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No século XII, antes de Jesus Cristo, os hebreus, hordas nômades que viviam nos desertos do norte da Arabia e da parte orientai do Egito, penetraram no país de Canaã. Organizados em famílias e em tribos, de acordo com o parentesco, vieram, sob a direção dos chefes, para conquistar novos territórios e neles se instalarem.
Os hebreus eram homens teimosos, irritáveis. Os perigos da vida do deserto haviam criado neles certa capacidade para a luta. Viviam, além disso, fortemente unidos pela disciplina tradicional das tribos. Eis porque conseguiram, depois de muitas lutas, vencer a resistência dos habitantes de Canaã, que lhes eram em muito superiores no que concerne à cultura, e apoderar-se do País. Os bárbaros vitoriosos repartiam o território conquistado entre as tribos e as famílias. A propriedade privada do solo era ainda absolutamente desconhecida os hebreus. As tribos consideravam os territórios conquistados como propriedade coletiva, e as famílias, por sua vez, consideravam as terras que ocupavam como propriedade da tribo. Não há mesmo, em hebreu, uma palavra para designar a propriedade. Existe apenas a palavra nachlah, que quer dizer “parte hereditária”. A propriedade, em hebreu, chama-se baal, palavra que também significa o senhor, o marido ou o criador.
As famílias hebraicas habituaram-se a considerar a propriedade imobiliária como ilimitada. Dela dispunham livremente. Isto acontece talvez em virtude da posse ininterrupta e da exploração e do aproveitamento individuais das terras. É possível que a cultura dos habitantes de Canaã também incluísse nesse sentido. Mas, através de vendas e hipotecas, a igualdade econômica progressivamente desaparece. A antiga sociedade una divide-se em classes.
O deus supremo dos hebreus, na ocasião em que invadem o país de Canaã, era Jahvé ou Jeová, deus do deserto, do calor tórrido, do fogo ardente e das tempestades. Nas lutas com os demais povos, Jahvé aparece como um herói guerreiro. Na vida interna dos hebreus seu deus é um protetor da coesão das tribos, um legislador que exige uma vida ordenada e pura.
Para os hebreus, Jahvé encarna as propriedade físicas do deserto, assim como as condições sociais, econômicas e normais das hordas nômades. Os sacrifícios que lhe oferecem são bem pobres: um pouco de farinha, um asno ou coisas equivalentes. Os nômades do deserto não podiam oferecer nada melhor a deus. Apesar da indigência e da sua especie de vida, tal era o deus que os hebreus adoravam e temiam. Criaram-no à imagem do seu meio físico e organização social.
Baal, deus de Canaã, era um deus diferente. Da mesma forma que Dionísio, o Baco dos gregos, Baal era o símbolo religioso de uma natureza pujante, o deus de um país onde havia leite e mel, azeite e vinho, em abundância. Era quem dava vida e fertilizava os homens, os animais e as plantas. Este deus encerrava em si todo o mistério da criação. As colinas sagradas, os altares, eram locais onde os homens se entregavam a orgias violentas, dando plena expansão aos instintos físicos. Os sacrifícios ao deus Baal eram festas voluptuosas, onde predominava a luxuria. Os bosques sagrados eram os sítios propícios aos abraços ardentes... Aos olhos dos profetas, o culto a Baal não era mais que um pretexto para os homens darem livre expansão à luxuria, copulando abundantemente. Do ponto de vista social, Canaã encontrava-se há muito tempo em uma etapa superior ao estado de organização em tribos. Já estava dividida em cidades, onde existiam o comércio e a indústria, e onde tudo já havia sido transformado em propriedade privada.
Transportados para um novo meio, os hebreus (ou israelitas) basearam a sua sociedade nos trabalhos agrícolas, caindo, dentro em pouco, sob a influencia da civilização dos habitantes de Canaã. A vida religiosa dos nômades não satisfazia às novas necessidades da vida rural. Jahvé não era um deus capaz de fertilizar os campos, os vinhedos, as oliveiras, nem de proporcionar abundantes colheitas. Não possuía nenhuma dessas qualidades, porque era apenas um deus do deserto. A nova organização social não se podia mais conservar na observância das leis de Jahvé. Como sempre, a vida mostrou-se mais forte que a ideia. Jahvé foi sendo pouco a pouco deformado, modificado, adquirindo as qualidades de Baal. O culto de Jahvé foi-se tornando cada vez mais semelhante ao cudo de Baal. Os hebreus, direta ou indiretamente, abandonaram o deus tradicional e aderiram à religião de Baal. Do século IX em diante, a sociedade fica entregue a uma profunda crise religiosa, que revoluciona todos os costumes e princípios morais do povo hebreu.
