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Primeira Edição: Difundido originalmente pelos cadernos do Laboratório de Geografia Urbana do Departamento de Geografia da FFLCH da Universidade de S. Paulo, ano 1, n. 1, Abril de 1996.
Tradução: Heinz Dieter Heidemann, em colaboração com Tatiana Schor
Fonte: http://obeco-online.org/robertkurz.htm
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
O que é um automóvel? Que pergunta mais boba: "automóvel", abreviado por auto, meio de locomoção terrestre impulsionado por um motor; frequentemente por um motor de combustão: é a definição dada pela enciclopédia alemã Brockhaus. Porém, definições dessa natureza são, infelizmente, muito limitadas. Elas se restringem à função técnica: o homem da economia de mercado não quer outra coisa a não ser relacionar-se funcionalmente com objetos inconscientemente pressupostos. Todavia, o automóvel "é" obviamente mais do que um simples "meio de locomoção terrestre": para muitos fetichistas do automóvel, ele é um objeto erótico, para a maioria, um objeto de prestígio, para alguns, um vício, um cassetete para agredir ou um pobre sucedâneo do parceiro. Está comprovado que o carro é o poluidor número um do meio ambiente. Para milhões, ele é, também, ao mesmo tempo, "promotor de emprego". E, desde que a sociedade automobilística corre em altas cilindradas e muita velocidade em direção à crise, o carro é também objeto de crise e conflito por parte do interesse público.
Ainda na década de 70, funcionários do sindicato da indústria metalúrgica, operários e construtores de automóveis, defendendo o modo de vida baseado na fé, na técnica, no mercado e no dinheiro, atacaram cegamente, com grande violência, os defensores do meio ambiente e quaisquer outros críticos. Já nessa época, demonstrou-se o caráter um tanto obtuso do tipo de ser humano preso a esse modo de vida. Hoje já podemos discutir com sindicalistas da indústria automobilística e até com alguns executivos sobre os perigos e limites do capitalismo automobilístico. A crise torna isso possível: catástrofes ambientais e desemprego maciço arranham o antigo esplendor do automóvel. Já se tornou quase lugar comum dizer que "assim não dá para continuar". O que não impede que tudo continue. Pelo menos, poderíamos perguntar-nos como se chegou à dependência total do automóvel.
A aparente economia de tempo que resulta da velocidade, possibilitada pelos meios de transporte modernos, não foi originalmente nenhum bem desejável. Já a locomotiva a vapor provocara questionamentos críticos. Em 1802, o escritor Johann Gottfried Seume foi a pé da Saxônia até a Sicília e descreveu a viagem no seu célebre relato "Passeio até Siracusa". Tal lembrança talvez deixe o fetichista do automóvel impaciente. Seume, porém, era explicitamente a favor de andar a pé e contra a locomoção por rodas. Afirmava que: "tudo andaria melhor, se as pessoas andassem mais". E advertia: "No momento em que nos assentamos na carroça, ao mesmo tempo nos afastamos alguns graus da humanidade original". Também na mãe-pátria do capitalismo puro e da posterior produção em massa do automóvel, nos Estados Unidos da América, cedo apareceu uma rejeição ao "progresso" pela mobilidade tecnológica. O professor, topógrafo e antecessor de um modo de vida alternativa, Henry David Thoreau de Massachusetts, inclui a ferrovia no grupo dos "meios aperfeiçoados para um fim não aperfeiçoado" e, como Seume, dizia: "Cheguei à conclusão de que quem anda a pé anda mais rápido".
Será que Seume e Thoreau eram simplesmente tontos? O fetichista do automóvel tende a responder que sim, porque já perdeu a capacidade de pensar. Todavia, Seume e Thoreau não eram "inimigos da técnica". Estavam preocupados com algo diferente: desconfiavam de que a ampliação e aceleração da mobilidade não resultaria, como diríamos hoje, em uma melhora da "qualidade de vida". Para Thoreau, os homens precisavam despender esforços enormes para fins que lhes são alheios, só para poder "ganhar o dinheiro para o transporte". Referia-se à relação entre "trabalho", dinheiro e consumo tecnológico que os homens do século XX interiorizaram. Para ser mais claro: o "fim não aperfeiçoado" consiste no fato de que as conquistas da industrialização se desenvolveram numa forma social que erigiu o dinheiro como finalidade própria de todas as atividades. O dinheiro é, como nós sabemos, a alma do capitalismo, e essa alma transparece também em todas as suas criações tecnológicas.
Trata-se, portanto, de uma inversão dos meios e dos fins, segundo a qual os homens se submetem a suas próprias criações. O fim em si da valorização microeconômica do dinheiro não tem nenhum sentido. "Trabalho" e emprego, derivados dela, levam, não menos sem sentido, a um fim em si do consumo em massa da tecnologia. Como macacos amestrados, capazes de divertir-se com tolices, abrindo e fechando incessantemente cadeados. Assim, o modo de produção da economia de mercado levou seres humanos adultos à situação de deixar-se "empregar" como menores tutelados, sem questionar o sentido, o conteúdo e as consequências, e para rematar, achando isso normal e necessário para a vida. Não é de estranhar que o consumo de produtos, produzidos dessa forma, acabe por assemelhar-se aos atos de tais macacos. Pela mobilidade, sem qualquer sentido, e pela aceleração permanente de todos os processos de vida, "o ser, enquanto ganhador de dinheiro", faz de si seu próprio macaco.
O que se perde nisso é a qualidade de vida mais importante: a qualidade do próprio tempo de vida. Ira pé da Saxônia até a Sicília, como fez Seume, foi um uso extremamente luxuoso de tempo, algo que nenhum executivo moderno poderia permitir-se, mesmo ganhando milhões por ano e dirigindo o carro mais rápido. Porém, a eliminação do fim cultural e humano, posto para si mesmo, desonraria assustadoramente a qualidade do tempo de vida. Não é preciso idealizar as condições pré- modernas para compreender que "o hábito de utilizar a melhor parte de sua vida para ganhar dinheiro" (Thoreau) somente pode levar à auto destruição do homem. Quanto mais tempo aparentemente se economiza, menos tempo se possui e mais importante torna-se, de repente, o "trabalho" pelo "trabalho". Esse absurdo, que hoje em dia volta a adquirir importância especial nas discussões sobre a localização e a jornada de trabalho, é o outro lado da moeda, o desemprego produzido no mesmo processo. A contradição do sistema, isto é, a irracionalidade da economia de mercado, não apenas faz com que alguns sejam considerados "supérfluos" e, ao mesmo tempo, exige dos outros "mais trabalho", mas conduz também os próprios trabalhadores a quase se autoconsumirem numa servidão voluntária, cuja finalidade do "trabalho" é o próprio "trabalho".
Em se tratando do automóvel, todas essas contradições e incongruências sociais viraram sucata, ferro velho. É um fato histórico que somente com o advento do automóvel e sua crescente produção em massa a moderna economia de merca- do encontrou o seu símbolo. Encontrou também, ocupando todos os espaços, sua força sugadora de vida e de dispêndio de tempo, por intermédio da economia de tempo. A expressão "matar o tempo" é uma invenção capitalista. Nela se expressa quase todo o conteúdo da vida de todos os fetichistas do automóvel, considerando pensadores como Seume e Thoreau como meros idiotas, mesmo que esses, na sua "filosofia crítica do andar", já previssem o futuro colapso às vésperas da moderna mobilidade de massa.
