A Teoria do Materialismo Histórico
Manual Popular de Sociologia Marxista

N. Bukharin


Suplemento: Breves notas sobre o problema da Teoria do Materialismo Histórico


capa

No meu livro «Teoria do Materialismo Histórico», procurei não somente expor de novo o que tinha sido dito antes, mas ainda dar-lhe outras fórmulas e, além disso, precisar e desenvolver os princípios do materialismo histórico, fazer avançar o estudo dos problemas que ele comporta. Como é sabido, Engels dizia, pouco antes de sua morte, que não se tinha dado senão os primeiros passos no domínio do materialismo histórico. Assim, a tarefa imediata que incumbia aos discípulos dos grandes mestres, lhe parecia ser a de trabalhar no desenvolvimento desses problemas teóricos. Porém, tal é a força do conservantismo inerente ao pensamento humano, que muitos são organicamente incapazes de compreender esta tarefa(1). Entretanto, o estudo e a solução destes problemas estão na ordem do dia. A literatura dos nossos adversários tem aumentado formidavelmente. Nós devemos proceder a um contra-ataque, e isto sobre a base ampliada de nossas próprias teses teóricas. Nestas «breves notas» eu tentarei justificar as «inovações» que se encontram em minha obra e que, afirmo, estão inteiramente conformes com «a interpretação a mais ortodoxa, a mais materialista e a mais revolucionária de Marx»(2)

1.º O «Mecânico» e o «Orgânico»

Até os últimos tempos opunham-se estas noções em nosso meio. No domínio das ciências sociológicas, nós, marxistas, protestávamos contra «a explicação mecânica», preferindo falar de laços «orgânicos», etc., se bem que fossemos completamente estranhos aos preconceitos do que se chama a escola orgânica, em sociologia.

Depois, dois fatores decisivos apareceram: em primeiro lugar a falência das concepções sobre a estrutura da matéria; em seguida, o desenvolvimento extraordinário do idealismo na ciência burguesa oficial. A revolução na teoria sobre a estrutura da matéria mudou completamente a concepção do átomo como unidade absolutamente isolada. Ora, é precisamente esta concepção do átomo que se trazia para o indivíduo («átomo» e «indivíduo» se traduzem em russo por uma única e mesma palavra: «indivisível»). As «Robinsonadas» nas ciências sociológicas correspondiam exatamente aos átomos da antiga mecânica. Entretanto, no domínio das ciências sociológicas, tratava-se precisamente de conseguir «Robinsonadas». Era preciso enérgica e resolutamente pôr em primeiro plano o ponto de vista social, o que havia sido feito de maneira genial por Marx, opondo-se às teorias dos individualistas burgueses, compreendendo entre eles os brilhantes «clássicos» da economia política (Smith e Ricardo). Os protestos contra o elemento «mecânico» no domínio das ciências sociológicas eram então justificados? Evidentemente que sim.

Mas é preciso não se limitar a lembrar termos, sem compreender a essência da questão. Agora, o que é justo dialeticamente se transforma em seu contrário. Pois a concepção atual da matéria transtornou as antigas idéias. O átomo isolado e desprovido de qualidade morreu. O elemento do vinculo, da interdependência, da eclosão de qualidades novas, etc., foi restabelecido em todos os seus direitos. Opor o «mecânico» ao «orgânico» é, deste ponto de vista, uma falta de senso.

Por outro lado, a extensão que o idealismo tomou na ciência e na filosofia burguesa conduziu ao misticismo «orgânico. A concepção de «vida» tornou-se mística (Bergson, Drisch e seus compadres). Que se segue daí? Que é preciso, na nossa ideologia, renunciar à antiga oposição entre o mecânico e o orgânico, se quisermos seriamente lutar pela concepção materialista do mundo em geral e pela sociologia materialista em particular.

