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Na semana imediatamente posterior às eleições de 15 de novembro, ia eu num ônibus quase vazio e ouvia a conversa entre o motorista e o cobrador, às suas costas. Ambos nordestinos, comentavam os resultados eleitorais, quem ganhou, quem perdeu. A certa altura, o motorista fez a afirmação enfática:
"Esse pessoal se engana com a gente. Na hora de votar, quem mora num barraco é igualzinho a Antônio Ermírio".
Longe de mim a idéia de fazer dessa observação aleatória fundamento para uma conclusão generalizadora. Seria anticientífico. Contudo, no contexto de inumeráveis outras observações, incluindo as obtidas por pesquisas metódicas e as fornecidas pelas urnas, considero a frase do trabalhador anônimo expressiva (isto sim, expressiva) da consciência social dominante no processo eleitoral. A consciência social da aceitação pelos milhões de moradores de barracos da sua imensa desigualdade diante dos pouquíssimos milionários, contanto que essa desigualdade pudesse ser legitimada pela igualdade entre os dois extremos no momento mítico de depositar o voto na urna.
Com a prova eleitoral de 1994, a democracia se consolidou no Brasil como forma política da dominação burguesa. Os assalariados e os pobres em geral constituíram o grosso das massas populares que reclamaram, nas ruas, pelo fim da ditadura militar e pela realização de eleições diretas. A forma política democrática corresponde, portanto, a uma aspiração das classes subordinadas, aí incluindo também a classe média. Estas percebem que as liberdades democráticas lhes concedem espaço para sustentar reivindicações com vistas a melhoras concretas no seu viver cotidiano. Ao ceder à aspiração democratizante, a classe dominante burguesa conseguiu estabelecer o consenso socialmente amplo acerca de sua própria dominação. As grandes massas populares não vêem que possa haver algo melhor para elas, em matéria de regime político, do que a democracia. Querem a democracia e, simultaneamente, só podem querer a democracia burguesa. Na conjuntura atual, não há outra viável, no Brasil ou em qualquer parte do mundo. Haverá situação melhor para Antônio Ermírio e os seus seletos pares?
Ainda mais porque vivemos num período politicamente caracterizado pela difusão da democracia por um número crescente de países, de tal maneira que nunca houve tantos países democráticos na história universal. Na América do Sul, mudou radicalmente o panorama com relação aos anos 70, quando todo o Cone Sul vergava sob ditaduras militares. Hoje, nenhuma delas sobrevive. A União Européia recusa sócios que não sejam democráticos. Não há dúvida, a democracia se tomou, no plano mundial, a forma preferencial da dominação burguesa. Vivenciamos a terceira onda democrática, como informa Samuel P. Huntington. A forma democrática é a única com flexibilidade para comportar a alternância de fases de prosperidade e de depressão econômica, sem submeter a ordem social vigente a distúrbios e confrontos difíceis, com a possibilidade de desvios indesejáveis para as classes dominantes. Por isso mesmo, deve ser preferida e o é, em particular, pela superpotência capitalista americana(1).
Aderindo a uma idéia de Schumpeter, em Capitalismo, socialismo e democracia,(2) Huntington salienta que o traço inequívoco da democracia é a realização periódica de eleições, com a disputa dos cargos por múltiplos partidos, com liberdade de imprensa, de organização e de reunião. E, prova das provas, com a transferência do poder, legal e pacífica, ao partido oposicionista, se vencedor na disputa eleitoral. Tal traço inequívoco, menos sujeito a controvérsia do que a soberania popular, a participação dos cidadãos e outros, explica o engano político dos regimes comunistas, extintos e sobreviventes. Nenhuma credibilidade resulta de eleições disputadas por um único partido todo-poderoso, com o atributo constitucional de dirigente da sociedade, mesmo quando convive com uns tantos partidinhos aos quais se consente a existência para efeito de maquiagem. O dilema da antiga União Soviética e dos seus associados no Leste europeu consistia em que não podiam reconhecer explicitamente que praticavam a ditadura do Partido Comunista e procuravam mascará-Ia por meio da farsa eleitoral.
Em Cuba, as modificações recentes no processo político não trouxeram alteração essencial sob o aspecto aqui abordado. Permanece o monopólio legal do poder pelo Partido Comunista, referendado por eleições. Carentes estas, por conseguinte, de autenticidade democrática. A experiência da Nicarágua e do Leste europeu não anima o PC Cubano a aceitar a concorrência de partidos oposicionistas no pleno gozo de prerrogativas democráticas. O prolongamento do sistema monopartidário, em Cuba e também na China, por enquanto se sustenta, mas, sem dúvida, vai sendo minado pela expansão das relações de produção capitalistas, à medida que se amplia o mercado e se avolumam os investimentos de capital estrangeiro. Num certo momento, premido pela base capitalista, já não haverá condições de sobrevivência para um poder somente justificado por uma cultura política comunista.
Huntington não faz da democracia, com o traço distintivo da disputa eleitoral multipartidária, um valor universal. Explica seu avanço mediante a metáfora da onda. Seria uma tendência hoje em ascenso. Impraticável ou efêmera em países muito pobres ou com prevalência de cultura incompatível com o procedimento democrático. Como é o caso dos países islâmicos. Mas pobreza e cultura intolerante não são insuperáveis.
Ainda que dela não faça valor universal, Huntington não esconde o desejo de que a democracia atinja tal patamar classificatório. Mas a democracia concebida conforme o padrão da história dos Estados Unidos e como bandeira da sua política mundial.
Não é má essa franqueza. Porque a questão da democracia estará sempre subordinada a condicionais muito concretos: quem manda, quem detém a força econômica, quem exerce a hegemonia, em favor de quem se pratica a coerção legal, qual, em suma, a natureza do Estado.
Nas condições da sociedade burguesa, a democracia resulta da pressão dos oprimidos e do interesse dos opressores. Os oprimidos devem fazer exigências que a democracia está apta a canalizar, enquanto os opressores devem perceber que a democracia lhes convém como manifestação de sua hegemonia, ou seja, da formação de uma "vontade geral" a favor da conservação da sociedade burguesa e dos seus valores fundamentais. A possibilidade e a viabilidade da democracia são resultantes da contraposição de correntes conflitantes e convergentes.
