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Primeira Edição: Rassegna Comunista, no 2, April 15, 1921
Tradução: Proelium Finale a partir da versão em inglês disponivel no MIA e formatado com base na versão em Italiano encontrado no quinterna.
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
As Teses sobre o Papel do Partido Comunista na Revolução Proletária aprovadas pelo Segundo Congresso da Internacional Comunista estão genuína e profundamente enraizadas na doutrina marxista. Estas teses tomam a definição das relações entre partido e classe como um ponto de partida e estabelecem que o partido da classe pode incluir em suas fileiras apenas uma parte da própria classe, nunca toda nem talvez a maioria dela.
Esta verdade óbvia teria sido mais bem enfatizada se tivesse sido destacado que não se pode sequer falar de uma classe caso não tenha surgido uma minoria desta classe que tende a se organizar em partido político.
O que de fato é uma classe social segundo nosso método crítico? Podemos reconhecê-la por meio de uma constatação externa puramente objetiva das condições sociais e econômicas de um maior número de indivíduos, e de suas posições análogas em relação ao processo produtivo? Isso não seria suficiente. Nosso método não equivale a uma mera descrição da estrutura social como ela existe em dado momento, nem traça uma linha abstrata dividindo todos os indivíduos compondo a sociedade em dois grupos, como é feito na classificação escolástica dos naturalistas. A crítica marxista vê a sociedade humana em seu movimento, em seu desenvolvimento no tempo; ela utiliza um critério fundamentalmente histórico e dialético, isso é, estuda a conexão dos eventos em sua influência recíproca.
Ao invés de tirar uma fotografia instantânea da sociedade em um dado momento (como o velho método metafísico) e então estuda-la para distinguir as diferentes categorias nas quais os indivíduos que a compõem devem ser classificados, o método dialético vê a história como o desenrolar das sucessivas cenas de um filme; deve-se procurar e distinguir a classe em suas características marcantes deste movimento. Se usássemos o primeiro método, seríamos alvo de milhares de objeções de estatísticos e demógrafos puros (pessoas míopes) que reexaminariam nossas divisões e comentariam que não há duas classes, nem três ou quatro, mas que pode haver dez, cem, ou até mil classes separadas por gradações sucessivas e zonas de transição indefiníveis. Com o segundo método, no entanto, utilizamos critérios bastante diferentes para distinguir o protagonista da tragédia histórica, a classe, e para definir suas características, suas ações e seus objetivos, que se concretizam em características obviamente uniformes em meio a uma grande variedade de fatos dinâmicos; enquanto isso, o pobre fotógrafo de estatísticas apenas as registra como uma série de dados sem vida.
Portanto, para afirmar que uma classe existe e age em um dado momento da história, não é suficiente saber, por exemplo, quantos comerciantes havia em Paris sob Luís XIV, ou o número de senhorios ingleses no século XVIII, ou o número de trabalhadores na indústria manufatureira belga no início do século XIX. Ao contrário, temos que submetes um período histórico inteiro a nossas investigações lógicas; teremos que decifrar um movimento social e, portanto político, que busca seu caminho em meio aos altos e baixos, os erros e sucessos, ao mesmo tempo em que obviamente aderindo ao conjunto de interesses de uma camada de pessoas que foram colocadas em uma situação particular pelo modo de produção e por seus desenvolvimentos.
É este método de análise que Friedrich Engels usou em um de seus primeiros ensaios clássicos, onde elaborou a explicação de uma série de movimentos políticos da história da classe trabalhadora inglesa, e assim demonstrou a existência de uma luta de classes.
Este conceito dialético de classe permite que superemos as pálidas objeções dos estatísticos. Ele não tem mais o direito de ver as classes opostas como sendo claramente divididas na cena da história como são divididos os diferentes grupos corais em uma cena de teatro. Ele não pode refutar nossas conclusões ao argumentar que na zona de contato há camadas em que há uma osmose dos indivíduos, pois este fato não altera a fisionomia histórica das classes confrontando uma a outra.
Portanto, o conceito de classe não nos deve ser sugerido em uma imagem estática, mas de forma dinâmica. Quando detectamos uma tendência social, ou um movimento orientado a dado fim, então podemos reconhecer a existência de uma classe no sentido verdadeiro da palavra. Mas então o partido da classe existe de maneira real, se ainda não de maneira formal.
