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Ao falar de equivalente geral através do qual todas as mercadorias determinam o seu valor, escolhemos como exemplo os fósforos. Procedemos assim para demonstrar que qualquer mercadoria que tem valor poderia servir de equivalente geral.
Na realidade, na sociedade moderna, o papel de equivalente geral é desempenhado por uma mercadoria particular que se chama dinheiro. A forma-valor geral da troca chama-se, por esta razão, monetária(1).
Actualmente(2) o ouro é a principal mercadoria monetária.
Mas nem sempre foi assim.
Na Antiguidade, como as trocas não estavam tão desenvolvidas como hoje em dia e como tinham um carácter local, o papel do dinheiro era desempenhado por outras mercadorias de uso corrente. Numa determinada região nos países onde a caça era uma actividade importante, a pele dos animais era um meio de troca; nos povos pastores era o gado que servia para a troca, etc.
Entre certos indígenas de África, conta-nos R. André (que citamos segundo Trachtenberg: O Papel Moeda, edição russa), os prisioneiros roubados às tribos inimigas serviam de medida de valor. «Um adolescente ou uma jovem bonita constituem a moeda mais valiosa(3).»
Pouco a pouco os metais preciosos destacam-se das restantes mercadorias correntes e o ouro passa a ocupar o primeiro lugar. Estes metais começam a desempenhar um papel de equivalente geral, primeiro sob a forma de lingotes de diversas formas e depois sob a forma de bocados de metal de forma e peso determinados(4). As verdadeiras moedas aparecem muito mais tarde.
Não é difícil perceber o que permite ao ouro e aos outros metais preciosos eliminar as outras mercadorias que serviam de moeda.
Em primeiro lugar, estes metais preciosos têm a vantagem de não se oxidar com o tempo, e além disso gastam-se lentamente, enquanto que uma moeda-mercadoria, como o gado, por exemplo, não só pode perder-se (o gado pode adoecer e morrer), mas também exige cuidados especiais. Em segundo lugar, o ouro pode ser facilmente dividido: se se tem ouro, podem comprar-se mercadorias cujos valores sejam diferentes; enquanto que, se se tem uma pele valiosa ou uma vaca, só podem comprar-se mercadorias cujo valor seja pelo menos igual à unidade de mercadoria que serve de moeda ou várias vezes maior, já que uma pele cortada aos bocados perdia o seu valor, bem como não faz sentido dividir a vaca aos bocados.
Além disso, as moedas de ouro são cómodas, dada a sua pequena dimensão (quer dizer, uma pequena moeda materializa uma quantidade bastante grande de trabalho socialmente necessário). Podem-se transportar facilmente, guardar-se, etc. Enfim, têm a vantagem de ser facilmente reconhecidas, o que juntamente com as restantes propriedades contribuiu para fazer do ouro a matéria principal da moeda.
O facto de o ouro ter propriedades físico-químicas, definidas, e particularmente a da não oxidação em condições ordinárias, ou o facto de ser fácil de dividir, não pode, no entanto, explicar porque é que o ouro chegou a equivalente geral de todas as mercadorias. As propriedades físico-químicas duma mercadoria só definem, já sabemos, o seu valor de uso, característica que deve possuir qualquer produto transformado em mercadoria.
A moeda de ouro só pode servir de medida de valor de outras mercadorias porque ela mesma é, como os fósforos de que falámos, uma mercadoria com um valor determinado e que materializa certa quantidade de trabalho socialmente necessário. O ouro só pode desempenhar o seu papel na sociedade moderna porque toda a organização desta sociedade nos leva a uma dominação espontânea das leis do valor e porque a moeda não é mais do que a expressão geral do valor.
Algumas almas sensíveis queixam-se, por vezes, da importância dominante que o ouro ocupa na sociedade moderna e dá-lhes prazer declarar o seu ódio ao «vil metal»; começam a ver o vício fundamental da sociedade capitalista no ouro. Um «sábio» legislador grego tentou, noutra época, proibir a moeda de ouro, com o propósito de pôr fim às lutas e aos ódios que nascem do espírito de lucro.
Mas é evidente que a culpa não cabe aos pequenos cilindros de metal amarelo e brilhante. A moeda não faz mais que traduzir as relações que imperam na sociedade capitalista e, de modo geral, na, economia desorganizada baseada na troca. O dinheiro não tem em si mesmo qualquer poder mágico e secreto. A forma-dinheiro do valor não difere muito das demais formas-valor donde nasce ao desenvolver-se. O poder do dinheiro não é mais que a manifestação geral do poder das coisas sobre os homens, poder que caracteriza a economia desorganizada baseada na troca.