Quando os Srs. Daimler e Benz promoveram a abertura decisiva, com a invenção, nos anos 90 do século passado, do motor a combustão, outras tentativas com gás e outros compostos já haviam falhado tecnicamente. No fundo, a insistência com essas experiências tem por que surpreender. Já existia um meio de transporte moderno independente da tração animal: a ferrovia, com quase um século de desenvolvimento e tecnologicamente mais amadurecida que o automóvel. Porém, embora a ferrovia já estivesse impregnada pelo "espírito do capitalismo", do ponto de vista capitalista, ela ainda trazia a mácula da imperfeição. Não no sentido tecnológico, mas, de modo mais fundamental, no sentido econômico e, de certa maneira, até espiritual.
Em primeiro lugar, a ferrovia não tem a capacidade de se movimentar em todas as direções, feito uma partícula em um espaço vazio, mas, como sabemos, ela está presa a trilhos fixos. Mas isso não é apenas um problema técnico, é também espiritual. A estrada de ferro se torna imperfeita somente para uma consciência reduzida à forma de uma partícula, o "átomo social". O impulso de poder ir "para qualquer lugar" (que corresponde a "para lugar nenhum"), ou seja, de não depender dos trilhos e das paradas preestabelecidas, corresponde a uma mentalidade, por sua vez, determinada pelo arbítrio e bel-prazer. O tipo humano que faz (quase) tudo por dinheiro, até os maiores absurdos, e cujos interesses são, portanto, totalmente sem rumo, também não quer deixar preestabelecer a sua direção de viagem.
Em segundo lugar, a estrutura do meio de transporte ferroviário baseia-se numa coletividade involuntária, tanto no simples fato de estar junto a outras pessoas durante a viagem, como no caráter aleatório desse encontro. Mas os seres humanos, caracterizados pelo capitalismo, são profundamente estranhos uns aos outros num sentido muito mais coercitivo do que pelo fato de não se conhecerem pessoalmente. Eles não podem existir na consciência de uma relação comunitária dentro de uma estrutura cultural, pois a própria relação social tornou-se para todos algo ameaçador e externo, na forma de dinheiro, que proporciona tudo, menos uma coisa: amparo. Por isso, os seres humanos, socializados nessa maneira fantasmagórica, estão sendo separados como se fossem por paredes invisíveis de vidro. Karl Marx chamou isso de "estranhamento", e Jean Paul Sartre chegou a uma outra fórmula: "o inferno são os outros". Não é nenhuma coisa do outro mundo que esses indivíduos solitários não conseguissem aguentar a proximidade uns dos outros. No trem, eles preferem estar sentados sozinhos num vagão, expressando com olhares vazios o vazio de sua vida, um vazio produzido por eles mesmos. Assim, o trem torna-se o lugar do mal-estar. O indivíduo solitário prefere, assim, viajar isoladamente, fechado no invólucro do caixão de lata em movimento.
Em terceiro lugar, enfim, a ferrovia, do ponto de vista capitalista, possui uma mácula irrecuperável: a de ser necessariamente, também no aspecto econômico, um "bem público". Trata-se, na sua forma técnica, de um macro-agregado social indivisível, cujas partes somente podem funcionar com a mobilização de todas as partes de engrenagem: estradas-de- ferro (isto é, os trilhos), meios de locomoção (locomotivas, vagões, trens inteiros) e, finalmente, a organização do fluxo de transporte (horários, funcionamento, manutenção) formam uma unidade que só como tal pode ser ativada. Era necessário formar sociedades anônimas gigantescas, dando-se assim um grande passo rumo à socialização do capital para poder avançar, por exemplo, nos Estados Unidos, no sentido da ocupação continental pela ferrovia. Na maioria dos países, a ferrovia precisou ser, enfim, um empreendimento estatal ou semi-estatal, por requerer grande quantidade de capital. O caráter social e a alta intensidade de capital da ferrovia fazem, portanto, da relação entre a produção e o consumo, uma relação entre grandes capitais, enquanto um superbem de investimento e, diretamente, uma relação entre capital e Estado. O consumo privado individual, como última instância do ciclo da valorização capitalista, pode continuar somente a conta- gotas, na forma de demanda por tickets e passagens.
Isso é o oposto do "espírito do capitalismo" e a sua lógica econômica. Cria-se um problema fundamental de rentabilidade, porque a intensidade de capital de produção e funcionamento da ferrovia não pode ser representada como renda microeconômica pela venda subsequente da prestação de serviços. As passagens teriam que ser tão caras, que a grande maioria não teria mais condição de utilizar a ferrovia. Por isso, a ferrovia tornou-se, em todo o mundo, um problema de déficit estatal. Uma privatização, nos moldes reivindicados pelos ideólogos neoliberais, de nada adiantaria. A ferrovia não deixou de ser rentável ao ser assumida pelo Estado, mas exatamente o contrário: foi preciso retirá-la das suas origens privadas e entregá-la à direção estatal, porque ela não é rentável dentro dos princípios capitalistas.
A privatização conduz ao mesmo resultado que o Estado iniciara em sua penúria fiscal: redução maciça de emprego e desativação, em grande estilo, de longos trechos, enquanto algumas vias de alta velocidade (que até deveriam concorrer com o avião!) cruzam com exclusividade a paisagem apenas para uma minoria de pessoas com alto poder aquisitivo. A ferrovia não só perde dessa maneira o seu caráter de transporte social, mas também o seu caráter de adaptação relativamente boa à paisagem. As vias de alta velocidade não adaptadas à paisagem simbolizam a mania abstrata do "tudo é factível", característica da economia de mercado, como também sua anti-estética destruidora. Mesmo assim, é impossível formar a ferrovia suficientemente rentável. Segundo relatos da revista alemã Wirtschaftswoche, a privatização da ferrovia no Japão está levando a um grande desastre, e o mesmo pode repetir-se na Alemanha e em outros países.
A ferrovia é, a longo prazo, incompatível com o capitalismo, tanto em seu aspecto espiritual-intelectual, como no seu aspecto econômico, mesmo sendo ela uma cria do próprio capitalismo e um suporte importante para o desenvolvimento inicial do sistema industrial. Essa incompatibilidade possibilita também explicar por que o "espírito do capitalismo" trabalhou tão insistentemente na invenção do automóvel, independente de trilhos, e por que finalmente o automóvel se impôs mundialmente. E que, diferentemente do sistema ferroviário, os diversos elementos do funcionamento do sistema automobilístico podem ser social e economicamente separados. A construção estatal de rodovias pode ser completada pelo automóvel, livremente móvel e individualizável como máquina. A produção do próprio meio de transporte perde assim o seu caráter de difícil comercialização enquanto produção de um superbem de investimento social. Ela é, portanto, diferentemente do empreendimento ferroviário, da mera prestação de serviços, capaz de integrar o consumo individual como última instância da valorização do dinheiro, pois o que se vende é o próprio meio de transporte, não seu funcionamento. Assim, pode ser explorada uma reserva gigantesca da ampliação de dinheiro, com o caráter de autofinalidade, visando a superação dos limites do "ciclo da ferrovia".
