A Teoria do Materialismo Histórico
Manual Popular de Sociologia Marxista

N. Bukharin


Introdução - Importância Prática das Ciências Sociais


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§ 1.° A luta de classe e as ciências sociais

Quando os sábios burgueses se referem a uma ciência qualquer, assumem um ar misterioso como se se tratasse duma coisa do céu e não da terra. No entanto qualquer ciência tem a sua origem nas necessidades da sociedade ou das classes que a compõem. Ninguém se põe a contar as moscas que estão sobre uma janela ou os passarinhos na rua. No entanto contam-se, por exemplo, as cabeças de gado. Ninguém precisa dos primeiros enquanto é útil conhecer os segundos. Mas não é suficiente conhecer a natureza de onde tiramos tantas coisas úteis, as matérias primas etc.; é necessário também, do ponto de vista prático, ter noções claras do que seja a sociedade. A classe trabalhadora sente a cada momento, na sua luta, a necessidade desse conhecimento. Para levar avante convenientemente o combate contra as outras classes, ela deve prever a maneira pela qual essas classes vão agir. E, para estar em condições de prever, é preciso conhecer as razões que determinam a ação das diferentes classes, em diferentes situações. Enquanto a classe operaria não conquistar o poder, ela será oprimida pelo capital e obrigada a contar, na sua luta pela emancipação, com as maneiras de agir das outras classes. Esta é a razão porque precisa saber do que depende e como é determinada a conduta dessas classes. Somente as ciências sociais podem resolver este problema. Depois de tomado o poder a classe proletária é obrigada a lutar contra os estados capitalistas dos outros países e contra a contra-revolução, no seu próprio país; e nessa ocasião ela é obrigada a resolver os problemas extremamente difíceis relativos à organização de produção e distribuição. Como estabelecer um plano econômico de trabalho? Como se servir dos intelectuais? Como converter ao comunismo, os camponeses e a pequena-burguesia? Como formar administradores experimentados, saídos da classe proletária? Como se aproximar das grandes camadas que ainda não têm consciência da sua classe?; etc. etc... questões cuja solução exige um conhecimento profundo da sociedade, das classes que a compõem, das particularidades delas e da sua conduta, em determinadas condições. A solução destes problemas exige igualmente o conhecimento da vida econômica e das concepções sociais dos diversos grupos da sociedade. Em resumo ela exige a utilização pratica da ciência social. A tarefa prática da reconstrução social só pode ser realizada com a aplicação de uma política cientifica da classe proletária, isto é, de uma política baseada sobre a teoria cientifica, posta á disposição dos proletários; a teoria fundada por Marx.

§ 2.º A burguesia e as ciências sociais

A burguesia de seu lado criou a sua própria ciência social, partindo das suas próprias necessidades da vida prática.

Como classe dominante ela se vê obrigada a resolver um grande numero de problemas: Como conservar a ordem capitalista? Como assegurar o pretendido "desenvolvimento normal" da sociedade capitalista? Isto é, a usurpação regular do lucro? Como organizar para este fim as instituições econômicas? Qual a política a ser adotada com relação aos outros países? Como garantir a sua dominação sobre a classe proletária? Como resolver as divergências dentro do seu meio? Como preparar os quadros de seus funcionários, de seus policiais, de seus sábios, de seu clero? Como organizar a instrução de maneira a impedir que a classe proletária se torne uma classe de selvagens, que destruam as maquinas, ficando entretanto submissa aos seus exploradores? etc...

Eis a razão porque a burguesia precisa duma ciência social que a ajude a se guiar na complexidade da vida social e que lhe forneça meios para resolver os problemas práticos da existência.

É interessante verificar que os primeiros economistas burgueses ou sábios especializados na economia, foram práticos saídos do alto comercio ou homens ligados ao serviço do Estado. Ricardo, o maior teórico da burguesia, era um banqueiro muito hábil.

§ 3.° O caráter de classe das ciências sociais

Os sábios burgueses se intitulam os representantes da "ciência pura", dizem que as paixões terrestres, o conflito dos interesses, as dificuldades da existência, a procura do lucro, e outras coisas vulgares e inferiores, não têm relação com a sua ciência. Eles consideram as coisas como se o sábio fosse um deus, sentado no cume de uma alta montanha e observando sem paixão a vida social em toda a sua complexidade. Eles pensam (ou antes, eles dizem) que a imunda "prática" não exerce influencia alguma sobre a "teoria" pura.

Está claro, pelo já exposto, que tudo isto é fantasia. Pelo contrario, a ciência nasce da vida prática. Torna-se assim perfeitamente compreensível que as ciências sociais tenham caráter de classe. Cada classe tem uma existência prática que lhe é peculiar; os seus próprios problemas, seus interesses e suas concepções particulares. A burguesia se esforça antes de tudo em conservar, consolidar e tornar universal e eterna a dominação do capital. Quanto à classe proletária, ela se preocupa antes de tudo em destruir o regime capitalista e assegurar a dominação do proletariado, para reorganizar o mundo. Não é difícil compreender que a burguesia tenha uma concepção do mundo, completamente diferente da concepção proletária; que a ciência social da burguesia seja uma, e que a do proletariado seja completamente diversa.

