Contribuição para o Estudo da Questão Agrária

Álvaro Cunhal

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1 - Jardim da Europa à Beira-Mar


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Com 9 milhões de hectares e 9 milhões de habitantes, Portugal é um pequeno país. Mas, na Europa ocidental, a Áustria, a Irlanda, a Dinamarca, a Suíça, a Holanda, a Bélgica e o Luxemburgo têm superfície inferior, não chegando sequer a metade da portuguesa a dos cinco últimos. E, quanto à população, se a Bélgica e a Holanda têm mais, os outros países indicados e ainda a Grécia, a Suécia e a Noruega têm menos. Entretanto, quase todos esses países possuem uma indústria evoluída e uma economia relativamente desafogada, enquanto Portugal é arrumado entre os países pobres, atrasados, de indústria incipiente. A diferença é tanto mais notável quanto é certo que a burguesia portuguesa, ao contrário da burguesia da maior parte destes países, conta, como fonte permanente de riquezas, a exploração dos povos de vastas colónias e núcleos de emigrantes, cujas economias enviadas cada ano correspondem a mais do dobro das receitas com o turismo.

O mais chocante é o atraso da agricultura portuguesa em relação à dos outros países da Europa, muitos deles sofrendo extremos rigores de clima e ocupando vastos territórios incultiváveis. Dir-se-ia que muitas e piores adversidades pesam sobre os Portugueses. Dir-se-ia que os Portugueses vivem no mais desfavorecido canto da Europa e que a pobreza de sua vida e o atraso de sua economia, particularmente da agricultura, são produto directo e inelutável da natural pobreza da sua pátria.

Portugal não seria o cantado "Jardim da Europa à beira-mar", mas terra adversa e de maldição.

A "pobreza natural do País"

Segundo opinião teimosamente defendida, se é grande o atraso económico de Portugal e baixo o nível de vida do povo, se temos uma indústria incipiente e uma agricultura que não basta às necessidades, dever-se-iam tais factos apenas à pobreza dos recursos naturais: pobreza de energia, pobreza de minérios, pobreza do solo agrícola, além da traição de um clima de que se exaltam as delícias para os turistas, mas de que se acusam os desfavores para a agricultura.

Por muito cómoda que seja, tal justificação não é aceitável.

Em primeiro lugar: não se pode falar de "pobreza natural" quando se conhece mal o País, quando estão por fazer prospecções abrangendo todo o subsolo, quando só agora se começa a saber qual o potencial hidroeléctrico dos rios portugueses e quais as áreas susceptíveis de rega, quando uma grande parte da indústria vegeta em oficinas de técnica e equipamento envelhecido e a generalidade da lavoura usa processos rotineiros incapazes de arrancar do solo o que ele pode dar. Se "Portugal, quanto à possibilidade de riqueza é um país desconhecido"(1), como atribuir o atraso económico à "pobreza natural do País"?

Em segundo lugar: o que se conhece chega para dizer que as riquezas potenciais só em mínima parte estão aproveitadas. Qual, por exemplo, a situação em relação à energia e ao ferro, bases fundamentais do desenvolvimento económico geral? Portugal ocupa o último lugar na escala europeia de produção de energia eléctrica, com uma produção anual, em 1950, de 942 milhões de kWh, dos quais 437 milhões de energia hidroeléctrica, correspondendo a uma capitação de 119 kWh por habitante; mesmo que triplicasse a produção até 1960, o que não prevêem os planos mais optimistas, não ganharia um único lugar nessa escala; e, entretanto, corre para o mar, inaproveitada, a água que podia fornecer 10 biliões de kWh(2) – mais de 10 vezes toda a produção nacional (térmica e hidráulica) e 23 vezes a produção hidráulica em 1950. Portugal não produz ferro e aço, mas em Moncorvo e Vila Cova permanecem adormecidos cerca de 500 milhões de toneladas de minério de alto teor e de económica extracção, com que, à média do consumo actual, se poderiam produzir, durante séculos, o ferro e o aço que custam anualmente ao país mais de 500.000 contos. Justificar o atraso econónimo pela pobreza de recursos naturais, quando as riquezas estão assim à vista e inaproveitadas, é fraco modo de justificar a incapacidade do capitalismo e dos seus governos. Em terceiro lugar: contra quantos, segundo o presidente do Conselho, pretendem que não existem incultos e que salvo dunas e serras está aproveitado o que podia sê-lo, uma grande parte do solo nacional, embora de aptidões agrícolas e florestais, está totalmente ao abandono.

