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Quando, enfim, consegui ver Matias Rakosi, em sua prisão de Budapeste, já havia nove anos que ele estava detido, isolado do mundo exterior, privado dos cuidados que seu coração doente exige e terrivelmente racionado em suas leituras. Depois de lhe ter transmitido a saudação de seu irmão e “de todos os seus amigos do mundo inteiro que se preocupavam ativamente com ele”, disse-lhe (em presença do diretor da prisão e de um substituto) que “a opinião pública universal, interessada em seu processo, tinha os olhos fixos nele, velava sobre ele e estava convencida de que apresentaria uma defesa digna de si mesmo, digna de Dmitrov”.
Digna de Dmitrov? Entre os heróis tão numerosos que &e mostraram discípulos do mestre, nenhum foi mais digno. Nem mais chegado, apesar de suas naturezas diferentes.
Budapeste, por sua vez, serviu de campo de luta para as duas forças inimigas, para os dois mundos inconciliáveis, que se tinham medido em Leipzig.
Em Budapeste, como em Leipzig, o processo não tinha por objeto apenas uma vingança de classe: visava desacreditar aos olhos das massas a democracia soviética, dividir o povo, excitando os camponeses, os intelectuais, contra o movimento operário revolucionário, justificar a oligarquia húngara da traição nacional, justificar seu terror branco e sua política de aventura.
Em 1917, Rakosi era prisioneiro de guerra na Rússia. No fim da guerra, volta para a Hungria, onde adere, em 1918, ao Partido Comunista e, propagandista ativo, é preso em fevereiro de 1919.
Vem, depois, a abdicação do imperador e a queda do antigo regime, o poder era exercido por um Conselho nacional. O conde Michel Karolyi, feito presidente da República, tinha confiado o governo a um gabinete de maioria social-democrata. Em vista das exigências territoriais dos Aliados, o conde Karolyi pedia demissão, e os comunistas, sem nenhum derramamento de sangue, de acordo com os social-democratas, instituíam a ditadura do proletariado.
Todos se lembram do heroísmo com que os Soviets húngaros, recusando submeter-se às injunções das potências vitoriosas, puseram em cheque a coalizão. Mas foram enfraquecidos pelo fraquejar dos social-democratas e traídos pelos oficiais mercenários do inimigo.
Março-julho de 1919: ao cabo de quatro meses e meio de criação social e de combate, a revolução proletária sucumbe sob o esforço conjugado das forcas brancas, dos exércitos tcheco e romeno, do estado-maior francês.
Os magnatas magiares, assim que voltaram dos seus borralhos do estrangeiro a Budapeste, desencadearam um pavoroso terror branco sobre o país mutilado, sangrento: o regime semi- feudal do rei sem coroa, o regente Horthy.
Rakosi, que tinha sido comissario-adjunto para o Comércio, que, depois, se tinha batido na qualidade de chefe no Exército Vermelho, escapa ao massacre. Ainda não tem vinte e cinco anos.
Em 1925, ei-lo em seu posto, à frente de seu Partido perseguido, com perigo de vida. É preso e encarcerado, “já fazem treze anos que está encarcerado...”
Um primeiro libelo que, formulado desde 1920, contra os antigos comissários do povo, exigia sua cabeça, é provisoriamente posto de lado. As coisas vão se fazer a retalho.
É levado (em novembro de 1925) perante uma Corte Marcial, que só pode condenar à pena de morte e o carrasco está na sala de audiência.
Nessas condições é que Rakosi se defende pela primeira vez: nem por um momento perde o sangue frio. Alia a elasticidade tática a uma firmeza revolucionária admirável.
— “Acusais-me de ter fomentado uma insurreição, diz, em suma, aos juízes. Mas, ao contrário, minha tarefa política atual é lutar por um Partido Comunista legal”.(1)
E a Corte Marcial é forçada a declarar-se incompetente.
Comparece, então, em 1926, perante um tribunal de direito comum. E, aí, amplia o debate. Toma a ofensiva. Faz por si mesmo o processo dos feudais húngaros e de seus comparsas.
Será que esses senhores cumpriram suas belas promessas de felicidade e de renascimento nacional prodigalizadas ao povo, há 7 anos, quando retomaram o poder?
