MIA > Biblioteca > Marcel Willard > Novidades
Assim que é inculpado, Dmitrov trava combate: escreve a alguns grandes amigos políticos (Barbusse, Cachin, etc.) cartas destinadas a informá-los, a informar, por seu intermédio, todos os militantes, todos os trabalhadores, de sua sorte, do regime responsável por ela.
Essas cartas são redigidas em língua alemã e muito habilmente, de modo a não oferecer o menor motivo â censura penitenciaria, o menor pretexto para o seu veto: não obstante, só excepcionalmente é que essas cartas chegaram aos seus destinatários.
É verdade que tinham outro objetivo: não deixar passar nenhuma peça, nenhuma agravação de tratamento, sem reagir, sem retrucar, sem impor o respeito.
Assim, essas cartas de duplo objetivo visavam ao mesmo tempo estabelecer contacto com a opinião popular universal, alertá-la, alimentar-lhe a indignação e, por outro lado, desencorajar, pura e simplesmente, no campo inimigo, qualquer emprego de meios desmoralizadores.
Simultaneamente, Dmitrov bombardeava o juiz Vogt com protestos, declarações escritas: não se vergava perante nenhuma chicana; exigia aquilo a que tinha direito. Fazia-o sob uma forma impecavelmente correta, exemplarmente digna, sem nenhuma violência de linguagem, sem nenhuma fanfarronada, sem nenhuma frase inútil, mas com uma simplicidade calma e firme que sempre atingia o alvo: podia, assim, dizer tudo com o máximo de eficacia; podia, assim, sem se descobrir, desfechar os golpes mais diretos.
Nada deixar passar, impor respeito pelos seus direitos, por sua pessoa, por sua honra de militante, fazer-se temer, pesar de Buas cadeias, como um inimigo intratável e perigoso, com o qual não se brinca impunemente, a quem é inútil e mesmo imprudente pregar peças: nisso é que Dmitrov faz maravilhas e, melhor do que qualquer dos seus êmulos, obtém êxito.
— “Em geral, disse-me Dmitrov, abstiveram-se de empregar contra mim meios de desmoralização, porque estavam convencidos antecipadamente de sua ineficácia”.
O que Dmitrov não diz, o que sua modéstia cala, é como soube consolidar no inimigo essa convicção.
— “Não obstante, acrescentou, experimentaram comigo algumas chicanas. Um exemplo: eu declarara, um dia, ao juiz, que podia entregar minha cabeça como garantia de que Popov e Tanev eram inocentes”. O juiz respondeu: “Vossa cabeça, tereis que a dar em qualquer hipótese!” Noutro dia, disse aos policiais que me escoltavam: “Prestem atenção, é um homem perigoso: foi condenado à morte na Bulgária e será extraditado e depois executado em seu país”. Já muitos meses antes do processo, tinham-me interditado a leitura de qualquer jornal. Apenas algumas vezes um carcereiro dava-me velhos números ocultamente, para me agradar. Foi assim que vim a saber que o juiz tinha, no começo de abril, publicado um comunicado de acordo com os termos do qual tinha sido comprovado que os três comunistas búlgaros haviam exercido atividade hostil ao Estado alemão e, em ligação com Van der Lubbe, incendiado o Reichstag. E isso antes do início da instrução judiciaria! Escrevi ao juiz para exigir que, como consequência de tal comunicado, que visava desorientar a opinião pública, publicasse imediatamente -minha própria declaração afirmando que: a) Nem meus camaradas nem eu tínhamos nada que ver com o incêndio do Reichstag; b) Não tinha nem visto nem encontrado Van der Lubbe e nunca lhe tinha falado; e c) Tal ato não podia ter sido cometido senão pelos inimigos da classe operaria e do comunismo. Naturalmente (e eu já contava com isso), essa declaração nunca foi publicada. Renovei-a numa carta a Barbusse e numa carta a Cachin(1). Escrevi-as sob uma forma muito prudente, confiando em que o juiz as deixaria chegar aos seus destinatários... Ligava importância muito particular a que essa declaração fosse publicada na Bulgária... Os meios de pressão que se empregaram contra mim eram a chicana e a intimidação. Além disso, estive algemado dia e noite durante vários meses... ”.
Foi assim que, enfrentando seus carrascos impotentes, Dmitrov os conservou em respeito, forçou, pouco a pouco, a espessura de silêncio e de solidão com que tentavam sufocar sua voz, confinar seu formidável dinamismo.
Foi assim que conseguiu, à custa de tenaz esforço, arrancar suas algemas e sua mordaça (sim, suas algemas, como o veremos, no sentido mais literal da palavra), estabelecer contacto com o exterior, obter, por detrás dos muros,- ser ouvido e apoiado pelas massas.
Foi assim que conseguiu constituir-se, no coração da fortaleza inimiga, em fortaleza política, em fortaleza do comunismo.
Foi assim que, erguendo tão alto, submetendo a tal tensão a dignidade do homem, do militante, do chefe, conseguiu, ainda por cima, arrancar concessões, melhorias para seu regime.
Foi assim, por exemplo, que, ao cabo de cinco meses de esforços, conseguiu que lhe deixassem as mãos em liberdade, que, por ordem do juiz, mas contrariamente à lei, estavam algemadas noite e dia.
De que modo o obteve?
