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Os termos “o abstrato” e “o concreto” são ambos empregados no discurso cotidiano e na literatura especial de maneira ambígua. Assim, alguém ouve sobre os “fatos concretos” e a “música concreta”, sobre o “pensamento abstrato” e a “pintura abstrata”, sobre a “verdade concreta” e o “trabalho abstrato”. Esse uso é em cada caso justificado aparentemente pela existência de sombras dos significados das palavras e seria um pedantismo ridículo demandar uma unificação completa do uso.
Entretanto, as coisas são diferentes quando estamos lidando não meramente com palavras ou termos, mas com os conteúdos das categorias científicas que se tornaram historicamente vinculadas com esses termos. Definições do abstrato e do concreto como categorias da lógica precisam ser estáveis e inequívocas dentro da estrutura desta ciência, pois eles são instrumentais no estabelecimento de princípios básicos do pensamento científico. Através destes termos, a lógica dialética expressa um número de princípios fundamentais (“não existe verdade abstrata, a verdade é sempre concreta”, a tese da “ascensão do abstrato ao concreto”, e assim por diante). Assim, as categorias do abstrato e do concreto têm um significado bastante definido na lógica dialética, que é intrinsicamente vinculado com a concepção materialista-dialética da verdade, a relação do pensamento com a realidade, e assim por diante. Enquanto lidarmos com essas categorias da dialética conectadas com palavras, ao invés de com as próprias palavras, qualquer licença, falta de clareza ou estabilidade em suas definições (muito menos incorreções) levarão necessariamente a uma concepção distorcida da essência da questão. Por esta razão, é necessário livrar as categorias do abstrato e do concreto das conotações que têm sido associadas a elas através dos séculos em muitos trabalhos pela tradição, pela força do hábito ou simplesmente por causa de um erro, que tem interferido frequentemente com a interpretação correta das proposições da lógica dialética.
O problema da relação do abstrato e do concreto em sua forma geral não é colocado ou resolvido na lógica formal, pois é uma questão puramente filosófica e epistemológica, bastante fora da sua esfera de competência. Entretanto, quando é uma questão de classificar conceitos, nomeadamente, de dividir conceitos em “abstrato” e “concreto”, a lógica formal assume necessariamente uma interpretação bastante definitiva das categorias correspondentes. Esta interpretação aparece como o princípio da divisão e pode por isso ser estabelecida analiticamente.
Neste ponto, muitos autores de livros na lógica formal darão aparentemente um suporte bastante unânime a certa tradição, embora com algumas reservas e alterações. De acordo com a visão tradicional, conceitos (ou ideias) são divididos em abstrato e concreto da seguinte forma:
Conceitos concretos são aqueles que refletem objetos ou classes de objetos que realmente existem. Conceitos abstratos são aqueles que refletem uma propriedade do objeto abstraída mentalmente do próprio objeto.(1)
Um conceito concreto é aquele relacionado com grupos, classes de coisas, objetos e fenômenos ou, para separar as coisas, objetos ou fenômenos [...] Um conceito abstrato é um conceito das propriedades dos objetos ou fenômenos, quando estas propriedades são tomadas como um objeto independente do pensamento.(2)
Conceitos concretos são aqueles cujos objetos existem realmente como coisas no mundo material [...] Conceitos abstratos são aqueles que refletem uma propriedade de um objeto tomado separado do objeto, ao invés do próprio objeto.(3)
Os exemplos citados para ilustrar as definições são basicamente do mesmo tipo. Conceitos concretos são normalmente usados para incluir tais conceitos como “livro”, “Fido”, “árvore”, “avião”, “mercadoria”, enquanto os abstratos são ilustrados por “brancura”, “coragem”, “virtude”, “velocidade”, “valor” etc.
Julgando pelos exemplos, a divisão é, na verdade, a mesma do livro bastante conhecido sobre lógica de G. I. Chelpanov. Melhorias na definição de Chelpanov estão basicamente preocupadas não com a própria divisão, mas com a base filosófico-epistemológico, pois Chelpanov era, filosoficamente, um típico idealista subjetivista.
Aqui está sua versão da divisão dos conceitos em abstratos e concretos:
Termos abstratos são aqueles que servem para designar qualidades ou propriedades, estados ou ações das coisas. Eles denotam qualidades consideradas por elas mesmas, sem as coisas. [...] Conceitos concretos são aqueles das coisas, objetos, pessoas, fatos, eventos, estados de consciência, se considerarmos que eles possuam uma existência definida.(4)
A distinção entre “termo” e “conceito” é uma questão indiferente para Chelpanov. “Estados de consciência” estão, em sua visão, na mesma categoria que fatos, coisas e eventos. “Possuam existência definida” é para ele o mesmo que “possuam existência definida na consciência imediata individual”, isto é, em sua contemplação, concepção ou pelo menos imaginação.
