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Primeira Edição: Este relatório, de autoria de Clara Zetkin, foi apresentado no dia 20 de Junho de 1923, ao Terceiro Plenário do Comitê Executivo da Internacional Comunista. Mais tarde, foi reimpresso em língua inglesa na versão editada por Mike Taber e John Riddell do livro “Fighting Fascism: How to Struggle and How to Win” (Heymarket Books, 2017).
Fonte: Como nasce e morre o fascismo, 2019, São Paulo, Editora Usina e Autonomia Literária
Tradução: Eli Moraes
Revisão: Paulo César Carvalho
Transcrição: Aldo Cordeiro Sauda
HTML: Fernando Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
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O fascismo encara o proletariado como um inimigo excepcionalmente perigoso e amedrontador. O fascismo é a expressão mais forte, concentrada e clássica em nosso tempo da ofensiva generalizada da burguesia mundial. É urgente e necessário fazê-lo cair. Isso não apenas no que diz respeito à existência histórica do proletariado enquanto classe, que libertará a humanidade superando o capitalismo. É também uma questão de sobrevivência para qualquer trabalhador, uma questão de acesso ao pão, a condições de trabalho e qualidade de vida para milhões e milhões de explorados.
É por essa razão que a luta contra o fascismo precisa ser empreendida por todo o proletariado. É evidente que superaremos mais rápido este inimigo sagaz na medida em que apreendermos a essência de seu caráter e como ele se expressa. Houve muita confusão em torno do fascismo, não apenas entre as amplas massas proletárias, mas também no interior da vanguarda revolucionária, entre os comunistas. A princípio, a visão predominante era a de que o fascismo não passava de um terror burguês violento, suas características e efeitos supostamente similares àquelas do regime de Horthy na Hungria(1). Ainda que o fascismo e o regime de Horthy empreguem os mesmos métodos sanguinários e terroristas, que atingem o proletariado da mesma forma, a essência histórica dos dois fenômenos é inteiramente diferente.
O terror na Hungria começou após a derrota de uma luta revolucionária que inicialmente obteve sucesso. Por um momento, a burguesia tremeu perante o poder proletário. O terror de Horthy emergiu como uma vingança contra a revolução. O sujeito dessa vingança foi uma pequena casta de oficiais feudais.
O fascismo é significativamente diferente disso. Não é de forma alguma a vingança da burguesia contra o levante militante do proletariado. Em termos históricos, visto de forma objetiva, o fascismo apresenta-se muito mais como uma punição pelo fato de que o proletariado não tenha sustentado e aprofundado a revolução que foi iniciada na Rússia . E a base do fascismo não repousa sobre uma pequena casta, mas em amplas camadas sociais, grandes massas, alcançando, inclusive, o proletariado. Devemos entender essas diferenças essenciais se quisermos lidar com o fascismo de forma bem sucedida. Meios militares, por si só, não poderão subjugá-lo, se puder usar esse termo; é necessário combatê-lo até sua queda também política e ideologicamente.
A concepção de que o fascismo é meramente uma forma do terror burguês, apesar de sustentada por algumas alas radicais de nosso movimento, é mais característica da perspectiva dos muitos sociais-democratas reformistas. Para eles, o fascismo não passa de terror e violência – mais que isso, um reflexo da burguesia contra a violência desencadeada, ou a ameaça dela, pelo proletariado contra a sociedade burguesa. Para os senhores reformistas, a Revolução Russa tem o mesmo significado que a mordida do fruto proibido no Paraíso tem para os devotos da Bíblia. Eles a veem como a origem de todas as expressões de terrorismo nos dias atuais. É como se as guerras de pilhagem imperialistas nunca tivessem acontecido; como se não existisse a ditadura de classe burguesa! Portanto, para os reformistas, o fascismo é uma consequência da Revolução Russa – o pecado original do proletariado no Jardim do Éden.
Não foi ninguém menos do que Otto Bauer quem apresentou, em Hamburgo, a posição de que os comunistas russos, e aqueles que mantêm concepções iguais as deles, possuem uma responsabilidade especial pela reação burguesa em todas as partes e pelo fascismo; são eles os que dividem partidos e sindicatos.(2) Ao fazer essa afirmação ousada, Otto Bauer esqueceu-se que o Partido Social-Democrata Independente da Alemanha (USPD) rompeu com o Partido Social-Democrata da Alemanha (SPD) ainda antes da Revolução Russa e seu suposto exemplo moralmente desastroso. Bauer explica que a reação mundial, que alcança seu ponto mais alto com o fascismo, também é causada em parte pelo fato de que a Revolução Russa destruiu o paraíso menchevique da Geórgia e Armênia.(3) Ele ainda aponta uma terceira causa para a reação mundial: o “Terror Bolchevique” em geral. Nos seus apontamentos, contudo, sentiu-se compelido a admitir: “Nós na Europa Central somos hoje obrigados a confrontar a violência fascista com guardas de defesa proletárias. Pois não temos ilusões de que possamos vencer a violência direta com apelos democráticos”.
Seria esperado que dessa observação ele apresentasse a conclusão de que a força deve ser combatida com força. No entanto, a lógica reformista segue suas próprias regras, indecifráveis, como se dá com a providência divina.
A ambivalência de Otto Bauer continua da seguinte maneira: “Não me refiro a métodos que frequentemente não levam ao sucesso, tais como a insurreição ou a greve geral. O que é necessário é a coordenação da ação parlamentar com ações de massa extra-parlamentares”.
Aqui Otto Bauer não nos revela o segredo de seu casto seio político acerca da ação política a que ele é favorável no parlamento e, sobretudo, fora do parlamento. Há ações e ações. Existem ações tanto parlamentares, quanto de massas, que, de nosso ponto de vista, consistem em mero lixo burguês, com o perdão da palavra. Por outro lado, uma ação, seja dentro ou não do parlamento, pode ter caráter revolucionário. Otto Bauer mantém silêncio no que diz respeito à natureza das ações reformistas. E o produto final de suas reflexões sobre a luta contra a reação mundial é bastante particular. Ele se dará como um birô internacional responsável por informes precisos sobre a reação mundial. Bauer explica: “A fundação desta Internacional possivelmente será encarada com ceticismo. Se não soubéssemos como constituir um birô de notícias que nos alimente com informações necessárias sobre a reação, este ceticismo seria justificado”.
O que está por trás de toda essa concepção? A fé reformista na força inabalável da ordem capitalista e do domínio de classe da burguesia, junto à desconfiança e covardice direcionada ao proletariado como uma força consciente e irresistível da revolução mundial. Os reformistas veem o fascismo como uma expressão da inabalável e toda poderosa dominação de classe burguesa. O proletariado não está à altura da tarefa de enfrentá-lo – estaria condenado à derrota de antemão. Assim, nada resta ao proletariado além de retirar-se de cena de forma quieta e modesta, e não incitar os tigres e leões da dominação de classe burguesa a uma luta por sua liberação e autogoverno. Resumindo, o proletariado deveria renunciar a tudo em nome do presente e do futuro, e aguardando pacientemente o momento em que alguma migalha será ganha pela via da democracia e da reforma.
Defendo um ponto de vista oposto, assim como – estou certa – todos os comunistas. Especificamente, vemos o fascismo como uma expressão da decadência e desintegração da economia capitalista e como um sintoma da dissolução do Estado burguês. Só podemos combater o fascismo se nos atentarmos para o fato de que ele desperta e arrasta consigo amplas massas sociais que perderam a segurança sobre a garantia de sua existência e, com isso, a sua crença na ordem social. As raízes do fascismo estão, de fato, na dissolução da economia capitalista e do Estado burguês. Já havia alguns sintomas da proletarização de camadas burguesas no capitalismo pré-guerra. A guerra destruiu a economia capitalista a partir de suas bases. Isso é evidente não apenas pelo empobrecimento assustador do proletariado, como também pela proletarização de amplas massas pequeno e médio burguesas, na situação de calamidade entre os pequenos camponeses e na aflição melancólica da ‘intelligentsia’ . O transtorno dos “intelectuais” é ainda mais severo dado que o capitalismo pré-guerra tomou medidas para produzi-los em excesso. Os capitalistas queriam estender massivamente a oferta de força de trabalho para o campo do trabalho intelectual e, então, estimular uma competição desgovernada que terminaria por diminuir os salários. Desses círculos é que o imperialismo recrutou grande parte de seus campeões ideológicos para a Guerra Mundial. Atualmente todas essas camadas estão encarando o colapso das esperanças que elas depositaram na guerra. O que pesa acima de tudo sobre elas é a falta de segurança para sua subsistência básica, que ainda tinham antes da guerra.
Não baseio essas conclusões nas condições da Alemanha, onde os intelectuais burgueses se deparam com condições de extremo empobrecimento que são muitas vezes mais severas do que a miséria dos trabalhadores. Não, veja a Itália – da qual falarei brevemente: a ruína da economia foi decisiva para que as massas aderissem ao fascismo naquele país. Considere outro país que, em contraste com outros Estados europeus, saiu da Guerra Mundial sem grandes convulsões: o Reino Unido. A imprensa e os debates públicos falam, praticamente com a mesma ênfase, tanto da agonia nos “novos pobres” como dos lucros gigantes e da suntuosidade dos poucos “novos ricos”. Nos Estados Unidos, o movimento de agricultores dá respostas ao crescente descontentamento de uma larga camada social. As condições das camadas intermediárias pioraram intensamente em todos os países. Em alguns deles, essa decadência leva a um ponto no qual essas camadas sociais são esmagadas ou aniquiladas.