Ao mesmo tempo, encontrou-se assim a forma de dar à individualidade solitária do ser humano, "ganhador de dinheiro", também uma expressão tecnológica correspondente. Alimentava-se, dessa maneira, o seu impulso por mobilidade sem rumo e culturalmente desenfreada. A palavra automóvel, de origem grega e latina ("auto" = "por si próprio" e "mobilis" = "móvel"), não por acaso pode reduzir-se para "auto". Pois não se trata de uma mera automobilidade no sentido técnico ter se tornado independente de animais de tração e do abastecimento manual dos aquecedores de caldeiras. Antes pelo contrário, o automóvel representa o "auto", o "por si próprio" mecânico de um tipo humano, que apenas desenvolveu a sua "liberdade individual" para subjugá-la com maior certeza a uma relação mais objetivada e materializada. Assim como os indivíduos somente são avaliados, e se auto-avaliam, segundo seus rendimentos monetários, da mesma forma sua individualidade foi engolida pelas suas próprias criações tecnológicas. Os homens só se reconhecem segundo as suas marcas de carro ("aquele é o do Opala Manta", "ele é o do Golf GTI" e "o outro é o da BMW azul", etc.). 0 automóvel, "cão policial lustroso", engoliu a alma humana de tal forma, que, todos os dias de manhã, os indivíduos "livres" da economia de mercado se deslocam em engarrafamentos infinitos para o seu "trabalho", cada um com a sua cara de ópio, sozinhos numa lata móvel e com um desperdício enorme de energia e tempo.
No início, o automóvel era algo restrito a uma elite, um brinquedo da aristocracia endinheirada. Produzido dispendiosa e artesanalmente, o automóvel era inacessível a seres humanos médios, como antigamente as carruagens ou outros meios de transporte de tração equina. Em 1907, havia em toda a Alemanha apenas 16 mil automóveis registrados, ou seja, um carro para cada 4 mil habitantes. Mesmo nas grandes cidades, era uma sensação, principalmente para crianças e adolescentes, ver passar um automóvel. Também essa limitação só podia aparecer para o "espírito do capitalismo", e para a sua lógica econômica, como um impedimento a ser superado. Não por acaso, o automóvel conheceu sua primeira ampliação para o consumo de massas nos Estados Unidos. As dimensões do mercado interno, que se estendia de costa a costa, foram o melhor estímulo para que se passasse a uma produção em massa.
Já no estágio de produção artesanal, logo no início do século, os Estados Unidos ultrapassaram a Europa em termos quantitativos de produção anual de automóveis. A forte demanda e a possibilidade de explorar novos potenciais de mercado fizeram surgir, na produção automobilística dos Estados Unidos, novos métodos de produção que iriam adquirir caráter exemplar. O engenheiro americano Frederick Winslow Taylor (1856-1915) publicou, em 1911, sua obra "Os Fundamentos de Administração Científica", e o taylorismo, baseado nessa obra e mundialmente conhecido, possibilitou a sistematização, o controle e a mecanização do processo de trabalho humano. Até hoje, a administração moderna se nutre desse fundamento. Somente com a nova ciência, de organização microeconômica, e da racionalização, a "lógica do dinheiro" podia, penetrar até o âmago dos processos do trabalho.
Juntamente com a organização rígida dos fornecedores e da distribuição (concessionárias) e de novas formas de produção em linha de montagem, o taylorismo possibilitou um aumento violento de produtividade, que, primeiramente, tornou-se eficiente na jovem indústria automobilística americana. Foi, sobretudo, o empresário automobilístico Heny Ford quem assimilou sistematicamente os novos métodos, desenvolvendo-os. Foi ele quem impôs pela primeira vez o princípio da redução permanente dos custos unitários. Uma maneira para isso foi a padronização e a simplificação de todos os elementos de produção, a montagem precisa, ditada pelo cronômetro, mas principalmente a própria esteira. Realmente, a esteira tornou-se o símbolo do trabalho do século XX, e Henry Ford passou a ser a figura lendária dessa época.
Apenas com a produção em massa da indústria automobilística se realizou, em grande escala, a concentração industrial dos "exércitos do trabalho" prevista por Marx. O trabalhador de esteira, como espécie de robô humano, caricaturado sarcasticamente por Charles Chaplin no seu filme "Tempos Modernos", foi considerado, ora como o novo herói, ora como vítima da transformação social originada pela indústria automobilística. Henry Ford se justificou através de uma espécie de "religião do trabalho (industrial)", na qual tentou justificar como progresso a padronização não só da indústria e da atitude produtiva, como da própria vida.
Inicialmente, o sucesso pareceu dar-lhe razão. Os novos métodos de produção, adotados de maneira mais consequente na fábrica Ford, em Detroit, conseguiram, pela primeira vez, baratear tanto o produto automóvel, que permitiu alcançar o consumo em massa . O preço unitário despencou de mais de mil dólares rapidamente para quatrocentos dólares. Enquanto na Europa ainda se produziam anualmente apenas alguns milhares de unidades, a Ford aumentava a produção e a venda para mais de 30 mil carros no ano de 1911. Em 1914, já se produziu o fantástico número de 248 mil carros, que também foram vendidos. O famoso modelo "T", produzido em série padronizada ininterruptamente até 1927, experimentou, até aquele ano, uma produção total de 15 milhões. Essa representou uma abertura histórica, não só da própria produção tecnológica em massa, como também de um modo de vida tecnológico e massificado, em que os indivíduos solitários, tomados pela compulsão monetária do "levar vantagem", começaram a ordenar-se como limalha de ferro numa mesa magnética.
A agressividade masculina, produzida socialmente, e a tradicional dominação masculina na formação do capitalismo, também tiveram as suas consequências para a nova produção em massa da indústria automobilística. O automóvel, enquanto "auto"-expressão da personalidade mecanizada e "estruturalmente masculina", demonstraria simultaneamente força e capacidade de imposição. Essa dimensão psicológica transpareceu até na própria direção do desenvolvimento tecnológico. Não foi só por razões imanentemente técnicas queo desenvolvimento do "eletromóvel", até 1914 ainda indefinido, foi paralisado. A maior autonomia, mas, principalmente, força e velocidades maiores, determinaram a vitória do motor a combustão, agressivo e nocivo ao ambiente. "Tempo é dinheiro" era o lema. Motores, cada vez mais fortes, e a "embriaguez da velocidade", cada vez maior, agitaram a capacidade de imposição individual e a disposição na concorrência.
Como não poderia deixar de acontecer, a indústria automobilística, com seu potencial mecânico de agressão, não só encontrou sua utilização militarista, como ela mesma se militarizou. A Primeira Guerra Mundial, em 1914, ainda viu os homens patriotas, barbudos do século XIX, entrar na guerra cantando, a pé ou a cavalo. No final da guerra, quatro anos depois, tanques automobilizados revolviam a terra com suas correias barulhentas. Os soldados voltavam para suas casas como trabalhadores industriais de guerra, cínicos e com semblantes petrificados. A indústria automobilística se desenvolveu otimamente por conta dos massacres em massa dos dois lados do Front. Ela explorara novos campos de atuação. Além de caminhões e tanques, construíram-se cabinas de comando e motores para aviões. Empresas como a Mercedes, a Büssing e a Opel, atingiram novas dimensões. Os maiores produtores de automóveis já duplicaram nos primeiros dois anos de guerra os seus dividendos.
