A Defesa Acusa
De Babeuf a Dmítrov

Marcel Willard


O PROCESSO DE LEIPZIG
Mefistófeles-Goering em debandada


capa

Quem, com efeito, tinha interesse em desviar as lutas internas do “campo nacional”, em resolvê-las em beneficio dos nazis, “salvadores da Alemanha”, em quebrar a unidade de ação operaria, em justificar a campanha de extermínio empreendida contra a vanguarda comunista do proletariado? Quem, a não serem os beneficiários do golpe de Estado? Quem, a não ser a tirania parda totalitária? Quem, a não ser Mefistófeles?

Desalojado a tal ponto, Mefistófeles teve que comparecer. Apenas compareceu à barra das testemunhas. E, para o chamarem para essa barra, as togas grenat limparam-lhe a poeira.

Esse Mefistófeles de duplo rosto (chamava-se Goering e Goebbels) era, com efeito, chamado a pronunciar-se, sob juramento. a propósito das suspeitas e difamações propagadas contra ele, no estrangeiro, em particular no Livro Pardo. Isso importava em pôr-lhe sob os passos um tapete de flores.

O general ministro Goering estava contente consigo: não era um golpe de mestre? Ele estaria em condições de poder, perante essa imprensa estrangeira tão mal disciplinada, tão accessível à propaganda “judia bolchevique” modificar a atmosfera, pôr novamente ordem nos debates, fazer o processo, o verdadeiro processo do Partido Comunista e da III Internacional. Estaria em condições de, perante o mundo, apresentar-se como salvador da civilização. Ia consertar, encher de novo todas as bexigas furadas, ressuscitar toda a mitologia prejudicada por esse Livro Pardo, por esse Dmitrov, toda a mitologia anticomunista da cruzada pregada contra a democracia, sob o signo da cruz retorcida. Toda a gente ia ver um pouco...

E eis o que toda gente vê: assim que seu discurso acabou e que o marxismo foi uma vez mais exterminado sob os murmúrios de admiração de seu auditório, sob os olhares servis de seu pessoal uniformizado de preto, de pardo ou de grenat (estojos de revólver, mão no rosto, cruz gamada), perante esse subproduto de rosto humano do velho mundo, esse morfinômano adiposo e enfeitado, muito seguro de si, seguro de sua equipagem armada até os dentes, de seu aparelho de violência bem brunido, bem domesticado, ergue-se um homem.

Um homem pálido, emagrecido, encarcerado há nove meses, com o machado do carrasco suspenso sobre a nuca, um homem aparentemente só, que, há seis semanas, enfrenta os procuradores, os advogados ex-officio, a imprensa, as testemunhas espias, os juízes; que, acusado, recusa o papel e inverte o jogo, acusa os acusadores.

Um velho lutador que é um homem novo, que, sem outras esperanças, senão a de servir sua classe, afronta, em solo inimigo, o regime inimigo, hoje todo-poderoso, bêbedo de seu reinado, o regime cuja força exterior, ostentatória, máscara a fraqueza e cujos perfumes inebriantes escondem o odor de putrefação.

Um devedor que se afirma credor e impõe seu crédito, desafia tranquilamente em combate singular esse general obeso, representante de uma Idade Média mal disfarçada, de uma velhice de rosto besuntado, pintado de novo, esse asno vestido com a pele do leão e cujo coice não intimida.

Quanto a Dmitrov, representa a força real, “vulcânica”, irresistível, do proletariado universal, dos povos em marcha, a verdade histórica, o futuro, a juventude do mundo.

O olhar de Goering encara-o desdenhosamente de cima para baixo: Dmitrov sustenta esse olhar e o olhar de Dmitrov não pode ser suportado: parece atravessar o inimigo, depois ignorá-lo, atravessar as paredes, os obstáculos, para só se deter sobre as multidões invisíveis que o vêem, que o acolhem, que o ouvem.

A voz de Dmitrov, saída do silêncio, como a de Beethoven, essa voz surda, lenta, martelante, também se apresta para ganhar o espaço.

Desse combate tragicamente desigual entre a força que se exibe e a força que se contem, entre o senhor da hora e do local e seu refém encadeado, quem se julga que sairá vencedor? Goering não tem dúvida: espera o choque, de fronte erguida, de pernas afastadas. E eis que chega o segundo comovedor, histórico entre todos, em que se vê Dmitrov levantar-se, de fisionomia calma, com uma sombra de ironia no canto dos lábios, e, senhor de si, lançar o ataque.