"Os incultos do país – escreveu Salazar – sobretudo do Alentejo, já nem sequer existem como imagem literária ou bandeira política. De um modo geral pode-se dizer que está aproveitado o que podia sê-lo, salvo a valorização proveniente de se converter em regadio parte do que é de sequeiro e o aproveitamento a fazer pelos serviços florestais das dunas e das serras."(3).

Será isto assim? Não existirão incultos? Estará aproveitado tudo quanto poderia?

Segundo cálculos dos especialistas, reproduzidos pelas estatísticas oficiais, a superfície "inculta, mas cultivável" subia a 1.191.000 hectares em 1939(4), abrangendo as magras terras dos baldios apenas com aptidão florestal – as tais dunas e serras que se dizia ser tudo quanto resta por aproveitar. Mas, além ainda daquilo a que técnicos e estatísticas chamam superfície "inculta, mas cultivável", há aquilo a que chamam superfície "inculta, mas produtiva", que em 1939 subia a 1.484.000 hectares(5). Este quase milhão e meio de hectares era ocupado por terras incultas, pastagens naturais, terras áridas, etc., que não são de certo aproveitamento ideal, nem produto irremediável da pobreza do solo e de outras condições naturais desfavoráveis, conforme o mostra o facto de a superfície "inculta, mas produtiva" ter passado de 2 milhões de hectares, no princípio do século, para o milhão e meio em 1939. Tais terras são, na generalidade, de aptidão agrícola e até, em muitos casos, susceptíveis de elevadas produções. Mesmo considerando como ganhos para a cultura os 650.000 hectares que as estatísticas indicam como diferença, de 1939 para 1949, da área semeada dos principais produtos, vê-se que ao contrário da opinião de quantos afirmam não existirem incultos e estar aproveitado "o que podia sê-lo", cerca de 2 milhões de hectares de terra, pouco menos de um quarto da superfície total continental, encontra-se por cultivar, embora podendo sê-lo vantajosamente. E, depois, se, ano após ano, se repete que tudo está aproveitado e, ano após ano, aumenta a superfície semeada, não é este o melhor desmentido daquela afirmação?

Em quarto lugar: contra os que acusam a terra de pobre, pedregosa e adversa a culturas essenciais, que acusam os rios, as chuvas e as irregularidades do tempo, e daí concluem serem desfavoráveis à agricultura as condições do solo e do clima –Portugal oferece ricas e variadas aptidões agrícolas, em parte tão inaproveitadas como os jazigos de ferro que dormem nas montanhas ou a energia que se perde na água dos rios. Os cantores da "pobreza natural do País" repisam o que não temos ou o que temos mau, esquecendo o que temos bom, e ainda aquilo que temos mau e podíamos ter bom e aquilo que não temos, mas podíamos ter.

Com 4% de superfície territorial ocupada por vinhas, Portugal é o país do mundo onde estas ocupam proporcionalmente maior área(6), mostrando, assim, merecer bem o título de "país das uvas". Também o merece pela qualidade. Em parte alguma se encontram vinhos melhores do que os portugueses. Não já só esse maravilhoso produto que é o vinho do Porto, arrancado das penedias do Douro, mas os vinhos de pasto, os vinhos comuns. Se se produzem alguns vinhos abastardados e inferiores ninguém se atreverá certamente a atribuir isso à má qualidade do solo nacional e às irregularidades do clima, quando é sabido que tais vinhos saem, sobretudo, dos vinhedos instalados em várzeas férteis, que dão muito, mas vinho fraco, podendo dar óptimos cereais, frutas e diversos produtos hortícolas.