Surge um violento conflito entre os partidários de Jahvé e os de Baal. Os profetas, com trajes de beduínos, do deserto, colocam-se à frente dos partidários de Jahvé. Os primeiros profetas foram Elias e Eliseu, que se conservavam ainda fortemente influenciados pela religião tradicional. Surgem, depois, pregadores de maior envergadura, tais como Amos, Isaías, Jeremias, que dirigem a luta de classe dos deserdados, exigindo, pura e simplesmente, a justiça social. Estes profetas consideravam Jahvé o deus do Universo, o juiz do mundo, e lutavam contra as novas concepções da divindade. Realmente. O desenvolvimento econômico de Israel e a consequente divisão da sociedade em classes, agravaram a crise, no decorrer da qual a noção de Jahvé, adquiriu novas significações, que implicavam uma verdadeira revolução no domínio religioso.
A transformação do primitivo estado de coisas foi ainda precipitada pelas guerras, nas quais os hebreus lutaram, ora para defender o país, ora para dilatar seus territórios. Estas guerras originaram entre as tribos de agricultores o desejo da organização de um governo central. Os agricultores começaram a exigir a eleição de um rei capaz de defender-lhes as fronteiras dos ataques inimigos e de combater, em guerras, pelos seus interesses em face dos povos vizinhos. Até então, as tribos de Israel haviam sustentado uma luta desesperada pela vida. Daí por diante, conquistaram uma posição que já impõe respeito aos povos limítrofes. Não as atacam mais. Durante muito tempo o povo de Israel consegue viver tranquilo. Grandes reservas de metais preciosos foram acumuladas. A agricultura desenvolveu-se. Os israelitas, após o esmagamento dos habitantes de Canaã, tornaram-se os senhores de todos os caminhos, através dos quais chegaram até a costa. Desse modo, entraram em relações comerciais com os industriais navegantes fenícios; O reinado foi para o comércio um poderoso protetor. As sangrentas guerras com Edom, nos séculos IX e VIII, foram guerras essencialmente comerciais. Os negociantes desejavam conquistar Elat, porto do mar Vermelho, para poderem importar o ouro de Ofir e as especiarias da Índia. Os reis Josafat, Joram, Amasias, Osias lutaram pela posse do golfo de Akaba. Mais tarde, os judeus foram expulsos do porto de Elat pelo rei sírio Rezin. A tribo de Zabulon instalou-se também em toda a costa, nos arredores de Sidon.
Israel atinge ao nível comercial e agrícola em que se encontravam os habitantes de Canaã, antes da invasão judaica.
O povo adere ao culto de Baal, e dança ao redor do veado de ouro.
Os tempos em que Israel vivia em paz e liberdade, sob os vinhedos e as oliveiras, desaparecem para sempre. A desigualdade econômica aumenta sem cessar, trazendo consigo o recrudescimento dos conflitos entre as classes adversarias: ricos e pobres, classes proprietárias e classes exploradas, opressores e oprimidos. Os proprietários adoravam Baal, o deus da fecundidade, da alegria e do lucro. Os pobres continuavam fiéis a Jahvé, em quem viam o deus da coesão da tribo, o deus da comunidade, da bondade e da misericórdia.
“Ah! Como Israel era linda, quando as suas tribos acampavam no deserto! E as tendas, como eram belas! Nesse tempo, Israel amava Jahvé e era amada por ele!”
O período de vida nômade e a velha organização em tribos aparecem, aos olhos dos deserdados, como uma Idade de Ouro.
“Como são doces as palavras dos profetas, geralmente tão ríspidos e intolerantes, quando se referem à juventude de Israel!”
Vê-se, pois, que a rivalidade entre Jahvé e Baal era apenas um reflexo, no domínio religioso, da luta de classes que aparece com a transformação econômica do país.
Os deserdados, no meio da sua miséria, levantam os olhos para Jahvé e os profetas:
“O meu marido, teu escravo — lamenta-se uma mulher aos pés do profeta Eliseu — morreu há pouco. Como tu sabes, ele adorava a Jahvé. E agora chegam os credores que querem levar meus dois filhinhos como escravos”.