Em meados de 1993, o prestígio popular da democracia era baixo no Brasil. Os cidadãos comuns não inferiam a excelência da democracia a partir do impeachment inédito do presidente Collor. A corrupção escandalosa do presidente da República, deposto por um procedimento legal, apontava, na lógica do raciocínio popular, para a inutilidade da própria escolha democrática. O impeachment do presidente Collor, embora devesse fortalecer o sentimento democrático, atuava em sentido contrário, ainda mais por causa das impressionantes trapalhadas e pela enorme inoperância do governo Itamar Franco. A CPI do Orçamento pôs a descoberto a lama da corrupção que se espalhou por extensa área do Parlamento. A lógica do raciocínio popular fixava-se em axiomas como os da desonestidade dos políticos em geral e das campanhas eleitorais como enganação dos eleitores pela astúcia dos políticos. A propensão para o apoliticismo enfraquecia o apego ideológico à democracia. Os dirigentes das classes dominantes sentiam o perigo de semelhante inflexão psicossocial, ainda mais porque outro risco assomava. O risco da eleição de Lula, que as pesquisas de opinião pública apontavam como candidato de ponta na corrida presidencial.
Por enquanto, nem pensar em recorrer a golpes militares. O descontentamento crescia nos quartéis, alimentado pelos soldos amesquinhados e pela magreza dos recursos para renovação do equipamento bélico. Um general citou o centurião Marcus Flavinius, que ameaçou investir com as suas legiões sobre Roma. Apelar para legiões rebeladas seria extremamente temerário. A dissipação da guerra fria impedia que, mais uma vez, se fizesse uso do maniqueísmo anticomunista. O ambiente internacional desaconselhava o embarque na aventura de mais um golpe militar.
O núcleo politicamente pensante da classe dominante — que inclui políticos profissionais, donos da mídia e outros empresários influentes — se fixou no que era evidente: a saída só podia ser eleitoral. Consistia em encontrar um candidato que revitalizasse o sentimento democrático nas massas trabalhadoras e na classe média. Um candidato cuja vitória eleitoral viesse a garantir a tranqüilidade burguesa no próximo período presidencial. O aspecto da tranqüilidade era muito importante, uma vez que, na eleição de 1989, um candidato marginal, no sentido burguês específico, conseguiu impor-se aos empresários e os obrigou a apoiá-lo como única alternativa diante do risco da vitória de Lula. (A marginalidade aí se caracteriza não só pela via lateral de emergência, como principalmente pela excessiva e ostensiva atividade rapinante, sem a devida cautela a serviço do sistema burguês brasileiro, no qual o topo é ocupado pela Fiesp e congêneres e pelas oligarquias regionais.) As desagradáveis conseqüências da subida de Collor à chefia do Estado serviam de advertência contra a repetição do aparecimento de um novo marginal. Era urgente e imperioso descobrir um personagem que fosse confiável para os empresários e que oferecesse a perspectiva segura de vir a ser o candidato vitorioso. Confiável, porque sua lealdade ao sistema burguês brasileiro já estava suficientemente comprovada. Com perspectiva de triunfo, porque isento de manchas no currículo, capaz de servir à fabricação pela mídia da imagem do eleito pela vontade popular espontânea. Onde encontrar personagem tão precioso?
A prática política das classes dominantes brasileiras tem a peculiaridade da liquidação das organizações partidárias logo depois das viradas mais incisivas. Após a tomada do poder por Getúlio Vargas em 1930, desapareceram os partidos republicanos da República Velha. Em 1965, Castello Branco — primeiro a exercer a ditadura militar — dissolveu o PSD, a UDN e todos os demais partidos surgidos no período que vai da democratização de 1945 ao golpe de 1964. Em seu lugar, a ditadura consentiu apenas o funcionamento de dois partidos: um da situação, a Arena, outro da oposição, o MDB. O avanço do processo de redemocratização nos anos 80 não trouxe de volta os partidos de antes do golpe militar, mas foi acompanhado pela formação de siglas inteiramente novas.
Semelhante frivolidade política tem feito dos partidos um instrumento secundário de afirmação hegemônica. Os partidos ficam inabilitados para a seleção de candidatos aos pleitos majoritários, sobretudo o pleito presidencial. Embora, em qualquer parte, haja uma dose considerável de personalismo na vida política, o personalismo se acentua fortemente no caso brasileiro. Em 1989, Ulysses Guimarães sofreu rotunda derrota, apesar do prestígio acumulado e do fato de ser representante do PMDB, maior partido pelo número de parlamentares e de governadores. Enquanto isso, Fernando Collor, com um currículo muito menos substancial e abrigado por uma sigla arrumada às pressas, obteve triunfo estrondoso.
O critério pessoal, colocado acima do partidário, eliminava de saída, nos cálculos da cúpula politicamente pensante, o candidatável Orestes Quércia, apesar de vir apoiado pela máquina do PMDB. Pesadas acusações de enriquecimento ilícito, movidas por alguns dos principais jornais e revistas, permitiam prever o fracasso da candidatura do ex-governador paulista, embora se soubesse que ele forçaria sua apresentação e a conseguiria, uma vez que detinha o controle da máquina peemedebista. Contumazes aspirantes à posse da cadeira presidencial, Maluf e Brizola também eram desaconselháveis. O primeiro, porque recentemente empossado no cargo de prefeito de São Paulo e ainda carregando índice elevado de rejeição. Teria grande dificuldade para mudar sua imagem e se tornar mais do que um candidato da direita. Brizola se desgastara no seu segundo mandato como governador do Rio de Janeiro, era desafeto de Roberto Marinho (o que já significava um veto da referida cúpula) e continuava aferrado a um discurso nacionalista anacrônico. Decididamente, devia ser rifado.
A dificuldade de seleção pelo crivo do critério pessoal transparece na variedade de nomes aventados pela imprensa, em meados de 1993. Ciro Gomes, governador do Ceará, Tasso Jereissati, ex-governador do mesmo estado, Jaime Lerner, prefeito de Curitiba, Adib Jatene, famoso cirurgião e ministro da Saúde, José Sarney, ex-presidente da República, Antônio Britto, ministro da Previdência. Além de outros, menos votados. Da lista acima, ganharam consistência os dois últimos citados, ambos com boa cotação nas pesquisas de opinião pública. Mas ambos eram filiados ao PMDB e teriam que enfrentar Quércia a fim de ganhar a indicação partidária. O que se afigurava bastante incerto. Parecia prudente dispor de um ou mais nomes de reserva. É neste quadro de incertezas que entra o nome de Fernando Henrique Cardoso, ex-chanceler empossado, em maio de 1993, no cargo de ministro da Fazenda. Em menos de um ano, o quarto da gestão do presidente Itamar Franco.
