Os Espiritualistas Perante a Paz e o Marxismo
ou A Perfectibilidade do Espírito, pelo Socialismo

Eusínio Gaston Lavigne


VII - A Recreação


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Reformador”, órgão da Federação Espírita Brasileira, abriu, em seu número de junho de 1952, duas colunas, para um artigo de Vinícius, sob o título “A vida e os divertimentos”, que assim começa:

O materialismo revela-se sob vários aspectos. Uma de suas modalidades consiste, sem dúvida, nessa infinidade de entretenimentos que se sucedem, sem solução de continuidade”.

A proposição transcrita ajusta-se também ao espiritualismo clássico, anacrônico, a entreter os homens com uma infinidade de ideias místicas e religiosas, todas as quais favorecem o materialismo sensualista, que o autor pretendeu condenar. Comprova-o a natureza do próprio artigo, metafísico e subjetivo, sem qualquer conteúdo realístico, de que, entretanto, em rigor, não se afasta a pura doutrina espírita, ou a Metapsíquica.

Em verdade, o articulista reclama contra a superexcitação do povo, com a “zona sensorial em constante estado de exaltação”.

Mas, por que tudo isso? — Porque, depois das “horas forçadas do labor cotidiano”, diz o prelecionador, os homens empregam o seu passatempo nos “cinemas, nos teatros, nos circos, no futebol, nas boites, nas corridas, nos jogos, nas excursões, etc.”...

Esses “excitantes mentais”, na linguagem do comentador, parecem-se com “as sensações novas”, do agrado das crianças, que “vivem do exterior, não refletem, nem meditam”. “A criança desconhece o plano subjetivo. Nada de abstrato, tudo concreto”.

Por esse modo de raciocinar, o nosso povo está na idade da criança, porque não conhece “o plano subjetivo”.

Como então adquirir a maturidade? — Abandonando tais “divertimentos”, ou fugindo do “exterior” para o “interior”, onde “está tudo”, porque é onde se encontra a “fonte inexaurível de maravilhas, prodígios e milagres”. “É — continua o lírico pregador — nas profundezas da alma, região inaccessível aos rumores externos, que se concebem as obras de Arte, as descobertas da Ciência e a filosofia da vida”. E porque não tem sido essa a rota da Humanidade, tira o autor, personalisticamente, esta inadequada conclusão:

Não é, pois, de admirar que os frutos dessas árvores se tornem cada vez mais raros nos tempos que correm. O materialismo hodierno refinou-se na técnica, na indústria, na produção, em série, a granel, sem originalidade, porque obra do artificialismo mecanizado”.

E lamentando:

Semelhante progresso generalizou-se, invadindo a Política, a Escola e os templos. A própria fé estandardizou-se, obedecendo ao padrão oficial”.

Mas, como conciliar “a vida” com os “divertimentos”, se o doutrinador moralista reconhece, afinal, a “necessidade das diversões”, úteis“principalmente à mocidade”? Com este conselho vago: “colocando os entretenimentos em seu devido lugar”. Não indica o lugar. Apenas se aproveita de um conceito comum — “não se vive para comer” — para aplicá-lo, seriamente, sem graças de palhaço, aos divertimentos, que — confessa ele — “são para a vida, mas a vida não é uma série de palhaçadas

Mas, como, de acordo com as suas premissas, o autor sugere que “voltemos as vistas para o nosso interior, isolando-nos do bulício que vem de fora”, porque “do tesouro da alma nos virá a riqueza que o ladrão não rouba, a traça não roí e a morte não arrebata”, infere-se que o lugar do divertimento se situa no nosso interior, de conformidade mesmo com o ensino do “excelso Educador” — “o reino de Deus não procede do exterior”, porque “está dentro de nós”.

Virtualmente, nega-se ao homem o direito de divertir-se. Porque, ou bem cuidar do exterior (diversões), ou bem do interior (meditação), ou as duas coisas a um só tempos isto é, entretermo-nos, com o pensamento fixado no “reino de Deus”.

Eis aí uma das modalidades da pregação do misticismo através da explicação metafísica dos versículos da Bíblia. Mais uma prova essa de como a doutrina de Jesus não pode mais interpretar-se por velhos adágios bíblicos. O caminho, segundo a moral espírita, deve, de preferência ser o do bom senso e o da Ciência. Ainda hoje, há quem pense em subordinar a Ciência à religião porque S. Paulo escreveu que “a Ciência incha, mas a caridade edifica” (1. Eps. Cor., capítulo 8.1).