Como resultado, há milhares procurando novas possibilidades de sobrevivência, segurança alimentar e a manutenção de sua posição social. Esse número é inflado pelos baixos e médios empregados governamentais, os funcionários públicos. A eles se juntam, mesmo em países vitoriosos, oficiais de baixas patentes e outros como eles, que agora não possuem nem emprego, nem formação profissional. Forças sociais desse tipo fornecem ao fascismo um contingente de diversas figuras que emprestam a ele, nesses países, uma pronunciada tonalidade monarquista. Mas não poderemos compreender inteiramente a natureza do fascismo encarando sua evolução somente como resultado de tais pressões econômicas, que foram consideravelmente aprofundadas a partir da crise financeira dos governos e sua perda de autoridade.
O fascismo possui outra fonte. Trata-se do obstáculo, do ritmo hesitante imposto à revolução mundial por conta da traição da direção reformista do movimento dos trabalhadores. Entre uma larga parcela das camadas médias – os funcionários públicos, os intelectuais burgueses, os pequenos e médios burgueses – que foram proletarizadas ou ameaçadas com esse destino, a psicologia de guerra foi substituída por algum grau de simpatia pelo socialismo reformista. Elas tinham a esperança de que, graças à “democracia”, o socialismo reformista poderia resultar em uma mudança global: ilusões que foram dolorosamente despedaçadas. Os socialistas reformistas impulsionaram uma política de coalizão cujos custos foram suportados não apenas por proletários e assalariados, mas também pelos funcionários públicos, os intelectuais e os níveis mais baixos e intermediários da pequena-burguesia de todo tipo.
Essas camadas carecem, em geral, de qualquer educação teórica, histórica ou política. Sua simpatia pelo socialismo reformista nunca foi profundamente enraizada. Portanto, assim que as coisas mudaram, perderam sua fé não apenas na direção reformista, mas também no próprio socialismo. “Os socialistas prometiam o alívio de nossos fardos e sofrimento, além de muitas coisas belas, e a reorganização da sociedade sobre bases de justiça e democracia”, dizem. “Mas os chefões e os ricos continuam dominando com ainda mais força que antes”. A esses burgueses decepcionados com o socialismo juntaram-se forças proletárias. Todos os desiludidos – de origem burguesa ou proletária – contudo, abandonam uma força intelectual preciosa que permitiria a eles vislumbrar um futuro de esperança e luz para além do presente sombrio. Essa força é a confiança no proletariado como a classe que reconstruirá a sociedade. A traição dos líderes reformistas não pesa tanto sobre a atitude dessas forças desiludidas quanto um outro fato: que as massas proletárias toleram essa traição, de que elas continuam aceitando o jugo capitalista sem rebelião ou resistência, de que vieram a aceitar um sofrimento ainda mais amargo que o de antes.
Além disto, para falar com justeza, preciso acrescentar que também os partidos comunistas, à exceção do russo, possuem responsabilidade pelo fato de que mesmo no interior do proletariado existam pessoas desiludidas que se jogaram nos braços do fascismo. Muito frequentemente as ações desses partidos têm sido insuficientemente firmes, suas iniciativas carecem de escopo e atingem as massas inadequadamente. Não me refiro a erros políticos que levaram a derrotas. Não há dúvidas de que muitos dos proletários mais ativos, enérgicos e de pensamento revolucionário ainda não encontraram seu caminho, ou se desviaram de nós porque não nos acharam enérgicos e agressivos o suficiente. Não conseguimos conscientizá-los o suficiente do porquê também nós, em determinadas ocasiões, precisamos nos conter mesmo que contra nossa vontade e com boa justificativa.
As massas aos milhares se juntaram ao fascismo. Ele se transformou em um asilo para todos os desabrigados políticos, os socialmente desenraizados, os destituídos e desiludidos. E o que as massas não esperavam mais da classe proletária revolucionária e do socialismo, agora esperam que seja atingido pelos elementos mais capazes, fortes, determinados e impetuosos de todas as classes sociais. Todas essas forças deveriam unir-se em uma comunidade. E essa comunidade, para os fascistas, é a nação. Imaginam erroneamente que a disposição sincera para a criação de uma realidade social nova e melhor é poderosa o suficiente para superar todos os antagonismos de classe. O instrumento para atingir os ideais fascistas é, para eles, o Estado. Um Estado forte e autoritário que será sua própria criação e ferramenta obediente. Tal Estado irá elevar-se sobre todas as diferenças entre partidos e classes, e remodelará a sociedade de acordo com sua ideologia e programa.
É evidente que, em se tratando de composição social, o fascismo envolve forças que podem ser extremamente desconfortáveis e mesmo perigosas para a sociedade burguesa. Iremos além e diremos mesmo que esses elementos, se chegarem a entender seus próprios interesses, devem ser perigosos para a sociedade burguesa. Precisamente! Se emergir essa situação, então tais forças devem fazer o que for necessário para se certificarem de que a sociedade burguesa seja esmagada o mais rápido possível e o comunismo alcançado. Apesar disso, os acontecimentos até aqui têm mostrado que as forças reacionárias têm contido e passado para trás as revolucionárias no interior do fascismo.
O que vemos aqui é análogo aos acontecimentos em outras revoluções. A pequena-burguesia e as forças sociais intermediárias inicialmente vacilam entre os poderosos campos históricos do proletariado e da burguesia. São levadas a simpatizar com o proletariado por conta das dificuldades em suas vidas e, em parte, pelos desejos nobres e ideais elevados em seus espíritos, na medida em que este aja de forma revolucionária e apresente perspectivas de vitória. Sob a pressão das massas e de suas necessidades, e influenciados por essa situação, até mesmo os líderes fascistas são forçados a, minimamente, flertar com o proletariado revolucionário, ainda que não possuam por ele qualquer simpatia. Mas ao se tornar claro que o próprio proletariado abandonou o objetivo de levar adiante a revolução, que está se retirando do campo de batalha sob a influência dos líderes reformistas, por medo da revolução e respeito aos capitalistas – a esse ponto as amplas massas fascistas encontram seu caminho até o local em que a maioria de seus líderes já estava, consciente ou inconscientemente, desde o início: ao lado da burguesia.
Naturalmente, a burguesia dá boas-vindas a seus novos aliados com ânimo. Vê neles um crescimento grande em seu poder, um bando especial preparado para toda forma de violência a seus serviços. A burguesia, acostumada a governar, infelizmente é muito mais experiente e conhecedora de como julgar a situação e defender seus interesses de classe em comparação ao proletariado, o qual é acostumado com seu jugo. Desde o início, a burguesia compreendeu nitidamente a situação e, dessa forma, a vantagem que ela pode obter com o fascismo. O que quer a burguesia? Ela está empenhada na reconstrução da economia capitalista, ou seja, na manutenção de sua dominação de classe. Sob as atuais circunstâncias, a pré-condição para atingir esse objetivo é uma intensificação e um crescimento consideráveis da exploração e opressão sobre a classe trabalhadora.
A burguesia está inteiramente ciente de que sozinha ela não possui os instrumentos de poder necessários para impor esse destino aos explorados. Atormentado pelos escorpiões do recrudescimento da pobreza, até mesmo o proletário mais calejado começa a se rebelar contra o capitalismo. A burguesia só pode concluir que, com o passar do tempo, sob tal situação, até mesmo os sermões mansos e conciliatórios dos socialistas reformistas perderão seu efeito entediante sobre o proletariado. Ela passa a entender que o proletariado agora só pode ser explorado e subjugado através do uso da força. Mas os meios de força disponíveis para o Estado burguês começam, em parte, a ruir. O Estado está perdendo a capacidade financeira e a autoridade moral necessária para manter a subserviência e a lealdade cega de seus escravos. A burguesia não pode mais confiar nos meios de força regulares de seu Estado para garantir sua dominação. Para tal, ela precisa de um instrumento de força extralegal e paramilitar. O que foi oferecido pelo aglomerado heterogêneo que constitui a turba fascista. Esta é a razão pela qual a burguesia oferece a sua mão para o beijo fascista, permitindo-lhes completa liberdade de ação, contrariando a tudo que está inscrito ou não nas leis. Ela vai além. Ela nutre o fascismo, sustenta-lhe e promove seu desenvolvimento com todos os meios à sua disposição em termos de poder político e reservas bem guardadas de dinheiro.
É evidente que o fascismo tem características diferentes em cada país, devido a circunstâncias específicas. Independente disso, em toda parte possui dois traços essenciais: um programa revolucionário fraudulento, que se liga de forma extremamente esperta com os humores, interesses e necessidades de amplas camadas sociais; e o uso do violento e brutal terror.
Hoje, o exemplo clássico do caráter e do desenvolvimento do fascismo encontra-se na Itália. Lá, o fascismo encontrou um terreno fértil na desintegração e fragilidade da economia. Pode parecer que isso não se aplica, pois a Itália estava entre as potências vitoriosas na Primeira Guerra Mundial. Apesar disso, a guerra teve um efeito devastador na economia italiana. A burguesia retornou da guerra vitoriosa, mas mortalmente ferida. A estrutura econômica e de desenvolvimento no país neste caso foi decisiva. Somente no norte da Itália houve o surgimento de um moderno capitalismo industrial. Nas regiões central e, especialmente, sul, o capital agrário ainda domina, em alguma medida sob condições feudais, aliado a um capitalismo financeiro que ainda não se elevou em importância e desenvolvimento moderno. Ambos eram de orientação imperialista; ambos eram hostis à guerra; ambos ganharam pouco ou quase nada com a carnificina de milhões. O campesinato não-capitalista sofria sob eles aterrorizado, junto a ele a pequena-burguesia e o proletariado urbanos. É verdade que a indústria pesada artificialmente nutrida do norte italiano acumulou lucros fabulosos. Ainda assim, a esta indústria faltava raízes profundas – não há carvão ou ferro na Itália – e logo seu brilho ofuscou.
