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Primeira Edição: Folha de São Paulo, 7 de janeiro de 2001
Fonte: http://obeco-online.org/robertkurz.htm - http//planeta.clix.pt/obeco/
Tradução: José Marcos Macedo
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
Não faz muito tempo, ela era tida como a menina dos olhos do "milagre econômico" depois da Segunda Guerra Mundial, como pilar do emprego e do mercado de trabalho ou mesmo como matriz de um novo modo de vida: a indústria automobilística sempre foi muito mais que uma simples indústria entre outras. Ela representou, pura e simplesmente, o paradigma da cultura capitalista da combustão. Pois, ao contrário das usuais mercadorias do consumo de massas moderno, a mercadoria "automóvel" imprimiu seu cunho a toda a evolução social e alterou a face das cidades tão radicalmente como o meio ambiente. Até hoje o automóvel domina o cotidiano de uma grande parte da humanidade. O motor de combustão é onipresente, e as reservas estratégicas de petróleo, sobretudo no Oriente Médio, mas também na região do mar Cáspio, na África, na América Latina e no mar da China, constituem o foco da política mundial. Mas, no início do século 21, a antes tão orgulhosa indústria automobilística, a nau capitânia da segunda revolução industrial "fordista", deixou de ser a emissária da esperança e envelheceu em todos os sentidos. Desde a década de 80 fala-se de uma "era pós-fordista" da terceira revolução industrial: microeletrônica e novas formas da telecomunicação deveriam seguir de mãos dadas com um capitalismo de serviços pós-industrial. O setor automobilístico, antigo centro do desenvolvimento, parece quase um dinossauro e é tido na conta de modelo econômico em extinção da "velha economia". O folhetim político-econômico afirma que, no capitalismo-Internet do futuro, o papel decisivo não mais será desempenhado pela rodovia de fato, mas pela "rodovia de dados" da virtualidade. Paul Virilio, o filósofo da velocidade, vê esse processo como consequência lógica de uma cultura da simulação; em vez do insensato progresso real mediante o automóvel e o aeroplano, surgirá o igualmente insensato progresso midiático, se bem que agora apenas simulado. Nesse sentido, diz Virilio em seu ensaio "Repouso à Toda Pressa": "Se o fim do século 19 e o início do século 20 assistiram ao advento do veículo automóvel, do transporte dinâmico ferroviário, viário e aéreo, parece então que o fim deste século anunciará, de fato, com a iminente implementação do veículo audiovisual, do veículo estático, um sucedâneo para os nossos movimentos físicos e o prolongamento da imobilidade doméstica, uma alteração última que verá finalmente o triunfo da sedentariedade, dessa vez uma sedentariedade definitiva".
A cultura de uma mobilidade desnorteada como fim em si mesmo, que só faz refletir o fim econômico tautológico ou a metafísica econômica do processo de valorização capitalista, é tão destrutiva em sua forma automotora como em sua forma audiovisual. Mas abstraindo disso, cabe perguntar o quão fecunda é na verdade, em termos econômicos, a modificação descrita por Virilio. O ensaísta tem em vista somente a transformação cultural, mas nada tem a dizer sobre a transformação econômica. O fato é que a indústria automobilística como esteio central do crescimento se esgotou e, segundo as tradicionais regras do mercado, atingiu seus limites de saturação histórica. Os postos de trabalho nesse setor foram drasticamente reduzidos nos últimos 20 anos pela racionalização e automatização microeletrônica. Simultaneamente começaram a ruir os pressupostos logísticos do tráfego automotor: a divisa dos motoristas alemães, "Velocidade Livre para Cidadãos Livres", originalmente dirigida contra os limites de velocidade impostos por lei, cai no ridículo pelo eterno engarrafamento de ruas cronicamente congestionadas. Nessas circunstâncias, o culto ao automóvel não reina mais totalmente inconteste nem na consciência de massas. A contínua ampliação da infra-estrutura para a expansão automobilística esbarra em limites naturais e financeiros: em regiões densamente povoadas, simplesmente não há mais espaço para novas estradas e, paralelamente, os Estados não dispõem mais dos fundos necessários para tanto. Esse também haverá de ser o problema dos sonhos de florescimento de uma possível "potência automobilística" chinesa e em outras regiões do mundo onde, para a maioria dos habitantes, a bicicleta se manteve até agora o único desejo realizável de mobilidade. A densa rede viária e rodoviária indispensável para uma massificação do automóvel, rede que mesmo os países ocidentais mais ricos só conseguiram construir no curso de várias décadas, é para a China, Índia, Paquistão, Indonésia, Malásia etc. tão inviável financeiramente como para a maioria dos países africanos e latino-americanos. O mesmo vale para os custos de controle e manutenção da respectiva logística do tráfego automobilístico, sobretudo o complexo processo de refino e a distribuição nacional de combustível. Mas sem ruas suficientes e demais pressupostos os carros não poderiam circular, seguiriam enferrujando estacionados. Não bastasse isso, o próprio poder aquisitivo das massas permanecerá muito baixo para que na Ásia, por exemplo, possa ser alcançada uma densidade da difusão do automóvel análoga à do Ocidente. É também extremamente improvável que o boom fordista se repita como "automobilização" da economia doméstica na Ásia e em outras áreas, depois de já ter se esgotado na Europa Ocidental e na América do Norte. Se são erguidos novos centros de produção automotiva, servem eles em primeiro lugar à exportação para os velhos países industriais, sobretudo na "rua econômica de mão única" que corta o Pacífico rumo aos Estados Unidos.