No dia 4 de dezembro de 1993, Roberto Marinho e Antônio Carlos Magalhães se encontraram em Angra dos Reis, na mansão de veraneio do presidente das Organizações Globo. A conversa, de caráter privado e completamente restrito, tinha total transcendência pública, uma vez que reunia dois dos mais influentes caciques da política brasileira. Roberto Marinho nunca exerceu um cargo público, mas teve peso muito grande em todas as viradas políticas no último meio século, sobretudo a partir dos anos 60, quando acrescentou a Rede Globo de Televisão ao seu império de comunicações. Antônio Carlos Magalhães, o mais poderoso oligarca do Nordeste, controlador inconteste da política baiana e também empresário da mídia. Em sua conversa, os velhos e bem sucedidos sócios passaram em revista o quadro da disputa sucessória e, fixando-se em Fernando Henrique Cardoso, concluíram que suas chances dependiam do sucesso como ministro da Fazenda(3).
Fernando Henrique já era, por conseguinte, um candidatável reconhecido e aprovado por dois dos principais grandes eleitores do país.
Poucas vezes chega à Presidência da República um cacique empenhado em atingir esse supremo objetivo dos políticos profissionais. Justamente por sua exibida obstinação em alcançar o prêmio máximo, os caciques sofrem implacável marcação dos competidores e adversários, o que os desgasta e, por fim, os põe à margem. No período pré-64, este foi o caso de Carlos Lacerda, de Adhemar de Barros e de Leonel Brizola. De 1985 para cá, assistimos ao naufrágio dos projetos presidenciais de Ulysses Guimarães, de Maluf, de Quércia e ainda de Brizola. Por isso mesmo, pode acontecer que um político sem estofo de cacique, cotado como de segundo escalão e fora de cogitações na lista sucessória, seja o inesperado beneficiário do bilhete premiado. Tal se deu com Fernando Henrique Cardoso.
Ao iniciar-se 1994, o professor da USP e senador do PSDB via à frente um futuro político sombrio. Avaliava que não teria chance para um novo mandato senatorial e não pretendia rebaixar o status, disputando uma cadeira de deputado federal. Já considerava, conformado, a perspectiva de reassumir a atividade de scholar, inclusive dedicando-se ao projeto de um novo livro. Eis que, convidado pelo presidente Itamar para assumir o Ministério da Fazenda, mudou-se inteiramente o seu campo de visão. Podia encarar a possibilidade do máximo posto da República, sem que isto fosse somente um acicate da vaidade(4).
A súbita alteração de perspectiva não veio como resultado de um processo aleatório semelhante aos sorteios das loterias. Fernando Henrique fez por merecer sua inclusão entre os candidatáveis. Durante os dez anos no Senado, deu demonstração de confiabilidade aos grandes eleitores. Conseguiu apagar desconfianças, que pudesse suscitar seu passado de esquerdista, ainda que esquerdista moderado. Não precisou abandonar sua tese sociológica acerca da burguesia dependente e associada (do imperialismo), bastou-lhe apenas mudar o sinal de valoração. Não havia outra burguesia à qual servir e, afinal, não era pecado ser dependente e associada (do imperialismo), no quadro desolador da América Latina. Nos recintos políticos de Brasília, Fernando Henrique fixou a imagem de alguém capaz de um discurso vagamente social-democrata e, ao mesmo tempo, de temperamento conciliador e completamente compreensivo diante dos interesses imperantes.
Ao tomar posse no Ministério da Fazenda, Fernando Henrique agiu de maneira inegavelmente competente. Consciente da urgência de um plano eficaz de contenção da inflação em processo de aceleração vertiginosa, foi buscar na PUC do Rio de Janeiro os economistas que iriam assessorá-lo. Os mesmos economistas do primeiro Plano Cruzado, agora mais experimentados para jogar uma segunda partida contra a inflação. E, sobretudo, agora descrentes de desvios heterodoxos e atentos à ortodoxia monetarista do FMI. O que viria a ser chamado de Plano Real começou a ser elaborado e, no final de 1993, passou a ter as medidas preliminares implementadas. O próprio Fernando Henrique concluiu, em Washington, o acordo da dívida externa com os bancos credores e, em seguida, conseguiu do Congresso a aprovação do Fundo Social de Emergência. Chamado de social, era, de fato, um fundo para tapar buracos orçamentários e evitar um déficit prejudicial ao saneamento antiinflacionário.
Ao mesmo tempo, Fernando Henrique Cardoso deixou inteiramente claro que não interromperia a mudança de rumo iniciada por Collor. Manteve a abertura às importações e se manifestou a favor da privatização das empresas estatais e do tratamento liberal, não-discriminatório, ao capital estrangeiro. Ajeitou-se habilmente no modelo ideal de candidato imaginado pelas grandes empresas nacionais e transnacionais operantes no Brasil. Nesses termos, o passado esquerdista e de oposição ao regime militar em absoluto não o prejudicava. Ao contrário, acrescentava-lhe um charme valioso para atrair os setores do eleitorado politizado e intelectualizado.
Ainda no começo de 1994, Fernando Henrique recebia cotação baixa nas pesquisas de opinião pública, mas o processo seletivo dos candidatáveis atuava a seu favor. Quércia insistia em ser indicado pelo PMDB, o que seguramente conseguiria, embora fosse claro que não ganharia receptividade entre os grandes eleitores. Em conseqüência, Sarney ficou inviabilizado e Antônio Britto decidiu disputar o governo do Rio Grande do Sul, recusando a proposta de entrar no páreo presidencial. Maluf percebeu que sua insistência em disputar mais uma vez a Presidência não era aprovada por Roberto Marinho e não alcançava ressonância no PFL. Sabia que estava rifado e desistiu.
O processo seletivo dos candidatáveis afunilara na direção de Fernando Henrique Cardoso. Podia, portanto, assumir o risco de se afastar do Ministério da Fazenda, a 2 de abril, a fim de se desincompatibilizar, conforme exigia a lei. O risco seria mínimo. Fernando Henrique sabia que era o candidato do "Consenso de Brasília".
Ainda no aceso do primeiro turno das eleições, José Luís Fiori escreveu que o Plano Real não foi concebido para eleger Fernando Henrique, mas este sim é que fora concebido para pôr em prática o programa de estabilização do FMI e as diretrizes do "Consenso de Washington"(5).
Fernando Henrique apressou-se a responder, em artigo de página inteira do mesmo jornal, ciente de que precisava defender o prestígio de acadêmico e intelectual de esquerda. Recusou o estigma de neoliberal, ao mesmo tempo afirmando não ser aceitável qualquer reincidência populista. Diante da tendência inevitável à globalização, somente a reinserção da economia brasileira na economia internacional poderia impulsionar um novo ciclo de crescimento, que, por sua vez, permitiria dar solução aos problemas da pobreza e da miséria(6).
Reinserção da economia brasileira na economia internacional é uma frase-clichê alusiva precisamente às diretrizes do "Consenso de Washington": estabilização monetária ortodoxa, desregulamentação do mercado interno e externo, abertura às importações com eliminação de quaisquer medidas protecionistas, privatização completa das empresas estatais, derrogação de privilégios ao capital nacional e atração indiscriminada do capital estrangeiro.
