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Antes e depois do processo de Leipzig não terão, porventura, os Partidos comunistas da China e do Japão apresentado em seu seio êmulos gloriosos dos nossos Dmitrovs europeus?
Um dos mais heroicos é o comunista japonês Itsikava Sioitsi. Seu Partido está na dianteira do combate contra a guerra imperialista. Afronta o mais esfomeado dos agressores, o mais raivoso dos incendiários militares, o mais feudal dos mata-sete de comunismo e de liberdade, o mais digno penduricalho do racismo hitlerista. Luta nas piores condições de ilegalidade. Seus militantes são encurralados, isolados ou cortados do mundo, supliciados.
O heroísmo, aqui, custa caro, não apenas a morte brusca ou lenta, mas a tortura atros. Exige nervos de aço.
E de que aço são esses nervos do militante, que não trepida em desmascarar, perante os juízes do Mikado. “os cães de fila da camarilha militar e da monarquia”, que, perante alguns desses cães de fila, se esforçou por “abrir os olhos do povo mostrando-lhe os crimes dos seus governantes” e se empenhou, em nome do seu Partido, em prosseguir inabalavelmente a luta começada!
Como se formaram os nervos de Itsikava? Nascido em 1892, é, em 1922, um dos fundadores do Partido Comunista Japonês. Em junho de 1923, é preso. Recusa responder. Ao cabo de sete meses, à falta de provas, põem-no em liberdade. Combate inflexivelmente pela justa linha do Partido, contra os oportunistas de direita e de esquerda. Membro do Comitê central, a partir de 1926, é eleito secretário e, sob sua direção, a autoridade do Partido progride rapidamente no seio das massas.
A 19 de março de 1928, a polícia prende mais de mil comunistas. Itsikava escapa à prisão. Leva vida clandestina e move luta ilegal. Participa do VI Congresso da Internacional Comunista e, de volta a Tokio, populariza-lhe as resoluções. Seu trabalho de organizador contribui para a reconquista das posições perdidas, para sua consolidação.
Em abril de 1929, é preso. Os carrascos, que têm as mães sujas de sangue de muitas vítimas recentes, aplicam-se a vergá-lo. Dois meses de suplícios, noite e dia, não bastam para isso. Cerra os dentes e cala-se. Seu heroísmo excita o entusiasmo dos outros detidos.
Tem que suportar esse regime durante dois anos, antes de comparecer à audiência com seus camaradas.
E, qual a tarefa que lhe confia o Comitê Central do seu Partido? Não apenas transformar o banco dos réus em tribuna e a defesa em acusação.
A esse prisioneiro, isolado do mundo, privado de todo meio de documentação, munido da única arma que não tinha sido possível confiscar-lhe, a dialética marxista-leninista, cabia a missão quase sobre-humana de levar, em semelhantes condições, uma ajuda política, ideológica, ao seu Partido mutilado.
E assim é que Itsikava, durante oito dias consecutivos, iria afrontar as represálias, as interrupções violentas, para expôr a história, pouco conhecida, dos dez últimos anos de luta do Partido. Devia, à força de tacto e de habilidade, tirar proveito de todas as perguntas do presidente, para divulgar, sob a forma de respostas, o programa e a tática do Partido, que grande parte do povo ignorava ou só percebia através das calúnias interessadas da oligarquia capitalista e feudal.
Faça-se ideia da audácia e do autodomínio de que carecia para ganhar essa verdadeira aposta contra um tribunal que não se deixava facilmente dominar, gritava que isso era propaganda e brandia a cada momento a ameaça de fechar as portas. Combate pungente, do qual tiramos da Internacionacionale Communiste, de setembro de 1936 alguns episódios:
Sessão de 23 de julho de 1931:
Itsikava: “O perigo de guerra, no momento presente, torna-se cada vez mais iminente. O 1.° de agosto, dia de luta contra a guerra, aproxima-se. Os operários do mundo inteiro devem lutar, sob a bandeira do Partido Comunista, por manifestações em massa de protesto, contra a guerra imperialista. Se rebentar a guerra, o proletariado deve derrubar o governo burguês e transformar a guerra, imperialista em guerra civil. E\ uma ideia que é preciso popularizar entre os operários e camponeses de todos os países”.
O Presidente (dando murros na mesa e gritando): — Se vosso discurso vem acompanhado de tal propaganda e agitação, terei que mandar fechar as portas!
Itsikava: “Absolutamente não faço propaganda. Falo apenas da atividade movida pelo Partido Comunista”.
E, no decorrer da mesma sessão:
Itsikava: “Passo a falar das revoltas do arroz”.
O Presidente — Se falardes das revoltas do arroz, sereis processado.