O avanço planetário do automóvel, semelhante a uma invasão extraterrestre, parece, pois, ter atingido limites absolutos. Mas na verdade não foi possível ao capitalismo explorar um outro campo de crescimento real de amplitude comparável. O capitalismo de serviços, muito difuso, não gerou um setor dinâmico próprio de análoga expressividade social, com uma dinâmica de crescimento e emprego capaz de assumir o antigo papel da indústria automobilística. A Internet é, de fato, uma tecnologia-chave, cuja ocupação e criação de valor, entretanto, por sua natureza, há de permanecer reduzida.
A World Wide Web constitui o setor dinâmico para uma economia simplesmente virtual da bolha financeira global, mas não para a economia real. Nesse sentido, as indústrias fordistas não foram de modo algum substituídas pelas do ramo virtual. Como economia de combustão de força de trabalho humano e energia fóssil, o capital continua preso, em seu processo de acumulação real, à clássica indústria de massas. O que se "queima" na Internet, pelo contrário, é simplesmente o capital dos investidores.
Disso resulta uma importante ilação: se as indústrias fordistas, com o automóvel como sua principal mercadoria, envelheceram, envelheceu também o próprio capitalismo. O modo de produção capitalista como tal é a esgotada e já infértil "velha economia". Por isso cabe ao destino da indústria automobilística um sentido decisivo para o destino de toda a economia mundial. O "crepúsculo" do antigo setor dinâmico socioeconômico vira um símbolo da decadência do capital mundial, ainda que esse processo se prolongue por várias décadas e ainda não seja reconhecível em sua extensão.
Já em 1997 apareceu em Londres um estudo da McGraw-Hill em que se advertia para o excedente mundial da produção automobilística. A crise estrutural daí resultante conduziria, no mais tardar a partir de 2001, a graves rupturas, como se disse então. Esse prognóstico sombrio, é claro, logo caiu no esquecimento, pois o boom automotivo pareceu de início avançar sem freios. Mas esse boom havia muito não caminhava pelas próprias pernas, antes era estimulado por meio da demanda de financiamentos, que não correspondia mais à receita real. Um número cada vez maior de consumidores (não só nos EUA, no mundo inteiro) se endividam a longo prazo com créditos e contratos de leasing ou lançam mão de suas parcas economias para financiar um carro. E da riqueza fictícia dos jovens capitalistas da Internet acercou-se sobretudo o segmento de luxo: no "ano admirável" de 1999, bateu recordes, com a euforia da Bolsa, a produção de limusines e carros esportivos.