O capital semita, no país de Canaã, portava-se com tanta crueldade como o capital ariano na Grécia ou em Roma. A palavra hebraica nechech, que significa textualmente cão danado, e que era o termo empregado para designar a usura, mostra como os usurários eram odiados pelos israelitas pobres. A nova economia monetária e o desenvolvimento da propriedade privada determinaram a decomposição do antigo regime e dos antigos costumes, dividindo a sociedade em dois campos hostis: de um lado, os ricos, vivendo entre a maior abundancia e, do outro, os pobres, entregues à miséria e à opressão.
A consequência lógica desse estado de coisas foi o desencadeamento de encarniçadas lutas de classe. Mas os conflitos entre as classes, cada vez mais violentos, não se manifestaram por carnificinas ou levantes, como na Grécia ou em Roma, onde abalaram a vida social até os alicerces. Em Israel, surgem sob o aspecto de uma fermentação religiosa e social. Os profetas, abnegados lutadores, ardentes defensores da causa da justiça, foram os principais interpretes das aspirações das massas. Eles, a pouco e pouco, convenceram-se de que a ética social devia ser o mais importante elemento da religião. No final deste processo de transformação religiosa, Jahvé deixa de ser um deus local e nacional para tornar-se o deus universal da justiça. Os profetas, elevam o ídolo primitivo das tribos nômades de Israel à categoria de deus universal e do amor à verdade. Simples chefes nacionais, de início, também se tornam políticos de importância mundial. A especial situação geográfica e política da Palestina obrigou-os bem depressa a envolverem-se no turbilhão da politica mundial.
A Palestina era, realmente, tanto pela posição geral como pela estrutura do solo, um traço de união entre a Ásia-Menor e o Egito, isto é, entre os Impérios rivais da época. Estava, portanto, constantemente exposta a invasões. Os habitantes viviam na constante expectativa de ataques inesperados, e acompanhavam com atenção os movimentos políticos de importância mundial. Os principais guias intelectuais do povo hebreu, os profetas, não perdiam de vista a atividade dos grandes Impérios, em luta pela hegemonia mundial. Pesavam cuidadosamente o valor dos homens e das coisas. A Assíria, a Babilônia, o Egito, a Pérsia, eram para eles, simples instrumentos nas mãos de Deus e todo o Universo lhe estava sujeito à vontade. Quando a tempestade se desencadeia através da História, derrubando tudo o que se havia situado no alto, esmagando os arrogantes e os orgulhosos, no meio deste formidável desmoronamento geral de todos os poderes divinos e terrestres, ergue-se majestosa e eterna uma nova moral que, partindo de Israel, se estende para todo o Universo. Os profetas anunciaram a terrível catástrofe que ameaçava os reinos de Israel e de Judá. Anunciaram, também, a purificação definitiva, assim como a redenção da Humanidade — que ficaria para sempre livre das guerras e das perturbações sociais, de todas as lutas internas e externas — pela vitoria do espírito, pelo advento do reino do direito e da justiça, que Jahvé desejava instaurar, por intermédio dos judeus, no mundo inteiro. Começando por uma luta puramente local em favor dos oprimidos, os profetas terminam sua carreira inolvidável proclamando a missão moral de Israel.
Amos, o sacerdote de Thécoa, eleva a voz contra todos os povos da Síria e da Palestina, e anuncia a desgraça que os espera, como castigo de seus pecados:
"Fazei ouvir vossa voz em todos os palácios de Asbod e em todos os palácios dos países do Egito, e dizei: Reuni-vos no alto das montanhas da Samaria para contemplar a desordem que reina entre os povos da terra e a opressão a que estão sujeitos!” “Eles não praticam o que é direito — disse o Eterno. — Eles acumulam os produtos da rapina e da violência nos seus palácios”.
Os ricos acreditam que obedecem às leis de Deus somente porque rezam ou fazem sacrifícios. Mas Javhé disse:
“Eu detesto, eu desprezo as vossas festas. Eu não me sinto honrado com as vossas assembleias solenes. Eu não quero aceitar os vossos holocaustos nem as vossas oferendas. Eu não quero contemplar vossos animais bem nutridos, nem vossos sacrifícios de prosperidade! Eu não quero ouvir o som de vossos cânticos! Eu fecho os meus ouvidos às músicas de vossos instrumentos! Porque a justiça correrá como a água; de um rio inesgotável. A família de Israel ofereceu-me; sacrifícios e dádivas no deserto!”