Se as frutas portuguesas são de qualidade e aparência incertas e demasiado variadas e irregulares, não se deve atribuir esse facto à qualidade do solo e à irregularidade do clima, mas antes ao desprezo e barbarismo como são tratadas as árvores frutíferas, ao excesso e dispersão de variedades, à falta de selecção e apuramento, às contiguidades nocivas dentro de cada pomar, tudo isto estimulado pela falta de mercados, que obriga, em muitos casos, rica fruta a apodrecer no chão ou a ser utilizada na alimentação do gado. As condições para a fruticultura são de tal forma favoráveis que, apesar do seu primitivismo e desorientação, é difícil encontrarem-se noutros países frutas mais perfumadas e saborosas. Portugal pode transformar-se num dos mais maravilhosos pomares do Mundo.

Se não temos florestas com madeiras caras para obras de arte, os carvalhais ocupam, entretanto, mais de 100.000 hectares(7), e mais podiam ocupar; os soutos de castanheiros para talhadia são tão viáveis como raros; o pinheiro marítimo, com a sua rica, embora mal cuidada, produção resinosa, que dá anualmente desde o fim da guerra 250.000 contos de produtos exportados, ocupa em Portugal área superior à ocupada em qualquer outro país europeu. Ainda dentro da cultura arbustiva e arbórea do tipo mediterrânico, além dos vinhos, das frutas, dos sobreiros, cite-se a alfarrobeira e anote-se a riqueza dos olivais, ocupando 370.000 hectares e produzindo a média anual de cerca de 650.000 hectolitros de azeite (1940-1949) e a bela azeitona curtida, alimento magnífico e apreciado produto da exportação; e, em parte alguma, medra mais espontaneamente o sobreiro que, com uma produção anual média de cortiça superior a 150.000 toneladas(8), e exportações de cortiça em bruto de valor anual superior a 400.000 contos (1946-1950), tem em Portugal o seu solar.

Se os produtos hortícolas não são apurados na apresentação, isso não se deve a dificuldades naturais, mas aos métodos rudimentares e desconexos da nossa horticultura. Mesmo assim, exportam-se produtos hortícolas, tanto em verde como em conserva e podiam produzir-se e exportar-se quantidades incomparavelmente superiores. A própria batata, em que se mantém o vício da importação (atingindo desde o fim da guerra –1946-1950 – a média anual de 69.000 toneladas no valor de 73.000 contos) tem entre nós condições particularmente favoráveis de cultura. Não são quaisquer insuficiências do solo e do clima que explicam essas importações, como bem sabem os pequenos agricultores, quando em alguns anos vêem as suas colheitas apodrecerem sem mercado ou vendidas de tal forma ao desbarato que aconselham ou obrigam a restringir a sementeira do ano seguinte. Pode produzir-se, imediata e anualmente, sem qualquer dificuldade, o bastante para o consumo nacional, em qualidade e preço, nada invejando a batata estrangeira.

Se o efectivo de gado é reduzidíssimo, se a fome dizima em alguns anos o gado vacum, se se come pouca carne e de má qualidade, se se bebe pouco leite e os lacticínios são produtos de luxo, não se deve isso a condições naturais adversas, mas ao alimentar-se o gado quase exclusivamente nos campos áridos e pastagens naturais, ao se deixar, em muitos casos, apodrecerem-se as palhas, quando com um sistema apropriado de rotações, com erva semeada, com forragens fenadas e ensiladas, se poderia garantir alimento a um efectivo pecuário incomparavelmente superior.

E quantas belas possibilidades não estão completamente desprezadas? O açúcar de beterraba e o algodão só não se produzem porque não se tem querido nem sabido. E se não se produz tabaco, cuja importação tem custado anualmente, desde o o fim da guerra, cerca de 100.000 contos, não é porque o solo e o clima não permitam boas e remuneradoras culturas, conforme já está mostrado pela prática e que só a violenta proibição pôs termo, mas porque por um lado se defende o monopólio de fabrico e por outro a alfândega cobra anualmente mais de 200.000 contos de direitos sobre tabaco importado(9): a preferida riqueza do Estado aumenta neste caso em razão inversa da riqueza do País.