Todos os efeitos nocivos da guerra caíram como chuva sobre a economia italiana e seu orçamento governamental. Uma crise terrível se desdobrou. A indústria, o artesanato e o comércio decaíram até a estagnação, com uma falência atrás da outra. A Banca di Sconto e a Companhia Ansaldo, ambas criações do imperialismo e da guerra, entraram em colapso. A guerra deixou como legado centenas de milhares procurando trabalho e comida, centenas de milhares de mutilados, viúvas e órfãos que precisavam de mantimentos. A crise aumentou o exército daqueles que voltavam para casa em busca de trabalho e emprego com multidões de demitidos, homens e mulheres, tanto operários quanto funcionários de escritório. Uma onda gigantesca de miséria se abateu sobre a Itália, atingindo o seu cume entre o verão de 1920 e a primavera de 1921. A burguesia industrial do norte da Itália, que fez uma agitação inescrupulosa em favor da guerra, foi incapaz de restaurar a economia arruinada. Não teve o poder político para mobilizar o Estado em prol de seus objetivos. Ela perdeu o controle do governo, que passou às mãos dos capitalistas agrários e financeiros sob a liderança de Giolitti. Mesmo que não tivesse acontecido dessa maneira, o Estado, caindo aos pedaços, não teria os meios e oportunidades para lidar com a crise e a miséria.
Foi graças a essa situação, e à sua evolução, que o fascismo italiano pode germinar. O líder predestinado que se esperava foi encontrado na pessoa de Mussolini. No outono de 1914, ele era um renegado do socialismo pacifista. Com a palavra de ordem “guerra ou república”, ele se tornou o mais fanático dos belicistas. Em um jornal diário, fundado com dinheiro da Entente, IlPopolod’Italia , ele prometia para as massas de produtores um paraíso na terra como resultado da guerra. Junto com à burguesia industrial ele vagou pelo banho de sangue da guerra; junto a ela, ele queria remodelar a Itália na forma de um moderno Estado capitalista. Mussolini teve de atrair as massas para conseguir intervir como uma força ativa em uma situação que refutou todas as suas profecias e foi contra seus objetivos. Em 1919, ele formou a primeira fasci di combattimenti (liga de soldados da infantaria) em Milão, com o objetivo de assegurar a sobrevivência e desenvolvimento da nação através da “defesa dos frutos revolucionários da guerra revolucionária para os heróis das trincheiras e o povo trabalhador”. Grupos fascistas foram formados em diversas cidades. O novo movimento engajou-se desde o princípio em duras batalhas contra organizações revolucionárias dos trabalhadores, pois estas, segundo Mussolini, “dividiram e enfraqueceram a nação”, ao defenderem a perspectiva da luta de classes. O fascismo também voltou suas armas contra o governo Giolitti, que responsabilizava inteiramente pelo terrível sofrimento do período pós-guerra. O fascismo desenvolveu-se de forma muito lenta e fraca no início. Ele ainda era contido pela confiança que amplas massas mantinham no socialismo. Em maio de 1920, havia em toda a Itália apenas uma centena de grupos fascistas, nenhum deles com mais do que vinte a trinta membros.
Rapidamente, o fascismo foi capaz de arrancar seu sustento e sua força de uma segunda fonte significativa. A situação objetivamente revolucionária levou à ascensão de um humor subjetivamente revolucionário no proletariado italiano. O glorioso exemplo dado pelos trabalhadores e camponeses russos teve aqui uma influência forte. No verão de 1920, os metalúrgicos impulsionaram ocupações de fábricas. Aqui e acolá, chegando até ao sul da Itália, proletários agrícolas, pequenos camponeses, fazendeiros sob o regime de arrendamentos ocuparam propriedades ou se rebelaram de outras formas contra os latifundiários. Mas esse grande momento histórico fez transparecer que a direção dos trabalhadores era débil de espírito. Os líderes reformistas do Partido Socialista recuaram com medo diante da perspectiva revolucionária de aprofundar as ocupações de fábricas em uma luta pelo poder. Forçaram que a luta dos trabalhadores fosse confinada em um movimento puramente econômico, cuja direção cabia aos sindicatos. Em cumplicidade com D’Aragona e outros chefes da Confederação Geral do Trabalho, traíram os escravos assalariados rebelados por meio de um vergonhoso acordo com os empregadores, apoiando-se em ótima colaboração com o governo, especialmente por Giolitti. Líderes da esquerda do Partido Socialista, base através da qual o Partido Comunista seria posteriormente cristalizado, eram ainda pouco formados e inexperientes para tomar o comando da situação, tanto nas ideias como nas ações para conduzir os acontecimentos a outros rumos. Sobretudo as massas proletárias provaram-se incapazes de ir além de sua liderança e empurrá-la em direção à revolução.
A ocupação das fábricas acabou em uma grande derrota do proletariado, causando desmotivação, dúvida e timidez em suas fileiras. Milhares de trabalhadores viraram suas costas ao partido e aos sindicatos. Muitos mergulharam na apatia e indiferença, enquanto outros aderiram a associações burguesas. O fascismo galgou apoio crescente entre os desiludidos e também entre a pequeno-burguesia e os burgueses. Ele havia conquistado a vitória política e ideológica sobre a classe trabalhadora infectada pelo reformismo. Em fevereiro de 1921, havia cerca de mil fascistas. O fascismo ganhou as massas a partir de falsas demandas revolucionárias defendidas através de uma agitação demagógica inescrupulosa. Seu radicalismo verbal pomposo voltou-se, acima de tudo, contra o governo de Giolitti, “traidor da nação”.
Foi, no entanto, a ferro e fogo que o fascismo procedeu em relação a seu segundo “inimigo”: as organizações internacionais dos trabalhadores, os inimigos da pátria. Mussolini exigiu, mantendo suas visões republicanas, antimonárquicas e imperialistas, a destituição da dinastia real e a literal decapitação de Giolitti. Seus seguidores começaram a “disciplinar” os “antinacionalistas”, isto é, as organizações dos trabalhadores com consciência de classe, com terror direcionado e sangrento. Na primavera de 1921, os fascistas empreenderam sua primeira “expedição punitiva”. Eles atacaram o proletariado rural, que teve as sedes de suas organizações destruídas e incendiadas, assim como seus líderes assassinados. Somente mais tarde o terror fascista estendeu-se para o proletariado das grandes cidades. A promotoria e o Ministério Público deixaram que isso ocorresse sem qualquer preocupação em termos de legalidade e justiça. A burguesia, fosse industrial ou agrária, patrocinou abertamente o terrorismo fascista, apoiando-o com dinheiro e de outras maneiras. Apesar das ocupações de fábricas pelos trabalhadores ter terminado em derrota, a burguesia temia uma reanimação futura do poder proletário. Nas eleições municipais, os socialistas elegeram um terço dos oito mil vereadores. Ação preventiva era necessária. Sem sombra de dúvidas!
O governo tinha chance e motivo para derrubar na força o fascismo, que o cercava de forma ameaçadora. Mas, na situação concreta, isso levaria a um fortalecimento do movimento dos trabalhadores. Melhor os fascistas do que os socialistas e os revolucionários, pensou Giolitti. A velha raposa dissolveu o parlamento e decretou novas eleições em maio de 1921. Ele forjou a “aliança pela ordem” de todos os partidos burgueses e nela incluiu as organizações fascistas. Durante a campanha eleitoral, o fascismo engajou-se em barulhentos apelos republicanos. Essa agitação antimonárquica e antidinástica foi silenciada quando a direção e a massa do Partido Agrário se juntou a eles. Os ganhos eleitorais dos fascistas foram em boa parte devido a esse apoio, assim como a ampliação e fortalecimento dos fasci , que, em maio de 1921, chegaram a dois mil grupos. Mussolini estava inegavelmente expondo a si e a sua causa ao risco de inundar o movimento fascista com as forças agrárias. Ele reconhecia isso e, ao interromper sua falsa agitação antimonárquica, abria mão de um forte incentivo para que as massas aderissem ao fascismo.
Quando a batalha eleitoral chegou ao fim, Mussolini queria retomar suas palavras de ordem de 1919. Em uma entrevista para um jornalista do Giornale d’Italia – que representava os interesses da indústria pesada – ele afirmou que os fascistas eleitos não participariam da cerimônia de abertura do parlamento, porque era impossível para eles gritar “Vida longa ao rei!” após o discurso do trono. Essa colocação teve o efeito de pôr à vista a força da ala agrária do fascismo. Alguns deputados eleitos com apoio de grupos fascistas romperam para se juntar aos monarquistas e aos nacionalistas. Uma reunião foi convocada entre deputados fascistas e delegados regionais dos fasci para resolver a disputa. Mussolini e sua proposta foram derrotados. Ele represou seu republicanismo com a explicação de que não era sua intenção dividir o fascismo por conta dessa questão.