As primeiras perguntas furam as primeiras mentiras, as primeiras bexigas e pregam-se com precisão no cangote do general: seu comunicado de imprensa, revelando que Van der Lubbe, preso, trazia consigo uma carta do Partido (a resposta de Goering é uma confissão), sua deliberação de não pesquisar os cúmplices nazis de Lubbe em Henningsdorf. Em proveito de quem? (desta vez a resposta é uma escapula).

Goering ainda tenta não se atrapalhar.

Mas Dmitrov, explorando o êxito, não o deixa mais retomar o folego. Mefistófeles, que incriminara a concepção, comunista do mundo, ouve esta pergunta:

— “O Senhor presidente do Conselho sabe que essa concepção criminosa do mundo rege a sexta parte do globo?”

O presidente do Conselho começa a perder o sangue frio, cai nos laços dos negócios soviéticos.

— “A União Soviética, o maior e mais belo país do mundo. Sabe disso?”

Desta vez é demais: o ministro incendiado não esquece até de injuriar o acusado, até de prometer-lhe a forca perante esses mesmos a quem entregou a tarefa de condená-lo.

E o presidente intervem, não para chamar o general ministro ao pudor, ao respeito pela justiça ou, pelo menos, pelas aparências, mas para impor silêncio ao insultado, para interditar a Dmitrov a continuação de sua propaganda comunista!

Então Dmitrov, mais do que nunca senhor de si, maneja cortesmente o chicote:

— “Estou muito satisfeito com a resposta do sr. presidente do Conselho”.

Uma vez que o presidente, fora de si, lhe retira a palavra e se dispõe a expulsá-lo, Dmitrov domina-se e, lentamente, mergulha a faca entre as espaduas do bruto:

— “Será que tendes medo de minhas perguntas, sr. presidente do Conselho?”

Goering não passa mais de um general vencido, de um estado maior em debandada, de um balão vazio.

Perdeu toda a compostura: sobressalta-se, agita-se, escuma, perde o folego:

— “Fora daqui, canalha!”

O burro perdeu a pele do leão. Podem levar o vencedor. Sua sombra, sua imagem ainda lá está, presente, ainda mais alta do que é na verdade, ainda maior do que sua legenda, tão grande que se diria arrebentar a sala, em cuja escala se exprime.

E Mefistófeles sai, por sua vez, diminuído, humilhado, amesquinhado, como a acusação, como o Tribunal. É o desastre.

A imprensa estrangeira não deixaria de sublinhar essa “falta de domínio próprio” e esse “extravasamento afetivo”. A testemunha Goering não comparecera para prestar testemunho, mas, na verdade, para defender-se”.

Dois dias depois dessa jornada culminante, a 6 de novembro, o sutil Goebbels, comparecendo, por sua vez, em vão tentará consertar as asneiras do seu rival e comparsa.

Dmitrov irá direito ao alvo: interrogará o ministro da mentira e da encenação sobre os atentados e morticínios cometidos pelos nacional-socialistas.

Goebbels, longe de enraivecer-se, de suar e de resfolegar, tentará tirar-se das dificuldades por citações pedantes, por caretas e piruetas.

Dmitrov perguntar-lhe-á se é verdade que, na Áustria, tal como na Tchecoslováquia, os nazis trabalham, também eles, na ilegalidade e que sua propaganda clandestina emprega endereços cifrados, vocabulário secreto.

Não obstante sua pretensão de enfrentar aquele que batiza, sorrindo amarelo, de “pequeno agitador comunista” e apesar das objurgatórias da imprensa, será, por sua vez, o vencido da jornada. Mesmo aqueles que riam, não estarão com ele e a imprensa estrangeira, não dócil, mal persuadida, apontar-lhe-á polidamente que ele se “engana se supõe ter trazido algo de novo aos debates”,

Mas a última palavra, é Dmitrov quem a pronunciará em seu discurso final, dizendo que os Srs. Goering e Goebbels fizeram assim a melhor propaganda comunista. Oh! muito involuntariamente e sem dúvida à sua revelia;

“Esses senhores não são responsáveis de maneira alguma!”

Seria impossível dizê-lo melhor.


Inclusão: 05/06/2020