A candidatura de Fernando Henrique Cardoso foi, sem dúvida, projetada e devidamente preparada a fim de assegurar um mandato presidencial comprometido com tais diretrizes e dotado de condições políticas para implementá-las. Ao mesmo tempo, seria injusto e errôneo não assinalar que Fernando Henrique também foi autor de sua candidatura. Melhor dito, co-autor, tanto quanto Roberto Marinho e demais caciques da cúpula da classe dominante.
Isto porque Fernando Henrique modelou sua imagem política, no Senado e fora dele, de tal maneira que comportasse eventuais possibilidades de cooptação para altos cargos executivos. Dissiparam-se quaisquer dúvidas que houvesse quanto à sua lealdade à classe dominante, ou seja, à burguesia dependente e associada (do imperialismo). Sua atuação no Ministério da Fazenda revelou notável competência sob esse aspecto, desde a escolha dos assessores econômicos ao acordo firmado com os bancos credores da dívida externa e à aprovação do Fundo Social de Emergência pelo Congresso. Sua competência se evidenciou, sobretudo, no cronograma estabelecido para introdução da nova moeda, com a previsão do efeito antiinflacionário estabilizador e do efeito político de empuxo da candidatura do responsável principal do Plano Real.
Uma vez formalizada, a candidatura de Fernando Henrique reuniu uma soma de apoios inédita em campanhas eleitorais. Sendo o PSDB um partido médio, a aliança com o PFL, um dos dois maiores partidos, aglutinador de grande parte dos políticos que sustentaram a ditadura militar, deu lugar a uma coalizão partidária ampliada e garantiu o flanco direito contra eventuais surpresas. A adesão do PTB alargou ainda mais a coalizão e afastou do páreo presidencial o seu presidente, o banqueiro Andrade Vieira. A grande mídia, tendo a Rede Globo à frente, cerrou fileiras, com impressionante unanimidade, em favor de Fernando Henrique. No roçado deste logo choveu o dinheiro das "doações" das grandes empresas, destacando-se bancos e empreiteiras de obras públicas. Por fim e não menos importante, o governo Itamar Franco deixou de se guiar por impulsos erráticos e paroquiais e se entrosou confortavelmente na campanha eleitoral de Fernando Henrique. Semelhante combinação sinérgica— entrelaçando governo federal, dinheiro do grande capital, partidos políticos e a grande mídia burguesa — já seria, por si mesma, difícil de bater. Muito mais difícil ainda ficou depois do seu potenciamento pelo efeito político da introdução da nova moeda.
Ao iniciar-se o mês de junho, as pesquisas de opinião pública davam a Fernando Henrique metade das preferências eleitorais atribuídas a Lula. O quadro se inverteu rapidamente logo após a introdução da nova moeda, a 1° de julho. Nos começos de setembro, Fernando Henrique havia atraído os 25% de eleitores que, de março a junho, se juntaram ao eleitorado de Lula. Essa atração de parcela substancial do eleitorado oscilante se deveu, inequivocamente, à estabilização monetária e à projeção de Fernando Henrique como o santo do milagre.
Sucedeu no Brasil o que já fora observado pela experiência mundial das estabilizações, que faziam cessar os processos de hiperinflação. Experiência confirmada pelos acontecimentos recentes da Argentina e da Bolívia. No Brasil, já nos encontrávamos com muitos anos de um processo inflacionário resistente a diversos planos heterodoxos e ortodoxos de estabilização. No governo Itamar, o processo atingiu o patamar da superinflação, à beira da hiperinflação. As camadas mais castigadas são as mais pobres, que sequer dispõem de conta bancária. Mas a própria classe média, que dispõe de meios de defesa, se angustia com a obrigação freqüente de correr às agências bancárias e penar nas filas para fazer aplicações financeiras. Em tais condições, as famílias comuns se sentem desamparadas, sem a perspectiva de planos de vida sequer a curto prazo. O doente afligido pela dor atroz, anseia, como primeira urgência, pela medicação analgésica, e só depois de aliviado da dor vai se preocupar com a cura efetiva. A percepção de que os preços não mais disparavam, depois de iniciada a circulação do real, equivaleu a um formidável analgésico, que deixou a população brasileira, sobretudo a mais pobre, num estado de alívio e até de euforia. Mesmo eleitores de Lula, que mantiveram a preferência nele, não deixaram de sentir o efeito paralisante da estabilização.
Contando com vantagem tão imponente e diante da inépcia de Lula, pôde Fernando Henrique invadir o terreno que, pela lógica, seria o da oposição e apossar-se dele. O seu programa de governo tomou o cuidado de não sugerir nenhuma mudança capaz de ferir interesses estruturais das classes dominantes, mas se esmerou na apresentação de um elenco de promessas que visavam corrigir as situações mais preocupantes em matéria de educação e saúde pública, de previdência social e de criação de novos empregos.(7)
Diante de um adversário desarticulado, posto a escanteio, o programa e a propaganda televisiva de Fernando Henrique expuseram os problemas brasileiros, como o faria um candidato oposicionista, apontando as carências mais agudas da grande maioria da população. A astúcia dessa linha de ataque se revelou devastadora para a candidatura Lula.
O cronograma da introdução da nova moeda funcionou de maneira admirável. Tão admirável, que surpreendeu o próprio candidato e seus patronos dos Consensos de Washington e de Brasília. Transcorridos julho e agosto, o objetivo de Fernando Henrique deixou de ser o de chegar ao segundo turno, nem que fosse em segundo lugar. Agora, podia divisar a vitória definitiva já no primeiro turno. O que se confirmou, apesar de tropeços, rapidamente corrigidos, como a confissão parabólica do ministro Ricúpero. O episódio, em que vaidade, hipocrisia e baixa ambição se expuseram com um cinismo raramente observado, serviu para documentar o desmedido empenho do governo Itamar e da Rede Globo pela vitória da candidatura presidencial de Fernando Henrique Cardoso.
Como se tomou possível a derrota de um candidato que, em princípios de maio, a cinco meses da data da eleição no primeiro turno, obtinha, conforme pesquisa do DataFolha, 42% das intenções de voto, contra apenas 16% de Fernando Henrique Cardoso, o segundo colocado?
A tentativa crítica que se segue insere observações extraídas da participação do autor nas reuniões do grupo de análise de conjuntura, que colaborou com a direção nacional do PT em São Paulo. O autor se inclui em alguns aspectos da crítica que agora faz, conquanto julgue desnecessário especificar tais aspectos, uma vez que sua atuação teve peso insignificante no cômputo geral.
Em primeiro lugar, cabe precisar se, efetivamente, houve derrota.