Jahvé não pede sacrifícios nem preces. Quer justiça. Os juízes não devem pronunciar sentenças favoráveis aos ricos. Os ricos não devem violentar os pobres. Os negociantes de cereais não devem continuar enganando os famintos. Amos ataca os príncipes e os poderes, os ricos e os afortunados que vivem nos palácios de mármore, descansam a sua preguiça em divãs luxuriosos, recostam-se em leitos de marfim, nutrem-se de festins opíparos de carne de asnos ou de animais, domésticos.
“Eles tocam citara e cantam. Bebem vinho; em grandes taças. Untam-se com os melhores óleos. Mas se esquecem completamente dos sofrimentos do povo”.
Eis porque, em breve, vão ser castigados.
“Jeroboão morrerá com uma espada cravada no corpo e Israel sofrerá duro cativeiro, longe do seu país”.
É preciso, portanto,
“praticar o Bem, e não o Mal, para não sucumbir. Fugi do Mal e praticai o Bem. Sejamos justos em nossos conselhos, e Jahvé terá piedade de seu povo”.
Osias avisa às crianças de Israel que Jahvé, por vários motivos, não está contente com as suas ações,
“porque não há nem verdade, nem bondade, nem temor a Deus, no país. Só há perjuros e mentirosos, assassinos, ladrões e adúlteros. Todos usam a violência, todos se tornam assassinos”.
Israel orgulha-se agora das suas riquezas, mas “o negociante tem na mão balanças falsas e pratica atos fraudulentos”.
Na política exterior, os homens também abandonaram Jahvé. Israel corre de um lado para outro, como um pombo desgarrado e perdido, aliando-se, ora à Assíria, ora ao Egito, para defender-se dos ataques de inimigos. Eis porque o país sofre e o povo está arruinado. Como Israel era diferente na época da juventude, quando vivia no deserto e não cultuava Baal! Agora, porém, ele semeia a maldade e a malicia, colhe injustiças e come o fruto da mentira. É por isso que não pode escapar do castigo. O país será completamente destruído e Israel cairá no cativeiro.
“Se semeardes a justiça, colhereis a misericórdia. Se praticardes a misericórdia e a caridade, podereis contar a todo o momento com a proteção de Jahvé” porque, então, “tereis o amor de Jahvé. Aliar-se-á a seu povo e fará desaparecer todos os instrumentos de guerra e a própria guerra, porque a aliança entre Jahvé e seu povo será baseada no direito e na justiça, no amor e na misericórdia”.
A cólera sagrada de Miguel é dirigida contra os ricos de seu país:
“Ouvi o que digo, chefe da casa de Jacob e juízes da casa de Israel! Tendes horror ao que é justo! Deformais tudo o que é direito! Sois os responsáveis pela situação atual de Sião que está à mercê dos assassinos, e pela situação presente de Jerusalém, onde reina o crime. Os chefes trocam a justiça por presentes. Os sacerdotes ensinam a troco de um salário. Por vossa causa, Sião será arrasada e ficará como um; campo revolvido pela charrua; Jerusalém será transformada num montão de ruínas e as colinas, onde se erguem hoje os templos, ficarão cobertas de florestas!”
A desconfiança, as dissenções, a luta de todos contra todos, dividem o povo. Não se conquista Jahvé apenas com holocaustos.
“Acreditas que Jahvé ficará satisfeito com milhares de cordeiros imolados, ou com as torrentes de óleo que se derramam em sua intenção? Já te mostraram, oh! homem, que Jahvé só deseja que pratiques boas ações: Ele quer que se respeite o direito, que se ame a bondade e que todos se conduzam com humildade em face de Deus”.
Isaías, em linguagem vigorosa, submete toda a vida social da Palestina a uma crítica implacável. Nada encontra de bom. O direito e a justiça já não existem mais. A pureza de costumes foi substituída pelo luxo, pela ilimitada sede de prazeres, pela cobiça e a caça à riqueza e à gloria. Os pobres, as viúvas e os órfãos vivem oprimidos e sujeitos a impiedosa exploração. Os pequenos proprietários são despojados dos seus bens pelos mais ricos.
“A desgraça cairá sobre a cabeça daqueles que juntam terras a terras até que não mais exista um só recanto livre, e todo o país seja unicamente deles”.
Diante das tentativas realizadas para sancionar este estado de coisas, o Profeta exclama:
“A desgraça cairá sobre a cabeça daqueles que, nos seus julgamentos, decretam leis iníquas e estabelecem normas injustas para a opressão dos pobres, violando o direito dos deserdados de meu povo e transformando as viúvas e os órfãos em presas da ambição dos ricos!”