2.º Dialética e teoria do equilíbrio

Marx, sabe-se, despiu à dialética de seu invólucro místico, expondo a tese segundo a qual a dialética, como categoria do pensamento, é o reflexo da dialética no processo do pensar real, material, pois o «ideal» não é senão o «material» traduzido no cérebro humano numa língua especifica. Entretanto, tenta-se ainda, e de mais em mais frequentemente, destacar o processo pensado do processo material, transformar a dialética em uma construção puramente ideológica, em um método ao qual não corresponde nenhuma realidade. A este respeito, o «austro-marxismo», com o seu teórico Max Adler, é típico. Como combater-se este desvio manifestamente antimaterialista do marxismo? É claro que é preciso pôr em evidencia a raiz material da dialética, isto é, encontrar nas formas da matéria em movimento aquilo ao que «corresponde» a fórmula dialética de Hegel. O choque incessante das forças, a desagregação, o desenvolvimento dos sistemas, a formação de sistemas novos e o seu próprio movimento, em outros termos, a destruição contínua do equilíbrio, o seu restabelecimento sobre uma outra base, restabelecimento seguido de uma nova destruição, e assim por diante, eis o que corresponde de maneira real à tríade de Hegel. Que trás de «novo» esta interpretação? No fundo, nada. Ela porém sublinha o processo material e o movimento da forma material. Em outras palavras, tem-se aqui a dialética do pensamento material, expressa ideologicamente pela tríade hegueliana.

Increpar esta formulação por ser mecânica, é errar, e isto porque não se pode opor a mecânica atual à dialética. Se a mecânica não é dialética, isto é, se o movimento no seu conjunto não é dialético, que fica então da dialética? Ao contrário, o movimento constitui, se assim nos podemos exprimir, a alma material do método dialético e sua base objetiva.

Marx e Engels despiam a dialética de seu invólucro místico na ação, isto é, nela aplicando, de maneira materialista, o método dialético no estudo dos diferentes domínios da natureza e da sociedade. Trata-se agora de fazer uma exposição teórica sistemática deste método e de assentá-lo sobre uma argumentação igualmente teórico sistemática. Chega-se a este resultado precisamente pela teoria do equilíbrio.

Há ainda um argumento, e não dos menores, em favor da teoria do equilíbrio. Esta teoria desembaraça a concepção do mundo de um certo elemento teleológico inevitavelmente ligado à formulação hegueliana, que repousa sobre a evolução imanente do «espírito». Em lugar de evolução, e unicamente de evolução, ela permite ver também os casos de destruição das formas materiais. Por isso mesmo, ela constitui uma formula mais geral das leis que regem os sistemas materiais em movimento, fórmula que é, além disso, expurgada de todo elemento idealista.

3.º Teoria do equilíbrio e forças produtivas

A questão fundamental para a teoria do materialismo histórico é a de saber porque se tomam as forças produtivas como causa final, como causa que tudo explica (em última análise). Sobre este ponto há uma diferença bem marcada entre os marxistas (aí compreendidos os marxistas ortodoxos, os comunistas). Frequentemente conduz-se a questão para a «teoria dos fatores», teoria, manifestamente sem valor, ao mesmo tempo que se substitui a noção das forças produtivas pelas das relações de produção («fator econômico»). Muitas vezes levanta-se a questão do ovo e da galinha do ponto de vista da sua «gênese». A solução que dá o próprio Plekanov (no ponto de vista monista) não é satisfatória. Como ele apresenta a questão? Ele toma a controvérsia entre duas correntes de pensamentos: uma que afirma: «as opiniões regem o mundo» e outra que assevera que «as condições de vida criam o homem». Para empregar a nossa terminologia, diríamos superestruturas e base. A superestrutura influi sobre a base? Sim. A base influi sobre a superestrutura? Sim, igualmente. E Plekanov reconhecia que, posta assim, a questão é insolúvel. Onde está pois a solução? Segundo Plekanov, ela está no fato de que estas duas grandezas que influem uma sobre a outra dependem de uma terceira (as forças produtivas). É isso justamente que resolve todo o problema.

Não é entretanto difícil de ver que, desta maneira, a questão não é senão afastada e não resolvida. Com efeito, a superestrutura e a base influem elas por sua vez sobre as forças produtivas? Sim. E estas sobre aquela? Sim, igualmente. Assim a questão apresenta-se de novo, sobre outra base, e é tudo.

É esta a questão central da sociologia. Pois se a isso não se responde no espírito do monismo metodológico e procura-se entrincheirar-se atrás da «teoria dos fatores», não se tratará mais, como o faz notar com justeza o professor burguês alemão E. Brandenburg:

«senão de uma diferença quantitativa na apreciação das influencias econômicas e espirituais»(3).

Mas então ter-se-á uma teoria que antes de tudo nada absolutamente explica e por conseguinte nada tem de marxista.

O professor Brandenburg inclina-se graciosamente diante desta assim dita teoria marxista. Mas eis aqui o que ele diz da verdadeira concepção materialista da história:

«Ela quer ligar todas as variações da vida em comum dos homens às mudanças que sobrevêm no domínio das forças produtivas; mas ela não pode explicar porque estas últimas devem, elas próprias, mudar constantemente e porque esta mudança deve necessariamente se efetuar na direção do socialismo»(4)

É precisamente esta fórmula do professor Brandenburg que melhor pode nos servir para pôr no justo lugar a nossa própria metodologia na solução do problema sociológico em questão, problema que, eu repito, é capital.