Essa derrota impeliu Mussolini a iniciar a constituição do fascismo como um partido organizado e centralizado: até então, ele não passava de um movimento frouxo. A transformação aconteceu no primeiro congresso fascista, em novembro de 1921. Embora Mussolini tenha sido bem-sucedido nesse ponto, ele foi derrotado na escolha da direção do partido; ele não a tinha totalmente sob seu controle. Seus apoiadores mais próximos conformavam apenas a metade dela; a outra metade era formada por monarquistas agrários. Essa situação é importante. Ela indica um conflito no interior do fascismo que continuou e se intensificou até os dias de hoje, um conflito que contribuirá para a sua decadência. É o conflito entre o capital agrário e o industrial ou, em termos políticos, entre monarquistas e republicanos. O partido tem hoje 500.000 membros.
Constituir o fascismo enquanto partido não foi em si suficiente para garantir a Mussolini o poder de tornar-se o senhor da classe trabalhadora e compelir o proletariado, através de um regime de trabalho ainda mais penoso, a contribuir com a reconstrução e futuro desenvolvimento da economia capitalista. Para tal propósito, ele precisaria de um duplo aparato. Um aparato para corromper os trabalhadores, e outro para subjugá-los com força armada e métodos terroristas.
O aparato para corromper o movimento dos trabalhadores foi criado através da fundação de sindicatos fascistas, denominados de “corporações nacionais”. Elas deveriam encarregar-se sistematicamente daquilo que o fascismo tinha feito desde o princípio: combater o movimento revolucionário dos trabalhadores, aliás, qualquer movimento independente dos trabalhadores. Mussolini sempre rejeitou a acusação de conduzir uma luta contra a classe trabalhadora. Ele continuamente dá garantias de que busca elevar material e culturalmente a classe trabalhadora e não a levar de volta “às condições angustiantes de uma vida análoga à escravidão”. Mas tudo isso deve dar-se dentro dos parâmetros da “nação” e subordinado aos seus interesses: a luta de classes é firmemente rejeitada.
Os sindicatos fascistas foram fundados com objetivo explícito de prover um antídoto, não apenas contrário às organizações revolucionárias do proletariado, mas também contra todas as organizações de classe de qualquer espécie. Toda organização proletária é recebida imediatamente com suspeita de ser de caráter revolucionário por Mussolini e seu bando. Mussolini criou seus próprios sindicatos, abrangendo a todos os trabalhadores, empregados e empregadores em determinado ramo de comércio ou indústria. Alguns dos empregadores organizados não aceitaram aderir a tais sindicatos, como foi o caso da liga agrícola e da liga dos industriais. Mesmo assim e apesar de sua heresia, elas não são convocadas a prestar contas às expedições punitivas dos fascistas. Esses assaltos aconteceram apenas nos locais em que as preocupações se voltavam para o proletariado, e que talvez sequer fizessem parte do movimento revolucionário, mas que, ainda assim, lutavam por seus interesses de classe. Dezenas de milhares de trabalhadores foram forçados a aderir aos sindicatos fascistas, dos quais se dizia que abrangiam algo em torno de 800.000 membros.
Os grupos fascistas voltados a subordinar a classe trabalhadora através do terrorismo na Itália se autointitulam esquadrões. Eles constituem uma organização militar que se desenvolveu a partir das expedições punitivas agrárias. Bandos de “punidores”, que se formaram espontaneamente aqui e acolá, tornaram-se organizações permanentes de mercenários pagos, que têm o terror como profissão. Com o passar do tempo, os esquadrões se desdobraram em uma força puramente militar, que levaram à frente o golpe de estado e dão sustento ao poder ditatorial de Mussolini. Após a conquista do poder e o surgimento do Estado fascista eles foram legalizados como a “milícia nacional”, uma parte do Estado burguês. Estão comprometidos, como foi oficialmente declarado, “com a defesa de Deus, da nação e do primeiro-ministro” – note-se: não do rei. Há diversas estimativas sobre sua força. No momento do golpe fascista,(4) elas somavam entre 100.000 e 300.000; agora são meio milhão.
Assim como os erros e traições dos líderes reformistas ajudaram dar luz ao fascismo, também a conquista do poder político pelos fascistas foi precedida de outra traição reformista e, consequentemente, outra derrota do proletariado italiano. Em 31 de julho de 1922, ocorre uma reunião secreta entre os dirigentes reformistas dos trabalhadores italianos – tanto dos sindicatos quanto do Partido Socialista; Turati estava presente, assim como D’Aragona. Decidiu-se pela proclamação de uma greve geral através da Confederação Geral do Trabalho, em 01 de agosto, uma greve que não foi preparada nem organizada previamente.(5) Da maneira como se encontravam as coisas, ela só poderia ter terminado em uma angustiante derrota para o proletariado. Em muitos lugares, a greve só foi iniciada depois que ela já havia colapsado em outros. Foi uma derrota tão profunda e fatal quanto aquela das ocupações de fábricas. Ela deu coragem aos fascistas para levarem à frente seu golpe, ao mesmo tempo em que desencorajou e desmoralizou os trabalhadores que, passivos e desiludidos, abstiveram-se de maior resistência, permitindo que tudo acontecesse. Após o golpe, a traição dos chefes reformistas foi selada quando Baldesi, um dos mais influentes dirigentes da confederação sindical italiana e do Partido Socialista, declarou, sob pedidos de Mussolini, que ele estava pronto a aderir ao governo fascista. Esta vergonhosa aliança ruiu (que desgraça) não por conta de oposição e protesto dos reformistas, mas por causa da resistência dos fascistas agrários.
Esta curta síntese geral permite a vocês a percepção da relação entre o desenvolvimento do fascismo e a decadência econômica que empobreceu e levou à confusão a classe trabalhadora em solo italiano; entre o desenvolvimento do fascismo e a traição da direção reformista – covardes que abandonaram os trabalhadores durante a luta. Aqui, a fraqueza do Partido Comunista também cumpriu um papel. Para além de sua fraqueza numérica, o partido certamente cometeu também um erro político ao encarar o fascismo somente como um fenômeno militar enquanto ignorava seu aspectos ideológico e político. Não esqueçamos que, antes de abater o proletariado por meio de atos de terror, o fascismo italiano já tinha assegurado uma vitória ideológica e política sobre o movimento dos trabalhadores que se encontra nas raízes de seu triunfo. Seria muito perigoso equivocar-se frente à importância de superar o fascismo ideológica e politicamente.
É evidente que, em termos de organização e força, o fascismo pôde desenvolver-se no sentido brevemente aqui descrito porque possuía um programa bastante atrativo para as massas mais amplas. Enfrentamos uma questão que é importante para os proletários de todos os países: O que fez o fascismo na Itália desde a tomada do poder para a realização de seu programa? Qual a natureza do Estado escolhido como seu instrumento? Ele se provou como o prometido Estado acima das classes e partidos, que garantiria justiça para todas as camadas sociais? Ou demonstrou-se como uma ferramenta nas mãos da minoria proprietária e especialmente da burguesia industrial? Isso pode ser melhor avaliado através da comparação entre as principais demandas do programa fascista com a forma com que foram implementadas.
O que o fascismo prometia, em termos políticos, quando surgiu como Sansão com cabelos soltos e selvagens?
Uma reforma no direito do voto e a implementação consistente da representação proporcional. O que vemos? A velha e degradada lei de representação proporcional de 1919 sendo repelida para ser substituída por uma lei eleitoral que é uma piada, uma completa paródia da representação proporcional. O partido que conseguir mais votos receberá dois terços de assentos no parlamento. Houve um debate sobre se deveriam ser dois terços ou três quartos. Segundo recentemente circulou na imprensa, os fascistas ficarão satisfeitos caso o partido mais forte – isto é, o deles – receba dois terços, e o terço restante seja distribuído proporcionalmente entre os vários outros partidos. Que bela reforma eleitoral!
Mussolini prometeu às mulheres o direito de votarem e serem votadas. Recentemente, aconteceu em Roma uma conferência burguesa internacional sobre o direito ao sufrágio feminino.(6) Mussolini honrou às mulheres com sua presença e explicou com um doce sorriso que elas obteriam o direito ao voto – mas apenas para os conselhos municipais. Seus direitos políticos, portanto, continuariam negados. Além disso, nem todas as mulheres ganhariam direitos em eleições municipais; apenas aquelas que conseguissem provar certo nível educacional, além de mulheres com “medalhas de guerra”, e aquelas cujos maridos possuíssem um bolso suficientemente grande para pagar uma certa quantia de impostos. Foi assim como manteve sua promessa sobre igualdade de direitos para as mulheres.
O fascismo incluiu em seu programa a abolição do Senado e a criação de um parlamento econômico, que funcionaria paralelamente ao político. Nada mais se ouve sobre o parlamento econômico. Porém, quando Mussolini fez seu primeiro discurso naquela casa, sede imunda de todos os reacionários, ele celebrou suas contribuições magníficas do passado e confirmou suas grandes realizações do presente – todas as quais exigiam um fortalecimento da influência legislativa do Senado.
O programa fascista clamava pela imediata convocação de uma assembleia nacional para a reforma da constituição. Onde isso se mantém? Nenhuma palavra foi pronunciada sobre tal assembleia. Ao contrário, a reforma constitucional parece ser o seguinte: o parlamento – composto como descrito acima, o que significa uma maioria partidária fascista – nomeia um primeiro-ministro. O primeiro-ministro fascista precisa então ser confirmado pelo rei. O primeiro-ministro forma seu governo do jeito que quiser, se apresenta junto a seu gabinete ministerial para o parlamento, do qual recebe um voto de confiança, e depois o parlamento deixa a cena, sendo suspenso por quatro anos – ou seja, pelo inteiro período de seu mandato.