É por isso que Jahvé não ouve as preces nem aceita os sacrifícios de Israel:
“Não me ofereçais sacrifícios vãos. Detesto o incenso que queimais. Não posso suportar as neomênias, os sábados e as outras festas. Nas assembleias, só encontro a iniquidade... Quando os homens estendem as mãos implorando os meus favores, desvio os meus olhos para os não ver, e, quando me dirigem preces, eu não as oiço, porque as mãos dos homens estão cheias de sangue”.
A maldição de Deus cairá sobre todos os soberbos e poderosos. Jahvé arrancará os cabelos das cabeças das filhas de Sião, os ornamentos, os braceletes, os colares, os brincos das orelhas, as faixas, as joias, os vestidos, os mantos, os espelhos, as caixas de essências e perfumes... Os homens serão mortos pela espada e os heróis tombarão para sempre nos combates”. “E Israel cairá no cativeiro. Os grandes passarão fome, seus homens morrerão de sede, seus nobres serão humilhados”. “Então, os deserdados voltarão novamente ao seio de Deus. Os pobres terão no Santo de Israel um motivo de alegria, porque todos os tiranos estarão mortos e porque não existem mais homens de coração insensível”.
Mas Israel poderá salvar-se, se voltar ao seio de Deus e observar-lhe os Mandamentos:
“Lavai-vos, purificai-vos, expulsai de vossos pensamentos toda a malicia, de maneira que eu possa ver no vosso íntimo a bondade e compreender que nenhum de vós praticará o mal. Aprendei a praticar o bem, procurai a justiça, socorrei o oprimido, reconhecei o direito dos órfãos e defendei as viúvas”.
Jeremias, que, como homem e como pensador, é talvez o maior de todos os profetas, lembra, em nome de Jahvé, à casa de Jacob e às famílias de Israel, a época do deserto:
“Eu ainda me recordo do tempo em que, cheia de virtude e de beleza, eras uma noiva amorosa, quando tu me acompanhavas, no deserto, através da região onde não se semeia... Eu te fiz conhecer uma terra fértil, para que pudesses colher os frutos mais saborosos e os melhores produtos. Mas, depois que a conheceste, desonraste a minha herança porque te dedicaste ao culto de Baal, porque te entregaste às pilhagens, oprimiste, dividiste e fizeste surgir a falsidade”.
Em termos pungentes, mas implacáveis, o Profeta prediz a partida de Judá para o cativeiro e a destruição de Jerusalém.
Mas esforça-se para defender Judá e aplacar as iras de Jahvé. O homem não é livre, não age como quer.
Não pode escolher:
“Eu sei, oh! Jahvé, que o homem nem sempre pode escolher o caminho que deseja, porque ninguém pode andar e dirigir-se por si mesmo”.
Mas a justiça social é a finalidade única da vida dos povos. A ordem moral deve triunfar. Os judeus precisam sofrer, porque se afastaram de Jahvé, para poderem mais tarde cumprir a sua missão histórica.
Sofonias, um contemporâneo de Jeremias, resume nalguns capítulos toda a luta e anuncia a aproximação do dia de Jahvé, do dia em que Judá será condenada.
“E, nesse dia, na porta dos Peixes, levantar-se-á um clamor de gritos e de lamentações da nova cidade. E um grande estrondo abalará as colinas. Lamentai-vos, habitantes, porque todos os mercadores sucumbirão, porque todos os que acumularam dinheiro serão exterminados... Nem o dinheiro, nem o ouro, poderão salvá-los, nesse dia, da cólera de Jahvé. A Terra será consumida pelo fogo de seu ressentimento”.
Ezequiel examina o problema com menos ardor profético, mas de maneira mais profunda:
“A maldição cairá sobre os pastores que se apoderam de tudo, em lugar de conduzir os rebanhos às boas pastagens. Comes a gordura, vestes a lã e matas teu rebanho, mas não conduzes as ovelhas às boas pastagens Não queres socorrer os fracos nem tratar os doentes. Não procuras Pensar as feridas, nem trazer ao bom caminho as ovelhas tresmalhadas. Só desejas reinar com crueldade, só desejas dominá-las...”
Mas julgarei também os meus rebanhos, diz Jahvé:
“Saberei distinguir as boas ovelhas das más, os carneiros gordos dos magros. Porque tu calcas aos pés os fracos, afasta-os com marradas. Eu quero auxiliar o meu rebanho para que não sofra mais pilhagens”.