Um partido vive quando há uma doutrina e um método de ação. Um partido é uma escola de pensamento político e consequentemente uma organização de luta. A primeira característica é um fato da consciência, o segundo é um fato da vontade, ou mais precisamente de uma luta em direção a um objetivo final.
Sem essas duas características, ainda não temos uma definição de classe. Como já dissemos, aquele que registra dados friamente pode encontrar afinidades nas condições de vida de camadas maiores ou menores, mas nenhuma marca é gravada no desenvolvimento da história.
É apenas dentro do partido de classe que podemos encontrar essas duas características condensadas e concretizadas. A classe se forma quando certas condições e relações suscitadas de novos sistemas de produção se desenvolvem – por exemplo, a constituição de grandes fábricas contratando e treinando uma grande força de trabalho; do mesmo modo, os interesses de tal coletividade começam gradualmente a se materializar em uma consciência mais rigorosa, que começa a tomar forma em pequenos grupos desta coletividade. Quando a massa é empurrada à ação, apenas estes primeiros grupos podem prever um fim, e são eles que apoiam e lideram os restantes.
Ao se referir à moderna classe proletária, devemos conceber este processo não em relação a uma categoria profissional, mas à classe como um todo. Pode-se então perceber como uma consciência mais rigorosa da identidade de interesses gradualmente aparece; essa consciência, no entanto, resulta de tal complexidade de experiências e ideias, que pode ser encontrada apenas em grupos limitados compostos de elementos selecionados de todas as categorias. De fato, apenas uma minoria avançada pode ter a visão clara de uma ação coletiva que é direcionada a fins gerais que concernem toda a classe e que tem em seu núcleo o projeto de mudar todo o regime social. Esses grupos, essas minorias, não são nada mais que o partido. Quando sua formação (que, é claro, nunca avança sem prisões, crises e conflitos internos) atingiu certo estágio, então podemos dizer que temos uma classe em ação. Embora o partido inclua apenas uma parte da classe, apenas ela pode dar à classe sua unidade de ação e movimento, pois amalgama esses elementos, além dos limites de categorias e localidades, que são sensíveis à classe e a representam.
Isto esclarece o significado desse fato básico: o partido é apenas uma parte da classe. Aquele que considera uma imagem estática e abstrata da sociedade, e vê a classe como uma zona com um pequeno núcleo, o partido, dentro dela, pode facilmente ser levado à seguinte conclusão: uma vez que a seção inteira da classe que está fora do partido é quase sempre a maioria, ela pode ter um peso e um direito maior. No entanto, se for apenas lembrado que os indivíduos naquela grande massa remanescente não têm consciência de classe nem vontade de classe ainda e viverão para seus fins egoístas, ou para seu sindicato, sua vila, sua nação, perceber-se-á então que para assegurar a ação da classe como um todo no movimento histórico, é necessário ter um órgão que inspira, une e a encabeça – em resumo, que a dirige; será então percebido que o partido realmente é o núcleo sem o qual não haveria razão para considerar toda a massa remanescente como uma mobilização de forças.
A classe pressupõe o partido, porque para existir e agir na história ela deve possuir uma doutrina crítica da história e um objetivo para conquistar nela.
Na única verdadeira concepção revolucionária, a direção da ação da classe é delegada ao Partido. Esta análise doutrinal, juntamente com uma série de experiências históricas, nos permite afirmar facilmente que qualquer tendência que negue a necessidade e a predominância desta função do partido é nada mais do que ideologias contrarrevolucionárias e próprias da pequena burguesia.
Se essa negação se baseia em um ponto de vista democrático, ela deve ser submetida à mesma crítica que o marxismo usa para refutar os teoremas favoritos do liberalismo burguês.
Basta lembrar que, se a consciência dos homens é o resultado e não a causa das características de seus arredores em que são obrigados a viver e a agir, então nunca, enquanto regra, os explorados, os famintos e os subnutridos poderão se convencer da necessidade de derrubar o explorador, saciado, bem-alimentado e carregado de todos os recursos e capacidades.
Este evento só poderia ser uma exceção. A democracia eleitoral burguesa busca a consulta das massas, pois sabe que a resposta da maioria sempre será favorável à classe privilegiada e prontamente delegará a essa classe o direito de governar e perpetuar a exploração.
Não é a adição ou subtração da pequena minoria dos eleitores burgueses que irá alterar esta relação. A burguesia governa com a maioria, não só de todos os cidadãos, mas também dos trabalhadores enquanto indivíduos.