Com a Primeira Guerra Mundial começou, portanto, um desenvolvimento no qual a matança estatal cientifizou-se, mecanizou-se e, principalmente, automobilizou-se. A ênfase da potência armamentista transferiu-se pouco a pouco da antiga indústria pesada para a indústria automobilística. A Segunda Guerra Mundial, uma guerra mobilizada e plenamente industrializada, deu continuidade a essa tendência, que até hoje se mantém. Assim, não foi acaso, mas devido a lógica interna de uma, agora já prolongada tradição, que as empresas automobilísticas até hoje atualizam seus negócios de destruição militarista. Mais uma vez, a indústria automobilística entra com seu capital na produção armamentista. Em 1985, a General Motors comprou fábricas de armamentos no valor de 5 bilhões de dólares, produzindo foguetes, helicópteros e satélites militares. Também em 1985, sob a direção de Edzart Reuter, a Daimler-Benz comprou uma completa mercearia militar e é hoje a maior empresa armamentista da Europa Central. Essa indústria é literalmente uma indústria da morte, o que ficou comprovado em toda a sua trajetória histórica.
O elo agressivo de trabalho em massa, consumo em massa e destruição em massa, iniciou um processo que ultrapassou de longe a produção bélica. O escritor Ernst Jünger, autor de um dos mais polêmicos testemunhos desse século, glorificou a "vivência" da batalha de equipamento militar industrializado no seu primeiro livro "Em Tempestades de Aço" (In Stahlgewittern). Mais tarde, ele tentou justificar sua própria fascinação pela megamáquina da guerra total. Com a noção de "mobilização total" (1934), que forneceu uma palavra-chave aos Nacional-Socialistas, ele não fez apenas uma alusão à imagem da aparência externa no sentido militarista. Com essa noção, que marcou época, ele tentou desenvolver a idéia de uma automatização cega e dinâmica total da sociedade de trabalho automobilística. Jünger dizia que a guerra mundial fazia parte das dores de parto do deslanche dessa sociedade. Ao lado dos exércitos de "trabalho", diz Jünger, aparecem "os novos exércitos de transporte" e uma "integração absoluta da energia potencial" da sociedade.
Seria, portanto, uma interpretação errônea, e também uma ilusão, limitar o conceito de "Mobilização Total" ao Nacional-Socialismo e à Segunda Guerra Mundial. A produção de automóveis, aparentemente tão banal, surge como o coração mecânico robótico de um processo histórico que perdura até hoje e que, entretanto, penetrou na autoconsciência das massas e de cada indivíduo. Na Europa, as duas guerras mundiais promoveram as condições favoráveis para a difusão do taylorismo de administração empresarial e científica, como ocorrera nos Estados Unidos, graças à quase inesgotável dimensão do seu mercado interno. A República Federal da Alemanha do pós-guerra, com o seu caráter supostamente civil, não fez parar o desencadeamento destrutivo da sociedade de trabalho total, mas, ao contrário, fez dela o estado normal cotidiano, democrático. O carro continuou sendo o portador dessa mobilização total e desmedida.
A anuência terrível a esse processo totalitário unifica os campos aparentemente hostis da história da modernização automobilística. Não por acaso, Lenin e Stalin puderam entusiasmar-se com o taylorismo e os métodos de produção de Henry Ford. O comunismo de trabalho soviético, burocrático-estatal, mesmo externamente tão distante da individualização ocidental, repetiu, apenas sob outras condições, os seus motivos centrais. Só que não além de uma espécie de capitalismo ferroviário siberiano. Mesmo em suas ramificações ocidentais, ele só conseguiu desenvolver a produção automobilística individualizada em uma forma degenerada, o que não impediu de implantar a mesma lógica e os mesmos desejos mecanizados em suas populações. Também ele visava uma "mobilização total" irracional em guerra e paz. Ele nunca conseguiu distanciar-se decisivamente do "espírito do capitalismo" e da "forma" do trabalhador abstrato evocada por Ernst Jünger.
Issovale ainda mais para o Nacional-Socialismo e também para o Fascismo Italiano. Esses regimes, ainda piores, eram, em muitos sentidos, verdadeiras máquinas de modernização. A instalação da indústria automobilística nesses regimes, consciente e estatalmente forçada, constituiuo centro de ataque das mudanças sociais. Tal como os planejadores estatais russos, os Nacional-Socialistas também olharam com cobiça para os êxitosde Henry Ford. Ainda anteriormente ao comunista italiano Antonio Gramsci, que morreu nos cárceres de Mussolini, o economista alemão Friedrich von Gottl-Ottlilienfeld, que posteriormente se tornaria o papa da economia nacional do "Terceiro Reich", criou o conceito notável de "fordismo" para a relação entre "indústria e razão técnica" (1926). Como se sabe, a hoje maior empresa automobilística na Europa, a Volkswagen, foi totalmente criada no Nacional-Socialismo, tal como as respectivas criações "Autobahn" (auto-estrada) e "Blitzkrieg" (guerra relâmpago), expressões integradas em sua forma alemã a diversas línguas.
Essas relações apontam para uma certa identidade interna entre o capitalismo fordista dos Estados Unidos, o nacional-socialismo alemão e a economia de estado soviética. É verdade que essa identidade oculta se impôs em ambientes e constelações historicamente diferentes. Contudo, ela permitiu que pensadores politicamente tão distantes, como Gramsci e Friedrich von Gottl-Ottlilienfeld, pudessem referir-se ao fordismo da mesma maneira positiva. Não se tratava, de forma alguma, da mera identidade de um grau de desenvolvimento tecnológico, totalmente desvinculada da essência de sociedades diferentes. Ao contrário, foram criadas, apesar de todas as oposições externas, uma forma de relação social substancialmente idêntica e uma imagem comum do homem mecânico, "moldado pelo automóvel". Essa imagem do homem entrou hoje (e agora em todos os países da terra) em nossas entranhas.
Surpreendentemente, essa identidade oculta também transparece em outra parte do processo de produção ideológica . A do "religião do trabalho" industrial, defendida, em suas modalidades específicas, tanto por Lenin e Stalin, como por Henry Ford e Adolf Hitler, não quis reconhecer sua sub-ordenação objetiva à lógica do dinheiro. Ao contrário, o "trabalho industrial honesto" deveria comandar o dinheiro. Em todas as sociedades em estágio de desenvolvimento fordista havia tendências que atribuíram o permanente domínio do dinheiro, incompatível com o trabalho honesto, a uma imagem de inimigo externo e fantástico: o "capital financeiro judaico". O arquiamericano capitalista Henry Ford, figura símbolo da ascensão dos Estados Unidos, mostrou um verdadeiro ódio aos judeus. Seu livro "O Judeu Internacional" teve grande aceitação na Alemanha nacional-socialista. Por outro lado, somente agora começa a ser escrita a história da perseguição stalinista aos judeus. O anti-semitismo é a história secreta do capitalismo automobilístico e sua mobilização total de trabalho industrial e administração científica. Na Alemanha, essa história secreta resultou em um regime aberto de extermínio. Auschwitz era, nesse sentido, um fenômeno profundamente fordista, e as suas formas terríveis de organização "científica", um retrato fiel da indústria automobilística.
A situação do trabalhador no processo de produção fordista, quase de um robô, desde o início provocou críticas. A racionalização, que até hoje avança continuamente em etapas, mostra-se uma ditadura duradoura, capaz de extorquir o máximo do produtor, sugá-lo até a última gota. Ford se justificava com o argumento de que somente assim seria possível pagar salários altos e baratear os produtos para o consumo em massa. Obviamente, só os trabalhadores da indústria automobilística não podiam comprar carros produzidos em massa. Em torno do núcleo da indústria automobilística desenvolveu-se rapidamente todo um anel mágico de indústrias, que começaram a imitar esse exemplo. Formaram-se, então, as indústrias de eletrodomésticos e de aparelhos eletrônicos, bem como as indústrias de alimentos, as grandes lojas de departamentos e supermercados. Não devemos esquecer que também o sistema de crédito ao consumidor e o pagamento em prestações foram criados nos EUA. Além disso, a agricultura foi reestruturada, em todo lugar, segundo os moldes fordistas.