Mesmo em relação aos cereais é difícil concordar com os pregoeiros da "pobreza natural". Na Europa ocidental, Portugal é o país que mais milho produz Por habitante e nenhum o ultrapassa na quota da superfície territorial que lhe é dedicada. E quem se atreve hoje a negar as favoráveis condições para a cultura do arroz, quando em vinte anos quadruplicou a área cultivada e a produção passou de 25.000 toneladas em 1930 para 135.000 em 1950, de forma a poder dizer-se que se "caminha a passos agigantados para a crise por excesso"?(10)

Resta o trigo, além de outros cereais de pragana, sempre apontado como a sombra negra da nossa agricultura. As "oscilações climáticas" dominariam as "variações da produção" e estas "imporiam o suprimento da produção própria" com importações(11). O défice do trigo seria fatalidade imposta pelo clima. Apesar de que, em Portugal, nenhuma outra cultura abrange área superior à semeada de trigo (684.000 hectares em 1950 correspondendo a 11 % da superfície agrícola e a 8 % da superfície total), os especialistas são unânimes em afirmar a existência de condições naturais desfavoráveis. Ao definirem, porém, em que consistem tais condições desfavoráveis, já não há a mesma unanimidade. Segundo uns, o maior prejuízo para a cultura vem da secura em Maio, "período crítico na vida do trigo"(12). Segundo outros, "o que prejudica principalmente a cultura do trigo é o excesso de água, o excesso de chuvas", confirmando o velho provérbio de que "a fome entra em Portugal a nado"(13), e confirmando também o velho adágio popular: "Em Janeiro se subires ao outeiro e vires verdejar, põe-te a chorar, mas se vires terrejar, põe-te a cantar". Isto seria tão verdade que alguns técnicos vão ao ponto de sugerir que a abundância de trigo está em razão inversa da abundância da chuva, argumentando que, de 1915 a 1945 o ano de menor pluviosidade anual – 1935 com 426 milímetros – foi um dos anos de maior colheita de trigo; e o ano de maiores chuvas – 1915 com 898 milímetros – um dos anos de menor colheita(14). Chuva a mais segundo uns, chuva a menos segundo outros – tais são contraditoriamente no parecer dos mais categorizados especialistas as condições desfavoráveis à cultura do trigo em Portugal.

Se não há, porém, acordo quanto aos desfavores da natureza, todos os especialistas estão de acordo em que a fraca produção global do trigo e a sua fraca produção unitária se podem atribuir em grande parte à má selecção e variedades; à falta de gado, ao pouco estrume e poucos adubos; à não existência de rotações convenientes; à débil luta contra as ervas daninhas – ou seja, em suma, ao deficiente esforço do homem na sua luta contra a natureza. É aqui, e não no clima, nas chuvas, no solo, que reside a verdadeira explicação da insuficiência da cultura do trigo.

Vendo a floresta descuidada, quase espontânea, dar ao país algumas das suas maiores riquezas, há naturalmente quem lamente não se passar o mesmo com as culturas agrícolas. Subindo a 400.000 contos o valor anual médio das exportações de cortiça em bruto desde o fim da guerra, a que há a juntar mais 350.000 contos anuais médios de cortiça em obra, seria do gosto de muitos agrários que os grãos de trigo brotassem com a facilidade e a escassez de encargos da casca de sobreiro. Comodamente encostados ao rendimento da cortiça e do gado de manadio e senhores de milhares de hectares de terra, muitos agrários desprezam a cultura dos cereais e, porque esta exige cuidados e emprego de capital que eles não têm ou não querem empregar dessa forma, exploram-nos "extensivamente" ou entregam-nos a pequenos agricultores sem recursos forçados a fazer o mesmo. Em tais condições, como levar a sério que se acuse dramaticamente a natureza de todas as culpas, quando falta habilidade para se dizer de forma airosa que o atraso da agricultura portuguesa é "culpa de todos e de ninguém"?(15)