Comparemos as promessas dos fascistas na área social com suas realizações. O fascismo prometeu proteção legal para a jornada de oito horas de trabalho e o estabelecimento de um salário mínimo aos trabalhadores industriais e agrícolas. Já a legislação proposta possui uma centena de exceções para a jornada de oito horas e conclui permitindo ser ignorada em determinados casos. Acima disso, a jornada de oito horas já foi extinta na prática para largas camadas proletárias, especialmente para os trabalhadores ferroviários, os empregados dos correios e outros ocupados pelas comunicações ou transportes, para quem – exatamente seguindo o modelo “daquele cão miserável do Groener”15 – oito horas à disposição do trabalho são substituídas por oito horas efetivamente trabalhadas.
Qual a situação quanto ao estabelecimento de um salário mínimo? Acorrentados por atos terroristas e a destruição dos sindicatos, graças à conduta das “corporações” fascistas no que respeita à “paz civil”, a resistência dos empregadores às demandas salariais foram reforçadas de tal forma que os trabalhadores não foram capazes, dada a péssima condição econômica, de sequer defender seus níveis salariais anteriores. Ocorreram reduções salariais de 20 a 30% em média – 50% para grande número de trabalhadores. De fato, há casos em que o arrocho chega a 60%.
O fascismo falava em pensões para os idosos e os inválidos, o que os protegeria dos piores níveis de pobreza e sofrimento. O que houve com essa promessa? Os já poucos traços de políticas sociais para os idosos, enfermos e doentes, que se constituíam em um fundo de 50 milhões de liras, foram abolidos. Os 50 milhões de liras foram simplesmente eliminados do orçamento “para economizar dinheiro”, de forma que aqueles que sofrem com a pobreza não têm mais acesso a qualquer recurso social. Foram ainda cortados do orçamento os 50 milhões de liras destinadas a agências de emprego e apoio aos desempregados, e os 60 milhões de liras para as associações de crédito cooperativo.
O fascismo apresentou a exigência de que os trabalhadores fossem incutidos na direção técnica da fábrica – em outras palavras, no controle da produção. Foi prometido que o fascismo sujeitaria empresas públicas à supervisão técnica dos conselhos de fábrica. Agora, debate a possibilidade de uma lei que simplesmente abole os conselhos de fábrica. Além disto, as empresas públicas estão sendo entregues para administradores privados, que em parte já foi feito. A manufatura de fósforos, antes um monopólio estatal, acabou nas mãos de investidores privados. O mesmo ocorreu com o serviço de entregas postais, a indústria telefônica, o serviço de rádio e telégrafo, assim como com as ferrovias. Mussolini afirmou que os fascistas são “liberais no sentido clássico da palavra”.
Consideremos alguns dos frutos do fascismo no campo financeiro. O fascismo prometeu uma abrangente reforma tributária. Seu Estado “autoritário” utilizaria seu poder para impor uma taxação geral e fortemente progressiva sobre o capital, que supostamente seria, até certa medida, uma “expropriação do capital”. Mas o que aconteceu foi a eliminação de inúmeros impostos sobre bens de luxo, tais como carruagens, automóveis e afins. A justificativa foi de que tais impostos “restringem a produção nacional e destroem a propriedade e a família”. Além disso, planeja-se atualmente a ampliação de impostos indiretos com uma justificativa igualmente fantasiosa, que tais medidas reduziriam o consumo e teriam a consequência de um aumento da exportação. Por fim, a exigência de que títulos fossem mantidos no nome de seus possuidores foi eliminada – os assim chamados “títulos de créditos nominativos” – abrindo amplamente as portas para os sonegadores de impostos.
Mussolini e seus capangas chamaram pelo confisco dos bens da igreja. Ao invés disso, o governo fascista retomou uma série de concessões para o clero que eram antigas e há muito encerradas. O ensino religioso nas escolas havia sido abolido cinquenta anos atrás; Mussolini trouxe-o de volta, e um crucifixo deve estar pendurado em cada escola.
O fascismo exigia que os contratos sobre suprimentos de guerra fossem modificados e que até 85% dos lucros de guerra fossem passados para o governo. O que aconteceu? O parlamento criou uma comissão para rever os contratos de suprimentos de guerra. Ela deveria apresentar um informe para o parlamento como um todo. Ao fazê-lo, com certeza iria comprometer profundamente a maioria dos capitães da indústria pesada, os patrões e benfeitores do fascismo. Uma das primeiras medidas de Mussolini foi que essa comissão apresentaria o informe apenas para ele em pessoa, e que qualquer um que revelasse qualquer coisa sobre o documento seria punido com seis meses de prisão. Quanto ao confisco dos lucros de guerra, os tambores do fascismo permaneceram silenciosas, enquanto isso, bilhões foram aprovadas para a indústria pesada para cobrir encomendas de vários tipos. O fascismo queria ainda reformular desde as bases as forças armadas. Reivindicava a abolição do exército permanente, um curto período de serviço militar obrigatório, limitação do exército para a defesa do país em oposição a engajar-se em guerras imperialistas, e assim por diante. Como este programa foi efetivado? O exército permanente não foi abolido. O tempo de serviço obrigatório aumentou de oito para dezoito meses, o que aumentou um exército de 250 mil para 350 mil homens. Verdade, a GuardiaRegia, uma espécie de polícia armada e organizada militarmente, foi abolida. Terá acontecido isso, talvez, porque ela era particularmente impopular entre o povo, especialmente entre trabalhadores, após ter intervindo em assembleias, greves e afins? Exatamente o contrário! Mussolini considerava-a “democrática” demais por estar sob o comando do ministério do interior, ao invés do alto comando, e ele temia que estas forças pudessem entrar em conflito com seus esquadrões e atuar contra ele.
A Guardia Regia era composta de 35 mil policiais. Para compensar sua abolição, o tamanho dos Carabinieri foi ampliado de 65 mil para 90 mil. Além disto, o número de policiais foi dobrado – inclusive os detetives e a polícia aduaneira. Mais que isto, os esquadrões de “camisas negras” foram convertidos pelo governo fascista em uma milícia nacional. A princípio, seu número inicial era estimado em 100 mil, mas uma decisão recente do comando fascista aumentará este contingente para meio milhão.
Os esquadrões foram infiltrados pelos “camisas azuis” nacionalistas – forças agrárias-monarquistas – um fato que deve ter feito Mussolini tremer de medo com a possibilidade de um levante contra a sua ditadura. Desde o momento em que os esquadrões surgiram, ele tomou medidas para que eles ficassem submetidos à direção política do partido, ou seja, sujeitos à sua supremacia. Ele acreditava que esse objetivo teria sido alcançado ao colocar os esquadrões sob um comando supremo nacional, escolhido pela direção do partido. Mas a direção política não podia prevenir os conflitos no interior dos esquadrões, que se tornaram cada vez mais agudos quando os nacionalistas, os “camisas azuis”, entraram para suas fileiras. Para quebrar a sua influência, Mussolini decidiu que todos os membros do partido ingressassem na milícia nacional, para que suas forças fossem iguais às do partido. Dessa forma, Mussolini esperava sujeitar politicamente as forças agrárias que lhe apresentavam resistência. No entanto, trazer os membros do partido para a milícia irá intensificar os conflitos em seu interior, conflitos que irão se arrastar por lá até levar à decadência.
As forças armadas deveriam servir apenas para defender a pátria. Essa era a promessa. Mas o tamanho crescente do exército e a enorme quantidade de armamentos estão voltados para aventuras imperialistas. Aumentou-se enormemente a artilharia, o número do corpo de oficiais foi aumentado, enquanto a marinha está recebendo um reforço especial. Um amplo número de navios de guerra, submarinos, torpedos e afins foram encomendados. A força aérea está sendo desenvolvida de maneira especialmente perceptível. Foram ordenados mil novas aeronaves, e muitos aeroportos foram construídos. Ela possui o seu próprio orçamento e centenas de milhões de liras foram aprovadas para a indústria pesada construir as mais modernas maquinas e impiedosos instrumentos de morte.
Quando se compara o programa do fascismo italiano com sua real implementação, torna-se evidente o seguinte: a completa falência ideológica do movimento. Há uma contradição flagrante entre o que o fascismo prometeu e aquilo que entregou às massas. Todo discurso sobre como o Estado fascista colocará os interesses da nação acima de tudo, assim que exposta aos ventos da realidade, desfez-se como uma bolha de sabão. A “nação” se revelou como sendo a burguesia; o Estado fascista ideal revelou-se como sendo, em sua vulgaridade e falta de escrúpulos, o Estado de classe da burguesia. Essa falência ideológica levará, cedo ou tarde, o fascismo para a sua falência política.
E este dia se aproxima. O fascismo é incapaz de manter unido até mesmo as diferentes correntes burguesas cujo silencioso e generoso patrocínio permitiu sua chegada ao poder. O fascismo queria garantir poder para a redenção social pela tomada do controle do Estado e a utilização de seu aparato de poder para seus próprios fins. Ele não conseguiu nem mesmo subordinar inteiramente o aparato burocrático. Uma luta aguda estourou entre a antiga e emaranhada burocracia contra os novos dirigentes fascistas. O mesmo antagonismo existe entre o antigo exército regular com seu corpo de oficiais e a milícia fascista com seus novos líderes. O conflito entre o fascismo e os partidos burgueses está crescendo.