O padrão básico consistia no fato de que os novos produtores em massa se tornaram, ao mesmo tempo, consumidores em massa, sob a lei geral e comum da valorização do dinheiro. O dinheiro capitalizado se transformou, somente dessa maneira, naquela grande roda de impulso social que hoje caracteriza, como se fosse natural, a imagem de nossa sociedade. Em outras palavras: a subordinação à ditadura fordista do tempo e do trabalho foi "recompensada" pelo consumo em massa de carros, geladeiras, máquinas de lavar, rádios, TVs, etc. Essa engrenagem de produção, renda monetária, venda e consumo, também foi denominada "sistematização fordista" (Elmar Altvater).
Porém, com isso ocorreram modificações não imaginadas para todo o modo de vida. Até a Primeira Guerra Mundial, o capitalismo ainda não se estendera a toda a vida humana, apropriando-se dela. Por toda parte, o capitalismo ainda era per- meado e cercado de elementos da antiga economia doméstica (hortas, oficinas, lavanderias, etc.). Inclusive, a maioria dos trabalhadores industriais, principalmente as mulheres, ainda produziam muitas coisas da necessidade cotidiana. Porém, exatamente essas atividades foram sendo cada vez mais consideradas inferiores, por não renderem dinheiro. Mesmo assim, existia uma certa relação recíproca entre "o setor tradicional" da economia doméstica e o "setor da economia de mercado" do capitalismo, conforme demonstrou em uma importante pesquisa o sociólogo de Munique, Burkart Lutz. Partindo da indústria automobilística essa relação começou agora a se desenvolver. Primeiro, nos Estados Unidos, entre as duas Guerras Mundiais, e, posteriormente, também na Europa, a vida organizou-se de forma industrial, abrangendo todo o território, conduzido pelo cálculo da rentabilidade microeconômica e dependente dos grandes espaços anônimos do mercado. Também isso é um aspecto da mobilização total.
Com isso, aumentou a utilidade de muitos bens e, além do mais, integraram-se necessidades totalmente novas ao consumo. Isso caracteriza a grande força de atração do novo modo de trabalho e vida. Mas essas vantagens custaram muito caro. Foram pagas com a perda total do controle dos homens sobre as suas próprias vidas, abandonadas aos poderes anônimos e às normas objetivas do mercado total. Como um "junky" paga a "viagem" da droga com a servidão imposta pela necessidade de conseguir dinheiro, assim os prazeres mecânicos de consumo dos trabalhadores fordistas precisavam ser pagos com a servidão na forma de uma dependência total do "emprego". Também o relativo alívio do trabalho doméstico pela mecanização, sob a coerção do dinheiro, é uma faca de dois gumes. As mulheres podiam, dessa maneira, submeter-se também ao trabalho assalariado industrial. Muitos bens do assim chamado consumo de nível elevado até hoje são apenas alcançáveis para as massas através do sistema da "dupla renda". Mas assim chegamos, em vez de reduzir a carga de trabalho das mulheres, a uma dupla carga, porque as mulheres ficaram integradas no trabalho doméstico e no trabalho assalariado. Os homens nem pensaram em aceitar uma distribuição de trabalho mais equitativa e assim ficaram eles com as vantagens principais do modo de vida fordista. Isso até hoje não mudou muito. Esse modo de vida da dependência total da renda monetária levou, finalmente, até a um estranhamento entre marido e mulher, pais e filhos. As relações familiares antigas, muitas vezes rudes, não foram substituídas por uma relação humana melhorada. Em vez disso, a crescente ocupação, quase autista, dos "indivíduos isolados" consigo mesmos, completou, com brinquedos tecnológicos dispendiosos, aquele indivíduo solitário, que, como átomo de uma massa sem rosto, a lógica interna desenvolvimento capitalista já tinha formado há tempo.
O consumo tecnológico em massa, aparentemente tão magnífico, foi desde o início não mais do que um equilíbrio pobre para a ditadura não natural de tempo do "trabalho". Não conseguiu equilibrar, mas, ao contrário, reforçou mais a alienação mútua dos homens, que cada vez menos sabem se relacionar um com o outro. Na Alemanha era o mesmo nacional-socialismo assassino que, ao lado de um programa de modernização fordista de "trabalho", iniciou simultaneamente um programa de tempo livre para o conjunto da sociedade como parte da sua campanha de mobilização total: "Kraft durch Freude" (KdF) ("Força através da Alegria"). O "Volkswagen" (carro do povo) fazia parte desse programa total. A sociedade do tempo livre e a sociedade do trabalho, dois lados da mesma moeda, prepararam o seu caminho em conjunto. E é óbvio que o carro tornou-se o brinquedo número um do tempo livre.
É verdade que se ampliou o horizonte dos homens fordistas dessa maneira. A massificação de uma mobilidade, que antigamente era privilégio de poucos ricos, possibilita, pela primeira vez, que simples assalariados possam viajar ao exterior, ao sul, ao mar. Mas, porque essas conquistas não conseguiram ser apropriadas culturalmente, pois foram permeadas pelo sopro pestífero da valorização coercitiva do dinheiro, não puderam levar a nenhuma aproximação interna ao outro e a nenhuma vivência da natureza. A onda automobilística do tempo livre e das férias vomita, desde então, homens fordisticamente homogeneizados, em ritmo de uma máquina semanal e anual; seja para uma natureza, adaptada em função de um tempo livre mecanizado e subordinada à economia, seja para os guetos de turistas, que começaram logo a ser terrivelmente parecidos com os locais de trabalho e os dormitórios fordistas.
Apesar de toda "individualidade", sempre invocada no mundo da propaganda, os homens automobilísticos, atrás de seus vidros, só conseguem fazer experiências totalmente idênticas e estandardizadas. Tanto as férias estereotipadas no mediterrâneo, quanto os passeios dominicais ao "verde", agora cinzento, não tem nada a ver com experiências individuais. Cria-se, cada vez mais, apenas um pseudo-acontecimento normatizado e cunhado por elementos culturais pré-fabricados. "Individual" não é o conteúdo da vivência, mas somente a forma técnica do transporte, que, por sua vez, destrói os monumentos artísticos e a natureza dos países turísticos. Uma antiga propaganda da Ford parece hoje uma total zombaria: "Cada um, que ganha um salário razoável, tem possibilidade de comprar um carro para gozar com a sua família o bendito descanso ao ar livre, puro e divino" (1923).
Mas o pior é que no tempo livre fordista, no fundo, o "trabalho" tem continuidade com outros meios; mais ou menos como uma experiência terrível, que se repete infinitamente num pesadelo. Mais uma vez, foi Ernst Jünger que apresentou esse problema na sua maneira notável, meio conservadora-crítica, meio fascinante. Ele constatou que os homens fordistas, também no tempo livre, não se livram "do círculo mágico dos autômatos" e do "ritmo dos relógios", eles "permanecem num espaço, determinado pelas duas figuras, a da roda e a da esteira mecanizada". Pois também auto-estradas ou filmes são "esteiras", e o tempo livre continua, como o "trabalho", parte ou segmento "de um movimento gigantesco circular" (Das Sanduhrbuch, 1954). A "mobilização total" se impõe também, portanto, em um espaço apenas aparentemente "livre" e pessoal. O trabalhador fordista, enquanto homem automobilístico, também está sendo posto em movimento fora da própria relação de compulsão. O ritmo de máquina do "ganhar dinheiro" continua como impulso interiorizado e abstrato em todos os âmbitos da vida. A assim chamada recreação consome tanto a vida quanto o "trabalho".