O artigo, encampado pelo “Reformador”, não nos parece um bom roteiro para os espíritas.

As descobertas da Ciência e as obras de Arte não dependem do recolhimento espiritual ou da fé em Deus. Pelo modo de ver do autor, entretanto, sem a consciência da “espiritualidade, que desabrocha do reino de Deus”, o progresso das indústrias, da técnica e da produção não tem originalidade, não passa de artificialismo mecanizado.

Isso, porém não é verdade. Nunca o mundo foi testemunha de tanta originalidade nas descobertas científicas como ora se verifica na União Soviética, onde a indústria carbonífera, verbi gratia, chegou a tal perfeição que os mineiros, quilômetros abaixo do solo, trabalham confortavelmente à luz elétrica, imunes da poeira dos carvões, com trens elétricos de transporte e com máquinas automáticas, que, à simples pressão em botões elétricos, conduzem, para fora do subsolo, todo o minério extraído.

A abertura dos canais de Panamá e de Suez consumiu dezenas de anos. Mas, o de Volga-Don, de extensão maior, construiu-se em três anos, devido precisamente ao progresso da técnica, pois, quando da construção desse canal, os soviéticos já fabricavam escavadeiras que, em cada dia, faziam o trabalho de dez mil homens.

Tudo isso prova que Deus, o princípio energético do Universo, não leva em conta, para os efeitos do conhecimento, o subjetivismo da crença divina, porque, do contrário, transgrediria as suas próprias leis. As leis da Vida são objetivas e não subjetivas, e, por conseguinte, o seu conhecimento só pode ser objetivo, como causa e efeitoda generalização dos fenômenos da Natureza e da cognoscibilidade das leis. É no cadinho do estudo da Biologia e da Física-Química — da Vida e da Matéria — que se desenvolve a espiritualidade, Por isso, Lênin, em sociologia e política, foi um segundo Cristo, porque revolucionou a civilização materialista, sistematizando o Socialismo, que determina a luta contra o barbarismo das guerras e, ao mesmo tempo, pela consolidação da Paz e da cultura da Ciência. E Lênin não acreditava em Deus, ou nesse Deus das religiões. Mas, ninguém soube melhor penetrar nas profundezas da alma do que ele, que viveu toda a vida a pensar e a agir. Não, pensando para o interior — o que seria egoísmo—, mas para o exterior, onde, realmente, permanecem as origens da “filosofia da vida”. Aí, sim, o campo das nossas investigações, com as quais firmamos a argamassa da nossa educação espiritual.

Não passa de uma linguagem figurada essa distinção, que, em verdade, não existe, senão como regra metodológica, entre o nosso interior e o nosso exterior, uma vez que, conforme lição de Kardec, o espírito é uma coisa, uma unidade viva, que, por isso mesmo, não pode, neste mundo, manifestar-se fora da natureza e, pois, fora da sociedade (Liv. Espíritos, ns. 251-255 e 766-772).

Isto quer dizer que o espírito vive do exterior ou da realidade objetiva, que lhe é inerente, e as sensações são intrínsecas a essa objetividade, são qualidades do próprio ser, e, Portanto, “viver para o interior” é infringir as leis da sociabilidade.

Eis por que a moral não se pode considerar um fenômeno subjetivo, porque “não tem raízes nas particularidades biológicas do homem, mas nas condutas da vida social”.

Ora, se a recreação constitui uma necessidade ao equilíbrio funcional do corpo humano e, pois, do espírito, é evidente que ela reclama movimento na vida exterior, ao contacto com a sociedade, e, nestas condições, o seu processo educativo obedecerá aos ensinos da experiência científica, e não aos simples versículos da Bíblia, que nada ensina, a respeito, mas apenas revela conceitos teóricos, ou nos observa regras genéricas. Ela mesma nos recomenda que vivamos alegres, e cuidemos do corpo, sem o abuso do sensualismo. Mas, não passa, daí, o conselho.

Igualmente, a pedagogia marxista condena todas as diversões que estimulem o egoísmo. Porque o egoísmo é a expressão degenerativa do ego, isto é, do nosso “interior”. Mas vai além o conselho, pela prática de um ensino científico ou natural, baseado em progressiva ordem político-econômica.

Portanto, o fenômeno das diversões não é uma questão que dependa de crença ou de meditação no “reino de Deus”, uma vez que a “recreação do espírito” é uma necessidade orgânica do homem, exercitável sob os imperativos das leis que regem a vida coletiva.