Não, constata, friamente, Rakosi. Apostrofa-os: quem sois? que representais? Qual vossa razão histórica de ser? Não sois outros senão aqueles que, há quatro séculos, oprimem os trabalhadores, os camponeses deste país. Restabelecestes o capital financeiro, essencialmente internacional. Instaurastes novamente a pequena nobreza nas funções públicas, onde atualmente é duas vezes mais numerosa do que na grande Hungria, antes da mutilação dos tratados. E é o povo quem paga!
O tribunal, em seus motivos de julgamento, evita cuidadosamente fazer alusão à atividade governamental de Rakosi: o Rakosi que pretende julgar é o comunista ilegal de 1925. Oito anos e meio de trabalhos forçados!
É evidente que esse tribunal sabia perfeitamente quem condenava: um dos heróis da Comuna húngara, e porque, na realidade, e condenava a essa pena tão desproporcional à inculpação oficial e a sua “tarifa” normal!
Mas confiava em que ele não resistiria a esses oito anos e meio de morte lenta. Era conhecer mal esse revolucionário indomável.
Este morto aos pouquinhos deu-se ao luxo de não fraquejar. Por pouco teria saído vivo da sepultura! É preciso impedir, a qualquer preço, que isso se de, renovar seu emparedamento.
Sua pena expira em 1934: o governo conserva seu refém, transfere-o de Szeged para Budapeste e retoma contra ele velhos agravos, não somente anteriores à condenação que já tinham, de fato, determinado, mas de mais de quinze anos!
Depois de terem especulado sobre seu deperecimento e sua agonia vai-se, agora, especular sobre sua fadiga, sobre o desgaste de seus nervos e a falha de sua memória.
Escoam-se sete meses de prisão preventiva. E, quando a ata de acusação é enfim assinada, precipita-se bruscamente o processo(2): não se deixa a Rakosi tempo sequer para compulsar seu dossier enorme; é privado de todo meio de preparar sua defesa política. Recusa-se-lhe qualquer leitura em língua estrangeira. Interceptam-se os jornais, mesmo húngaros. Limitam-se ou controlam-se, até à ilegalidade, suas comunicações com seus advogados. Isolam-no do mundo exterior.
Não pode ser atribuído contra sua pessoa nenhum fato condenável. Não se pode mesmo comprovar se ele participou ou não de certa deliberação incriminada do Conselho dos Comissários do Povo. Pouco importa: “é a democracia proletária que se trata de arrastar para o banco dos réus”. É o processo dos Soviets húngaros que a ditadura branca pretende instituir na pessoa de seu refém.
Mas é evidente que se recusará a Rakosi o direito de defender aquilo de cuja participação se faz um crime para ele, e, com maior razão ainda, o direito de contra-atacar o regime agressor.
E, para melhor sabotar a defesa política, assim como para contornar o tratado de Trianon, que a acusação viola imprudentemente(3), desnatura-se a qualificação dos atos governamentais de que se quer condenar: são assemelhados a crimes de direito comum. Moeda falsa, sedição, traição, assassinatos... E quem ousa levantar tais acusações?
De que lado estão os moedeiros falsos? Do lado dos trabalhadores no poder, que cunharam sua moeda para assegurar sua independência e sua vida? Ou do lado dos que, muito mais recentemente, imitaram fraudulentamente as cédulas emitidas pelo Banco da França?
De que lado estão os traidores? Do lado dos combatentes, que defenderam palmo a palmo a pátria conquistada, o território de um povo liberto, contra a coalizão dos apetites estrangeiros e das cobiças brancas? Ou do lado dos oficiais, que sabotaram a defesa, do lado dos generais e dos ministros que, reinstalados no poder e reintegrados em seus domínios pelo inimigo, consagraram em Trianon a mutilação do país?
De que lado estão os assassinos? Do lado dos juízes revolucionários, que condenaram à morte algumas dezenas de salteadores e de traidores? Ou do lado dos magnatas que, com o desprezo dos compromissos, desencadearam o terror mais mortífero, massacraram seus concidadãos de volta da frente de batalha, do lado dos organizadores de bandos terroristas, dos instigadores, que armaram o braço dos assassinos de Barthou e do rei Alexandre da Iugoslávia?