O carro consome por sua vez o consumidor. Isso não se deve entender como uma imagem, mas literalmente. Ernst Jünger já se manifestou cinicamente sobre a mortal maquinaria automobilística da Primeira Guerra Mundial, dizendo que nos campos de batalha "um consumo sangrento assumiu o papel de consumidor (!)". A inversão capitalista dos meios e do fim, do sujeito e objeto, aparece aqui como uma inversão do consumidor e do produto: consome-se o próprio homem. Primeiro pelo "trabalho", depois pelo "cão policial lustroso". Não é nenhuma novidade que esse "consumo sangrento" teve continuidade nos tempos de paz e neles até encontrou os seus pontos culminantes. Até hoje foram assassinadas, no mundo todo, em acidentes automobilísticos, 17 milhões de pessoas, e um número muitas vezes superior foi ferido e mutilado. A cada ano, todos os países atingem um número de mortos e mutilados por acidentes de trânsito, que alcança a quantidade de falecidos nas maiores guerras do século XIX. Já durante a Guerra do Vietnã houve mais mortes causadas por automóveis nos Estados Unidos, que vítimas de guerra no Vietnã. Durante a Guerra do Golfo, as Forças Armadas dos Estados Unidos sofreram nos desertos da Arábia Saudita mais perdas em acidentes de trânsito entre seus próprios veículos do que por intervenção bélica do inimigo.
Não se pode mais imaginar a cidade sem o carro, nem sem a cadeira de rodas. E a maioria das pessoas condenadas à cadeira de rodas são vítimas de acidentes de trânsito. Por isso, não é nenhum exagero denominar produção e consumo automobilísticos de "Terceira Guerra Mundial não declarada" (Heathcoate Williams, 1992). Tornaram-se realidade as condições apocalípticas da festa semanal de matança no trânsito, da forma apropriada, como Jean Luc Godard evocou em seu angustiante filme "Weekend" (1968). O artista da grande matança, Ernst Jünger, que estetizou a batalha de material bélico da Primeira Guerra Mundial, admira-se com o fato de que as pessoas aceitam, "com uma certa naturalidade", a quantidade enorme de vítimas de trânsito. Ele desconfia que as vítimas parecem "necessárias" porque "são adequadas ao nosso espaço, isso é, ao espaço do trabalho" (Über den Schmerz, "Sobre a Dor", 1934). Esse cinismo já é quase uma autojustificação. Onde está o protesto de todos esses humanistas liberais e esquerdistas socialistas, que habitualmente comemoram os seus dias antiguerra, contra o programa sistemático de vítimas fatais da produção automobilística fordista?
Os participantes dos movimentos pacifistas não estão de jeito nenhum moralmente acima do autor do livro Stahlgewitter ("Tempestade de Aço"), pois todos eles são também meros condutores de automóveis, isto é, assassinos potenciais "por engano". Aliás, são preferencialmente assassinos de crianças, pois pequenas crianças, por sua natureza menos adaptadas à "disciplina de trânsito", pertencem ao grupo das vítimas mais freqüentes do automóvel, aquele "cão de briga encerado", A sangrenta "tempestade de chapa de ferro" nas ruas nunca terminou. É a normalidade cotidiana automobilística da nossa vida atual desprovida de consciência. Uma sociedade, na qual o tempo livre sempre é "trabalho", e na qual paz sempre significa guerra, uma sociedade que apesar do "consumo sangrento" de vidas humanas e de tempo de vida, se entende como "sociedade civil do bem-estar", uma tal sociedade não precisa mais de nenhum "Big Brother " para fazer do diálogo de Orwell o seu idioma cotidiano.
Analisando o capitalismo fordista segundo o seu conteúdo material, constatamos que ele é um sistema de combustão de materiais de energia fóssil. Na forma desses materiais foi armazenada energia solar na terra em centenas de milhões de anos. Diferente de civilizações agrárias, que se contentaram com o fogo de lenha, o modo de produção capitalista recorreu a materiais de combustão fósseis como fonte de energia mais importante. O problema não é a mudança da base energética em si, mas, antes de tudo, a aceleração enorme e o aumento excessivo do consumo, o que corresponde à imoderação da lei da valorização do dinheiro. Também nesse aspecto, a indústria automobilística está novamente no centro, porque somente o motor de combustão, a "mobilização total" e a "sistematização fordista", que nele se fundamentam, aqueceram o fogo infernal capitalista e mantém desde então a sua chama.
A indústria automobilística e o uso do carro em massa se tornaram assim condição fundamental para a continuidade da existência do capitalismo. Por isso, também estão sendo "protegidos" os "campos de petróleo estratégicos" (principalmente no Oriente Próximo) através de permanentes ameaças de violência e de intervenções militares sangrentas. Obviamente e de novo, através de consumo gigantesco de energia fóssil em forma de porta-aviões, máquinas bélicas, foguetes, etc. Aliás, com consentimento de muitos trabalhadores fordistas do Ocidente que, há tempo, já venderam a sua alma à máquina de combustão global e que, antes, prefeririam liberar todos os árabes para a matança, do que pôr em questão, somente por um segundo, o seu estilo de vida ridículo.
No entanto, é traçado assim também, com segurança mortal, um primeiro limite da sociedade do trabalho e do automóvel. Pois as reservas das matérias fósseis são absolutamente limitadas. Nem podiam ser petrificadas tantas plantas e tantos animais na pré-história biológica e geológica, suficientes para manter o capitalismo fordista, contando a partir de hoje para mais um meio século. Ao contrário, ele realizou uma queima de fogos de tal forma que a energia solar acumulada em milhões de anos explodiu de uma vez só. Um trabalho bem feito. Poderíamos cair na gargalhada. Mas, as reservas gastas pela loucura infantil desse modo de produção não estarão nunca mais à disposição para toda a futura humanidade, nem para objetivos mais inteligentes do que o uso de automóveis. Já no início da década de 70, foram apresentados cálculos relativamente precisos, informando que as reservas globais de petróleo se esgotariam em poucas décadas (Dennis Meadows "Os limites do crescimento", 1972). A matéria está se esgotando. As restrições comuns, apresentadas contra esse conhecimento, não convencem. Mesmo que se descubram ainda novos campos de petróleo, eles são cada vez menores e de qualidade inferior. Isto é, a mineração de petróleo custa cada vez mais caro. É impossível gastar rentavelmente tanto "trabalho" para poder equilibrar, de um lado, as despesas extremamente crescentes de uma futura exploração das fontes de energia fóssil e, de outro lado, a quantidade solicitada para o atual consumo em massa. E quanto mais nações entram no ciclo fordista (por exemplo, a China e o Sudoeste da Ásia), tanto mais rápido se esgotam os recursos.