A única resposta justa a esta questão é esta: as forças produtivas determinam a evolução social porque elas exprimem a correlação entre a sociedade, conjunto real determinado, e o seu meio... Ora a correlação entre o meio e o sistema é uma grandeza determinando, em última análise, o movimento de não importa que sistema.

Está aí uma das leis gerais que regem a dialética da forma em movimento. É o quadro no qual se produzem os deslocamentos moleculares das forças e onde se atam, se desatam e se entrecruzam as inúmeras ações, reações e contradições. Que as forças produtivas sofram modificações sob a influência da «base» e das «superestruturas», a constatação dessas influencias não altera em nada este fato fundamental: a correlação entre a sociedade e a natureza, a quantidade de energia material sobre a qual vive e sociedade e que é susceptível de toda a sorte de transformações no processo da vida social, é cada vez uma grandeza determinante.

É assim, e unicamente assim, que pode ser resolvido o problema fundamental da teoria do materialismo histórico.

4.º Relações de produção

Segundo Marx, as relações de produção são a base material da sociedade. Entretanto, entre numerosos grupos marxistas (ou, antes, pseudo-marxistas), existe uma tendência irresistível para «espiritualizar» esta base material. Os progressos da escola e do método psicológicos na sociologia burguesa não podiam deixar de «contaminar» os meios marxistas e semi-marxistas. Este fenômeno caminhava de par com a influência crescente da filosofia acadêmica idealista. Puseram-se a reproduzir em obras inferiores a construção de Marx, introduzindo-lhe sob a sua base material a base psicológica «ideal», a escola austríaca (Böhm-Bawerk), de L. Word e tutti quanti. Presentemente também, a iniciativa parte outra vez do austro-marxismo teoricamente em decadência. Põem-se a tratar da base material no espírito do «Pickwick Club». O econômico, o modo de produção passaram para a categoria inferior de reações psíquicas. O alicerce sólido do material desapareceu do edifício social.

Na literatura russa, esta transformação psicológica do marxismo foi proseguida sistematicamente nas obras de A. Bogdanov. Segundo Bogdanov, a própria técnica não é uma coisa material, mas a habilidade dos homens, a arte de trabalhar com o auxilio de instrumentos determinados, um treino psicológico, por assim dizer.

É evidente que um tal marxismo «psiquizado» afasta-se nitidamente do materialismo sublinhado «con amore» por Marx, em sociologia.

Como pois considerar o caráter material das relações de produção?

Na literatura marxista, não se deu, segundo me parece, resposta precisa a esta questão, e é o que explica em parte que construções «psicológicas», às quais não se pode negar uma certa unidade e uma certa lógica, exercem ainda influência sobre espíritos marxistas(5).

Como resolver este problema? O adversário trás uma série de argumentos sérios. O mais importante é que a concepção das relações entre os homens pressupõe a ação psíquica recíproca destes últimos. O laço de trabalho se torna assim um vinculo de ordem psíquica e como não se pode duvidar que a criação e a manutenção dessas relações constituem um processo psicológico resultante de atos psíquicos objetivando-se sobre o plano social, o caráter social psíquico da «base» se acha por isso mesmo estabelecido.

Eu afirmo que a esta argumentação nada foi oposto em nossos meios. Eis porque eu proponho uma solução nova, materialista, do problema, solução conforme as de Marx. Ei-la:

Como relações de produção, eu entendo a coordenação dos homens (considerados como «máquinas vivas») pelo trabalho no espaço e no tempo. O sistema dessas relações é tão pouco «psíquico» quanto um sistema planetário com o seu sol. A determinação do seu lugar em cada ponto cronológico, eis o que constitui um sistema. Deste ponto de vista, toda atribuição de caráter psíquico desaparece pela base. E o fato de que os elementos psíquicos são um fator intermediário, não destrói nem afeta o encadeamento do nosso argumento: toda superestrutura serve de fator intermediário no processo de reconstituição em comum da vida social.

Eu considero esta solução como a única justa e como a única materialista. Só ela, além disso, permite refutar Adler e seus pares.

5.º Superestrutura e ideologia. Estrutura das superestruturas

A análise destes fenômenos sociais, no seu «corte» estático(6), tem sido extremamente insuficiente.