Sem dúvida, o PT saiu da campanha eleitoral com alguns êxitos importantes. Sua bancada de deputados federais aumentou em 30%, passou de um para cinco senadores, aumentou em 8% o número de deputados estaduais e, pela primeira vez, elegeu dois governadores. Embora aquém da expectativa, trata-se de resultados positivos dignos de menção.
Mas aí temos à vista resultados referentes a aspectos parciais. O aspecto fundamental, definidor do conjunto da campanha, residiu na disputa presidencial, o que é óbvio em se tratando da forma política presidencialista. Sob tal aspecto, o PT foi derrotado e de maneira muito pior do que em 1989. Nesse ano, Lula chegou ao segundo turno e esteve perto de ganhar. Em 1994, embora aumentasse sua votação total de 16% para 22% (contra 44% para Fernando Henrique), Lula não conseguiu sequer chegar ao segundo turno.
A conclusão não pode ser senão a de que, sob o aspecto fundamental, o PT sofreu uma derrota na campanha eleitoral de 1994.
É preciso focalizar ainda outra questão, que não diz respeito ao resultado eleitoral na acepção estrita. O PT falhou na tarefa de utilizar a campanha eleitoral para educar as massas populares, tomando-as mais conscientes das causas de suas dificuldades e dos caminhos de luta para fazer da democracia política um regime favorável aos seus interesses, e não meramente a forma legitimadora da dominação capitalista. Ao terminar a campanha eleitoral, a consciência das massas trabalhadoras e populares achava-se mais impregnada do que antes pelas fantasmagorias da mitologia burguesa. O PT não somente sofreu uma grave derrota político-eleitoral, mas também uma gravíssima derrota ideológica.
Seria inócuo e infantil culpar o adversário pela derrota. Não se poderia esperar favores do adversário. Não faz sentido acusá-lo de ter aprovado uma lei eleitoral, que deve ser chamada de Lei Serra, a qual manietou o PT no horário gratuito de rádio e televisão. Tampouco seria de esperar da mídia uma atitude favorável ao PT. Em suma, o adversário fez sua parte, quando se empenhou na fabricação da derrota de Lula. Mas a derrota também foi fabricada pelo próprio PT e, em especial, pelo próprio Lula.
Com objetivo justificado de ampliar o arco de alianças, a direção do PT desenvolveu esforços na busca de apoios à direita de sua posição, fora do campo de partidos aliados na Frente Brasil Popular, constituída desde o início da campanha pela candidatura Lula. Nesse afã, o partido se desequilibrou e deslizou ele próprio para a direita, adotando uma posição política deformadora de sua identidade.
Durante tempo prolongado, a direção do PT se iludiu a respeito de uma aliança com o PSDB. Este se interessou pela aliança antes do plebiscito de 1993 sobre a questão do regime político. Se vitoriosa a opção parlamentarista, caberia ao PT a Presidência com fracos poderes, enquanto o PSDB calculava ficar com o cargo mais forte de primeiro-ministro. Uma vez evidenciada a preferência popular pelo presidencialismo, o PSDB cozinhou devagarinho os entendimentos com a cúpula do PT, sem nenhuma intenção de efetivar o acordo eleitoral. Esse esforço demorado para atrair o PSDB trouxe constrangimentos ao PT, quando precisou enfrentar o candidato do partido soi-disant social-democrata.
Tais constrangimentos inexistiriam se a direção do PT buscasse alianças mais amplas em direção diferente. Em particular, na direção do PDT. Certamente, seria muito difícil uma coligação eleitoral com o PDT sem que Brizola exigisse a candidatura presidencial. Mas a aproximação com o PDT teria sido proveitosa, mesmo sem a conclusão de tal aliança. Constituiu um erro não ter apoiado Brizola, em 1990, para governador do Rio de Janeiro, o que praticamente inviabilizou futuros esforços de aproximação. No que se refere à aproximação entre os dois partidos, Brizola também tem sua parte não pequena de responsabilidade, o que Mangabeira Unger evita abordar(8).
Foi, porém, no empenho em ganhar a boa vontade do empresariado que mais se manifestou o deslizamento para a direita. Algum resultado defensável e valioso se conseguiu com relação ao apoio de pequenos e médios empresários. Mas se pagou um preço altíssimo ao promover cerca de duas centenas de encontros de Lula com o grande empresariado. Não procede a alegação de que se buscava um esclarecimento (uma comunicação, diria Habermas) com o fim de evitar os ataques terroristas do empresariado, como sucedeu em 1989. Os encontros com tantos big shots do grande capital desfiguraram a imagem do PT como partido combativo dos trabalhadores. A própria linguagem de Lula e de muitos dirigentes do PT se alterou (ou se adulterou). Não se falava mais, por exemplo, em prestar contas aos trabalhadores, mas em prestar contas à sociedade. Claro, a categoria de trabalhadores exclui os empresários, mas a de sociedade os inclui. Só que, enquanto se descola da representação dos trabalhadores, o partido nem por isso se toma representante da sociedade como um todo, o que está fora de questão para qualquer partido. Enquanto Lula perdia tempo tentando convencer os magnatas do capital de que, caso fosse eleito, não atingiria os seus interesses, os bons burgueses se uniam para derrotá-lo no pleito próximo.
A linguagem de Lula se adoçou, de maneira facilmente observável, na propaganda das posições programáticas e conjunturais.
O 9° Encontro Nacional do PT aprovou um projeto de Programa de Governo de caráter democrático e popular que, não sendo socialista, pretendia articular-se com os objetivos estratégicos socialistas do partido(9). O texto definitivo do Programa fez uma referência ao socialismo mais defensiva e escassa e atenuou algumas posições. Um recuo flagrante ocorreu com relação às questões do aborto e dos homossexuais, por pressão do clero católico. O Programa, no texto final, só veio a público em agosto e, dada sua extensão e complexidade, não exerceu influência notável na campanha. Contudo, suas idéias já vinham orientando os materiais propagandísticos e a oratória dos candidatos e dirigentes. Justamente, nessa tramitação em direção à propaganda de caráter massivo, o Programa sofreu forte diluição(10).
Não seria o caso, sem dúvida, de ”esquerdizar” a propaganda, de brandir ameaças e prometer viradas radicais. Bastava reportar-se corretamente ao Programa aprovado. Mas, sob pressão da grande mídia e da direita partidária, Lula se preocupou em dar garantias aos empresários acerca de direitos supostamente inatacáveis e em assegurar que seria cumprido o acordo da dívida externa fechado por Fernando Henrique com os banqueiros internacionais. Ao mesmo tempo, questões como as das privatizações das empresas estatais e da manutenção dos monopólios estatais do petróleo e das telecomunicações eram abordadas em tom nitidamente defensivo, com uma exposição fugidia e nada convincente das posições do PT. No que se refere ao monopólio privado da televisão pela Rede Globo, foi total a omissão petista.
