornar ao texto)

(15) Ou seja, “trabalhar para o senhor”, das palavras pan ou barin, que significam senhor. (Nota da Tradução) (retornar ao texto)

(16) De puro sangue. (Nota da Compilação) (retornar ao texto)

(17) Em um de seus artigos contra Vollmar, Kautsky observava muito acertadamente: Na Inglaterra, os operários avançados podem reivindicar a nacionalização da terra. Mas, aonde levaria o fato de que toda a terra de um Estado militarista e policial como a Alemanha se convertesse em propriedade do Estado (eine Dommane)? Um socialismo de Estado dessa natureza o temos, pelo menos em grau considerável, em Mecklemturgo” [Vollmar und der Staatssozialismus. Neue Zeit, 1891/1892. X, 2.s. 710] (Vollmar e o Socialismo de Estado. Tempos Novos, 1891/1892, X, 2, pág. 710. — Nota da Compilação) (retornar ao texto)

(18) No que diz respeito a Nadiejdin, este, em seu esboço de programa agrário, e, a nosso ver, muito pouco consequente ao pedir que sejam convertidas em propriedade do povo" todas as terras, com exceção das camponesas, e que se reparta o fundo nacional (de terras) ‘‘entre os camponeses trabalhadores mediante arrendamentos a longo prazo”. Um social-democrata não poderia excluir da nacionalização geral as terras dos camponeses. Isto, em primeiro lugar. É em segundo lugar, só se poderia fazer a propaganda da nacionalização da terra como passagem à grande exploração comunista, mas não à pequena exploração individual. O erro de Nadiejdin deve-se, provavelmente, à sua decisão de limitar-se no programa às reivindicações compreensíveis (grifado por mim) e necessárias para o mujique”. (retornar ao texto)

(19) Quando se tratasse de entregar em arrendamento essas terras confiscadas, a social-democracia não deveria de modo algum aplicar nas condições atuais uma política especificamente camponesa, e sim precisamente a política que expusemos mais acima ao refutar as ideias de Nadiejdin. (retornar ao texto)

(20) Esta é precisamente a pedra de toque em que devem ser contrastados os números radicais da Rússia (e inclusive os revolucionários de Vestnik Russkoi Revolutsii) que nesta questão preferem nadar entre duas águas. (retornar ao texto)

(21) Kautsky, por exemplo, reconhece que é justo exigir a “limitação do direito da propriedade privada sobre a terra em interesse: 1) da demarcação, para acabar com a fragmentação e a dispersão das terras; 2) da elevação da técnica agrícola; 3) da prevenção das epidemias” (Die Agrarfrage, S. 437 [A Questão Agrária, pág. 437] — Nota da Compilação). Semelhantes exigências, absolutamente fundamentadas, não têm relação alguma — nem devem relacionar-se — com a comunidade camponesa. (retornar ao texto)

Notas de fim de tomo:

(23) Iskra (A Centelha): primeiro jornal marxista clandestino publicado para toda a Rússia. Foi fundado por V. I. Lênin em dezembro de 1900 no estrangeiro, de onde era ilegalmente transportado para a Rússia. (retornar ao texto)

(24) Zariá (A Aurora): revista teórica da social-democracia russa. Foi fundada por V. I. Lênin, publicando-se ao mesmo tempo que o jornal Iskra, com uma redação comum. A revista foi editada em Stuttgart, de abril de 1901 a agosto de 1902. (retornar ao texto)

(25) Rabotcheie Dielo: revista dos “economistas”, que apareceu irregularmente em Genebra de 1899 a 1902 como órgão da União de Social-democratas Russos no Estrangeiro, No livro Que Fazer?, Lênin criticou as opiniões dos integrantes da Rabotcheie Dielo. (retornar ao texto)

(26) “Economistas”, isto é, partidários das posições do “economismo”: corrente oportunista, que surgiu entre parte dos social-democratas russos em fins do século XIX. V. I. Lênin fez uma crítica demolidora do “economismo” em sua obra Que Fazer? (retornar ao texto)

(27) “A Vontade do Povo”: organização clandestina da intelectualidade revolucionária russa, criada em 1879. Os adeptos desta organização aplicavam o terror individual em sua luta contra o tzarismo e fizeram atentados a altos funcionários do imperador. A 1.º de março de 1881 mataram o tsar Alexandre II. Os membros de A Vontade do Povo consideravam erroneamente que um reduzido grupo de revolucionários, sem apoio do movimento revolucionário das massas, era capaz de conquistar o poder e liquidar a autocracia. A organização A Vontade do Povo deixou de existir na segunda metade da década de 80. (retornar ao texto)

(28) Comissão Valuiev: comissão criada sob a presidência do ministro P. Valuiev para investigar a situação da agricultura na Rússia. Em 1872 e 1873, a comissão reuniu dados abundantes sobre a situação da agricultura na Rússia depois da reforma, que foram publicados em 1873 em Petersburgo com o título de Informes. (retornar ao texto)

(29) Oblomov: latifundiário russo, personagem central da novela do mesmo título de I. Gontcharov. O nome de Oblomov tornou-se sinônimo de rotina, estagnação, inércia. (retornar ao texto)

(30) “Repartição negra”: uma das palavras de ordem mais populares entre os camponeses da Rússia tzarista, que expressava sua aspiração a uma repartição geral da terra. (retornar ao texto)

(31) Os latifundiários e os culaques tinham o costume de contratar camponeses para os trabalhos de verão já durante o inverno, aproveitando-se da angustiante necessidade de dinheiro destes para impor-lhes condições leoninas. (retornar ao texto)

(32) Moskovskie Viedomosti: período que começou a ser publicado em 1856. Desde a década de 60 do século XIX expressava a opinião dos setores monárquicos mais reacionários dos latifundiários e do clero. Em 1905, passou a ser um dos principais órgãos ultra- -reacionários. Foi fechado imediatamente depois da Revolução de Outubro de 1917. (retornar ao texto)

Inclusão: 31/01/2022