Ao contrário do pretendido pelas acusações à natureza feitas pelos economistas e técnicos burgueses, vivemos num canto do mundo onde há necessariamente dificuldades para uma ou outra cultura, onde há o óptimo para umas e apenas o regular para outras, mas que, no seu conjunto, apresenta ricas e variadas aptidões agrícolas. E, se não se deve considerar, como fazem almas inocentes, que a natureza "tão pródiga nos é que causamos inveja a todo o mundo"(16), pode bem considerar-se não haver razões para invejarmos os outros, quando temos no nosso país condições naturais que permitem uma agricultura próspera e rica.

As lamentações acerca da "pobreza natural do País" equivalem à ideia de poder o homem estar à espera de que a natureza faça aquilo que só o trabalho pode fazer. Se, por exemplo, há água num lado, terrenos secos noutro e possibilidade de conduzir aquela até estes, mal se compreende a acusação feita à natureza. A seca está suspensa sobre as culturas como a célebre machadinha sobre a cabeça do menino. Ela ameaça de facto. Cabe à diligência do homem que deixe de ameaçar. Aqueles que cruzam os braços, gritando a altos brados que a seca pode matar as culturas, não excedem em valor os que cruzaram os braços diante da machadinha, sem se lembrarem de a tirar de onde estava.

Predominam em todo o sul do Tejo fracas culturas de sequeiro, com longas terras incultas e baixos rendimentos; e, entretanto, só o Tejo, à sua conta, pode fornecer mais de dois biliões de metros cúbicos de água para rega, há possibilidade de produzir energia barata para a sua bombagem, há locais apropriados para o seu armazenamento e, além de 130.000 hectares de terras ricas do Ribatejo susceptíveis de rega fácil e económica e de cerca de 100.000 hectares de terras ricas já apuradas nos distritos de Évora e de Beja, só as áreas do pliocénico, ao sul do Tejo, oferecem, dominados pela cota de 125 metros, 400.000 hectares de terrenos sedentos de água(17).

Além disso, embora o esforço do povo trabalhador para a captação das águas seja uma grande epopeia, há, no conjunto nacional, extensas áreas de sequeiro, para a rega das quais existem abundantes águas subterrâneas. Nas serranias minhotas, as pequenas e rudimentares culturas têm pouca água "por mal aproveitada"(18). Nas serranias transmontanas, citam-se casos em que metade da área em cultura de sequeiro pode "facilmente ser regada" e em que mais de 30% e de 40% da vasta superfície inculta é também aproveitável em cultura de regadio(19). No pliocénico ao sul do Tejo há, "um pouco por toda a parte, uma camada aquífera de pequena profundidade", podem indicar-se, "quase de quilómetro a quilómetro, pontos em que um poço de 6 a 10 metros de profundidade forneceria um caudal apreciável", e pode afirmar-se que "não é por falta de água que o pliocénico tem sido tão abandonado até aqui"(20). Como "abundam brejos não rompidos, pauis, charcos e juncais não enxutos", pode confirmar-se que "a água não falta, o que falta é saber e poder aproveitá-la"(21). Também no Sul, mas fora do pliocénico, numa freguesia em pleno Alentejo, estudada com cuidado, observam-se "lençóis de água subterrânea a pequenas profundidades", mas, dado o pequeno número de poços e o processo de elevar a água a corda e caldeira, a água fica, muitas vezes, "inteiramente desaproveitada"(22). Não é este um caso anormal. Por todo o Alentejo "a constituição geológica permite prever a existência de lençóis subterrâneos em condições favoráveis de utilização"(23) e, se o escoamento de águas é grande, elevada a evaporação e baixa a capacidade de absorção dos solos, isso não se deve à inelutabilidade de condições naturais desfavoráveis, mas à deficiente arborização, ao predomínio de montados de fraca densidade e à pouca matéria orgânica incorporada no solo.