Cada qual é responsável pelos próprios atos. Cada qual pode escolher entre o Bem e o Mal, tem o livre arbítrio de praticar o Bem ou o Mal. É justamente por isso que Israel deve converter-se e obedecer aos Mandamentos da lei de Jahvé.
Todos os profetas, ao passo que censuram e anunciam as catástrofes iminentes, saúdam Israel, convictos de que a Humanidade ainda poderá obter a redenção definitiva. As profecias atingem o apogeu em Isaías. Os judeus são o povo eleito por Deus para a instauração de seu reino da justiça:
“Tenho em mim o espírito de Jahvé. Ele me ungiu com os seus santos óleos. Ele me enviou aos homens para trazer uma mensagem de alegria aos deserdados, para aliviar as dores dos corações feridos, para anunciar aos prisioneiros que a hora da libertação se aproxima e para dizer aos miseráveis que serão redimidos”.
Se este povo aceitar a missão que lhe foi confiada, tornar-se-á o centro da Humanidade. Depois de ter sido, durante tanto tempo, desprezado e desdenhado, Israel será o ornamento da Humanidade.
“Desperta, olha a luz. Porque a luz vem, e a magnificência de Jahvé ergue-se sobre ti. Porque teus olhos mostram que toda a Terra está imersa em trevas e que todos os povos vivem na escuridão. Mas, sobre ti, brilha a munificência de Jahvé. E os pagãos serão atraídos pela tua luz, e os reis pelo clarão que se eleva acima de ti... Tuas palavras devem ensinar a paz e a justiça... Porque teu povo será um povo de justos e possuirá a Terra por toda a eternidade”.
Seu contemporâneo, Ezequiel, traça o quadro de um Estado judeu divino, onde todas as pessoas serão iguais. Nesse Estado reinará a igualdade.
“E a Terra será dividida em parcelas iguais e distribuída entre todos os homens... E, quando o país for dividido igualmente entre todos, os estrangeiros que nele residem devem ser tratados do mesmo modo que os filhos de Israel. Eles também devem ser contemplados com uma parte das terras, nas tribos em que forem recebidos”.
O ideal da paz eterna está intimamente unido ao ideal do direito e da justiça.
“Os lobos viverão ao lado dos cordeiros e os leopardos ao das ovelhas. Uma criança levará ao pasto, lado a lado, os bezerros, os leõezinhos e os animais adultos. As espadas serão transformadas em lâminas de arados, e os alfanges em foices, porque nenhum povo se levantará mais em armas contra outro povo, e não terão, portanto, necessidade de entregar-se ao estudo das artes da guerra”.
Zacarias profetiza o advento de uma nova era, na qual Jahvé fará desaparecer os carros de guerra de Efraim, os cavalos de batalha de Jerusalém e todos os engenhos de guerra. Anuncia uma paz eterna para todos os povos. Nesta nova era, Jahvé dominará o Universo, todos os mares e todas as terras, até os confins do mundo:
“O meu reinado não será fundado nem pelas armas, nem pela violência, mas pelo espírito”.
E um dos últimos profetas, Malaquias, prega a fraternidade entre todos os povos, entre todos os homens da Terra:
“Não somos todos filhos de um único pai? Não fomos todos criados; pelo mesmo Deus? Por que, então, vivemos nos desprezando uns aos outros?"
No último quartel do século VII (ou, mais precisamente, no ano 621 A. C.), tentou-se uma reformai contra os abusos. Moisés a expõe nos livros III e V. De um modo geral, esta reforma contem as principais reivindicações dos deserdados de toda a Antiguidade — a grega e a latina, inclusas — e refere-se à prescrição das dividas e à nova divisão das terras. Proclama que a terra pertence a Jahvé, isto é, que ela deve ser propriedade comum de todo o povo.
“Por isso, ninguém deve apropriar-se para sempre da terra”.
Em cada cinquentenário será dado um passo para a volta à liberdade e à igualdade.
“O ano quinquagésimo será santificado e considerado um ano de liberdade, em que cada qual voltará à casa com os da sua raça”.