Também não estão à vista outras fontes de energia como substitutos. A energia nuclear não só traz problemas insolúveis de produção e de depósito do lixo nuclear. Ela, além disso, é cara demais e demasiadamente capital-intensiva (mais ainda do que a ferrovia) para poder ser individualizada na economia de mercado. Um reator nuclear por debaixo do capô do "cão policial lustroso" é impensável. O grau de eficiência da energia solar direta é, a longo prazo, insuficiente para manter o funcionamento da máquina total capitalista. Ela é, segundo a sua natureza, uma "energia lenta", tal como outras fontes de energia (dependentes da topografia), como o vento e a energia hidráulica. É, portanto, um erro acreditar que a lógica económica do capitalismo seja minimamente compatível com uma outra energia básica, que não seja matéria de combustão fóssil. O fordismo, com motor de combustão e automóvel como coração, com jactos e foguetes como órgãos de ampliação, é realmente a forma definitiva e em si do capitalismo. Quanto maior o êxito da economia total de combustão, tanto mais rápido fecham-se as torneiras de energia.
Poderia acontecer, todavia, que o modo de produção e de vida da "mobilização total" acabe antes. Os "efeitos secundários não intencionados" da produção industrial fordista traçam com objetividade férrea um segundo limite. Se o crítico Thoreau, no século XIX, já tinha alertado para uma "nivelação do mundo", face a construção da ferrovia, encontramo-nos hoje em um estado de impermeabilização da paisagem, que dificilmente poderia ser aumentada. Mesmo assim, a infra-estrutura de transporte está estourando. A maré alta de chapas de ferro cresce incessantemente. Segundo um prognóstico da Shell Alemã S.A., devem rodar até o final do milênio mais do que 500 milhões de automóveis no mundo. Segundo um estudo do Ministério do Meio Ambiente, o número de carros deve mais do que duplicar-se na Alemanha Oriental. Na Alemanha, como um todo, o número de carros de passeio registrados aumentará para 46 milhões (sem falar de caminhões; etc.). A "mobilização total" leva ao absurdo de um "engarrafamento total". O automóvel se torna um "auto-estático".
Porém, não apenas o trânsito, mas também, como sabemos, o homem e a natureza, se asfixiam. Destruição da floresta, buraco de ozônio, catástrofes de enchentes ou falta de água, destruição do clima ou novas doenças: o crescente processo de destruição ecológico é, sem dúvida, um resultado da economia fordista de combustão e, principalmente, do automóvel. Um estudo do Instituto de Medicina para Higiene Ambiental de Düsseldorf e do Instituto de Higiene e Medicina de Trabalho de Aachen, comprovou que os alunos do primeiro ano primário nos centros de aglomeração urbana possuem uma concentração alta de benzol no sangue e sofrem de funções pulmonares deficientes e elevada propensão alérgica. Os causadores são os gases do escapamento dos carros. Uma pesquisa do Greenpeace comprovou que as matérias causadoras de câncer no trânsito ultrapassam todos os valores de limite. Segundo medições realizadas em amostras colhidas "à altura do nariz das crianças", a poluição atinge principalmente os baixinhos. Mas nem dos seus próprios filhos os empreendedores fordistas têm a mínima pena. Sempre remetem às "necessidades" econômicas.
Já é quase um conforto saber que os senhores da criação capitalista estão sendo atingidos pelos efeitos da sua orgia de combustão, em um lugar muito central. O sexólogo francês Xavier Boquet supõe que somente pelo estresse no trânsito a metade de todos os habitantes masculinos de Paris sofre de impotência temporária. Isso só não basta. Segundo pesquisas recentes, resíduos de certos produtos químicos na água, que resultam, entre outros, da produção de plásticos, levam a compostos, semelhantes ao hormônio sexual feminino estrógeno, e que se ligam também no corpo humano aos receptores correspondentes. A conseqüência é que essas matérias provocam os mesmos processos bioquímicos como os estrógenos naturais. No sangue dos homens, reduzem o nível de hormônio sexual testosterona. Fala-se de "minúsculos pênis". E o médico dinamarquês Niels Skakkebaek descobriu que a quantidade de espermatozóides se reduziu muito, desde 1938, enquanto no mesmo período se triplicaram os casos de câncer de próstata. O homem, capitalisticamente socializado, pode ir se preparando para que, no futuro, não só os seus 100 ou 200 cavalos de agressividade mecânica ficarão parados no "engarrafamento total", como ele próprio ficará sentado, sexualmente deformado no volante de sua potência: por assim dizer, fordisticamente castrado.
O terceiro limite é traçado pela grande crise social e econômica do capitalismo de combustão que, até há poucos anos, ninguém poderia imaginar. Mas, agora, o sistema da administração científica de empresas leva também economicamente ao absurdo. Há algum tempo, isso era possível de ser previsto. A racionalização adaptou, desde os memoráveis inícios de 1911/14, nas fábricas de Ford em Detroit, antes de tudo, a força de trabalho humana, "no interior mesmo de sua própria atividade", aos imperativos ditatoriais do tempo, enquanto ampliava o mercado através do barateamento dos produtos. De sorte que se precisava cada vez mais força de trabalho em grande escala. Somente dessa forma podia ser produzida a sistematização fordista.
As novas ondas de racionalização, desde o início da década de 80, por assim dizer, se "desracionalizaram" em massa a força de trabalho humana. A microeletrônica, como nós sabemos, é a base tecnológica desse processo. O decurso do trabalho humano, antes já adaptado ao ritmo da máquina, agora pode ser totalmente substituído pelo comando técnico e pela robótica. Na indústria automobilística, socialmente numa posição central, encontramos esse processo de forma mais avançada. Milhões de empregos foram "desracionalizados" e o processo parece ainda não ter fim. Ao lado do "auto", produto fordista (o automóvel), temos o "auto", o homem de lata (o autômato), cujo cérebro somente é formado por circuitos eletrônicos.
Os "colegas robôs" podem construir os carros de uma forma ainda mais eficiente, produzindo ainda mais em massa. Porém, uma coisa eles nunca poderão fazer nas suas vidas de aço e chapa de ferro: comprar automóveis. Nesse ponto, rompe-se a "sistematização fordista", essa engrenagem de produção em massa, poder de compra em massa, êxito de mercado e consumo em massa, que Henry Ford evocou para se justificar. Esse modo econômico se demonstra agora também economicamente como ilusório: historicamente de vida curta e capaz de se reproduzir apenas por algumas décadas. A cobra da racionalização engole o seu próprio rabo.
Essa contradição econômica insolúvel se torna cada vez mais aguda face à expansão global e à generalização do capitalismo fordista. Esse processo não se abre em primeira linha para os novos consumidores, mas, ao contrário, para novos concorrentes. A produção automobilística no Japão, na Coréia do Sul e, mais recentemente, na China, pesa ainda de uma forma complementar no mercado mundial, que já se apresenta bastante tenso. Os "newcomers" asiáticos, desde o início, não conseguem produzir, nos seus mercados internos, um poder de compra suficiente para um desenvolvimento razoavelmente equilibrado. Pela combinação de baixos salários na pré-fabricação e alta tecnologia na montagem final, eles dependem de ofensivas unilaterais de exportação para as velhas regiões centrais fordistas do Ocidente. A concorrência torna-se então uma briga de foice no escuro.