Em 1936, arvorando a "pobreza do País" em mal irremediável, Salazar garantia não irem além de 150.000 hectares "as possibilidades de rega do continente"(24). Todos reconhecem, hoje, ser a área Susceptível de rega incomparavelmente superior. Quatrocentos mil hectares? Quinhentos mil? Cerca de 1 milhão? De qualquer forma, sendo pouco profundos em vastas áreas de sequeiros os lençóis subterrâneos; existindo, como existe, água superficial para rega, sendo muito extensas as terras dominadas por cotas que tornam viável a construção de canais; abundando em potencial na água dos rios a energia para a bombagem; não faltando locais próprios para albufeiras – é evidente não ser pela "pobreza natural do País" que em centenas de milhares de hectares as culturas morrem de sede.

Tanto o problema da rega como o problema mais vasto da luta contra a seca – em que aquele está compreendido – são problemas que, embora resolúveis, a natureza por si jamais resolverá. Enquanto, em vez de construírem o futuro com os braços, os homens esperarem as decisões da natureza, a machadinha continuará permanentemente suspensa e ameaçadora e a seca continuará sendo um "flagelo" resultante da "pobreza natural do País".

Numa vila portuguesa, a alguns quilómetros, existe uma capela. Quando chove de mais, uma procissão leva a santa da capela para a igreja, no meio das preces do povo encharcado; quando a seca é o mal, a procissão faz-se em sentido inverso e os penitentes suam.

Há quatrocentos anos, num auto de Gil Vicente, contava o Brás pastor:

Alia en nuestro lugar,
Si no viene lluvia ni vella,
Toman una como aquella,
Nuestros amos á clamar:
Ora pro nubes, ora pro nubes;
Y las mujeres ansi
La que mas gritillo tiene,
Mas, apesar das réplicas e dos gritos,
la lluvia ni va ni viene(25).

Na história da humanidade, os homens oscilaram sempre entre a timidez diante da natureza poderosa e desconhecida e a audácia na luta contra ela. Do mar, dos ventos, das forças naturais, fizeram deuses omnipotentes. Mas não faltou quem arremessasse setas aos céus de trovoada ou se lançasse às águas tempestuosas a feri-las com as suas armas. O que tornou o homem senhor do mundo não foi a timidez, mas a audácia, não foi o sentimento da sua pequenez, antes a confiança em si próprio.

Só os sistemas decadentes aceitam as dificuldades naturais como fatalidade inelutável, declarando o homem à mercê da natureza e concluindo dever esperar-se que a natureza ofereça, em bandeja, a prosperidade e a abundância. A verdade é recusar sistematicamente a natureza aquilo que está disposta a dar através do trabalho do homem. Como dizia o filósofo, ela é, ao mesmo tempo, "sua mãe comum e sua infatigável inimiga"(26). Receber as dádivas da natureza é arrancá-las pelo trabalho, pela luta contra ela. Aquilo que, em muitos casos, hoje se considera favor da natureza – ricos solos agrícolas, florestas, águas, espécies vegetais e animais úteis ao homem – não é senão o produto do trabalho de gerações atrás de gerações.

Há diferenças, sem dúvida, entre as várias regiões do globo, sendo umas regiões mais acolhedoras e fáceis do que outras. Nesse sentido Portugal não é um país pobre: se, em Portugal, nem tudo são favores da natureza, muitos são esses favores. Estamos tão longe de ter esgotado os recursos naturais que bem pode dizer-se mal termos nós ainda começado a aproveitá-los.

A riqueza de uma nação não está, nem apenas no fundamental, nas "dádivas da natureza", na capacidade e no esforço do homem para arrancar da natureza o que ela por si pode dar, e para forçar a natureza a dar o que espontaneamente jamais daria.