Portanto, se o partido convocou toda a massa proletária para julgar as ações e iniciativas das quais o partido sozinho tem a responsabilidade, ela se unirá a um veredicto que quase certamente seria favorável à burguesia.
Esse veredito sempre seria menos iluminado, menos avançado, menos revolucionário e, acima de tudo, menos ditado pela consciência do interesse realmente coletivo dos trabalhadores e do resultado final da luta revolucionária do que o conselho vindo das fileiras dos membros do partido.
O conceito de direito do proletariado para comandar sua própria ação coletiva é apenas uma abstração desprovida de qualquer sentido marxista. Ele esconde o desejo de levar o partido revolucionário a se ampliar, incluindo caminhos menos maduros, uma vez que, progressivamente, as decisões resultantes se aproximam e se aproximam das concepções burguesas e conservadoras. Se buscássemos evidência não só através de indagação teórica, mas também nas experiências que a história nos deu, nossa colheita seria abundante.
Lembremo-nos de que é um clichê burguês típico opor o bom “senso comum” das massas ao “mal” de uma “minoria de agitadores” e fingir ser mais favorável para os interesses dos explorados. As correntes de direita do movimento dos trabalhadores, a escola social democrática, cujos princípios reacionários foram claramente demonstrados pela história, opõem constantemente as massas ao partido e pretendem encontrar a vontade da classe consultando-a em uma escala além das limitações do partido. Quando estes não podem expandir o seu partido além de todos os limites da doutrina e da disciplina em ação, eles tentam estabelecer que seus membros ativos em seus principais órgãos não devem ser designados por um número limitado de membros militantes, mas devem ser aqueles que foram nomeados para funções parlamentares por um corpo maior - na verdade, os grupos parlamentares sempre pertencem à extrema direita dos partidos de onde eles vêm.
A degeneração dos partidos socialdemocratas da Segunda Internacional e estes terem aparentemente se tornado menos revolucionários do que as massas não organizadas se deve à perda gradual de seu caráter de partido específico precisamente através de práticas operaístas e “laboristas”.(1) Ou seja, eles não atuaram mais como a vanguarda a frente da classe, mas como sua expressão mecânica em um sistema eleitoral e corporativo, onde é dada igual importância e influência aos estratos que são os menos conscientes e os mais dependentes de reivindicações egoístas do proletário enquanto classe em si. Como reação a esta epidemia, mesmo antes da guerra, desenvolveu-se uma tendência, particularmente na Itália, defendendo a disciplina interna do partido, rejeitando novos recrutas que ainda não estão convictos de nossa doutrina revolucionária, opondo-se à autonomia de grupos parlamentares e órgãos locais, e recomendando que o partido elimine seus elementos falsários. Este método provou ser o antídoto real para o reformismo e constitui a base da doutrina e prática da Terceira Internacional, que coloca a importância primária no papel do partido – que é um partido centralizado e disciplinado com uma orientação clara sobre os problemas de princípios e táticas. A mesma Terceira Internacional julgou que o “colapso dos partidos socialdemocratas da Segunda Internacional não significava de modo algum o colapso dos partidos proletários em geral”, mas, se nos é permitido falar, foi o fracasso dos organismos que esqueceram que eram partidos porque deixaram de ser.
Existe também uma categoria distinta de objeção à concepção comunista do papel do partido. Estas objeções estão ligadas a outra forma de reação tática e crítica à degeneração reformista: elas pertencem à escola sindicalista, que enxerga a expressão da classe nos sindicatos e finge que esses órgãos são os órgãos capazes de liderar a classe em uma revolução.
Seguindo o exemplo do Sindicalismo Francês, Italiano e Americano, essas objeções aparentemente de esquerda encontraram novas formulações nas margens da Terceira Internacional. Podemos resumir tais tendências a ideologias semiburguesas por meio de uma crítica a seus princípios e o reconhecimento de seus resultados históricos.