Eis o que saberá mostrar Rakosi, cuja “valente atitude, profundo devotamento à revolução, heróica defesa da causa proletária decepcionarão em larga parte os planos dos organizadores desse monstruoso processo”.(4)
Para compreender a que ponto Dmitrov tem razão é preciso nos capacitarmos de que, no momento em que se abre esse processo, em 1936, Rakosi está emparedado há onze anos, está fisicamente enfraquecido (sofre do coração), está isolado do mundo. Nestas condições é que este homem surpreendente vai aproveitar a ocasião, que tal processo lhe oferece, para ampliar, explorar a fundo a ofensiva que já tinha empreendido há dez anos, perante os juízes de 1926.
No segredo de sua cela, estuda profundamente os dados. Há 16 anos que, aos olhos das massas, o pessoal dirigente e beneficiado da contrarrevolução deu prova de seu abuso de confiança e de sua incapacidade.
Rakosi sabe ver que chegou o momento de tirar proveito da publicidade dos debates para fazer aos olhos de todos o balanço da bancarrota do regime.
E sua firmeza igualará sua clarividência.
Nada de palavreado vão: fatos. Nada de histórias: história.
Relegando para segundo plano sua defesa pessoal, seus álibis pessoais, desdenhando toda chicana, tomará, sem hesitar, altivamente, como bolchevique, a responsabilidade de todas as medidas revolucionarias do poder proletário.
Em nome do povo, de que é o porta-bandeira muito consciente, esse emulo de Dmitrov vencerá as pobres habilidades dos fazedores de armadilha e, com ironia, com força, saberá impor-se, acusar, contra-atacar o adversário.
Desde o princípio do interrogatório, enfrenta o presidente que o encara de cima abaixo e o trata como inimigo público de “direito comum”, calmamente; e não se deixa intimidar nem pelas interrupções brutais, nem pelas chamadas à ordem.
— “Assististes, pergunta-se-lhe, a sessão em que o Conselho dos Comissários do Povo, decidiu enviar tropas para reprimir a greve dos ferroviários na Hungria ocidental? Participastes da decisão concernente ao estabelecimento de tribunais revolucionários? Colaborastes no decreto que ordenou a organização de um Exército Vermelho?”
Rakosi responde que não se pode lembrar, ao cabo de 16 anos, a que sessões assistiu, se votou ou não, em certa data, tal ou qual medida, e faz observar que essas perguntas lhe deviam ter sido feitas em 1925, época em que essas lembranças eram menos antigas em sua memória.
— “Mas, acrescenta, declaro de maneira perfeitamente clara que aprovo todas as medidas e decretos do governo soviético, que assumo toda a responsabilidade do que fiz em nome do Estado operário-camponês. Assim, a repressão da greve dos ferroviários era um necessidade vital para o poder proletário. No próprio momento em que lutávamos de armas nas mãos contra o imperialismo tcheco, a burguesia húngara, com o conde Stephan Bethlen à frente, organizava a greve entre os empregados da estrada de ferro do sul. Nisso é que se resumiu o seu patriotismo...”
E ao presidente, que o chama brutalmente à ordem, “não tenho necessidade”, retruca com altivez, “de que se me ensine o que é conveniente e o que não é”.
Segunda chamada à ordem, à qual se seguirão muitas outras! A força do movimento era tal entre os trabalhadores e no exército que, a 21 de março de 1919, a classe operária pudera tomar o poder sem violência alguma. E Rakosi observa com humor as demonstrações de lealismo de que tinha sido objeto, particularmente de parte do procurador-geral da época.
Mas, por que tinha sido proclamado o estado de sítio?
— “Nós sabíamos por toda a experiência da história que a burguesia não aceita de boa vontade que se lhe arranque o poder. Os movimentos contrarrevolucionários que estalaram a seguir confirmaram esse ensinamento histórico”.
Aliás, a proclamação da lei marcial foi a primeira medida tomada pelo movimento contrarrevolucionário de Szeged.
E as famosas “atrocidades” vermelhas? A “crueldade” do comissário Tibor Szamuelly, que tinha sido encarcerado de reprimir a greve transdanubiana? O tribunal espera que, peio menos, Rakosi finja de morto e renegue mais ou menos explicitamente esse “bicho papão vermelho” que fez tanto medo aos burgueses. Qual não é, pois, o estupor dos juízes quando Rakosi, tranquilamente, declara que Szamuelly não fez mais do que o seu dever!
— “Szamuelly fez tudo sinceramente, com convicção. Era mandatário do proletariado húngaro e seus atos correspondiam aos interesses dos operários e camponeses húngaros”.