Este poder das coisas sobre os homens na economia desorganizada descobriu-o Karl Marx e chamou-o de feiticismo da mercadoria. Da mesma maneira que o primitivo adorava um feitiço, um objecto que construíra com as suas mãos, o homem que vive numa economia desorganizada depende das coisas que fez.
Por certo, basta instruir o selvagem, transformá-lo num homem culto, para que o feiticismo desapareça, como se uma venda caísse dos olhos do feiticista. O feiticismo da mercadoria é muito diferente; compreender que as coisas exprimem relações sociais, que todo o mal está nas relações entre os homens que as engendraram, é um grande passo. Mas não termina aqui o problema. Para acabar para sempre com o feiticismo da mercadoria, há que destruir as coisas com que nasceu. É inútil proibir o dinheiro como fizeram os sábios da Grécia Antiga. Voltará sempre a aparecer, apesar de todas as proibições, desde que subsistam as empresas privadas (que constituem propriedades privadas), que têm a obrigação de pôr-se em contacto umas com as outras através do mercado. Mas quando a sociedade estiver reorganizada sobre bases que excluam a propriedade privada e a necessidade do mercado, o poder que exercem sobre os homens estes pequenos discos de metal amarelo e brilhante desaparecerá. Então, os homens não serão governados pelas coisas; mas antes serão os homens que governarão as coisas racionalmente, segundo um plano de conjunto.
O «feiticismo do dinheiro» é uma das piores formas de feiticismo da mercadoria. Os usurários descritos por vários escritores não são os únicos que param estupefactos diante do dinheiro e da sua omnipotência e que procuram a causa do fenómeno onde ela não se encontra. Eminentes economistas actuam do mesmo modo. Por isso podemos dizer que é um grande êxito compreender como as coisas traduzem, numa sociedade desorganizada, as relações sociais. Mas um passo maior ainda é compreender estas relações e transformá-las para chegar a arrancar a raiz do feiticismo da mercadoria.
Notas de rodapé:
(1) Ao aludir à classificação de Karl Marx, alguns autores pensam ser necessário distinguir quatro formas-valor: forma- valor simples, forma-valor desdobrada, forma-valor geral e forma-dinheiro. Mas, escreve Marx: «Na transição da forma I para a forma II, da forma II para a forma III, têm lugar transformações essenciais. Em contrapartida, a forma IV em nada se diferencia da forma III, a não ser pelo facto de agora, em vez do tecido de linho, ser o ouro a possuir a forma de equivalente geral. Na forma IV, o ouro continua a ser o que o tecido de linho era na forma III - equivalente geral. O progresso consiste apenas no facto de a forma de trocabilidade geral imediata ou a forma de equivalente geral se fundir agora, definitivamente, por hábito social, com a forma natural específica da mercadoria ouro» (K. Marx, O Capital, Livro Primeiro, t. I, p. 85, ed. «Avante!»-Edições Progresso, Lisboa-Moscovo, 1990). Evidentemente, não temos razões para considerar a forma IV (forma-dinheiro) como uma forma especificamente diferente da forma III (forma-valor geral). Ao aludir à classificação de Karl Marx, alguns autores pensam ser necessário distinguir quatro formas-valor: forma- valor simples, forma-valor desdobrada, forma-valor geral e forma-dinheiro. Mas, escreve Marx: «Na transição da forma I para a forma II, da forma II para a forma III, têm lugar transformações essenciais. Em contrapartida, a forma IV em nada se diferencia da forma III, a não ser pelo facto de agora, em vez do tecido de linho, ser o ouro a possuir a forma de equivalente geral. Na forma IV, o ouro continua a ser o que o tecido de linho era na forma III - equivalente geral. O progresso consiste apenas no facto de a forma de trocabilidade geral imediata ou a forma de equivalente geral se fundir agora, definitivamente, por hábito social, com a forma natural específica da mercadoria ouro» (K. Marx, O Capital, Livro Primeiro, t. I, p. 85, ed. «Avante!»-Edições Progresso, Lisboa-Moscovo, 1990). Evidentemente, não temos razões para considerar a forma IV (forma-dinheiro) como uma forma especificamente diferente da forma III (forma-valor geral). (retornar ao texto)
(2) Refere-se à época do «padrão-ouro». (N. do E.) (retornar ao texto)
(3) Recordemos que na época do comunismo de guerra, na U.R.R.S., a perturbação da circulação monetária conduziu a que certas mercadorias, tais como o tabaco, o sal, a farinha, desempenhassem o papel de equivalente geral. (retornar ao texto)
(4) A etimologia da palavra russa rublo é, neste aspecto, muita curiosa: rublo vem de ob. roubok, que literalmente significa pedaço cortado. (retornar ao texto)
Inclusão | 26/06/2018 |