Era também necessário amenizar a situação dos indivíduos condenados à escravidão por dívidas:
“Se teu irmão ficou pobre e se vendeu a ti, não deves tratá-lo como escravo, mas como um obreiro e um hóspede; e ele só deve servir-te até o ano do jubileu. Depois, irá embora com os seus filhos, e voltará à casa de seu pai. De sete em sete anos, haverá um ano de jubileu, no qual todas as dívidas serão prescritas. Se um homem emprestou dinheiro ao seu vizinho não deverá cobrá-lo, porque nesse ano Jahvé mandou cancelar todas as dívidas. Nesse ano, não deve haver um só mendigo entre nós. Se um dos teus irmãos é pobre, não deves fechar teu coração aos bons sentimentos, nem conservar o teu irmão pobre longe de ti... Não deves também pensar intimamente: “O ano do jubileu se aproxima. Vou perder o meu dinheiro”. Pelo contrário, deves estender a mão a teu irmão desgraçado. Se teu irmão vender-se a ti mesmo, servir-te-á durante seis anos e, no sétimo, deves dispensá-lo. E ele será livre”.
O direito de hipoteca também era limitado:
“Se emprestaste dinheiro a teu irmão, não deves ir à sua casa e apoderares-te do que é dele, mas esperar, de fora, que ele próprio te traga o que é teu. Mas, se ele for pobre, deverás devolver-lhe o que te deu, antes da noite, para que ele possa cobrir-se com o seu manto quando for dormir”.
Ninguém deve apoderar-se dos bens das viúvas e dos órfãos. Os salários devem ser pagos todos os dias. O fato mais característico, no que se refere à supervivência das velhas tradições da propriedade comum da terra, é a concessão do direito de arrancar espigas no campo do vizinho, assim como a de servir-se dos utensílios para a colheita de espigas, e a obrigação de deixar cada indivíduo uma pequena porção da lavoura para os pobres colherem aquilo de que necessitem.
Mas certos testemunhos demonstram que estas reformas sociais não foram aplicadas totalmente. A cláusula do ano do jubileu nunca foi posta em prática. A lei que estabelecia o perdão das dívidas foi abolida por; ocasião do surto comercial que se verificou logo após o desterro. O profeta Jeremias lamenta que essas leis não, tenham sido aplicadas. No Neemias, novamente se ouvem as reclamações do povo contra a usura praticada pelos próprios judeus, contra a escravidão por dívidas e contra a apreensão de bens nos campos e vinhedos (até o ano 500 A. C.). O Talmude, que na parte jurídica é uma codificação do direito estabelecido no domínio da propriedade privada e do comércio, transmite-nos também a fórmula escrita do tribunal para os casos de inobservância da lei relativa à prescrição das dívidas. Esta lei não era aplicada por motivos de ordem puramente econômica. O Talmude afirma a esse respeito:
“Se a lei sobre a prescrição das dívidas tivesse sido conservada, as solicitações de empréstimos deixariam de existir”.
Declara ainda que, quando esta lei foi criada, recomendava-se:
"Não deves abrigar em teu coração nenhum mau pensamento que te impeça de prestar ajuda ao próximo, porque o ano do perdão das dívidas se aproxima”.
Mas, como era impossível evitar tal pensamento, os rabinos resolveram abolir a lei do jubileu. Noutras palavras, isto quer dizer que o desenvolvimento econômico foi mais forte que a legislação social.
Na prática, esta legislação social foi totalmente abolida, com exceção apenas das cláusulas morais que recomendavam a prática da caridade para com os pobres e das leis gerais sobre a assistência à pobreza.
Mas as tradições da comunidade primitiva conservaram-se no seio das classes inferiores. Até na época de Jesus Cristo ainda se encontra frequentemente a seguinte sentença, que expressa as diferentes opiniões existentes entre os judeus sobre a propriedade:
“Há quatro classes de indivíduos. Uns dizem: o que é meu é meu e o que é teu é teu. Estes pertencem à classe média, ou, como se costuma também dizer, a Sodoma. Outros dizem: o que é meu é teu e o que e teu é meu. Esta classe é representada pelos homens do povo. Ha outros ainda que dizem: o que é meu é teu e o que é teu é só teu. Tais são os homens piedosos. Outros, por último dizem: o que é meu é meu e o que é teu é meu também. Estes são os maus”.
Esta referencia às quatro classes de indivíduos que existiam naquele tempo torna-se interessante quando aplicada aos indivíduos que vivem atualmente na Palestina. Os primeiros serão a burguesia, com a sua limitada noção da propriedade. Quem reproduziu a sentença acrescenta ironicamente que se trata de gente de Sodoma. Vêm, em seguida, os comunistas, que não distinguem o meu do teu; estão caracterizados como representantes do povo. Logo depois vêm os homens piedosos, que renunciam a todas as formas de propriedade, e que são, portanto, adeptos da pobreza apostólica, a qual desempenhou papel tão importante no cristianismo primitivo e nos séculos XII, XIII e XIV. Finalmente, a quarta categoria dispensa qualquer explicação: é formada pelos exploradores, ladrões e assassínios.