Itsikava (sorrindo) — “Como é terrível ser denunciado ainda uma vez em justiça!” (Continua a falar das revoltas do arroz).
A 28 de julho, o presidente perguntava a Itsikava se tinha participado do VI Congresso da Internacional Comunista. Itsikava desvia habilmente a questão, que utiliza para instruir seu Partido, até que o presidente se aperceba disso:
Itsikava: “O Partido Comunista Japonês, submetido a condições de um terror branco desenfreado, enviou alguns delegados ao congresso. O fato de que delegados do Partido Comunista tenham assistido pela primeira vez a esse congresso, testemunha o crescimento extraordinário do P.C.J. Terei eu tomado parte nele pessoalmente? É uma pergunta à qual não tenho necessidade de responder. O VI Congresso da I.C., depois de longos e ardentes debates, adotou o programa da I.C. e as teses apresentadas sobre diversas questões. Os delegados japoneses tomaram, como os camaradas de todos os outros países, parte ativa na discussão e na elaboração das teses e do programa. O congresso, depois de ter registado os progressos do movimento revolucionário no Japão, nas teses relativas à situação internacional...”
O Presidente — Não consinto que faleis do seu conteúdo.
Itsikava: “A delegação japonesa ao congresso, utilizando todos os momentos livres, discutia a questão japonesa. Nesse momento, tomou-se uma decisão concernente à necessidade de fazer do P. C. um partido de massas...”
O Presidente — Estais voltando a essas coisas? Se recomeçardes, ordenarei o fechamento das portas... Quereis, talvez, utilizar o processo para dar novas instruções para fora?
Itsikava: “Lutamos e continuaremos a lutar tenazmente contra essas arbitrariedades”.
Foi, porém, na audiência de encerramento, quando o procurador requerera, contra os 179 comunistas acusados, perto de um milênio de prisão, que Itsikava pronunciou o famoso discurso político cujo texto fora publicado, em novembro de 1931, na revista Proletaria Kagaku (Ciência Proletária).
E eis uma passagem essencial, cuja força e alcance revolucionário é inútil sublinhar. É o mais terrível libelo que os cães de fila de um regime tão monárquico, militar e feudal, sem dúvida, jamais ouviram:
“Se; queres matar o capitão, atira primeiro no seu cavalo”.
“O regime monárquico é o cavalo e a instituição da propriedade privada o capitão. Montada no cavalo da monarquia, a burguesia oprime os operários e os camponeses. Para matar o capitão, isto é, a instituição da propriedade privada capitalista, devemos fazer todos os esforços para matar primeiro o seu cavalo, isto é, derrubar a monarquia... Mas não paramos nisso. Mesmo desmontado, o capitão não morre logo. É preciso cortar-lhe a cabeça. De outro modo, nada terá sido feito. Eis porque é preciso, depois de ter derrubado a monarquia, ir mais longe, isto é, destruir a propriedade capitalista privada, o regime capitalista...
“O procurador, em seu libelo, pretende que somos criminosos. Mas, relativamente a quem terão os comunistas cometido crimes? Relativamente a quem é criminoso trabalhar pela derrubada da monarquia reacionaria e contrarrevolucionária, que tirou toda a liberdade às massas operárias e camponesas, que constituem 90% do povo, e acorrentou as massas populares nos ferros da escravidão? De quem uma pessoa é inimiga, quando se ergue contra os fautores de uma guerra imperialista, os quais impelem as massas operárias e camponesas para uma carnificina fratricida, em nome dos lucros de um punhado de burgueses e de proprietários territoriais? Será que se pode dizer que nosso Partido, que luta por uma melhoria radical das condições de vida dos operários, pela jornada de sete horas, seja inimigo dos operários e dos camponeses? Será que se pode dizer que nós, comunistas, que dirigimos a luta dos camponeses, quando eles s>e rebelam pedindo terra, que nós, que lutamos pelo confisco das terras dominiais e das dos mosteiros e dos proprietários territoriais parasitas, sejamos inimigos dos camponeses?
“Não são os capitalistas, os proprietários territoriais e os monarquistas que a maioria esmagadora do povo considera ermo seus inimigos? Nosso Partido não cometeu nenhum crime contra os operários e os camponeses. Somos inimigos de um punhado de burgueses e de proprietários territoriais... O procurador demorou-se em considerações sobre o respeito ao regime, sobre o caráter sagrado da monarquia. E, falar desse modo, não é, única e simplesmente, desconhecer a realidade. Para isso há causas profundas, de classe.
“A monarquia de hoje constitui, nas mãos dos capitalistas e dos proprietários territoriais, um instrumento de que se servem para açambarcar lucros. Além do mais, o regime do Estado japonês, isto é, da monarquia militar japonesa, distingue-se por sua velha barbárie reacionaria. Sufoca a vida política das massas populares...
