Porque Crê em Deus a Burguesia

Paul Lafargue

Duas palavras para servirem de Prefácio


Não conheço senão através da tradução, que suponho fiel e a que estas palavras vão servir de prefácio, o opúsculo, da autoria de Paul Lafargue, intitulado — Porque crê em Deus a burguesia. Devo confessar que se eu conhecesse, no original, as páginas que vão a seguir nem por isso seria maior a minha autoridade para as inculcar à atenção do público português. Um trabalho de Lafargue recomenda-se por si. Quando, — há que anos isso vai! — tive ensejo de ler as páginas brilhantemente paradoxais do Direito à preguiça, logo fiquei admirando em quem com tanta ousadia intelectual soube traçá-las um espírito analítico e esfusiante, ao mesmo tempo, através do qual as mais áridas realidades da história adquiriam um toque de luz em que relampejava a mordacidade. O opúsculo que, pela primeira vez, — segundo creio — agora se publica em Portugal, sob a epígrafe sintomaticamente irônica de Porque crê em Deus a burguesia, não destoa, quanto à índole, da saborosa tese a que acabo de aludir. É possível que o ponto de vista de Paul Lafargue não resista, absolutamente, a uma revisão critica desapaixonada. Sou dos que reconhecem os altos serviços que, carregada embora de máculas e de crimes, enxovalhada vilipendiosamente pelo sangue dos mártires que imolou à arrogância do seu despotismo, a igreja católica pôde prestar à civilização e ao progresso do mundo. O requisitório que Paul Lafargue articula contra ela pôde, por isso, num ou noutro ponto, afigurar-se informado excessivamente pela reacção, aliás legítima, suscitada contra o catolicismo pelas suas próprias culpas, que à luz da História acusam, não raro, a lividez sinistra das mais hediondas depredações. De um modo geral, eu estou, no entanto, com Paul Lafargue e nenhuma dúvida tenho em afirmar que se o ateísmo, como tema de propaganda, me parece inane e quiçá contraproducente, nunca será demais a divulgação dos motivos de queixa que as classes populares têm o direito de invocar contra uma igreja que, atenta à orientação dos ventos, ardilosamente busca enfeitar-se com o titulo de padroeira dos humilhados e dos espesinhados quando o que principalmente avulta no seu passado de muitos séculos é o conservantismo que dela fez a herdeira do cezarismo romano. e, através do convulso drama da História, a solícita alcoviteira de todas as tiranias. Prova-no-lo, insofismàvelmente, o que se passou com a escravatura, que o espírito cristão das primeiras comunidades feriu com as suas evangélicas objurgações para, afinal, perdurar até os nossos dias pela força dos interesses inhumanos com os quais a igreja acabou por se conformar, reduzindo a um precário e caritativo adoçamento todo o programa moral da sua atitude perante a ignóbil instituição. Claro está que Paul Lafargue não pretende convencer ninguém de que para crer em Deus é indispensável possuir acções com cotação na Bolsa... Era Paul Lafargue homem inteligentíssimo e de larga cultura, que muito bem sabia ter a atitude religiosa profundas raízes, tão profundas que mergulham nas obscuras regiões do sub-consciente do pobre ser humano. Mas não ignorava, tampouco, que a religião é, pragmàticamente, um instrumento disciplinar, que as oligarquias parasitárias utilisam sabiamente em benefício da conservação dos seus privilégios pelo que se pôde, com verdade, dizer que Deus vem a ser, efectivamente, na sua invisível onipotência, — que os sacerdotes corporisam, — o mais poderoso sustentáculo da Ordem contra as inclinações do descontentamento milenário das plebes e as revindicações da justiça ultrajada e militante.

Eis porque o opúsculo "Porque crê em Deus a burguesia", a despeito da sua feição panfletária, sugere úteis reflexões e contém nas suas páginas, a que não falta o timbre da mais ardente combatividade, um pecúlio apreciável de observações exactas e sugestivas.

O aparecimento deste livrinho é, de resto, oportuníssimo. Estamos num singular momento histórico, atravessando uma crise que, pela trágica amplitude, não tem precedentes. Milhões de criaturas debatem-se nas incertesas lancinantes do desemprego, entregues às múltiplices solicitações do tédio e do desespero. No meio deste torvelinho de aflições nunca vistas, face a face do tremendo absurdo de uma civilização cujos recursos técnicos atingiram um coeficiente de produtivo rendimento jamais pressentido sequer pelos utopistas mais confiantes no indefinido desenvolvimento do progresso e que, todavia, vê crescer dia a dia o lúgubre exército da fome, genialmente profetisado por Marx, as igrejas não desistem de congregar em redor dos seus velhos símbolos inúteis as turbas martirisadas e ludibriadas. E, entre todas elas, a católica, que multiplica infinitamente os seus processos de captação para refazer um intolerável primado espiritual e temporal.

Se é tempo de opôr uma barragem enérgica a esse retorno ofensivo das forças clericais, de novo reagrupadas para o combate em que sempre porfiaram, o folheto de Paul Lafargue tem uma actualidade inquestionável.

Leiam-no, pois, com atenção — e divulguem-no com tenacidade — aqueles que, repudiando todas as servidões, vivamente se empenham pela emancipação moral e social da humanidade.

Lisboa Setembro de 1932.

Bourbon e Meneses.


Inclusão 29/01/2010