O tribunal não perdoará a: Rakosi essa palavra de chefe responsável e, mais tarde, deformando-a de maneira provocadora, fará dela objeto de um aceso incidente que custará a Rakosi, às vésperas de sua alegação, nove dias de solitária!
Interrogado quanto ao fim da “guerra vermelha”:
— “Nós queríamos, responde altivamente Rakosi, retomar aos tchecos e aos romenos os territórios húngaros ocupados. Tê-lo-iamos conseguido, se o quadro de oficiais contrarrevolucionários não no-lo tivesse impedido, levando a decomposição ao exército!”
Ninguém sabe melhor do que Rakosi arrancar a esses senhores da contrarrevolução, a máscara patriótica e pô-los na posição de cães servis.
Um exemplo: um antigo ministro do governo Karolyi, o Dr. Buza Barna, vangloria-se de ter declarado, relativamente a Bela Kun, que, em vez de batê-lo, dever-se-ia tê-lo morto. Rakosi o criva de perguntas, que o presidente tenta abafar:
— “Fostes vós, pergunta Rakosi, quem deu ao procurador-geral Vary a ordem de saudar os comunistas quando de sua volta à liberdade?”
O presidente. — Já vos proibi de insultar pessoas ausentes.
A testemunha. — Aliás, isso não é verdade.
Rakosi. — “Como sabeis que não é verdade? Não estáveis lá!”
A testemunha. — Foi o que Vary me disse.
Rakosi. — Eu estava lá e ouvi.
O presidente. — Não deveríeis dizê-lo.
Rakosi. — Como não? Se é um fato!
Outro exemplo: um velhaco de nome Kratochwill, antigo coronel, tinha tido a triste honra de comandar a divisão contra- revolucionária de Szekely, que desertara da frente de batalha para se passar ao inimigo. A brecha aberta por essa deserção e o desiquilíbrio que agravou nas relações das forças foram uma das causas principais do avanço romeno. E esses Kratochwill, imprudentemente citado pela acusação, teve o topete de invocar a derrocada da disciplina depois da queda da monarquia! Rakosi não deixou passar em branco essa lição de coisas.
— Se os vermelhos, diz embaraçado o velho coronel, tivessem podido marchar em nossa perseguição, certamente teríamos conservado a Transilvânia(5), porém tê-la-iamos ganho para os bolcheviques: isso os Szeklenses não queriam! E entra a descrever os conchavos com o exército romeno à sua maneira, o qual, é claro, tinha tirado partido da situação...
— “Não acreditais, interpela-o, então, Rakosi, que os romenos tenham desencadeado essa ofensiva geral porque sabiam que a divisão de Szekely não queria marchar com o Exército Vermelho?
E Rakosi, com os documentos na mão, analisa a traição: a brecha; a retirada dos Szekelenses ao ritmo de 15 a 20 quilo- metros por dia, “coisa equivalente a uma fuga”; a ligação de seus oficiais com o comité contrarrevolucionário com sede em Viena. Nem todos, retifica, porque “nem todos estavam infectados pela contrarrevolução”.
Os romenos, que anteriormente apenas eram duas vezes mais humanos do que nós, tornaram-se “cinco vezes mais fortes do que nós”, depois da rendição, conclui.
E Rakosi confunde a augusta testemunha lançando-lhe ao rosto que, graças a ele, 30 milhões de coroas destinadas à defesa da Transilvânia foram roubadas pela contrarrevolução!
Rakosi nada deixa passar: acompanha cada depoimento com a atenção mais tensa, toma notas, fórmula perguntas precisas que perturbam as testemunhas de acusação. Não é coisa fácil, porque o presidente se esforça para aparar os golpes, proibir perguntas perigosas.
Tendo uma testemunha relatado que, durante a Comuna húngara só se tinha podido salvar graças à intervenção do chefe da missão militar italiana em Budapeste, Rakosi escarnece; “muito interessante que a testemunha nos forneça detalhes sobre a atividade contrarrevolucionária do representante oficial da Itália na vigência do governo dos Comissários do Povo!”(6)
A defesa de Rakosi é, todavia, dominada pelo cuidado, não de justificar, mas de fazer valer publicamente a democracia proletária, o comunismo.