Mussolini planejava uma organização de classe unificada da burguesia, no formato do partido fascista como uma contrapartida ao proletariado revolucionário. Por isto devotou tanto esforço para esmagar ou absorver todos os partidos burgueses. Foi bem-sucedido em absorver apenas um deles, o partido nacionalista.(7) Como vimos acima, há muitas indicações de que essa fusão seja ambígua. A tentativa de unificar burgueses, liberais, republicanos e democratas em uma moldura conservadora falhou. As políticas fascistas levaram os remanescentes da democracia burguesa a aprofundar-se em sua antiga ideologia. Confrontados com a sede de poder e o uso de violência por Mussolini, eles tomaram para si a luta “em defesa da constituição e para reestabelecer a antiga liberdade burguesa”.
A incapacidade do fascismo em consolidar e aprofundar seu controle do poder político é bem ilustrada por sua relação com o Partido Popular católico(8), com certeza o maior e mais influente partido burguês da Itália. Mussolini acreditava que conseguiria desagregar a ala agrária de direita do partido e unificá-la aos fascistas, ao mesmo tempo que enfraqueceria a ala esquerda e garantiria sua dissolução. As coisas aconteceram de forma diferente. No recente congresso dos populari, em Turim, houve um sincero clamor contra o fascismo. Aqueles na ala direita que tentaram se pronunciar em sua defesa foram calados. Já as mais severas críticas às políticas fascistas foram recebidas com apoio entusiasmado.
Por trás desses conflitos – os que mencionei e outros – está o conflito de classes que é impossível de ser escondido por manobras organizacionais e sermões pela paz social. As contradições de classe são maiores do que todas as ideologias que negam sua existência, e essas contradições encontram expressão apesar do fascismo, aliás, graças ao fascismo e contra ele. A conduta dos populari reflete a conscientização de amplas camadas da pequena-burguesia urbana e dos pequenos camponeses no que diz respeito a sua condição de classe e seus antagonismos com o grande capital. Isso é extremamente importante em relação à controle do poder pelos fascistas na Itália ou, mais corretamente, à desintegração à qual ele está destinado. Essas camadas – e especialmente as mulheres em suas fileiras – são profundamente influenciadas pelo catolicismo e a igreja. Por isso, Mussolini fez tudo o que podia para conquistar o Vaticano. Mas o Vaticano não ousou contrapor-se aos primeiros estágios da rebelião antifascista das massas de pequenos camponeses do Partido Popular.
Os pequenos camponeses veem que o fascismo permite à burguesia impostos mais baixos, maiores possibilidades de sonegação e super-contratos. Enquanto isso, cai sobre eles o peso de impostos mais caros através de pagamentos indiretos e agora através de novos cálculos sobre os ganhos agrícolas. O mesmo vale para as massas pequeno-burguesas na cidade. Elas são forçadas ao enfrentamento com a abolição do controle dos aluguéis imposta pelo fascismo; os inquilinos possuem novamente poder ilimitado para impor altos preços. A crescente rebelião dos pequenos agricultores e dos trabalhadores rurais encontram acentuada expressão precisamente nas regiões agrícolas onde o fascismo imaginava ter toda a resistência dobrada por seus esquadrões. Por exemplo, em Boscoreale, próxima a Nápoles, mas de mil camponeses tomaram a sede do governo municipal em protesto contra os impostos opressivos. Em três localidades da província de Novara, os trabalhadores rurais foram capazes de fazer bem-sucedidas reivindicações acerca de seus salários e condições de trabalho anteriores. Fizeram isso através da ocupação de um determinado número de estados, inclusive com o apoio de esquadrões fascistas.
É de particular importância que parcelas do proletariado intoxicadas e envenenadas pelo fascismo começam a despertar. Enquanto isso, o fascismo é incapaz de defender os interesses dos trabalhadores contra a burguesia, e incapaz de manter as promessas que fez, particularmente aos sindicatos fascistas. Quanto maiores suas vitórias, menos eficiente ele é em manter sua pose de protetor do proletariado. O fascismo não pode sequer forçar os empregadores a manter as promessas fascistas sobre as vantagens de organizações comuns.(9) Onde quer que seja que alguns poucos trabalhadores estejam organizados em sindicatos fascistas, pode ser que seja possível para um capitalista pagar melhores salários para esses poucos. Mas, onde as massas foram arrebanhadas para aderir às organizações fascistas, os empregadores não levam em consideração os “irmãos fascistas”, porque o custo seria muito elevado – e onde as carteiras e os lucros entram em jogo, os senhores do capital são pouco gentis.
O despertar dos proletários foi acelerado especialmente pelo alto número de trabalhadores atirados às ruas sem sustento, não apenas na iniciativa privada, mas também por empresas públicas. Logo após o golpe dos fascistas, 17 mil ferroviários foram demitidos. Mais demissões ocorreram e definitivamente muitas ainda estão por vir. As oficinas militares foram fechadas, deixando 24 mil trabalhadores sem qualquer renda e entregues à exploração irrestrita nas oficinas privadas.
A fervura de uma rebelião contra as políticas econômicas dos fascistas está emergindo justamente entre os trabalhadores organizados pelos próprios fascistas. Em Turim, Nápoles, Trieste, Veneza e em várias cidades foram os sindicatos fascistas que tomaram a direção e, sem exceção, uniram-se a trabalhadores de outros partidos e organizações – incluindo trabalhadores comunistas e sindicalistas – em gigantescas manifestações contra as demissões e fechamentos de fábricas. Inúmeros incapacitados pela guerra que foram dispensados das oficinas militares viajaram de Nápoles até Roma para protestar contra a injustiça que sofreram. Tinham esperança de que Mussolini em pessoa garantisse a eles justiça e proteção, mas ao invés disto, testemunhando pela própria fé, foram presos no momento em que desembarcaram dos trens. Os portuários de Monfalcone e Trieste, os trabalhadores de vários lugares e indústrias – todos membros de organizações fascistas – entraram em ação. Ocupações de fábricas foram retomadas em alguns locais, animadas por trabalhadores em sindicatos fascistas, com tolerância e apoio simpáticos dos esquadrões.
Esses fatos demonstram que a falência ideológica leva à falência política, e que serão, sobretudo, os próprios trabalhadores que irão rapidamente retomar a compreensão de seus interesses e compromissos de classe.
Há muitas conclusões às quais chegar. Em primeiro lugar, é preciso que não se veja o fascismo como um fenômeno homogêneo, um bloco sólido, contra o qual todos os nossos esforços serão em vão. O fascismo é contraditório por natureza, agregando diferentes forças conflitantes que o levarão à sua decadência interna e desintegração. Devemos entrar na luta ainda mais poderosamente não apenas pelas memórias dos trabalhadores que caíram frente ao fascismo, mas também por aqueles pequenos e médios burgueses, pequenos camponeses, intelectuais – em uma palavra, todas as camadas sociais que hoje se encontram, por sua posição econômica e social, em um conflito cada vez mais agudo com o capitalismo de larga escala.
No entanto, seria extremamente perigoso presumir que a decadência ideológica e política na Itália levará rapidamente a um colapso militar. Certamente a decadência e o colapso militar do fascismo ocorrerão, mas poderá ser um lento processo de longo prazo por conta da inércia dos instrumentos de poder disponíveis. O proletariado da Itália se libertará do fascismo. Retomará sua consciência, sua força e se tornará ainda mais resoluto na luta por seus interesses. Ele retomará a luta de classes revolucionária por sua liberdade. Mas, durante este processo, os camaradas italianos e o proletariado precisam reconhecer o fato de que o fascismo, enquanto perece ideológica e politicamente, irá assaltar-lhes com seu terrorismo militar, com generalizada e inescrupulosa violência. Devemos estar preparados! Um monstro, mesmo em sua agonia de morte, frequentemente tem sucesso em desferir golpes avassaladores. Por essa razão, os proletários revolucionários, comunistas e socialistas devem seguir o caminho da luta de classes, preparados e armados para as mais duras batalhas.
A pior coisa que poderíamos fazer seria permitir que nossa compreensão histórica sobre o fascismo nos permita ser empurrados em direção à inatividade, à espera, ou ao adiamento de nos armarmos e lutarmos contra o fascismo. Sim, o fascismo está certamente condenado à decadência interna e ao ocaso. Ele só pode servir à burguesia como uma ferramenta na luta de classes temporariamente; somente temporariamente ele pode reforçar, seja legal ou ilegalmente, o poder do Estado burguês contra o proletariado. Ainda assim, seria um desastre se caíssemos na posição de cínicos e observadores neutros desse processo de decadência. Pelo contrário, é nosso inquestionável dever fazer avançar esse processo e acelerá-lo por todos os meios possíveis.
Este é o principal dever do proletariado não apenas na Itália, onde esse processo provavelmente acontecerá primeiro; esta é também atarefadoproletariadoalemão . O fascismo é um fenômeno internacional; todos concordamos com isso. Até o presente momento, além da Itália, é na Alemanha em que sua força é mais desenvolvida. Aqui, as consequências da guerra e a derrota da revolução foram favoráveis a seu crescimento. Isso é compreensível, tendo em mente o que sabemos acerca das raízes do fascismo.