Chelpanov, portanto, considera como concreto qualquer coisa que pode ser concebida (imaginada) como uma coisa individual existindo separadamente, ou imagem, e ele considera como abstrato qualquer coisa que não pode ser assim imaginada, que só pode ser pensada enquanto tal.
A habilidade ou inabilidade do indivíduo de conceber algo graficamente é, na verdade, o critério de Chelpanov para a divisão em abstrato e concreto. Esta divisão, entretanto, pode ser débil na perspectiva filosófica, mas é bastante precisa.
Na medida em que outros autores se esforçam para corrigir a interpretação filosófico-epistemológica da classificação sem mudar o tipo real dos exemplos em questão, a classificação provou estar aberta à crítica.
Se se inclui entre os conceitos concretos somente aqueles que pertencem a objetos do mundo material, um centauro ou Palas Atena serão aparentemente considerados como conceitos abstratos juntamente com coragem ou virtude, enquanto Fido será incluído entre os concretos juntamente com valor.
Qual é o uso de tal classificação para a análise lógica? A classificação tradicional é destruída ou confundida por este tipo de correção que introduz elemento completamente estranho nele. Por outro lado, não se obtém uma nova classificação estrita.
Tentativas de certos autores para oporem um novo princípio ou base da divisão sugerida por Chelpanov são também dificilmente consideradas aptas.
Kondakov acredita, por exemplo, que a divisão de conceitos em abstrato e concreto deveria expressar uma “diferença no conteúdo dos conceitos”(5). Isso significa que os conceitos concretos precisam refletir coisas, e os abstratos, propriedades e relações dessas coisas. Se a divisão é para ser completa, nenhuma das propriedades nem relações das coisas podem ser concebidas em conceitos concretos, de acordo com Kondakov. Permanece turvo como se pode conceber uma coisa ou uma classe outra sem ser através de uma concepção de suas propriedades e relações. Na verdade, qualquer pensamento sobre uma coisa vai inevitavelmente prover ser um pensamento sobre alguma propriedade dessa coisa, pois conceber uma coisa significa formar uma concepção sobre a inteira totalidade de suas propriedades e relações.
Se se liberta o pensamento de uma coisa de todos os pensamentos das propriedades dessa coisa, não sobrará qualquer coisa do pensamento que não o nome. Em outras palavras, a divisão dos conceitos de acordo com seu conteúdo significa, na realidade, isto: um conceito concreto é um conceito sem conteúdo, enquanto um abstrato tem certo conteúdo, apesar de ser escasso. Por outro lado, a divisão não será completa e, assim, será incorreta.
O princípio da divisão sugerida por Asmus, “real existência dos objetos desses conceitos”(6), é tão infeliz quanto.
Como alguém pode entender essa fórmula? Os objetos dos conceitos concretos realmente existem, enquanto os objetos dos conceitos abstratos não existem? Mas, a categoria dos conceitos abstratos abarca não somente virtude, mas também valor, peso, velocidade, isto é, objetos cuja existência não é menos real do que um avião ou uma casa. Se o que é dito significa que medida, valor ou velocidade na verdade não existem fora da casa, da árvore, do avião ou alguma outra coisa individual, claramente as coisas individuais também existem sem medida, peso e outros atributos do mundo material somente na cabeça, somente na abstração subjetiva.
A existência real não está, consequentemente, nem aqui nem ali, tanto quanto não pode ser feita em um critério de divisão dos conceitos em abstrato e concreto. Isso só pode criar uma falsa impressão que as coisas individuais são mais reais que as leis universais e formas de existência dessas coisas.
Tudo isso mostra que as correções da divisão de Chelpanov introduzidas por alguns autores são extremamente inadequadas e formais e que os autores de livros sobre lógica têm falhado em fazer uma análise materialista crítica desta divisão, se restringindo a correções particulares, que meramente confundem a classificação tradicional sem melhorá-la.
Devemos, portanto, conduzir uma pequena excursão na história dos conceitos do abstrato e do concreto para introduzir certa clareza lá.
Notas de rodapé:
(1) N. I. Kondakov, Logika, Moscou, 1954, p. 300. (retornar ao texto)
(2) M. S. Strogovich, Logika, Moscou, 1949, p. 87. (retornar ao texto)
(3) V. F. Asmus, Logika, Moscou, 1947, p. 36. (retornar ao texto)
(4) G. I. Chelpanov, Uchebnik Logiki, Moscou, 1946, p. 10-11. (retornar ao texto)
(5) Cf. N. I. Kondakov, op. cit., pp. 300-301. (retornar ao texto)
(6) Cf. V. F. Asmus, op. cit., p. 36. (retornar ao texto)
Inclusão | 13/02/2014 |