— “No que concerne ao desarmamento da burguesia”, dizia, “ainda hoje estou convencido de que essa medida era justa e que o proletariado deve ser armado. Como os social-democratas tinham, todavia, maioria no governo, essa medida ficou no papel. Na prática, conservamos todos os oficiais da polícia e do exército. A consequência ulterior foi que o exército se desagregou”.
O regime soviético foi instituído sem violência: mas, depois de ter comprovado esse fato, Rakosi entra a precisar que, se tivesse sido necessário, se teria empregado a força. E, quando isso for necessário, será empregada:
— “Na questão da ofensiva e das ações armadas, achava-mos — o Partido Comunista e, consequentemente, eu também – que devíamos lançar mão, em caso de necessidade, de todos os meios possíveis para tomar o poder. A insurreição armada também fazia parte disso. Tínhamos essa intenção, mesmo antes da ditadura do proletariado. Mas isso não significa que empregássemos a violência por prazer e ainda que não fosse necessário. Do fato de que acabo de demonstrar aqui que nem sequer fizemos uso da violência, ao apossarmo-nos do poder, não se deve concluir que não empregássemos a violência se encontrássemos resistência seria...”
A questão agraria?
— “Unicamente os comunistas”, declara Rakosi, “estavam em condições de resolver todos os problemas fundamentais, em particular a questão agraria”.
A ditadura do proletariado é a verdadeira democracia dos trabalhadores:
— “Nosso direito eleitoral”, constata Rakosi, “multiplicou por nove o número de eleitores. Ao todo e por tudo, só excluímos 1,5% da população. Em 1910, havia na Grande Hungria cerca de um milhão de eleitores. Ora, só em Budapeste, em 1919, obtivemos 530.000 votos; em Szeged, onde dominavam os franceses, 41.000. Era, consequentemente, um sufrágio muito amplo. Hoje, ao contrário, ao passo que a população de Budapeste aumentou de 150.000 habitantes, o número de eleitores (que não é dos votantes) não ultrapassa 122.000”.
O jornalista francês Stefan Priacel, que acompanhou os debates, relata-nos um episódio comovedor, que nos mostra como Rakosi, isolado do mundo exterior depois de 1925, ignorando os triunfos ulteriores da edificação socialista na URSS, se punha à glorificar a pátria do proletariado vencedor, tal como a conhecera dez anos antes, com cifras da época...
— “De resto, declarara o procurador real, o comunismo e um movimento essencialmente destruidor: nunca construiu nada”.
Rakosi não podia deixar sem réplica essa alegação. Mas podia ser perigoso, escreve Priacel, pôr um fato ou uma cifra inexata, dar ao procurador pretexto para um discurso antissoviético.
Então Rakosi diz:(7)
— “Não obstante, Sr. procurador, se a memória não me engana, creio poder-vos afirmar que, em 1923, a produção do ferro da União Soviética era de tantas toneladas” (uma cifra que Priacel esqueceu).
... A produção de ferro da URSS, em 1923! Se Rakosi soubesse...
Na véspera do requisitório, antevéspera das alegações, um incidente, provocado pelo presidente, tivera como consequência reduzir Rakosi a preparar sua defesa na solitária, sem cama, sem luz, com meia ração!
O presidente se referira, tendenciosamente, a uma resposta anterior de Rakosi, relativa a Szamuelly.
— “Não é possível que eu tenha dito isso”, protestou Rakosi.
O presidente proíbe-o de contradizê-lo e chama-o a ordem. E como Rakosi, insistindo, observasse que a ata da audiência poderia facultar meios de constatar quem tinha razão, o presidente, furioso, condenou-o a três dias de solitária. Rakosi não se deu por derrotado.
— “Ótimo”, disse, “nessas condições não farei mais nenhuma declaração”.
Por essa “insolência”, o presidente aumentou-lhe a pena para nove dias!
— “Não vos é lícito fazê-lo”, replicou Rakosi: a lei vos proíbe de condenar-me a mais de seis dias de solitária de uma só vez!”.(8)
Rakosi senta-se e recusa-se a tomar parte nos debates.
Os dois delegados da Associação Jurídica Internacional presentes à audiência, Etienne Milhaud, do foro de Paris, e Bing, do foro de Londres, fizeram, então, por intermédio da Sra. Vamberry, uma tentativa para obter do tribunal que fosse prorrogada essa punição, tão prejudicial ao acusado, que impedia de preparar sua intervenção final. Apesar da promessa do presidente, Rakosi foi encarcerado na masmorra. Outra arbitrariedade: impediram-no de rever a irmã, porque esta, num gesto de efusão, lhe tinha dito ter orgulho dele!