§ 4.º Porque motivo a ciência proletária é superior á ciência burguesa?

Esta é a questão que agora se nos apresenta. Se as ciências sociais têm um caráter de classe, porque motivo é a ciência proletária superior a burguesa? A classe proletária, tanto quanto a burguesia, tem os seus interesses, suas aspirações, e sua própria vida prática. Elas são tão interesseiras uma quanto a outra. O fato de uma classe ser boa, generosa, preocupada com o bem da humanidade, e a outra cúpida, procurando somente o lucro, etc., mudará de alguma maneira a questão?

Uma usa óculos vermelhos, a outra óculos brancos; porque serão os óculos vermelhos superiores aos óculos brancos? Porque motivo será mais fácil observar a realidade através de óculos vermelhos? Por que se enxerga melhor com eles?

Antes de responder a estas questões é necessário refletir alguns instantes.

Vejamos qual é a situação da burguesia. Nós já observamos que antes de tudo ela se interessa em manter a ordem capitalista; no entanto sabemos que nada há de eterno debaixo do sol. Houve uma era de regime escravista e em seguida outra de regime feudal; houve também, e há ainda, um regime capitalista; conheceram-se ainda outras formas de sociedades humanas. Se assim é — e isso é incontestável — pode-se tirar a seguinte conclusão: quem quiser compreender corretamente a vida social, deve compreender antes de mais nada que tudo muda e que uma forma social sucede a outra. Vamos tomar por exemplo um senhor feudal, vivendo antes da libertação dos servos. Era-lhe absolutamente impossível imaginar um regime onde os servos não pudessem ser vendidos ou trocados por cães de caça.

Podia esse senhor feudal compreender as condições reais do desenvolvimento social? Certamente que não. Por que: Pela simples razão dele ter diante dos seus olhos, invés de óculos, espessa faixa. Ele era, portanto, incapaz de enxergar um palmo diante do seu nariz, e não podia, nestas condições, compreender o que se passava na sua frente.

O mesmo exatamente sucede com a burguesia. Sendo interessada em conservar o regime capitalista, ela crê em sua solidez e na sua eternidade. Este é o motivo pelo qual ela não pode observar certas particularidades e fenômenos do desenvolvimento da sociedade capitalista, que indicam sua fragilidade, sua decadência inevitável (ou mesmo sua decadência possível), sua transformação em uma outra ordem social. É no estudo do exemplo da guerra mundial e da Revolução que se pode observar claramente a falta de visão da burguesia. Qual foi entre os sábios burgueses aquele que previu as conseqüências da conflagração mundial? Ninguém. Quem dentre eles previu a vinda da Revolução? Eles não fizeram mais que sustentar os seus governos burgueses e prometer a vitoria aos capitalistas dos seus países. No entanto são fenômenos tais como o empobrecimento resultante da guerra e as Revoluções proletárias, desconhecidas até então, que decidem do futuro da humanidade e modificam o aspecto do mundo. Foi aqui precisamente que a ciência burguesa nada previu.

Os comunistas, pelo contrario, representantes da ciência proletária, previram este fenômeno. Isto se explica pelo fato do proletariado, não sendo interessado na conservação da antiga ordem, poder ver mais longe do que a burguesia.

É fácil compreender agora porque motivo a ciência proletária é superior á ciência burguesa. Ela é superior porque estuda os fenômenos da vida social de uma maneira mais larga e profunda, porque ela tem uma maior visão e observa coisas que a ciência social burguesa é incapaz de enxergar. Compreende-se assim que nós outros, marxistas, temos o direito de considerar a ciência proletária como a verdadeira ciência e exigir que ela seja reconhecida como tal.

§ 5.° As diversas ciências sociais e a sociologia

A sociedade humana é extremamente complexa, e os fenômenos sociais são por sua vez, muito complexos e variados. Temos que tratar dos fenômenos econômicos, do regime econômico, da organização do Estado, da moral, da religião, da ciência, da filosofia, das condições da família etc.... Todos estes fenômenos se acham emaranhados e formam a torrente da vida social. Está claro que é preciso estudar esta vida social, tão complexa, de diferentes pontos de vista, e dividir a ciência em uma série de ciências particulares. Uma estuda a vida econômica da sociedade (a ciência econômica) ou mesmo, as leis gerais do regime capitalista, em particular (a economia política); outra estuda o direito e o Estado e se subdivide por sua vez em vários ramos: uma outra estuda por exemplo os costumes etc...