Mas sob a superfície a figura era outra, não só do lado da demanda, mas também do lado da oferta. Tal como em outros ramos produtivos, também no setor automobilístico sinalizou a contínua onda de fusões, aquisições e "alianças estratégicas" uma nova qualidade da concorrência selvagem transnacional. Isso se deduz do fato de que, agora, todos os produtores querem estar presentes ao mesmo tempo não somente em todas as regiões do mundo, mas também em todos os segmentos do mercado. Enquanto a Volkswagen, por exemplo, que ao lado da Ford, é o produtor clássico de carros populares, busca sistematicamente se insinuar com pesadas limusines no setor nobre, a Mercedes-Benz, clássica marca de luxo, faz concorrência a outros produtores com veículos pequenos. Os enormes custos adicionais de desenvolvimento dessa "guerra do modelo" logo terão efeito negativo nos balanços. Os excedentes reais também se fizeram notar pelo fato de os custos não serem repassados aos preços. Pois a luta por segmentos em mercados saturados conduziu a uma guerra de preços até hoje em vigor e agora de forma tanto mais aguçada. Para disparar as cifras de venda, os produtores se esmeraram em oferecer financiamentos especiais, descontos, modelos exclusivos, acessórios grátis e até mesmo brindes. Essa tendência, originária dos EUA, empolgou nesse meio tempo todo o mundo da indústria automobilística. Resultado lógico: preços decrescentes com custos ascendentes e, por conseguinte, lucros decrescentes apesar do aumento nas vendas. Aqui se revela um paralelo irônico entre a indústria automobilística e o e-commerce: em ambos os casos, se observa desde 1997 um crescimento cego das vendas, enquanto os lucros encolhem ou até mesmo perdas espantosas são assimiladas. Os limites absolutos desse processo são hoje visíveis. Logo pode se concretizar o reprimido prognóstico de 1997 da McGraw-Hill. O financiamento da venda de carros mediante crédito ao consumidor, descontos etc. estanca-se tal como o fluxo de demanda da reciclagem dos lucros especulativos nos mercados financeiros. A real saturação do mercado mundial de automóveis não se deixa mais ocultar. Na Europa agrava-se a situação cada vez mais, porque a "automobilização tardia" da Europa oriental, a partir de 1989, chegou ao fim: o poder de compra limitado e bastante reduzido nos Estados reformistas do Leste não permite mais nenhum aumento na venda de carros. Pela mesma razão, escoam cada vez menos carros usados da Europa Ocidental para a Oriental, e estes inundam os mercados ocidentais e puxam para baixo os preços no mercado de carros novos, pois, para compradores cada dia mais apertados, a opção de um carro usado se torna interessante. A crescente obstrução dos mercados globais de carros é condicionada por mais um fator, com o qual ninguém contava: os preços vertiginosos alcançados pelos combustíveis não agem somente sobre a conjuntura em geral, mas também sobre a demanda de automóveis em específico. Tal pode continuar assim ainda que o preço do petróleo caia momentaneamente. Isso porque não se trata de um problema conjuntural, mas estrutural. A despeito de todos os desmentidos, começam a se cumprir os prognósticos negativos do "Clube de Roma" dos anos 70: as provisões globais de petróleo estão diminuindo. Não tanto a quantidade de matéria fóssil energética em geral, mas a quantidade que pode ser extraída pelas condições atuais.
Segundo relato de Fritz Vahrenholdt, sócio-diretor da Shell alemã, até 2014 uma boa parte do petróleo extraído de modo convencional estará esgotada, e a prospecção ficará cada ano mais dispendiosa. Os enormes custos de investimento para bacias petrolíferas recém-descobertas e ainda a serem exploradas (como por exemplo na região do mar Cáspio) afetarão os preços do petróleo de modo semelhante aos custos adicionais para uma possível prospecção petrolífera em outras regiões do mundo já incapazes de jorrarem com tanta generosidade, como nos Estados do golfo Pérsico, no Oriente Médio, porque o petróleo há de ser primeiro custosamente separado de areia e pedraria.
E a busca por materiais sintéticos para substituir as fontes energéticas fósseis foi até agora baldada, apesar de todos os anúncios de sucesso. A pretensa alternativa do hidrogênio, por exemplo, não é alternativa alguma, uma vez que as próprias células de hidrogênio combustível têm de ser hauridas em grande parte de energia fóssil. Por mais que se faça, o combustível no futuro será sensivelmente mais caro que hoje.
A partir de março de 2000, o irônico paralelo entre indústria automobilística e e-commerce ganhou um traço negativo: em ambos os casos, a inflação dos custos conjugada a preços reduzidos e lucros reais minguados ou inexistentes levou à queda nos índices das Bolsas. O valor acionário da Daimler-Benz, por exemplo, caiu de 70 para 47 bilhões de dólares. E a ladeira só começou: no primeiro semestre de 2000, o mercado de carros de passeio europeu caiu 6%, e o alemão, 11%. Para a Ford, a grande perdedora, a queda foi de 30%. Nos EUA, as vendas da Chrysler despencam mês a mês na casa dos dois algarismos o cartel é tido como o primeiro grande "candidato à morte" da indústria automobilística. Para a Daimler-Benz, uma das maiores produtoras de automóveis do mundo, a fusão com a Chrysler na "Welt AG" ameaça acabar em completo desastre: a contínua queda das ações da Daimler-Benz pode transformar todo o cartel em objeto de uma "aquisição hostil", para a seguir ser retalhado e desativado.
Ao que parece, a queda dos índices virtuais da Bolsa nos "novos mercados" e a ruptura econômica real da indústria automobilística planetária levarão a uma escalada recíproca: o derreter do "capital fictício" repercute na conjuntura real sobretudo no setor automobilístico, e a tendência recessiva da conjuntura automobilística, por sua vez, repercute nos mercados financeiros. A hora da verdade está próxima.
São Paulo, domingo, 07 de janeiro de 2001