“Destruir esse regime de reação por uma revolução popular é, talvez, aos olhos da burguesia e dos proprietários territoriais, um crime cujo autor merece o cadafalso. Absolutamente, porém, não é crime contra nosso povo de setenta milhões de almas. As massas operárias e camponesas se vão convencendo disso...
“Fulminando contra a revolução violenta, o procurador Hirota, agente da burguesia, queria criar, entre as massas operárias e camponesas, a impressão de que o P.C.J. é um grupo de bandidos e de corta-pescoços. Queria provocar entre os operários e os camponeses atrasados um sentimento de terror perante o P. C. J...
“... A violência que os comunistas preconizam não consiste em lançar bombas e brandir sabres.
“A revolução é a força das massas organizadas. O procurador Hirota procurava semear o medo; apresentando o P.C.J. como um grupo de bandidos. Ora, os capitalistas e os proprietários territoriais é que usam de uma violência selvagem e reacionária. Não maltratam, porventura, os operários e os camponeses, diariamente, com a ajuda dos seus agentes; policiais, gendarmes, procuradores, juízes e carcereiros, grupos de bandidos pagos? Não desencadeiam, porventura, contra os operários e os camponeses o terror branco, eles próprios violando as leis enganadoras criadas em seu próprio interesse? Será que não se recorre contra os operários e os camponeses durante as greves, assim tomo durante, os conflitos camponeses e por ocasião das prisões de comunistas, à violência, à injuria, à tortura, a todas as formas do terror branco, aberto, ou às escondidas, feroz e bestial?”
Três anos depois, a questão é levada perante a Corte de Apelação. Entrementes, três coacusados de Itsikava tinham fraquejado e depois traído. Itsikava consagra parte de sua defesa à execução política desses renegados, à análise educativa de sua deserção:
“Foram os acontecimentos mandchus que assinalaram para eles o ponto em que se processou a mudança, em que, sob a influência da situação que se esboçava no país, começaram a pender para o apoio ativo da guerra imperialista. O passo seguinte foi a capitulação perante o nacionalismo burguês, que pretendia subordinar a classe à nação...
“Sano e Nabeyama difamam e atacam a I.C., declarando que, para eles, ela absolutamente não constitui autoridade. Não nos detenhamos nisso, que são frivolidades. Estamos profundamente convencidos de que, sob a direção dos comunistas, o proletariado japonês conquistará sua liberdade".
Itsikava foi condenado, como Rakosi, como Antikainen, ao degredo perpétuo. O degredo de Hokkaido; um leito de pedra fria, um trabalho deprimente, o silêncio e a imobilidade absoluta, a fome, a tortura, à vontade dos carcereiros, pelo menor pecadilho. Uma lenta agonia.
Itsikava não se deixa quebrar:
“Continuo firme”, escreve ainda em março de 1935, “não por orgulho, não por glória, não para perpetuar meu nome. Faço simplesmente o que todos deveriam fazer, quando em minha situação”.
Será possível levar mais alto, mais longe, mais próximo dos limites humanos, a vitória do homem sobre si mesmo, a simplicidade em seu heroísmo?
O sacrifício de tal combatente não deixou de fazer escola e de suscitar novos êmulos, como Yamamoto Massami, como o jovem camponês Endo Ganzi e tantos outros, para quem as piores torturas foram impotentes para vergar-lhes a vontade.
Como os nomes de Thaelmann e de Rakosi, o nome de Itsikava figura na lista dos membros do Comitê executivo que foi eleito, por aclamações, no VII Congresso da Internacional Comunista, sob a presidência de Dmitrov.
O exemplo de Itsikava e de seus melhores camaradas aumentou singularmente a autoridade do Partido Comunista Japonês no seio das massas laboriosas do Japão.
Desde julho de 1932, a indignação dos trabalhadores contra o veredito manifestou-se em comícios de empresa e de rua. A atmosfera era tal que o tribunal, bombardeado de telegramas e de cartas, assediado pelo protesto popular, se fazia guardar por patrulhas e metralhadoras.
Enquanto a figura de Itsikava, sua atitude inflexível em presença do juiz e do carrasco, excitavam o entusiasmo das massas, a emulação dos militantes, sua defesa, assim que foi publicada, espalhava em todo o país o mais rico ensinamento político.
Dois meses depois do primeiro processo, o Império do Sol Nascente atirava-se sobre a Mandchúria, preparava-se para es-
pedaçar a China, antes de preparar lá uma praça de armas contra os Soviets. Era o pensamento de Itsikava, do chefe fisicamente isolado, supliciado, porém vencedor, que iria exaltar a luta heróica do Partido Comunista Japonês contra o imperialismo agressor e incendiário do Oriente.