As últimas palavras de Rakosi antes do requisitório foram ainda para professar sua fé:
—“É incontestável que fui um comunista convicto, que o sou e serei sempre”.
Depois do requisitório e da notável alegação, exclusivamente jurídica, do professor Vamberry, Rakosi toma a palavra: dispõe de uma hora e meia: consagra uma hora e vinte e cinco minutos a desmanchar as falsificações da história, à exposição dos princípios e do programa comunistas; só os cinco últimos minutos é que empregará para a defesa de sua vida.
Rakosi ridiculariza a indignação retardada da burguesia húngara contra o “horror” do poder soviético: “até parece que foi posta numa geladeira para conservar-se mais fresca”. Proclama que o inimigo, o destruidor da civilização, não é o bolchevismo, como o pretende o procurador, mas a guerra, de que o capitalismo é responsável. Lança-se ironicamente contra a “filosofia” do procurador, aos olhos e}e quem o bolchevismo não passa de um “crime”.
— “Considero coisa abaixo de minha dignidade responder aos baixos insultos do Sr. procurador, que caracterizou os membros do governo dos conselhos como criminosos e aventureiros estrangeiros vindos do monturo social…”
Insolência que vale a Rakosi uma chamada à ordem. E, a partir de então, incessantemente interrompido pelo presidente, que acredita perceber em cada palavra um ato de propaganda comunista, Rakosi empreende uma magistral análise histórica: causas econômicas da bancarrota burguesa e da Revolução, política de divisão social-democrata, política timorata do governo de Karolyi, autocrítica comovedora, de longo folego (erros econômicos e militares da Comuna húngara, conservação dos quadros do antigo exército); depois, é a vez de falar o comandante do Exército Vermelho, traído pelos “grandes patriotas”.
— “Em tudo o que fiz, cumpri meu dever de comunista convicto e servi o proletariado o melhor que pude. Não quero tentar diminuir meu papel. Por toda a política do governo dos conselhos, por todos os atos da ditadura do proletariado, inclusive meus próprios atos, assumo a responsabilidade, com a consciência tranquila. Conservei nossas ideias de então até hoje e, mesmo depois de 10 anos de masmorra, não tenho nenhum motivo de arrependimento!”
No dia seguinte, Rakosi põe em evidencia as dificuldades inauditas a que teve de fazer frente a República dos conselhos e as realizações que, apesar de tudo, assinalaram os 4 meses e meio de sua existência: o Exército Vermelho; a sementeira de todas as terras (das quais, durante a guerra, 30 a 35% tinham ficado abandonadas); o encorajamento das artes, das letras e das ciências.
E conclui, tomando como testemunha os povos que o escutam:
— “Este processo tem repercussão internacional e demonstra que o comunismo húngaro concentra sobre si o interesse do mundo inteiro, não obstante se terem escoado 15 anos da Comuna para cá. Se a burguesia tardou dez anos para fazer este processo é porque tinha certas segundas intenções. Durante dez anos, permaneci fiel a minhas ideias, e, hoje, sou um combatente tão convicto dessa ideia pela qual me bati como soldado, dessa ideia que deve triunfar e triunfará, como então!” A essas másculas palavras, faz eco o ganido final do presidente, que ladra uma última injuria e um último dia de solitária! Depois, volta o tribunal com o veredito: detenção perpétua, pena essa por conta da qual serão computados... os nove meses de detenção preventiva!
Antes que essa odiosa condenação fosse confirmada pela Corte de Apelação, em julho de 1935, Rakosi fez nova e notável declaração: Não fale nisso, tal foi, desta vez, o refrão das interrupções presidenciais, quando Rakosi denunciou a traição da burguesia húngara, o terror branco, a superioridade da democracia soviética, “única verdadeira democracia”. E qual foi a conclusão do herói?
— “No que concerne a minha pessoa, tanto aqui, como no tribunal de primeira instância, não desejo pronunciar discurso defensivo. Levando em consideração que' defendo, hoje, as mesmas ideias que defendia em 1919...
O Presidente — Ainda hoje? Bem!