Em cada um desses domínios a ciência se divide por sua vez em duas classes: umas estudam o que existiu numa certa época e em determinado lugar; estas são as ciências históricas. Tomemos por exemplo as ciências do direito: pode-se estudar e descrever em detalhe as origens do direito e do Estado assim como as suas transformações: isto será a historia do direito. Pode-se também estudar e procurar resolver problemas de ordem geral: o que é o direito, quais são as condições do seu aparecimento e desaparecimento, de que dependem as suas formas, etc...; isto será a teoria do direito. Estas ciências são as ciências teóricas.

Existem entre as ciências sociais dois ramos muito importantes que não estudam só um domínio da vida social, mas sim a vida social em toda a sua complexidade; em outros termos elas não se detêm em observar um só gênero de fenômenos (seja econômico, jurídico, religioso etc), mas eles estudam a vida social no seu conjunto, todas as manifestações dos fenômenos sociais. Estas ciências constituem de um lado a história e do outro a sociologia. Dito isto, é fácil ver o que as diferencia. A historia segue e descreve a corrente da vida social durante um intervalo de tempo e num determinado lugar (por exemplo, a maneira como se desenvolvem a economia, o direito, a moral, a ciência, etc.... na Rússia de 1700 a 1800, ou então na China do ano 2000 antes de Cristo até o ano 1000 depois de Cristo, ou ainda na Alemanha depois da guerra Franco-Alemã, de 1871, ou enfim, em uma outra época num país qualquer, ou numa série de países). Quanto à sociologia, procura resolver problemas de ordem geral: o que é sociedade? Quais são as razões do seu desenvolvimento e de sua decadência? Quais são as relações entre os diversos gêneros de fenômeno sociais (a economia, o direito, a ciência, etc...)? Como explicar o seu desenvolvimento? Quais são as formas históricas da sociedade? Como explicar suas variações? etc. etc... A sociologia é a mais geral e a mais abstrata das ciências sociais.

Ela é apresentada muitas vezes sob outras denominações: "filosofia da história", "teoria do desenvolvimento histórico" etc... vê-se pelo que precede, quais são as relações entre a historia e a sociologia. Explicando as leis gerais da evolução humana, a sociologia serve de método à historia. Se, por exemplo, a sociologia estabelece uma lei geral segundo a qual as formas do Estado depende das formas da economia, um historiador, estudando uma dada época, deve-se esforçar em encontrar a relação e indicar a forma concreta (isto é, correspondente ao momento dado) em que ela se exprime. O historiador fornece os materiais para as conclusões e as generalizações sociológicas, porque essas conclusões não são tomadas arbitrariamente, e sim tiradas de fatores históricos reais.

A sociologia, por sua vez formula um ponto de vista definido, um processo de investigação, ou melhor um método para a historia.

§ 6.° A teoria do materialismo histórico considerada como sociologia marxista

A classe proletária tem sua sociologia própria, conhecida pelo nome de materialismo histórico. Os princípios desta teoria foram estabelecidos por Marx e Engels. Ela é também chamada a concepção materialista da história, ou mais simplesmente o "materialismo econômico". Essa teoria genial constitui o mais preciso instrumento do pensamento e do conhecimento humano. É graças a ela que o proletariado consegue se guiar no meio dos mais complicados problemas da vida social e da luta de classe. É graças a ela que os comunistas previram a guerra e a Revolução, a ditadura do proletariado, e a linha de conduta dos partidos, dos grupos e das diferentes classes, no decorrer da formidável efervescência que a humanidade atravessa. A presente obra é consagrada á exposição e desenvolvimento desta teoria.

Certos camaradas pensam que a teoria do materialismo histórico não pode de maneira alguma ser considerada como uma sociologia marxista e que ela não pode ser exposta de uma maneira sistemática. Acham esses camaradas que ela não é senão um método vivo de conhecimento histórico, que suas verdades não podem ser provadas senão em se tratando de fenômenos concretos e históricos. Junta-se a este argumento que a própria noção de sociologia está muito mal definida: que entende-se por "sociologia", ora a ciência da cultura primitiva e da origem das formas essenciais da comunidade humana (por exemplo, a família), ora considerações extremamente vagas sobre diferentes fenômenos sociais "em geral", ora a comparação arbitraria da sociedade a um organismo (a escola orgânica ou biológica na sociologia). Estes argumentos são falsos. Em primeiro lugar, a confusão que reina no campo burguês não nos deve levar a criar outra entre nós. Que lugar deve portanto ocupar a teoria do materialismo histórico? Não será na economia política nem tão pouco na historia; seu lugar está na ciência geral da sociedade e das leis de sua evolução, isto é, na sociologia. Por outro lado, o fato do materialismo histórico constituir um método para a historia, não diminui de maneira alguma a sua importância como teoria sociológica. Muitas vezes uma ciência mais abstrata fornece um ponto de vista (isto é um método) a uma ciência menos abstrata. Este é o nosso caso, como já vimos acima.


Inclusão 21/05/2011