Não dispondo de grandes veículos de comunicação de massa, o PT deveria aproveitar exaustivamente as oportunidades oferecidas pela campanha eleitoral para difundir idéias básicas entre vastos setores da população brasileira. Isto não se fez ou se fez pouco e mal. Os oradores do PT, a começar pelo próprio Lula, se afastaram dos temas em que o PT é forte e se mantiveram no âmbito de temas que, por si sós, são indefinidos ou pouco definidores. Obviamente, é preciso falar em miséria, fome, falta de habitações e de hospitais. São problemas concretos que em hipótese alguma podem ser omitidos. Mas esses são temas que só definem uma abordagem específica quando relacionados com causas fundamentais da tão cruel estrutura social do país. Uma vez obscurecido o enquadramento estrutural, também o adversário ficaria à vontade para abordar tais temas. Foi o que fez Fernando Henrique, com desenvoltura e, no que se refere a aspectos concretos, muitas vezes de maneira mais precisa do que Lula.
As oportunidades peculiares a uma campanha eleitoral ficaram, por conseguinte, inaproveitadas ou mal aproveitadas. O PT se deixou bater no terreno da disputa política e ideológica.
Embalada pelos índices elevados nas pesquisas de opinião pública, a direção petista não deu importância à mobilização da militância, reconhecidamente aguerrida e capaz de façanhas surpreendentes. Ademais, a mídia insistia, então, na tese de que Lula, amadurecido e moderado, era bom, mas o PT, anacrônico e radical, era ruim. Assim que os índices das pesquisas despencaram e parecia difícil revertê-los, ressurgiu na liderança petista a preocupação com a mobilização da militância. O que só se conseguiu em escala muito inferior às campanhas anteriores, com exceção de uns poucos estados nos quais a motivação regional teve influência vigorosa.
Em maio, as pesquisas de opinião pública davam a Lula uma vantagem que permitia prever seu triunfo no primeiro turno. Até políticos experientes como o ex-presidente Sarney consideravam Lula imbatível. Por seu lado, a direção petista não avaliou que o crescimento das intenções de voto resultara da adesão de um eleitorado pouco convencido, ainda suscetível de flutuações. Uma vez que fazia uma propaganda que enfraquecia suas características distintivas, o candidato do PT se viu ainda mais desguarnecido para enfrentar a fase três do Plano Real, quando a nova moeda seria introduzida na circulação. Apesar do Plano já estar em execução desde o início do ano e do processo de conversão pela URV se encontrar em andamento, a direção do PT se deixou pegar sem defesa, pois fazia uma avaliação terrivelmente falsa das perspectivas do Plano Real e não possuía um plano alternativo para apresentar. Basta lembrar que a bancada federal do PT votou a favor da criação do Fundo Social de Emergência, ajudando a aplainar o terreno sobre o qual a candidatura de Fernando Henrique iria assentar. Esquerda, centro e direita do partido se achavam no mato sem cachorro. Somente alguns economistas acertaram nas indicações feitas acerca da questão.
O despreparo do PT — em todo o seu espectro de tendências internas — na abordagem do problema inflacionário decorreu da insuficiência profissional de tantos dos seus economistas e também de um viés ideológico assumido pelas correntes de esquerda, velhas e novas. O nacional-desenvolvimentismo se baseou na teoria de Keynes para justificar a utilização da inflação como instrumento de promoção do crescimento econômico. A idéia segundo a qual a inflação possuía um lado positivo impregnou a esquerda, mais ou menos associada ao nacional-desenvolvimentismo. Já quando a espiral inflacionária chegava às alturas, a esquerda insistiu que se devia combater a inflação com a promoção do desenvolvimento. Ao mesmo tempo, a esquerda se recusava a examinar os aspectos especificamente monetários do fenômeno inflacionário, repisando que ele procedia de um conflito distributivo. Semelhante maneira de encarar o problema pode ser encontrada na argumentação dos documentos oficiais do PT e nas manifestações da maioria dos seus economistas.
Ora, é verdade que o processo inflacionário tem, na essência, um conflito distributivo. Todavia, o reconhecimento de tal conflito não retira do processo inflacionário a característica de constituir um fenômeno da esfera monetária da economia, com efeitos sobre as demais esferas. É descabido e incompreensível que se queira combater uma anomalia monetária sem empregar meios propriamente monetários. Mas essa conclusão óbvia parecia aos petistas uma heresia monetarista. Quando é do conhecimento mais elementar que a doutrina monetarista, desde Milton Friedman, restringe o papel do Estado na atividade econômica ao controle do fluxo monetário com o fim de garantir a estabilidade da moeda. Combater a inflação por meios monetários só poderia ser visto como prática monetarista se tal orientação se associasse a essa concepção liberal e neoclássica do papel do Estado na economia.
O PT podia e devia assumir a apresentação de um plano antiinflacionário por meios propriamente monetários (incluindo a troca da moeda em circulação) e conectar esse plano à proposição de medidas com vistas à retomada do desenvolvimento, à alteração na distribuição de renda em favor dos trabalhadores e assim por diante. O que não aconteceu.
O projeto de Programa do PT, de março de 1994, fez uma apreciação genérica do processo inflacionário, falhando na proposta de medidas concretas bem especificadas. O texto definitivo do Programa, dado a público em agosto, foi mais detalhado, porém continuou prisioneiro da idéia de que a eliminação da inflação teria de ser feita no contexto de um programa global de desenvolvimento, o que afastava qualquer investigação de um combate através de meios monetários específicos. Daí a inferência inevitável a respeito do caráter recessivo do Plano Real(11).
Conclusão que, na direção petista, recebia o reforço de vários dentre os mais destacados economistas do partido. Maria da Conceição Tavares previa, em junho, que a introdução do real provocaria um "desemprego cavalar". Segundo Aloizio Mercadante, o plano governamental sofreria colapso em curto prazo. Como se vê, Maria da Conceição repetia, em sentido contrário, o erro de avaliação por ela cometido por ocasião do lançamento do primeiro Plano Cruzado(12).
Alguns economistas do PT se aproximaram de uma concepção correta da questão da inflação e de uma previsão adequada dos efeitos do Plano Real. Porém suas intervenções no debate não conseguiram alterar o rumo da direção do PT e do candidato presidencial na abordagem da questão. Em conseqüência, assim que se evidenciou o apoio da grande maioria da população à nova moeda (trocada pela velha moeda com uma rapidez e ordem exemplares), Lula se viu obrigado a anunciar que, como governante, conservaria a nova moeda e, exagerando a resposta, a propaganda do PT chamou o real de "moeda forte". Nada disso impediu que os adversários designassem Lula como o "candidato da inflação", afastando dele a grande massa dos eleitores recém aderidos e até mesmo eleitores consolidados de pleitos anteriores(13).