Inicialmente, desde que lhe foi infligido esse odioso tratamento, cuja ilegalidade ainda não podia conhecer nem denunciar, protestou por escrito junto ao juiz.
Particularmente, numa declaração de 26 de abril, depois de ter exigido a cessação de outras brutalidades, a restituição de certa parte do dinheiro confiscado, a autorização de entrevistar-se com seu advogado, de obter um manual alemão e a remessa, sem excessiva demora, de sua correspondência interceptada, pediu calma, mas firmemente, que lhe fossem tirados os ferros:
— “É algemado que eu tenho que ler, escrever, sentar-me e dormir. Não vos basta que eu tenha suportado quase um mês esse suplício moral e físico? Não é tempo de suspender essa medida barbara?”.(2)
Uma vez que o juiz só rompera seu silêncio para recusar a todos esses pedidos, Dmitrov não hesita em comentar essa recusa com uma ironia causticante: finge ter acreditado que um prisioneiro político não seria pior tratado do que os bandidos e os assassinos e agradece ao juiz o fato de, pelo menos, tê-lo livrado dessa “ilusão”:
— “Sim, está bem que seja assim e é lógico. Estou nas mãos do inimigo de classe, que se esforça assim por empregar a justiça como arma para exterminar o comunismo, isto é, praticamente, para aniquilar seus sustentáculos convictos, consequentes e inabaláveis”.(3)
Vê-se, pois, como o contra-ataque dmitroviano está preparado pela artilharia do ridículo!
Foi, alguns meses depois, como consequência de um bombardeio análogo, porém mais mortífero, já que era público, que Dmitrov obteve êxito em fazer com que o mesmo juiz, que se tornara famoso à sua própria custa, perdesse toda a compostura!
Essa maneira direta, todavia, de agir não iria ainda bastar para forçar ao recuo esse funcionário zeloso, nem para fazer caírem as algemas.
Dmitrov atirou-se, pois, sem nunca se deixar impressionar pelas recusas da censura, a informar os povos sobre sua sorte, a tomá-los como testemunhas, a introduzi-los como terceira parte nos debates.
Daí essas cartas dirigidas a determinadas personalidades escolhidas e nas quais, por entre generalidades inofensivas, introduzia sub-repticiamente uma linha, uma palavra rica de sentido. Quando, por acaso, uma de suas cartas passava, um pouco de verdade se filtrava, através dos muros, das fronteiras.(4)
Foi pela combinação hábil e tenaz desses dois métodos (indireto e direto) que Dmitrov acabou por obter a supressão das algemas.
O código de instrução criminal, que recebeu à força de insistência, ensinou-lhe que o algemamento era estritamente regulamentado pela lei. Uma vez que as condições exigidas para isso absolutamente não se verificavam no seu caso, essa “medida de segurança” era inoportuna e ilegal.
Foi o que ele escreveu, nos dias 24 e 28 de agosto, ao seu defensor ex-officio, o famoso Dr. Teichert e (já que não alimentava nenhuma ilusão sobre a consciência profissional desse nazi de toga, que não tinha transmitido nem nunca transmitiria seus requerimentos) ao próprio Tribunal do Império.(5)
No dia (24 de agosto) em que escrevia nesse sentido ao Dr. Teichert, Dmitrov, que soubera pela imprensa hitleriana da polemica travada entre o procurador-geral Dr. Werner e Romain Rolland, redigiu uma carta dirigida ao grande escritor: o objeto dessa carta era estabelecer contacto com a opinião popular, informá-la ao mesmo tempo sobre a ata de acusação, que Dmitrov recebera afinal, e sobre o suplício das algemas que já durava cinco meses.
Tendo sido censurada essa carta, sob o pretexto de que criticava e apreciava a ata de acusação, Dmitrov recomeçou-a, suprimindo a passagem incriminada; teve, porém, a ideia de modificar a frase que se referia ao algemamento.
Em vez de apresentar esse algemamento como uma arbitrariedade presente, como uma medida ainda em vigor no momento em que a denunciava, fez de conta que, nesse mesmo dia ela tivesse sido suprimida por uma decisão do tribunal e não passasse de um pesadelo terrivelmente recente, porém passado.(6)
Essa carta chegou ao seu destinatário, Romain Rolland, e, por seu intermédio, ia atingir o duplo objetivo: decidir da retirada efetiva das algemas e informar o mundo de que, durante cinco meses, noite e dia, essas algemas haviam amarrado os pulsos de Dmitrov.
Notas de rodapé:
(1) Cartas, notas e documentos, etc., p. 25, documento número 3. Dmitrov pede a Cachin que publique sua declaração na Correspondance Internationale e a torne conhecida de todos os seus amigos do estrangeiro, sobretudo, da Bulgária. (retornar ao texto)
(2) Idem, p. 29. (retornar ao texto)
(3) Idem, p. 30. (retornar ao texto)
(4) V., por exemplo, a carta ao Dr. Bolotner, diretor do Sanatório de Kislovosk, Cartas, notas e documentos, p. 61, documento n. 15. (retornar ao texto)
(5) V. documentos ns. 16 e 17 das Cartas, notas e documentos, ps. 64-66. (retornar ao texto)
(6) V. fac-símile n. 11 e documento n. 18 (ps. 68-69) das Cartas, notas e documentos. (retornar ao texto)