Essas tendências enxergam nos sindicatos profissionais que surgem antes da organização política do partido um aspecto certamente característico e importante dessas organizações, a capacidade de agrupar quantidades maiores da massa e dessa forma corresponderem mais precisamente à totalidade da classe trabalhadora. No entanto, partindo do abstrato, tal critério revela um respeito inconsciente à mentira democrática de que a burguesia faz uso para assegurar o seu poder, convidando a maioria do povo para a escolha de seu governo. Em outro ponto de vista teórico, tais métodos também se alinham a concepções burguesas quando confiam aos sindicatos à organização da nova sociedade e exigem a autonomia e descentralização na produção, da mesma forma que economistas reacionários o fazem. Entretanto, nosso propósito aqui não é desenvolver uma análise crítica completa das doutrinas sindicalistas. É suficiente pontuar que, considerando os resultados da experiência histórica, a extrema direita do movimento sempre defendeu a perspectiva de que a representação da classe trabalhadora deve se dar por meio dos sindicatos; isto é feito conscientemente com a intenção de enfraquecer e diminuir o caráter do movimento como já demostrado pelas simples razões já pontuadas. Hoje a burguesia se mostra simpática e a favor da sindicalização da classe, o que não é de forma alguma ilógico. De fato, os setores mais inteligentes da burguesia hoje aceitariam com prazer uma reforma do Estado e seu aparato representativo que abrisse espaço para os sindicatos “apolíticos” e até mesmo para sua exigência de controle sobre o sistema produtivo. A burguesia sente que enquanto a ação do proletariado puder ser limitada às exigências econômicas imediatas de cada setor, pode se manter o status-quo e evitar a formação de uma consciência “política” perigosa – isto é, a única consciência que é revolucionária, pois mira na vulnerabilidade do inimigo, a detenção do poder.
Contudo, sindicalistas de ontem e hoje sempre tiveram consciência de que os sindicatos são controlados por elementos da direita e que a ditadura das lideranças pequeno-burguesas sobre a massa tem sua base mais na burocracia sindical do que nos mecanismos eleitorais dos pseudopartidos socialdemocratas. Assim, os sindicalistas, junto com outros elementos muito numerosos que estavam apenas reagindo à prática reformista, se dedicaram ao estudo de novas formas de organização sindical e criaram novos sindicatos, independentes dos tradicionais. Tal esforço era teoricamente incorreto, pois não foi além do critério fundamental da organização econômica, o de acolher automaticamente membros por sua participação na produção, sem exigir convicções políticas ou compromissos especiais em ações que pudessem exigir até mesmo o autossacrifício. Além disso, ao se buscar “produtores” não era possível ir além da “categoria”, enquanto o partido da classe, ao considerar o “proletário” em sua grande diversidade de condições e atividades, é capaz de acordar, sozinho, o espirito revolucionário da classe. Portanto, aquela solução que estava teoricamente incorreta também se provou insuficiente na realidade.
Entretanto, ainda se busca remédios similares. Uma interpretação bastante equivocada do determinismo marxista e uma concepção limitada do papel que ele desempenha na formação das forças revolucionárias sob a influência de fatores econômicos, da consciência e da vontade, leva um grande número de pessoas a buscar um sistema “mecânico” de organização, que poderia organizar quase que automaticamente as massas a partir da participação de cada individuo na produção. De acordo com estas ilusões, tal mecanismo sozinho seria o bastante para alavancar a massa à revolução com o máximo de eficiência revolucionária. É assim que ressurge tal solução ilusória, solução que consiste em pensar que a satisfação cotidiana dos estímulos econômicos pode ser conciliada com o resultado final de derrubada do sistema social, resolvendo com uma fórmula organizacional a velha antítese entre as conquistas limitadas e graduais e a realização do programa máximo revolucionário. Porém – justamente como foi dito por uma das resoluções da maioria do Partido Comunista Alemão na época em que estes debates (que levaram a uma secessão do KAPD) estavam particularmente vivos – a revolução não é uma questão de forma organizacional.
A revolução requer uma organização de forças ativas e positivas unidas por uma doutrina e objetivo final. Uma importante camada e indivíduos inumeráveis se mantiveram fora desta organização, mesmo quando pertencem materialmente à classe que verá seus interesses triunfantes na revolução. Mas a classe vive, luta e progride graças às forças que nasceram de seu seio nas dificuldades da história. A classe surge de uma homogeneidade imediata de condições econômicas que aparece para nós como o motor principal que motiva a tendência a destruir e superar o modo atual de produção. Para assumir tal tarefa, no entanto, a classe precisa ter o seu próprio pensamento, o seu próprio método crítico, sua própria vontade moldada nos objetivos claros definidos por crítica e pesquisa e sua principal organização de luta canalizando e utilizando com máxima eficácia os seus sacrifícios e esforços coletivos. Tudo isto constitui o partido.
Notas de rodapé:
(1) Bordiga utiliza “operaistas”, porém não em referência ao operaísmo, movimento marxista heterodoxo, que só surge nos anos 1950. (Nota do tradutor) (retornar ao texto)