A criança precisa do brinquedo. O adulto carece também de distrair-se. O operário e o escritor ou o cientista, perante o trabalho, estão com a atenção fixa e, pois, abstraídos de tudo, que perturbe o raciocínio. Sair desse serviço para outro análogo que exija esforço especial da atenção, seria sobre-excitar a mente, por contrariar a própria lei do trabalho, que se refaz pelo repouso e pela distração. E os jogos, o teatro, o cinema, as cenas movimentadas da arte são excelentes derivativos do cansaço. Deixar, por exemplo, um árduo e absorvente trabalho, para, em seguida, ouvir conferências, ou pregações religiosas, é, de qualquer modo, cansar a atenção ou os órgãos sensoriais.

Em suma: — os divertimentos são necessários à boa função cerebral. O que está passando despercebido aos observadores superficiais, no momento histórico e revolucionário do mundo, é a decadência da civilização capitalista, que subverte os princípios da moral e do Direito, e faz das utilidades recreativas, como a dos esportes, um manancial de lucro e de especulação mercantil.

O problema não se resolve com as reformas individuais, como a do nosso “interior”, à maneira do misticismo da Federação Espírita Brasileira, mas, precisamente, com a modificação da vida exterior ou das relações sociais, à base do Socialismo científico, que planifica o trabalho e não deixa margem para a ociosidade e as explorações egoísticas.

Os evangelistas, como declara o artigo, condenaram o acúmulo de “tesouros na Terra”. Mas, para levar-se em consideração o versículo da Bíblia, deve ser ele interpretado como uma condenação à riqueza acumulada e dividida em mãos e entre mãos particulares. Nunca, em poder da sociedade, porquanto o maior acúmulo de obras e de riquezas, em função das necessidades sociais, augura um crédito à felicidade das gerações futuras.

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Secas, empobrecimento do solo, degradação dos costumes, escravatura moral e econômica dos povos, regimes militaristas, obscurantismo religioso, ameaças de extermínio, pela bomba atômica, da própria Humanidade, uma série enfim, inumerável de brutais violências à liberdade e à cultura, — eis a herança que a burguesia plutocrática criou para a vida atual. Pois bem: os nossos educadores espiritualistas, apegados ainda às ideias do individualismo político, e da metafísica religiosa, tornam-se reacionários e colaboradores dessa bárbara civilização, cujas primeiras raízes remontam à época da queda do primitivo comunismo. Como escreveu V. Nikolaiev “Toda a história da sociedade humana, após a decomposição do regime comunal primitivo, é a história da luta de classes” (V. — V. Nikolaiev rev. “Problemas”, “As bases científicas da Política do Partido Comunista da União Soviética”).

O Marxismo é a escola ativa pela sobrevivência, ou recomposição da vida comunal, inspirada no conhecimento das novas leis da Economia Política e do seu reflexo nas relações humanas e na mentalidade do indivíduo.

Desse modo, o Marxismo revela-se um ensino multiforme, visando a uma sociedade de trabalho pacífico e fraternal, orientado, não pelo “estado da Natureza”, a que se referiu Kardec (Liv. Esp., n. 776), ou pela acirrada “luta pela vida”, com o poder material do mais forte, mas pelas leis naturais da Técnica, da História e da Filosofia, que consolidam a cultura e a coexistência pacífica dos povos.

A doutrina cristã, para ser coerente, não pode, em absoluto, repelir essa sociologia política do Marxismo, porque ambas, embora sob fundamentos opostos, convergem o seu ideal sublime para a vitória das leis sociais do trabalho, sob a égide do amor e da justiça.

A vida dos mosteiros representa uma comunidade, é um exemplo homeopático do Socialismo, com sua fonte abastecedora no amanho da terra, obrigando a pesquisar a Natureza, e na solidariedade, como força moral indispensável.

Elimine-se, daí, o religiosismo, dogmático, místico, reacionário e teremos a visão real daquele mundo “de um só rebanho e um só pastor”, com que, simbolicamente, o Cristo quis nos entremostrar a Humanidade em paz, sob o comando consolador da unidade da Ciência, que é Deus.

Bahia, 5/3/55.(1)
EUSÍNIO LAVIGNE


Notas de rodapé:

(1) Em homenagem ao dia do aniversário de minha mulher, Odiia Teixeira Lavigne, médica, a quem devo ainda estar vivendo, para pensar e trabalhar pelas causas sociais. (retornar ao texto)

Inclusão 15/08/2018