Mas não era só o povo que se manifestava contrário à existência da propriedade privada. Milhares de judeus, pertencentes à mais alta nobreza da Palestina, tentaram também implantar o comunismo na prática. Foram os essênios (os justos), que aparecem a partir do século II, A. C., formando uma seita especial. São citados por todos os escritores da época, que a eles se referem com respeito e consideração.
Os intelectuais judeus, como Filon e José, familiarizados com a filosofia grega e, em geral, com toda a vida intelectual dos romanos, falam da comunidade de bens como de um símbolo da própria virtude. José considera Caim, assassino do próprio irmão, como o fundador do regime da propriedade privada do solo. É importante notar que Caim foi, ao mesmo tempo, o primeiro homem que edificou uma cidade. Filon conta, com satisfação enorme, que na Palestina viviam quatro mil homens virtuosos, chamados sênios, que moravam em aldeias e evitavam as cidades. Fugiam à corrupção destas. Viviam da agricultura ou da pesca. Não entesouravam ouro ou prata, nem adquiriam terras para fins comerciais. Trabalhavam apenas para a obtenção dos recursos indispensáveis à própria subsistência. Não tinham a menor propriedade, porque não desejavam acumular riquezas. Na época, além daqueles que os reveses da sorte haviam tornado miseráveis, os essênios eram os únicos homens que não possuíam bens. Julgavam-se, porém, os mais ricos de todos os homens, por que, para eles, a ausência de privações e a tranquilidade de espírito eram os maiores tesouros da Terra. Entre os essênios, os artesãos nunca fabricaram flechas, lanças, espadas, couraças, armas ou engenhos guerreiros de qualquer especie. Como desejavam evitar tudo o que pudesse despertar a ambição e a cobiça não se dedicavam ao comércio nem à navegação. Não possuíam escravos. Todos os homens eram livres e trabalhavam para o bem estar comum. Os essênios repeliam quaisquer formas de autoridade e de domínio, considerando-as impiedades, violações de uma lei natural. Guiavam-se por este princípio: se as mães dão à luz e nutrem todos os seus filhos do mesmo modo, os homens devem também viver como irmãos.
Na economia comunal e doméstica, inspiravam-se em princípios de piedade, de santidade e de justiça e no do conhecimento do Bem e do Mal. Regiam a existência pelo postulado moral que manda amar a Deus, à virtude e à Humanidade. A benevolência, a equidade e principalmente a comunidade de bens, eram consideradas manifestações do amor ao próximo.
Nenhum esseno possuía uma casa própria, exclusivamente sua. Todos os membros da comunidade unham direito às casas existentes. E, além de morarem juntos, abrigavam em suas casas os companheiros que vinham de outras regiões. Os armazéns, com todas as mercadorias, eram propriedade coletiva. As roupas, os alimentos, não eram considerados propriedade privada. Nenhum essênio guardava para si o que ganhava, mas depositava tudo numa caixa destinada a formar um patrimônio comum, que ficava à disposição de todos. Entre eles, os enfermos e os anciãos eram objeto dos maiores cuidados.
Filon conta ainda que os essênios eram estimados e respeitados em toda a parte. Nem os procônsules mais cruéis encontraram razões para persegui-los. Pelo contrário: viam-se obrigados a reconhecer-lhes as virtudes e a considerá-los homens livres por natureza, com o direito de elaborarem as próprias leis. Os essênios não só comiam em comum, como realizavam, na prática, a comunidade de bens, prova palpável de uma existência honesta e feliz.
O historiador José fala dos essênios com grande simpatia:
“Desprezam a riqueza e vivem em comum, de maneira que devem ser admirados. Não há entre eles nenhum individuo situado acima dos demais por possuir riquezas. Uma lei obriga àquele que entrar para a seita a entregar todos os haveres à coletividade. Não há miséria, luxo ou desperdício entre os essênios, precisamente porque os cabedais estão à disposição da comunidade. Os bens são propriedade comum de todos, num regime fraternal. Os membros da seita elegem os administradores da riqueza comum. E todos se dedicam exclusivamente ao bem estar coletivo”.
Inclusão | 16/04/2015 |