Rakosi — E concluo...
O Presidente — Não como na primeira instância!
Rakosi — “Mas como perante a Mesa real em 1926. Sustento tudo o que disse perante o tribunal. Minha convicção permanece inalterada. Sou e permaneço comunista, combatente disciplinado de meu Partido. Aguardo calmamente tudo o que me possa acontecer. Sei que o futuro nos pertence, a nós comunistas, operários, trabalhadores. A vitória deve ser e será nossa”.
Tanta coragem e precisão não foram despendidas em vão. A contrarrevolução não pôde atingir, através de Rakosi, os fins que tinha em mira: não pôde desonrar nem pela calunia a grande ideia do poder soviético, nem justificar retrospectivamente a traição, o terror passado, nem justificar antecipadamente o terror de guerra que seu revisionismo prepara.
Por que? Ela tinha feito seus cálculos sem incluir a força de alma e a dialética “de um dos mais audaciosos combatentes do movimento operário revolucionário”,(9) tinha feito seus cálculos sem incluir a ação popular nacional e internacional.
“A solidariedade vermelha”, escreve o Uj Magyarsag, “não está morta; ela arrasta a metade do mundo, penetra até na sala de audiências”.
“Rakosi não está só: vê em torno de si”, acrescenta o mesmo jornal, “os observadores vindos do estrangeiro; eis porque pode falar de cima para baixo na sala dos debates, como se sua missão fosse emitir um julgamento sobre o passado”... Sente e faz sentir que não está só.
Ora, tais são os fatores que, em larga medida, desmancharam os planos da ditadura; tais são os fatores quê, ao mesmo tempo, salvaram Rakosi de uma morte imediata. Mas, por uma condenação perpétua, buscou-se privar o proletariado húngaro do seu chefe mais qualificado, o povo húngaro de seu mais heroico defensor, buscou-se ferir nele os amigos da liberdade e da paz...
Reduzindo fisicamente esse irredutível, suprimindo a fogo lento essa força que não se rende, buscou-se fazer expiar o medo imenso da oligarquia magiar e esse medo não é apenas retrospetivo. Imaginou-se poder afogar a recordação e o apelo, n lembrança e a esperança da revolução, a lembrança dos quatro meses de ação libertadora e a esperança de que os frutos amadureçam. Mau calculo. O povo também não esqueceu. Do fundo de sua miséria atual, lembra-se. Reconhece a voz dos seus.. Lê os jornais, os avulsos, a literatura ilegal. Reúne-se em “comícios-relâmpagos”, em meetings, impossíveis de surpreender.
Sente, sabe que, um dia, reunido em tomo de chefes tais como o seu Rakosi, quando tiver retomado o poder, saberá, desta vez, conservá-lo.
Notas de rodapé:
(1) G. Dimitrov: Cartas, notas e documentos, p. 134. (retornar ao texto)
(2) Esta precipitação preconcebida, seguindo-se a tanta lentidão preconcebida, é que o principal defensor de Rakosi, o professor Vambery, caracterizou com uma imagem feliz: “Vosso tribunal acelerado, senhores, faz-me pensar num viajante que, para ir de Budapeste a Paris, utilizasse um carro de bois até Belleville e, daí, para chegar à Ópera, se lançasse em plena desfilada num magnífico Hispano!” (retornar ao texto)
(3) Lede em Au nom de la loi, de Stefan Priacel, ps. 220 e seguintes, o protesto da Comissão de Negócios Estrangeiros da Câmara de Deputados francesa, a memória da Associação Jurídica Internacional, o parecer do Sr. Jean Rault, professor da Faculdade de Direito de Lille, e os outros documentos que figuram nos anexos. (retornar ao texto)
(4) Telegrama de Dimitrov ao Comitê Rakosi, Correspondance Internationale, n. 8, 17-18, de 2 de março de 1935, p. 312. (retornar ao texto)
(5) E é preciso compreender o que pode significar a palavra Transilvânia para um patriota húngaro! (retornar ao texto)
(6) Idem, p. 95. (retornar ao texto)
(7) Idem, ps. 96-97. (retornar ao texto)
(8) Idem, p. 116. (retornar ao texto)
(9) Telegrama de Dimitrov ao Comitê Rakosi, Correspondance Internationale, n. 17-18, de 2 de março de 1935, p. 312. (retornar ao texto)