Do acontecido no Brasil, que se junta a ocorrências assemelhadas em outros países da América Latina, fica a conclusão de que a esquerda não pode nem deve tratar a questão da inflação como algo secundário e sujeito a soluções genéricas. Castigados pela inflação durante anos a fio, espoliados por seu mecanismo impiedoso, os trabalhadores e outras camadas sociais passam a priorizar a conquista da estabilização monetária. Tal aspiração deve ser considerada legítima por qualquer corrente de esquerda e, muito mais ainda, pelas correntes que lutam em favor do socialismo. Só assim a esquerda estará preparada para enfrentar os efeitos imediatos de planos de estabilização monetária do tipo brasileiro, como também para criticá-los no longo prazo e apresentar propostas alternativas. Tanto mais necessárias porque a derrocada da estabilização no México, após seis anos de aplicação ortodoxa de um plano modelado pelo FMI, já mostrou o que pode acontecer às moedas dependentes da dolarização via entrada de capitais externos acoplada à abertura escancarada às importações.
O grau de deslocamento de Lula e da direção do PT para a direita pôde ser melhor aferido pelo escândalo da revelação de que as campanhas de vários candidatos do partido, a começar pela campanha presidencial, haviam sido alimentadas por doações de empreiteiras envolvidas em episódios de corrupção no Parlamento e no governo. Dirigentes petistas usaram o argumento de que as doações ocorreram dentro da lei e sem compromissos de retribuição por parte dos candidatos beneficiados. Seria espantoso e, na verdade, já o fim da picada, se houvesse compromissos. Nem os doadores esperam que as retribuições se explicitem de imediato. Conforme afirmou, com franqueza inusitada, Eduardo Ribeiro Capobianco, presidente do Sindicato da Construção Civil do Estado de São Paulo, as empreiteiras financiam candidatos das mais variadas posições no espectro político na expectativa de que terão alguma vantagem em algum momento. A finalidade é essencialmente prática, nada há aí de gratuito. Empreiteiras, bancos e outras empresas semeiam verde para colher maduro(14).
Espantoso é que Cristovam Buarque, governador petista do Distrito Federal, haja declarado que as doações das empreiteiras não só foram legais, como éticas, dado que se fizeram às claras. Talvez se trate aí da "modernidade ética” pregada pelo professor Buarque como princípio programático para o PT. Felizmente, os militantes petistas de Brasília — aos quais se deve o rumo esquerdizante da campanha vitoriosa na capital da República — rejeitaram a interpretação do governador eleito e repudiaram a aceitação da doação espúria. Também em São Paulo, a revelação sobre as doações financeiras provocou indignação entre os militantes(15).
O episódio deu a medida da permissividade que se alastrou nos círculos dirigentes do PT. Permissividade que justifica meios indiscriminados a fim de atingir o alvo do êxito eleitoral. Daí não só a aceitação de doações de empresas envolvidas na sujeira da corrupção pública, como o pedido de apoio de Fernando Henrique Cardoso feito por Vitor Buaiz, então candidato a governador do Espírito Santo. Buaiz se elegeu, mas sua humilhante subordinação a Fernando Henrique torna extremamente discutível caracterizá-lo como governador de uma legenda de oposição.
O clima de permissividade explica a reação morna e chocha da direção nacional petista diante da defecção de Weffort, que aceitou o cargo de ministro do governo Fernando Henrique Cardoso para depois se desfiliar do partido. Seria de todo condenável apelar a excomunhões de tipo stalinista, mas a troca de camisa por uma personalidade como Weffort não poderia passar sem uma tomada de posição pública da direção petista, em termos claros e enérgicos.
Assim que se configurou a derrota da postulação presidencial, expoentes da direita do PT, apoiados por grandes órgãos da mídia, trataram de jogar sobre a esquerda partidária a responsabilidade pelo insucesso. A manobra se desdobrou na discussão a respeito da carga onerosa que a identificação socialista representava para o PT. Seria urgente que o partido assumisse sua natureza social-democrata. Aí estão, sem dúvida, duas questões que podem definir rumos futuros.
A esquerda fez a maioria da direção nacional do PT, no 82 Encontro Nacional. Ganhou, mas não levou. Em parte, por motivo da heterogeneidade da esquerda, com uma ala importante saída do centro (ou seja, da Articulação) e propensa intermitentemente a s e acomodar aos reclamos centristas. Mas, também, por outra parte, pelas próprias deficiências da esquerda petista mais conseqüente.
Esta utilizou suas posições com timidez, quando se tratou da execução concreta das diretivas aprovadas. No andamento executivo das tarefas, deixou-se submergir pelas correntes centro-direitistas, que souberam explorar suas relações bem mais que cordiais com a mídia, a qual, não por indiferença, seleciona as personalidades a serem prestigiadas. Para a esquerda petista, não seria tão fácil projetar as próprias personalidades, porém cabe discutir se tentou fazê-lo com a audácia possível. Daí a sua sub-representação no cômputo dos candidatos eleitos.
Todavia, cumpre considerar um fator que distorce os resultados das votações nas reuniões plenárias da direção petista. Este fator pode ser chamado de Lista do Lula. Admite-se, por acordo tácito, que Lula tem direito a uma cota pessoal na designação de dirigentes, cota que ele preenche com os nomes de sua lista. Não é de surpreender que o faça em conformidade com sua inclinação direitista. O que impõe um viés à correlação de forças entre as correntes intrapartidárias, em favor da direita.
A esquerda não terá como expressar praticamente seu peso dentro do PT, enquanto não anular o acordo tácito pelo qual a Lista do Lula se faz valer, enquanto o próprio Lula preserva a função também admitida de árbitro na disputa das correntes dentro do partido.
O que aconteceu na composição das direções executivas da campanha eleitoral? A acusação, que responsabiliza a esquerda pela derrota, não passa de matreirice. O centro-direita teve muito maior peso nas direções executivas e deveria assumir a responsabilidade. Ao isentar-se dela e transferi-Ia a quem não cabe, os direitistas do PT imitam a maioria do comitê central do PCB, liderada por Prestes e Giocondo Dias, a qual fez da esquerda minoritária e muito menos influente o bode expiatório do fracasso diante do golpe militar. Tem razão a Força Socialista (tendência partidária interna) quando repele a acusação de que a "esquerda dirigiu a campanha" e afirma que a direção real esteve mais com o candidato (Lula) e com pessoas de sua estrita confiança(16).