Na Alemanha, a economia foi especialmente devastada pela derrota na guerra, o fardo das sanções e o Tratado de Versalhes(10). O Estado foi despedaçado até suas bases. O governo é fraco, sem autoridade, um joguete nas mãos dos Stinnes e seus capangas(11). Em minha opinião, não existe país em que os conflitos entre as condições objetivamente maduras para a revolução e a imaturidade subjetiva do proletariado sejam tão agudos, em razão das traições, compreensão e conduta de sua direção reformista. Não há qualquer outro lugar em que a social-democracia tenha colapsado de forma tão vergonhosa quando iniciou a Primeira Guerra Mundial quanto na Alemanha. Aqui, a indústria capitalista estava altamente desenvolvida; o proletariado poderia sentir orgulho de suas poderosas organizações e duradoura educação marxista. Podemos reconhecer que os partidos sociais-democratas britânico, francês e austríaco, assim como todas as organizações da Segunda Internacional, possuíam os seus pontos fortes. Mas o partido que os liderava, o modelo de partido, era o Partido Social-Democrata da Alemanha. Seu desmoronamento é assim um crime ainda mais imperdoável e revoltante do que o de qualquer outro partido proletário. Há mais bases para anistiar e perdoar o colapso de outros partidos quando irrompe a guerra, do que existem para o mesmo processo do Partido Social-Democrata da Alemanha. O impacto desse colapso fez com que as massas proletárias recuassem de uma forma particularmente intensa e destrutiva. Quando o imperialismo alemão foi destroçado pelo imperialismo da Entente, as condições então encontradas aqui eram particularmente favoráveis para a rápida escalada do fascismo.
Mas, apesar de tudo, estou convencida de que nem o Tratado de Versalhes ou a ocupação do Ruhr(12), com todas as suas marcas de violência, contribuíram tanto para o fascismo na Alemanha quanto o golpe de Mussolini. Esse golpe deu mais incentivo aos fascistas alemães do que qualquer outro evento. Deu-lhes autoconfiança e fé em sua vitória. A derrota e o colapso do fascismo na Itália teriam levado imediatamente a uma grande onda de desmoralização dos fascistas na Alemanha, e encorajaria imensamente o proletariado. Ainda mais se o proletariado pudesse dizer: o fascismo na Itália foi vitorioso e por um tempo gozou das alturas do poder, mas já não o é mais, não apenas porque deveria cair por suas contradições internas, mas também por conta da intensa e resoluta ação das massas proletárias. Tal entendimento se espalharia internacionalmente, fosse qual fosse a situação individual de cada país.
Portanto, é nosso dever trabalhar internacionalmente com toda nossa capacidade para superar o fascismo na Itália. Mas, no decorrer desse esforço, não devemos nos esquecer de que há uma precondição para superar com sucesso o fascismo externo, qual seja, para nós, a de também combater o fascismo organizado em nosso próprio país com toda nossa força e derrotá-lo em toda parte.
Eu delineei o desenvolvimento do fascismo na Itália de forma bem geral – embora não geral o suficiente – por encontrar-se maduro, claramente definido e formado diante de nossos olhos. Os camaradas italianos completarão minhas considerações. Não descreverei o fascismo em outros países; isso poderá ser feito pelos delegados de nossos partidos nesses países.
Na resolução que propus, são delineados vários métodos para empregarmos, várias tarefas que teremos de cumprir, se quisermos triunfar sobre o fascismo. Não discutirei a resolução em detalhes: creio que ela fala por si própria. Gostaria apenas de destacar que essas tarefas seguem duas grandes áreas. Uma delas tem como objetivo superar o fascismo ideológica e politicamente, o que é de enorme importância. Ela demanda, em certa medida, que repensemos ou façamos uma avaliação mais precisa de alguns fenômenos sociais que são peculiares ao fascismo em sua essência. Além disso, exige atividade intensa. Devemos estar atentos quanto a isso, como eu disse no início: o fascismo é um movimento dos famintos, daqueles que estão em sofrimento, dos desiludidos, daqueles que estão sem futuro. Devemos fazer um esforço para nos dirigirmos para as camadas sociais que estão tropeçando em direção ao fascismo e incorporá-las em nossas lutas, ou, pelo menos, neutralizá-las durante elas. Temos que agir com dinâmica e clareza para evitar que elas forneçam tropas para a contrarrevolução burguesa. Na medida em que não consigamos ganhar tais camadas para nosso partido ou nossos ideais, e quando não formos capazes de incorporá-las ao batalhão dos trabalhadores revolucionários em luta, devemos ter sucesso em neutralizá-las, esterilizá-las, ou seja, qual for a palavra que prefiram utilizar. Elas não devem continuar nos ameaçando como guerreiras da burguesia. As bases para nosso sucesso estão presentes nas condições de vida que a dominação de classe da burguesia impõe a essas camadas no atual estágio do desenvolvimento histórico.
Em minha opinião, é de extrema importância que nós impulsionemos resoluta e consistentemente a luta política e ideológica pelos corações das pessoas destas camadas, incluindo a intelligentsia burguesa. Precisamos entender que, incontestavelmente, essas massas em número crescente estão buscando uma rota de fuga desta época de agonia e sofrimento. Isso envolve muito mais do que alimentar-lhes o estômago. Elas estão ansiosas por ideais novos e inabaláveis e uma visão de mundo que permita entender a natureza, a sociedade e sua própria vida; uma visão de mundo que não seja uma fórmula infértil, mas que funcione de maneira criativa e construtiva. Não esqueçamos que os bandos violentos fascistas não são compostos inteiramente de rufiões de guerra, mercenários por opção e lumpens venais que têm prazer em atos de terror. Entre eles também encontramos as mais enérgicas forças dessas camadas sociais, aquelas com maior capacidade de desenvolvimento. Devemos ir até elas, com convicção e compreensão de suas condições e de sua inflamada ansiedade, trabalhar entre elas, e mostrar-lhes uma solução que não as faça retroceder, mas, antes, avançar em direção ao comunismo. A grandeza do comunismo como visão de mundo conquistará a simpatia delas para nós.
Em contraste com a Segunda Internacional, a Comintern não é uma Internacional para a elite do proletariado branco da Europa e da América. É uma Internacional para os explorados de todas as raças. Portanto, a partir de agora, o Partido Comunista de cada país não deve ser apenas um combatente de vanguarda dos assalariados no sentido estrito do termo, não apenas o tribuno dos interesses do proletariado envolvido com o trabalho manual, mas também um campeão intelectual dos trabalhadores, um líder de todas as camadas sociais cujos interesses vitais e cuja a ansiedade para atingir uma cultura mais avançada as coloque em crescente contradição com a ordem capitalista. Por isso, eu alegremente dou boas vindas à decisão de nosso plenário de assumir a luta por um governo operário camponês. A nova palavra de ordem não é apenas irrefutavelmente aplicável aos países majoritariamente agrários dos Balcãs, como a Bulgária, a Romênia e outros; também é de grande importância para a Itália, França, Alemanha e, especialmente, para os Estados Unidos da América. Esta palavra de ordem é virtualmente um requisito para a luta pela derrota do fascismo. Ela exige se misturar a amplas camadas dos camponeses explorados e trabalhadores agrícolas para debater a libertação comunista. A tarefa é mostrar para todas as camadas sociais entre as quais o fascismo está recrutando uma massa de seguidores, que nós, os comunistas, defendemos ativamente seus interesses contra a dominação de classe da burguesia. Há algo mais que devemos fazer. Não devemos nos limitarmos a lutar com e pelas massas apenas com nosso programa político e econômico. É verdade que, as exigências políticas e econômicas forçam seu caminho ao primeiro plano. Mas como nós poderemos oferecer às massas mais do que apenas o direito ao pão? Devemos ao mesmo tempo levar-lhes todo o recheio do comunismo. Se isso for feito, nosso movimento irá fincar raízes em todas as camadas sociais, especialmente entre os intelectuais burgueses, deixados inseguros em seus pensamentos e vontades com os recentes desenvolvimentos históricos, perderam sua visão de mundo sem serem capazes de encontrar uma nova frente ao turbilhão de nossos tempos. Vamos lutar para que não se percam.
Neste mesmo espírito, eu digo: “Às massas!”. Mas deixem-me sublinhar uma precondição para o sucesso. Não devemos esquecer as palavras de Goethe: “GetretenerQuarkwirdbreit,nichtstark”. (13) Nós devemos manter a ideologia comunista em toda a sua força e clareza. Quanto mais nos dirigirmos às massas, mais necessário será ao Partido Comunista que esteja unificado em termos organizacionais e ideológicos. Não podemos nos despejar abundantemente como uma poça e nos dissolver entre elas. Isso nos levaria ao oportunismo, e nossos esforços entre as massas ruiriam em uma derrota humilhante. Se fizermos concessões às “dificuldades de entendimento” das massas – e me refiro tanto as velhas quanto novas massas – então teremos abandonado nossa verdadeira vocação enquanto partido. Perdemos o que é o mais importante para os caminhantes – aquilo que os une: a chama da nova vida social que aquece e ilumina, trazendo esperança e força para a luta.