Notas:

(1) Ezequiel de Campos, O Enquadramento Geoeconómico, p. 291. (retornar ao texto)

(2) Onze biliões, segundo Araújo Correia. Parecer sobre as Contas Públicas de 1948, Diário das Sessões, supl. ao n.º 43, de 15 de Abril de 1950, p. 101; cifra corrigida para 10 biliões na edição do mesmo trabalho em Estudos de Economia Aplicada, p, 24. Estes números pecam largamente por defeito. (retornar ao texto)

(3) Discursos, v. 2, p. 158. (retornar ao texto)

(4) Estatística Agrícola, 1949. (5) Ibid., 1949. (retornar ao texto)

(5) Ibid., 1948. (retornar ao texto)

(6) Na Itália, as vinhas ocupam 5,8% da superfície territorial (incluídas as vinhas associadas com outras culturas à razão de 25%) e 3,3% desde que se excluam. (Calculado na base do Yearbook da FAO). Se, para Portugal, fossem incluídas as vinhas de enforcado e parreiras, a percentagem seria também superior a 4%. (retornar ao texto)

(7) M. Azevedo Gomes, Silvicultura, p. 38. (retornar ao texto)

(8) A média nos anos 1946-1949 teria sido, na base de elementos da Estatística Agrícola de 1949, 140 000 toneladas, mas a exportação nos mesmos anos, segundo a estatística do Comercio Externo, subiu a 146.000 toneladas de cortiça em bruto, alem de 23 000 toneladas de cortiça em obra. Isto significa que a produção real é muito superior à declarada. (retornar ao texto)

(9) Araújo Correia, Parecer sobre as Contas Públicas de p. 18. (retornar ao texto)

(10) Bustorff Silva, na Assembleia Nacional, Diário das Sessões de 19 de Janeiro de 1952, p. 230. (retornar ao texto)

(11) Costa Leite, Economia de Guerra, p. 307. (retornar ao texto)

(12) Henrique de Barros, O Problema do Trigo, pp. 34-35. (retornar ao texto)

(13) Almeida Figueiredo, Questões Agrícolas e Agronómicas, 1929, p. 59. (retornar ao texto)

(14) André Navarro, discurso na Assembleia Nacional, Diário das Sessões de 17 de Abril de 1952, p. 707. (retornar ao texto)

(15) Lima Basto, Alguns Aspectos Económicos da Agricultura, p. 129. A mesma ideia e quase as mesmas palavras em Ferreira Dias, Linha de Rumo, p. 153. (retornar ao texto)

(16) A. Tavares da Silva, Bases da Produção Económica de Lacticínios, p. 21. (retornar ao texto)

(17) Araújo Correia, Estudos de Economia Aplicada, p. 110, e Parecer sobre as Contas Públicas de 1948, Diário das Sessões, supl. ao n.º 43, de 15 de Abril de 1950, pp. 121 e 126. (retornar ao texto)

(18) J. C. L, Plano Geral de Aproveitamento dos Baldios Reservadas, v. II, p. 45. (retornar ao texto)

(19) Idem, Ibidem, v. II, pp. 113-114. (retornar ao texto)

(20) Ricardo E. T. Duarte, Possibilidades Aquíferas do Pliocénico ao sul do Tejo, In J. C. I., Problemas de Colonização, v. I, p. 57. (retornar ao texto)

(21) J. R. Vaz Pinto, A Colonização do Pliocénico, Campo Aberto à Iniciativa Particular, In J. C. L, Problemas de Colonização, v. L, p. 78. (retornar ao texto)

(22) Henrique de Barros, Inquérito à Freguesia de Cuba, p. 18. (retornar ao texto)

(23) Araújo Correia, Programa Económico Nacional, em apêndice ao Parecer sobre as Contas Públicas de 1948, Diário das Sessões, supl. ao n.º 43, de 15 de Abril de 1950, p. 109. (retornar ao texto)

(24) Salazar, Discursos, v. II, p. 157. (retornar ao texto)

(25) Gil Vicente, Auto da Fé. (retornar ao texto)

(26) Diderot, Plano de Uma Universidade para o Governo da Rússia. (retornar ao texto)

Inclusão 24/07/2006