Daí uma série de mal entendidos, erros, assim como impasses teóricos e explicações falsas ou fictícias. Por exemplo, caía-se sobre um laboratório cientifico, com seus instrumentos de trabalho, suas relações particulares de trabalho, etc.. Concluia-se daí que o trabalho de laboratório (por extensão, todo trabalho cientifico) se refere à produção. Proseguindo mais longe o desenvolvimento desta tese, acabava-se por achar que todo o trabalho socialmente útil é um trabalho produtivo. Resultado: tudo reentrava na «produção», e a teoria marxista se transformava em explicação absurda da parte pelo todo, nada mais do que isso. Ou melhor, não se sabia onde colocar, no esquema arquitetural de Marx, fenômenos tais como uma associação científica, um aparelho burocrático, uma sociedade filosófica, um observatório astronômico.

Eis porque eu propus, em meu livro, separar as noções ideologia e superestrutura, tomando esta última como noção mais larga e mais geral. A ideologia é o sistema de idéias, de sentimentos, de imagens, de normas, etc.. A superestrutura engloba ainda muitas outras coisas. Nas superestruturas é preciso distinguir três esferas principais:

  1. — A técnica da superestrutura, os «instrumentos de trabalho» (utensílios de laboratório nas ciências; casas, canhões, máquinas de calcular, diagramas, etc., no aparelho estático; pincéis, instrumentos de música, etc., na arte, etc.).
  2. — As relações entre os homens (associação científica, organização burocrática, relações das pessoas em um «atelier» artístico, coordenação dos músicos em uma orquestra).
  3. — Os sistemas de idéias, de imagens, de normas, de sentimentos, etc.. (ideologia).

Eu procurei ainda levar esta análise adiante, isto é, esboçar as linhas de um fracionamento e de uma diferenciação ainda maior (notadamente na música). Assim desaparecia uma série de dificuldades, e o método histórico-materialista tornava-se mais exato e mais preciso.

6.º Dependência das superestruturas em relação à base

O ponto de vista acima exposto permite apresentar, de maneira muito mais concreta, a questão da dependência das superestruturas em relação à base e, em seguida, às forças produtivas. O vício fundamental da posição sumaria da questão residia e reside na indeterminação da noção de dependência ou de determinação. Foi o que deu lugar a «desvios» nos meios marxistas e vizinhanças. É bastante citar, entre muitas outras, as obras do camarada Chuliatikov (Justificação do capitalismo na filosofia da Europa Ocidental), ou de Eleutheropulos e outros. Nossos inimigos, em suas críticas, têm, muitas vezes, explorado esta divergência. Entretanto, se se distingue em cada superestrutura os elementos que a constituem, não é difícil demonstrar que ela é: 1.º a dependência concreta desses elementos em relação um ao outro; 2.º sua dependência em relação aos elementos das outras superestruturas; 3.º a dependência destes últimos em relação à base; 4.º a dependência direta destes elementos em relação à base; 5.º sua dependência da técnica, etc.. Por isso mesmo desaparecem todos os «desvios», simplificação, vulgarização, posição sumária da questão. Ao contrário, isso impõe, é verdade, ao investigador a obrigação de «cavar» profundamente a análise da superestrutura que ele estuda, isto é, de se entregar a um trabalho extremamente minucioso. Mas convenhamos que isso não pode constituir um argumento contra as minhas «inovações».

7.º As superestruturas como esferas de trabalho diferenciado

Eu me propus igualmente analisar as superestruturas do ponto desvista do trabalho. Não é sem razão que Marx falava de «produção intelectual» e de «clãs» ideológicos (ideologische Stands). Eu não falarei aqui do valor pratico destas questões, especialmente para a nossa época e para o nosso partido. Eu me limitarei a justificar de maneira puramente teórica este «aspecto» da questão.

Em primeiro lugar, o ponto de vista mencionado acima esclarece maravilhosamente a questão da correlação existente entre a produção material e as produções «intelectuais» e mostra com evidencia o absurdo que há em apresentar a questão em bloco também neste domínio (tudo o que é «útil», é produção). Com uma tal solução da questão, é claro que o trabalho intelectual de alguma forma deriva constantemente, depois se diferencia da produção material; as questões casuísticas sutis concernentes às categorias situadas mesmo nos confins destes domínios, são metodologicamente afastadas, do mesmo modo que as «terríveis» questões concernentes aos agrupamentos sociais intermediários e outras grandezas variáveis.