Da eliminação de semelhantes praxes partidárias depende a definição do perfil ideológico e político do PT como partido de oposição ao governo Fernando Henrique Cardoso.
Jorge Castaneda escreveu que, na conjuntura atual, a esquerda latino- americana só pode ser reformista, já inteiramente superado o período em que se multiplicaram as iniciativas de luta armada. O sociólogo mexicano multiplicaram as iniciativas de luta armada. O sociólogo mexicano prognosticou que o PT chegará a um ponto em que precisará livrar-se expressamente da vinculação com a meta socialista, à semelhança do que fez o Partido Social Democrata da Alemanha, em 1959, no Congresso de Bad-Godesberg.(17)
O PT nunca professou vinculação ao marxismo. Seria descabida, por conseguinte, a exigência de que proclame oficialmente a eliminação de uma relação inexistente. Diversa é a questão com relação ao socialismo. Em vários documentos, inclusive no Programa de Governo da última campanha eleitoral, o PT se declarou socialista. Se agora se afastasse dessa meta final, recuaria em direção a posições reformistas irremediavelmente atrasadas. Sem chegar a ser um partido reformista sério, o PT se converteria numa organização filantrópica e assistencialista corriqueira. Para ser partido de verdadeira oposição, é preciso que o PT não perca ou não comprometa sua identidade operária e socialista, como tem insistido Florestan Fernandes(18).
Objetarão que o socialismo é hoje algo indefinido e confuso. Sem dúvida, cabe à esquerda mundial avançar no sentido da recuperação do significado do socialismo. Esquivar-se a essa tarefa equivaleria a um compromisso com a perenidade do capitalismo. O PT cairia na vala comum do oportunismo direitista se aceitasse semelhante compromisso.
Como partido socialista é que o PT conseguirá unir numa frente poderosa os trabalhadores explorados e organizados aos trabalhadores excluídos e desorganizados. Ao invés de cair no dilema do suposto antagonismo entre os trabalhadores organizados e desorganizados, conforme propõe Mangabeira Unger(19).
Como partido socialista é que o PT será capaz de resistir ao fascínio da adesão ao governo Fernando Henrique Cardoso e formular um projeto contrário ao Consenso de Washington. Um projeto de exercício do poder em favor de um Brasil democrático e suficientemente forte para resistir às pressões da globalização comandada pelas empresas transnacionais.
Todos precisamos reciclar nossas idéias. O PT e os marxistas. Mas sem perder a fidelidade às origens. O que significa identificação com os trabalhadores— os explorados e os excluídos.
Notas de rodapé:
(1) Samuel P. Huntington. A terceira onda. A democratização no final do século XX. São Paulo, Ática, 1994. (retornar ao texto)
(2) Joseph A. Schumpeter, Capitalismo, socialismo e democracia, Rio de Janeiro, Zahar, 1984, parte IV. (retornar ao texto)
(3) Gilberto Dimenstein e Josias de Souza, A história real. Trama de uma sucessão, 3ª ed., São Paulo, Ática, 1994, pp. 127-8. (retornar ao texto)
(4) Id., ibid., pp. 20-1, 156-60. (retornar ao texto)
(5) José Luís Fiori. "Os moedeiros falsos”. Folha de S.Paulo. de 3.6.1994 (Suplemento Mais!). (retornar ao texto)
(6) Fernando Henrique Cardoso. "Reforma e imaginação", Folha de S.Paulo, de 10.6.1994 (Suplemento Mais!). (retornar ao texto)
(7) Id. Mãos à obra. Brasil. Proposta de governo. Brasília. 5. ed. 1994. (retornar ao texto)
(8) Roberto Mangabeira Unger. ”3 de outubro e o futuro do PT’. Teoria & Debate, São Paulo, n° 26, 1994. (retornar ao texto)
(9) Comissão Nacional de Programa de Governo do PT-94. "Programa de governo. Projeto para discussão", Teoria & Debate, São Paulo, 1994. (retornar ao texto)
(10) Partido dos Trabalhadores. "Uma revolução democrática. Bases do Programa de Governo", Teoria & Debate, São Paulo, 1994. (retornar ao texto)
(11) Id., ibid., pp. 150-4. (retornar ao texto)
(12) Cf. Eduardo Matarazzo Suplicy, João Machado, Luiz Carlos Merege, Odilon Guedes e Paulo Nogueira Batista Jr., Combate à inflação, "Plano Real” e campanha eleitoral, São Paulo, Ed. por Suplicy et al., 1994, pp. 8-9. (retornar ao texto)
(13) Paulo Nogueira Batista Ir., "Contra a inflação, o ataque frontal. Entrevista a Carlos Eduardo Carvalho e Fernando Haddad, Teoria & Debate. nº 23, São Paulo, 1993-94; Carlos Eduardo Carvalho. "O plano corteja, mas o capital hesita". Teoria & Debate, nº 24, São Paulo, 1994; Eduardo Matarazzo Suplicy e Paulo Nogueira Batista Jr., "A campanha de Lula, o PT e o desafio do real" Folha de S.Paulo, de 8.11.1994. Cf. resposta por Guido Mantega e Jorge Eduardo Mattoso, "O PT, o Plano Real e as eleições". Folha de S.Paulo. de 5.12.1994. (retornar ao texto)
(14) Eduardo Ribeiro Capobianco, "Cravo e ferradura ", Folha de S.Paulo, de 2.12.1994. (retornar ao texto)
(15) Cf. Folha de S.Paulo, 29.11.1994, pp. 1-9; Cristovam Buarque, "O caráter da polarização", Teoria & Debate, nO 22, São Paulo, 1993. (retornar ao texto)
(16) Força Socialista (Tendência interna do PT). "Eleições 94: uma avaliação necessária", Boletim 2, São Paulo, 1994, p. 8; Davi Capistrano Filho, "Menos fortuna, mais virtú", BrasilRevolucionário, nº 17, São Paulo, 1994-95; Emir Sader, "Sete teses equivocadas sobre as eleições", ibid. Ver também Roberto Campos, "Palavras contaminadas...", O Estado de S. Paulo, de 27.11.1994; id., "A sorte do presidente", O Estado de S. Paulo, de 4.12.1994. (retornar ao texto)
(17) Jorge G. Castaneda. Utopia desarmada. São Paulo, Companhia das Letras. 1994, p. 133. (retornar ao texto)
(18) Florestan Fernandes, "PT: o efeito positivo de perder", Folha de S.Paulo, de 23.1.1995. Ver também Ivan Valente, "O PT na oposição", O Estado de S. Paulo, de 10.12.1994. (retornar ao texto)
(19) Roberto Mangabeira Unger, op. cit. (retornar ao texto)
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Inclusão | 11/03/2016 |