As indústrias automobilísticas ocidentais, por sua vez, reagem a essa crise repassando a pressão de custos, através de outras demissões em massa, redução de salários e acentuada pressão de preços para os seus fornecedores. Esses, por sua vez, estão sendo obrigados a racionalizar, ou estão sendo levados à falência. Segundo pesquisas realizadas pela empresa de consultoria Price Waterhouse projeta-se somente para a República Federal da Alemanha que das 3.000 empresas atuais apenas 500 sobreviverão. Esse desenvolvimento leva, ao mesmo tempo, a uma concentração de capital entre os próprios produtores de automóveis. As maiores empresas compram os concorrentes falidos, que sucumbiram à competição. Dessa forma, a Volkswagen engoliu a Seat (espanhola) e a Skoda (Tcheca) e está construindo, entretanto, carros em Shangai (República Popular da China). A Mercedes-Benz produz, entre outros lugares, em Vitória (Espanha), e a partir de 1997 no Alabama (EUA). A BMW comprou em Janeiro de 1994, surpreendentemente, por um preço de mais de 2 bilhões de marcos, a tradicional empresa britânica Rover. Com essa concentração, foram e estão sendo criadas sobrecapacidades gigantescas, sempre seguindo o lema cínico: a falência é para os outros! Conseqüência disso é novamente a racionalização e demissões (como recentemente o caso na Seat).
Trata-se, portanto, de uma espiral de crise que se auto-reforça. Racionalização, competição, concentração de capital destroem o poder de compra social, levam assim à nova racionalização etc., etc. Em nenhum lugar está à vista um novo desenvolvimento, que poderia num toque de magia fazer aparecer a cegamente esperada "prosperidade". Também como? Uma volta à "sistematização fordista" não é mais possível. Puxa-se pouco a pouco o tapete de pelo menos 4 milhões de "empregos", que, somente na República Federal da Alemanha, estão em total dependência do automóvel. Juntam-se mais de 3 a 4 milhões de empregos indiretamente ligados ao automóvel, sem falar das restantes indústrias do capitalismo de combustão. Não se trata mais de um "buraco da conjuntura", mas aqui, no caos da crise, todo um modo de vida está em fase terminal.
Mesmo ficando evidente para quase todo mundo os limites objetivos, a maioria fordista mantém o seu lema comum: "a todo o vapor continuando do mesmo jeito". A brutalidade da vontade de continuar está se manifestando através de vários fenômenos. Segundo uma notícia do Boletim Informativo "VDI-Nachrichten", a grande maioria da população deseja "a continuidade da construção de estradas", para chegar ao ponto da "auto-estrada de oito pistas". Qualquer limitação do transporte, mesmo feito de uma forma somente meio assumida, provoca protestos irados de uma massa de automobilistas imbecis. As limitações, no fundo totalmente incoerentes, do tráfego nos centros das cidades, provocam a resistência aferrada do comércio varejista, que teme a redução de vendas, no momento em que os fetichistas do automóvel não podem mais dirigir os seus carros até a porta das lojas. E segundo uma pesquisa do Instituto de Tempo Livre -BAT, muitos dos motoristas alemães até entram em delírio sibarítico quando pensam no caos do trânsito. O engarrafamento, principalmente aquele engarrafamento extremo com pernoite no carro, com alimentação servida pela polícia ou pela Cruz Vermelha, está sendo vivenciado cada vez mais com uma lascívia sensacionalista. Parece que a vida capitalista normal tornou-se tão pobre de conteúdo e tão miserável, que até um engarrafamento ganha "valor de vivência".
São principalmente homens, na idade de 20 a 40 anos, que curtem, com telefone celular no carro, tais sentimentos neuróticos e infantis. Nisso tudo, também são envolvidas fantasias agressivas militares, que transformam o engarrafamento de filas de automóveis em uma experiência bélica. O inconsciente coletivo desenvolve um desejo sufocante por catástrofes. Pertence à mesma síndrome, que o número de pancadaria aumenta, ou até os tiroteios para concorrer a vagas em estacionamentos. Também aumentam os ataques nervosos em pleno trânsito. Nas cidades da Alemanha Ocidental ferve a febre do "Mantaísmo" infantil (MANTA = modelo de carro da marca GM, modelo dos "mauricinhos" novos-ricos) entre os adolescentes, que escarnecendo de qualquer sentido ecológico e humano disputam os seus "rachas" ilegais. Em todo mundo, crescem, no cotidiano, crises reativas irracionais, que não se diferenciam mais da plena loucura.
Os novos racismos e anti-semitismos, germinando em todas as camadas sociais e faixas etárias, devem ser associados a esses processos de colapsos psíquicos. O mesmo vale para os incêndios contra refugiados políticos e para o novo desprezo às mulheres. O cinismo da "Feira de Automóveis" de 1994 em Genebra, cujo tema era "O automóvel dá prazer", no fundo, está ligado ao prazer que a "matança brutal" de seres humanos propicia. Mais uma vez, encontramos aqui a decadente normalidade fordista. As imagens de inimigos não são, de forma alguma, ocasionais, pois a síndrome anti-semita, o racismo e o desafeto contra o feminino, pertencem a toda a história da cultura de morte fordista. Chamam especial atenção, ultimamente, as crescentes agressões contra deficientes físicos em cadeiras de rodas, nos quais o deformado homem automobilístico se auto-reconhece. Executa assim o seu próprio autoódio e autodesprezo.
0 protesto moral oficial das pessoas consideradas "pilares da sociedade", em relação ao terror urbano, se desmascara como pura hipocrisia, pois tais pilares andam no mesmo percurso cego do Crash. Se o presidente da Volkswagen, Ferdinand Piech, só consegue descrever a luta concorrencial na linguagem da violência e do racismo, manifesta-se o parentesco interno dos representantes fordistas com as gangues de rua. Os "skinheads de smoking" apenas pensam e agem em outras dimensões. E especialmente na República Federal da Alemanha não precisamos de um "Partido dos Motoristas de Automóvel", partido radical da direita como na Suíça, porque na Alemanha todos os grandes partidos, desde sempre, são "partidos de motoristas de automóvel", se deslocando cada vez mais para a direita. Uma mera "mudança de guarda política" em Bonn não alteraria nada, pois o Partido Social Democrata (SPD) se apresentou, desde seus princípios, como um partido do capitalismo de combustão. Foi Hans Jochen Vogel, posteriormente presidente do SPD, que em 1961, ainda prefeito de Munique, fez propaganda da "cidade adaptada ao automóvel". Scharping e Schröder, os "matadores" atuais do SPD, também não querem outra coisa além de provocar fanaticamente a "capacidade de concorrência" e o consumo de combustão. Scharping retirou pessoalmente o item da "limitação de velocidade de automóveis" do programa do partido. O aumento do imposto do petróleo foi congelado. E Schröder defendeu até a exportação de armamentos bélicos.
Não nos enganemos a nós mesmos! Os seres humanos, postos sob a tutela do mercado e do Estado, que gritam feroz- mente, porém em vão, por "emprego", estão presos à lógica autonomizada do dinheiro, como o enforcado está preso à corda. E a administração democrática da crise exclui cada vez mais seres humanos da "dignidade humana". Enquanto as engrenagens compulsivas da economia de mercado continuarem a ser interiorizadas, as pessoas nem mesmo serão capazes de colocar as questões decisivas:
O que nós precisamos realmente? Como organizaremos a nossa vida comunitária? Como trataremos com bom senso os recursos? O que riqueza e felicidade poderiam ser, além do consumo assassino de combustão?
Consertos no atual modo de economia e de vida não adiantam mais. Precisa-se, inevitavelmente, de uma ruptura profunda de princípios. Para isso poder acontecer, os homens precisam recuperar o controle sobre sua própria vida, desdobrar atividades autônomas ultrapassando o trabalho assalariado e superar a sua dependência total de "empregos" da economia de mercado. Não sobra mais muito tempo para a minoria pensante nos sindicatos, entre os executivos e na política. Até agora, ela agiu sem perspectivas e com "meio coração", isto é, sem assumir toda a responsabilidade.