Em segundo lugar, uma tal maneira de apresentar a questão permite explicar a necessidade da aparição de tal ou qual gênero de trabalho superestrutural, assim como a disposição particular dos diferentes ramos deste trabalho, isto é, suas dimensões relativas numa determinada sociedade. (Antes, parece-me, não se propunham questões como a da proporção entre o trabalho material e o trabalho não material, entre os diferentes gêneros de trabalho «espiritual» e assim por diante. Entretanto, isto é indispensável, para explicar toda uma série de fenômenos essenciais. Compare-se, por exemplo, o valor pratico que tem para nós a questão da produção material e do aparelho administrativo burocrático).

8.º O modo de representação e os princípios formando a vida social

Como teórico, eu julguei dever pôr em primeiro plano a tese de Marx sobre o «modo de representação» (Vortstellimgsweise), tese que todo mundo esqueceu. Não resta dúvida que, em Marx, esta concepção era correlativa à do «modo de produção». Em outros termos, a um modo dado de produção corresponde um modo de representação adequado a este último e determinado por ele. Marx não expôs a questão do modo de representação com uma lógica tão clara e tão precisa como a do modo de produção. Mas, várias notas isoladas (por exemplo, sobre a necessidade de estudar a questão dos «clãs intelectuais», etc..) mostram claramente seu ponto de vista sobre a maneira de colocar estes problemas. Assim se resolve a questão concernente ao «estilo» fundamental único da vida social, da base à cumeeira, assim como o caráter historicamente relativo de todas as ideologias, consideradas não do ponto de vista de seus princípios (que podem ser eternos), mas do ponto de vista dos tipos de ligação existentes entre elas, dos princípios particulares de coordenação que são o índice constitutivo da concepção do «modo de representação».

9.º A fisiologia humana e as leis da evolução social

Eu procurei conduzir para um terreno inteiramente novo os debates intermináveis sobre a correlação das leis da biologia e da sociologia, etc.. Assim, eu considero as particularidades fisiológicas dos agrupamentos humanos, assim como as particularidades psicológicas que lhes correspondem, como a qualificação das forças de trabalho determinadas da sociedade (particularidades psico-fisiológicas do carregador, do músico, do industrial, do comerciante, do espião, do chauffeur, do oficial, etc.). Esta solução do problema não implica de nenhum modo este absurdo desdobramento das «leis» que se encontra a cada instante mesmo nas melhores obras marxistas (de um lado, as leis da biologia, da fisiologia, etc., do outro, as da evolução social). Na realidade, há aí dois aspectos de uma única coisa. Um só e mesmo fenômeno é considerado de diferentes pontos de vista. A estrutura psico-fisiológica do carregador e a qualificação de seu trabalho não são duas grandezas diferentes, mas duas maneiras de considerar uma única e mesma grandeza. É o que aparece com uma clareza particular no estudo do taylorismo, da psicotécnica, etc..

10.º Materialização dos fenômenos sociais

Outra «inovação» minha é a teoria que expus sobre a materialização dos fenômenos sociais, sobre o processo especial de acumulação da cultura, que se produz quando a psicologia e a ideologia sociais se condensam e se cristalizam sob forma de coisas, tendo uma existência social original. Estas psicologia e ideologia sociais materializadas se tornam, por sua vez, o ponto de partida de toda evolução ulterior (livros, bibliotecas, galerias de arte, museus, etc.). Se a materialização dos fenômenos sociais é uma das leis fundamentais do desenvolvimento da sociedade, é claro que é por aí que é preciso começar a análise nos domínios correspondentes (isto é, nas superestruturas). Aqui ainda, o ponto de vista materialista encontra uma nova confirmação(7).

11.º A lei do período de transição e a lei da decadência

Uma das objeções capitais levantadas contra o materialismo histórico, é a da, suposta essência mística, em Marx, das forças produtivas, que devem, não se sabe porque, se desenvolver custe o que custar. É preciso reconhecer que, em suas obras, numerosos marxistas «exigem» este desenvolvimento. Marx, porém, pessoalmente, não está por isso, pois ele tem por muitas vezes assinalado o caso de «destruição das duas classes em luta» e, ao mesmo tempo, de toda a sociedade, portanto de suas forças produtivas. A questão de saber se a sociedade é destinada a se desenvolver ou a perecer, não pode ser resolvida de maneira abstrata nem em um sentido nem em outro. Ela não pode ser solucionada senão sobre uma base concreta.

Do mesmo modo, está demonstrado empiricamente que os períodos de transição, acompanhados de revoluções, estão ligados a uma decadência temporária, mais ou menos prolongada, das forças produtivas.