O que precisamos é reorganizar nossos métodos de agitação e propaganda e nossa literatura de acordo com essas novas tarefas. Se a montanha não vem até Maomé, Maomé não tem outra escolha senão ir até a montanha. Se as novas massas que nós precisamos atrair não vêm até nós, então precisamos encontrá-las e falar-lhes em sua própria língua, uma forma que corresponda à maneira como veem as coisas, sem deixar de lado nem o mínimo de nossa perspectiva comunista. Precisamos de uma literatura especial para a agitação entre os camponeses, uma literatura especial para o funcionalismo público e para a pequena e média burguesia de toda espécie, e também uma literatura voltada ao trabalho entre os intelectuais. Não nos deixemos subestimar o papel que os intelectuais podem jogar não apenas na revolução, mas também após ela. Não esquecemos a sabotagem extraordinariamente nociva feita pelos intelectuais na Rússia após a revolução de Outubro. Nós queremos aprender com as experiências de nossos irmãos russos. É por isso que precisamos entender que a questão sobre se os intelectuais estão conosco ou contra nós está longe de ser desimportante, tanto no momento da revolução, quanto após ela se concretizar.
Dessa forma, a luta contra o fascismo nos coloca uma rica gama de novas tarefas. Cada seção própria da Internacional Comunista tem o dever de assumir essas tarefas e executá-las de uma maneira correspondente às condições específicas de seu país. E devemos estar cientes de que superar o fascismo ideológica e politicamente não é suficiente em si para proteger o proletariado em luta da agressividade e da violência de seu inimigo.
De imediato, os trabalhadores tem a necessidade urgente de autodefesa contra o fascismo, e esta defesa contra o terror fascista não deve ser negligenciada nem por um momento. O que se encontra em risco é a segurança pessoal e a própria existência dos trabalhadores; está em jogo a sobrevivência de suas organizações. A autodefesa é a necessidade do momento. Não devemos combater o fascismo da maneira como o fizeram os reformistas na Itália, que imploraram a ele “deixe-me em paz, que o deixarei em paz”. Pelo contrário! Combata-se violência com violência. Porém, não violência na forma do terrorismo individual – que fracassará certamente. Mas a violência como o poder da luta de classe revolucionária do proletariado.
Aqui na Alemanha nós demos início em direção à organização da autodefesa da classe trabalhadora contra o fascismo com a formação de destacamentos fabris.(14) Essas unidades de autodefesa precisam ser expandidas e copiadas em outros países como uma base para o sucesso internacional contra o fascismo.
Mas a luta e a autodefesa proletárias contra o fascismo necessitam de uma frente única proletária. O fascismo não questiona se o operário na fábrica tem a alma pintada das cores azul e branco da Baviera; ou se é inspirado pelas cores vermelho, preto e dourado da república burguesa; ou pelo estandarte vermelho com a foice e o martelo. Ele não questiona se o trabalhador quer restaurar a dinastia Wittelsbach da Baviera, se é um fã entusiasmado de Frederich Ebert, ou se preferiria ver nosso amigo Brandler como presidente da República Soviética da Alemanha. Tudo o que importa ao fascismo é que ele se defronte com um proletário com consciência de classe, e então eles o atacam até que esteja no chão. Esse é o motivo pelo qual os trabalhadores devem se unir para a luta sem distinções de filiação partidária ou sindical.
A autodefesa proletária contra o fascismo é uma das mais intensas ações que nos levam ao estabelecimento e fortalecimento da frente única proletária. Sem a frente única é impossível para o proletariado exercer sua autodefesa de maneira bem sucedida. É, portanto, necessário ampliar nossa agitação nas fábricas e aprofundá-la. Os nossos esforços devem superar sobretudo a indiferença e a falta de consciência e solidariedade de classe nos corações dos trabalhadores que dizem: “Deixe que os outros lutem e se mexam; não é da minha conta”. Nós devemos martelar em todo trabalhador a convicção de que isso é de sua conta. “Não me deixem de fora. Eu preciso estar lá. A vitória é possível”.
Cada proletário deve sentir-se mais do que um simples escravo assalariado, um joguete ao sabor dos ventos e tempestades do capitalismo e dos poderes estabelecidos. Os proletários devem se sentir e se compreender como membros de uma classe revolucionária, que reconstituirá o velho Estado dos proprietários em um novo Estado sob o sistema soviético. Apenas quando incitarmos a consciência de classe revolucionária em cada trabalhador e acendermos a chama da determinação de classe, só então obteremos sucesso em preparar e realizar a necessária derrubada militar do fascismo. Independente de quão terrível possa ser temporariamente a ofensiva do capital global contra o proletariado internacional, independente de quão forte seja a sua ira, a luta do proletariado terminará por abrir o caminho para a sua vitória. Apesar do fascismo, vemos que a economia capitalista, o Estado burguês e sua dominação de classe chegaram a seu limite. Os sintomas da decadência fascista e da desintegração no interior da sociedade burguesa anunciam sonora e pungentemente que nossa vitória está a caminho, dado que o proletariado lute com conhecimento e vontade em uma frente única. É isso o que deve acontecer!
Para além do caos das condições presentes, o proletariado retomará sua forma gigante com o grito: “Eu tenho a vontade! Eu tenho o poder! Eu sou a luta e a vitória! O futuro a mim pertence!
Notas de rodapé:
(1) Miklós Horthy foi o líder do regime contrarrevolucionário na Hungria que se seguiu à derrubada do governo soviético húngaro que existiu de março a agosto de 1919. (retornar ao texto)
(2) Otto Bauer era o líder e principal pensador do Partido Social-Democrata Austríaco. Era membro da centrista Internacional Dois e Meio, que se fundiu com a direitista II Internacional no Congresso de Hamburgo, entre os dias 21 e 25 de maio de 1923. (retornar ao texto)
(3) A Geórgia, antes parte do império czarista, tornou-se independente após a Revolução Russa de outubro de 1917, com um governo liderado pelo Partido Menchevique, que era hostil à Rússia soviética. Em 16 de fevereiro de 1921, tropas do Exército Vermelho ocuparam a Geórgia em apoio a uma sublevação local pró-soviética. A Geórgia logo passaria a ser uma república soviética independente ligada à Rússia por um tratado. Uma parte da Armênia, formalmente dividida entre os impérios Otomano e Russo, tornou-se independente após a Primeira Guerra Mundial, sob o governo dos Dashnaks, um partido nacionalista. Em setembro de 1920, forças turcas atacaram o país; em novembro, na medida em que a resistência militar armênia entrou em colapso, tropas soviéticas ocuparam o país em apoio a um levante pró-soviético, e à criação da República Socialista Soviética Armênia. (retornar ao texto)
(4) Uma referência à “Marcha sobre Roma” fascista de 22 a 29 de outubro de 1922, após a qual Mussolini foi solicitado a formar um ministério. (retornar ao texto)
(5) Em 31 de julho de 1922, a Alleanza del Lavoro – reunindo a Confederação Geral do Trabalho e outros sindicatos – declarou uma greve geral contra o regime de Mussolini, marcada para o dia seguinte. Vinda após ondas de ataques fascistas praticamente impunes e sob crescente desmoralização da classe trabalhadora, a greve mal organizada teve pouca adesão dos trabalhadores e encontrou repressão dura. Consequentemente, os líderes capitularam e encerraram a greve dia 3 de agosto. (retornar ao texto)
(6) Uma referência ao IX Congresso da Aliança Internacional pelo Sufrágio Feminino, em Roma, entre 12 e 19 de maio de 1923. (retornar ao texto)
(7) A Associação Nacionalista Italiana ingressou o Partido Fascista de Mussolini em março de 1923. (retornar ao texto)
(8) Uma referência ao Partido Popular Italiano, de orientação democrata cristã. (retornar ao texto)
(9) Uma referência aos sindicatos fascistas, denominados corporações, que eram supostamente “organizações comuns” do trabalho e do capital. (retornar ao texto)
(10) O tratado de paz de Versalhes, assinado em 28 de junho de 1919, entre os poderes Aliados e a Alemanha, tinha entre suas cláusulas a transferência de 10 por cento do território alemão para França, Bélgica, Dinamarca e Polônia, e obrigava a Alemanha a pagar U$ 33 bilhões de dólares (quantia equivalente a U$ 461 bilhões em 2016) em reparação aos poderes da Entente. (retornar ao texto)
(11) Hugo Stinnes foi um dos mais importantes capitalistas alemães com um império econômico vasto e multifacetado. (retornar ao texto)
(12) Em 11 de janeiro de 1923, 60 mil soldados franceses e belgas invadiram ocuparam a região do Ruhr, na Alemanha – o centro de sua produção de aço e carvão – em uma tentativa de extrair reparações de guerra quando a Alemanha não foi capaz de cumprir os termos do Tratado de Versalhes. A ocupação durou até 1925. (retornar ao texto)
(13) Literalmente: “queijo pisado espalha-se, mas não fica forte”. Do Divã oriental-ocidental de Goethe. Os versos que o seguem esclarecem o que queria dizer o autor: “Martele-o firmemente em um molde forte e ele tomará forma – um tijolo para construção”. (retornar ao texto)
(14) Uma referência à Proletarische Hundertschaften (algumas vezes traduzida como “centenas proletárias”), que eram milícias de trabalhadores para autodefesa contra-ataques e assassinatos paramilitares da direita. Elas foram organizadas a princípio por iniciativa de um movimento de conselhos de fábricas na Alemanha Central, em fevereiro de 1923. O Partido Comunista da Alemanha buscou constituí-los em um movimento de frente única nacional que pudesse ser também utilizado na luta revolucionária pelo poder. Por volta de maio de 1923, dezenas de milhares de trabalhadores estavam em suas fileiras. (retornar ao texto)