Por consequência, a fórmula habitual das bases teóricas do materialismo histórico que começa pelas palavras: «O crescimento das forças produtivas», é por demais restrito, pois ela não abrange nem as épocas de decadência, nem os períodos transitórios revolucionários.

Eis porque, ainda aqui, como teórico, eu julguei de meu dever fazer a análise da lei destes fenômenos que têm desempenhado um papel importante. E isto é tanto mais necessário fazê-lo, quanto, sem esta análise, é impossível compreender o período atual. Assim pois caracterizei socialmente com precisão, e nos quadros gerais da teoria, estes períodos como período de regressão das forças produtivas sob a influência das superestruturas, com limitação constante deste fenômeno pelo estado anterior das forças produtivas; em outros termos, caracterizei a lei fundamental destes períodos como o processo temporário da reação das superestruturas (nos casos de período transitório até o momento em que se estabelece um novo equilíbrio social).

Por outra parte, esforcei-me por dar a fórmula das fases necessárias no processo da revolução, apoiando.me em parte, (como na Economia do período de transição) sobre as observações do camarada Kritzman, a quem cabe a prioridade da solução deste problema. Deste modo a teleologia foi expulsa do seu último refugio.

Eu não mencionei aqui senão as minhas principais «inovações». Eu poderia enumerar uma série de outras, notadamente no que concerne à doutrina das classes, às relações entre os chefes e o partido, à doutrina da revolução, etc.. Infelizmente, falta-me o tempo. Eu me desculpo portanto, junto ao leitor, do caráter fragmentário destas «breves notas». Como se pôde ver, os problemas que temos diante de nós são bastante complexos. Na medida de minhas forças, procurei resolve-los. Para todo homem inteligente, e com mais forte razão para todo bolchevique, é claro que a tendência geral das minhas «inovações» está conforme à interpretação ortodoxa, revolucionária e materialista de Marx. Aceitarei com reconhecimento toda observação proveitosa, pois aqui, como em qualquer outro domínio, uma ampla colaboração é indispensável. «Mas, dirá talvez o leitor, como se explica que nenhum dos vossos críticos tenha mesmo mencionado todos esses problemas importantes, fundamentais?»

«Perguntai ao vento nos campos», como dizia Knut Hamsun, em outra circunstância.


Notas de rodapé:

(1) Plekanov escreveu no prefacio à Crítica de nossos críticos: "Os artigos dos senhores subjetivistas e populistas... (narodniki) haviam me convencido de que eles tinham retido as nossas palavras, mas que eles não tinham compreendido as nossas idéias... Para disto convencer os leitores, eu resolvi expor a nossa teoria em outros termos. O que eu esperava produziu-se. Não tendo, apanhado meu pensamento, um de nossos adversários dos mais em evidencia pôs-se a gritar que eu tinha renunciado ao "materialismo econômico"... Que adversários se tivessem assim confundido, eu não lamentarei evidentemente, mas o que é triste, é que alguns dos meus partidários não me tenham compreendido: "visivelmente não tinham eles também retido senão as palavras" (pag. 1, linha 6). Infelizmente, a espécie de partidários de nossas idéias que retêm apenas as palavras ainda não desapareceu, mesmo na Rússia soviética. Mas nós insistiremos nisso em outra parte". (retornar ao texto)

(2) Ver o prefacio deste livro. (retornar ao texto)

(3) — E. Brandenburg, professor na Universidade de Leipzig: Die materialistiche Geschicbtsauffassung; ihr Wesen und ihre Wandlungen ("A concepção materialista da história, seu caráter e suas variações"), 1920. Quelle et Meyer, editores, Leipzig, página 58. (retornar ao texto)

(4) Ibidem. (retornar ao texto)

(5) Conhecendo a ''inteligência" de certos críticos, eu tenho de observar que se trata aqui do plano lógico, que tem evidentemente seu equivalente social e econômico. (retornar ao texto)

(6) Para os críticos "inteligentes" que poderiam clamar, eu direi que a análise das linhas típicas de uma estrutura é precisamente o "corte" estático. Isso não dispensa evidentemente da obrigação de analisar igualmente a estrutura dada, do ponto de vista de seu movimento, isto é, do ponto de vista dinâmico. (retornar ao texto)

(7) Seja dito de passagem, de que inteligência dão prova aqueles de meus críticos que me acusam de "tendências" inteiramente opostas! (retornar ao texto)

Inclusão 07/08/2011