A Defesa Acusa
De Babeuf a Dmítrov

Marcel Willard


PREÂMBULO


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O QUE É NECESSÁRIO PARA SER UM REVOLUCIONÁRIO

Não basta ter temperamento de revolucionário: é mister saber também manejar a arma da teoria revolucionária.
Não basta conhecer a teoria: é preciso forjar para si mesmo um caráter sólido, com uma inflexibilidade de bolchevique.
Não basta saber o que fazer: é preciso ter a coragem de levá-lo a cabo.
É preciso estar sempre pronto para fazer, a qualquer preço, tudo o que possa realmente servir à classe operária.
É preciso ser capaz de subordinar toda sua vida privada aos interesses do proletariado.
Dmítrov (prefácio de uma biografia de Ernst Thaelmann.)

Como se deve portar um revolucionário, quando cai em poder do inimigo de classe? Que atitude deve assumir em presença de seus carcereiros e de seus juízes?

Eram estas as questões que o maior dos estrategistas da revolução formulava a 19 de janeiro de 1905.

Em sua carta famosa ao Comité Central sobre a defesa, Lênin enunciava, pela primeira vez, os dados desses problemas e aguçava, o exame com o realismo dialético e a extraordinária clarividência que caracterizam seu gênio.

Depois disso, concluía, com modéstia, que suas reflexões absolutamente não deveriam ser consideradas como uma tentativa de solução do problema:

É preciso esperar que a experiência nos tenha esclarecido alguma coisa. E, na elaboração dessa experiência, os camaradas terão, na mor parte das vezes, que se inspirar nas circunstancias concretas e no instinto do revolucionaria(1).

Nisso, como noutras coisas, Lênin foi bom profeta. Sua carta sobre a defesa não envelheceu.

Assim como no plano da edificação socialista a herança de Lênin foi recolhida e aumentada por Stálin, também foi encontrado um Dmitrov para aprofundar a experiência invocada por Lênin e ilustrar com seu exemplo os princípios de estratégia formulados 28 anos antes pelo continuador de Marx.

No decorrer desses vinte e oito anos, que separam a carta de Lênin do processo de Leipzig, a revolução de 1905, a guerra, o período revolucionário de 1917 a 1923, a contraofensiva capitalista, as ditaduras militares, os métodos coloniais e, sobretudo, o terror branco, negro ou pardo do fascismo, tinham exasperado a repressão, modernizando-lhe a técnica.

Estado de sítio, leis de exceção, processo sumário, paralisia da defesa, praticas de tortura e de inquisição, que deixam a perder de vista a Idade Media.

Numerosos combatentes de vanguarda, a começar pelos comunistas, tinham, nas mãos do inimigo, passado por suas provas.

Em obediência aos conselhos de Lênin, tinham-se inspirado “nas circunstancias concretas e em seu instinto revolucionário.”

Alguns, ao contrário, haviam fracassado, traído ou cometido erros téticos.

Efetuara-se uma seleção, rica de ensinamentos.

E, dia a dia, tornava-se mais claro que, se as relações de forças e as condições variáveis da luta orientavam essa estratégia judiciaria, em compensação, a atitude desses homens tratados como reféns contribuía para firmar o ritmo, a força e a sorte do movimento de massas libertador de que haviam sido porta-bandeiras dignos ou indignos.

Quando o acusado obtinha êxito na utilização do arsenal jurídico a serviço de sua defesa politica, na transformação dessa defesa cm ofensiva e do pretório em tribuna, em fazer de o mesmo, frente ao inimigo, porta-voz de milhões de trabalhadores oprimidos que, onde quer que estivessem, o escutavam, alcançava o duplo objetivo de infundir confiança em seus irmãos de armas em luta e de sacudir o exército inimigo.

Nunca houve, porém, nessa frente, sucesso comparável à vitória de Leipzig.

O alcance dessa vitória superou, não apenas o quadro do processo, mas também as fronteiras do Estado que o quis e o próprio esquema da batalha travada.

Mesmo agora, ainda é muito difícil estabelecer-lhe o balanço, que ainda não está fechado.

Vitoria do comunismo sobre o fascismo na própria cidadela do fascismo.

Abalo das fileiras hitlerianas, que não foi estranho à irremediável crise aberta durante a noite sangrenta de 30 de junho de 1934.

Primeiro passo decisivo na estrada da unidade de ação do proletariado e da reunião dos povos contra seu inimigo.

Antes mesmo que fosse chamado a segurar com sua mão de aço o leme da III Internacional, antes mesmo que tivesse, em seu relatório historie o ao VII congresso, desfechado o golpe decisivo às forças de divisão e de morte, Dmitrov já se tornara símbolo e herói da vitória popular.

Foi em Leipzig e em Berlim que o piloto passou por suas provas. Foi aí que demonstrou, com seu próprio exemplo, o que iria proclamar menos de dois anos depois: porque o fascismo é fraco e como pode ser vencido.

Esse exemplo de Dmitrov já se nos apresenta como um ensinamento clássico.

É tempo de libertá-lo da legenda para fazê-lo entrar para a história.

Um só homem estava qualificado para formular-lhe os princípios: o próprio Dmitrov.

A publicação de parte de suas cartas, de suas notas, redigidas na prisão e cujo texto ele soube subtrair à polícia hitleriana, para auxiliar a confusão provocada pela batalha memorável que a peste parda perdera, já nos revelou, por baixo do herói fabuloso, o homem, o dialético, o estrategista.

Faltava ainda extrair, todavia, desses documentos as regras de ação que contêm.

Ainda aí era necessário o concurso de Dmitrov.

Eis porque, alguns meses depois de sua libertação, em outubro de 1934, apesar de sua fadiga e esgotamento, ainda consentiu em conceder-me uma palestra de algumas horas.

Suas respostas luminosas e minhas múltiplas perguntas nos tornaram mais fácil assimilar os frutos de sua experiência.

Essa experiência é que o presente ensaio se propõe divulgar, aproximando-a a experiências similares do próximo passado e do presente.

Não temos, certamente, a pretensão de resolver o problema formulado por Lênin e tomaremos todo o cuidado para não enunciar, sob uma forma didática e rígida, as soluções às quais, no caso concreto tal ou qual, um militante preso ou acusado deve acomodar seu comportamento:

Como o próprio Dmítrov o disse, os exemplos não devem ser imitados mecanicamente.

A melhor escola é a vida.

Mas a experiência adquirida de 1905 a 1936 permite tirar certo número de lições e formular alguns princípios gerais que, depois da carta de Lênin, lições históricas confirmaram.

A melhor maneira de fazer frutificar essas lições é popularizá-las.

A mais rica de todas é, sem contestação, a de Leipzig. É, também, a mais atual e a mais adaptada às formas mais típicas da repressão contemporânea.

Leipzig será, pois, o eixo do nosso estudo.

Em torno desse eixo gravitam os precedentes e as imitações. Tal como, ao redor do herói Dmítrov, os precursores e os discípulos.

Como foi Dmítrov o defensor do acusado Dmítrov?

Como se defenderam a si mesmos Dmítrov e seus êmulos?

Quais os princípios de estratégia que se podem deduzir de sua “autodefesa”?

Em que se opõe o exemplo fecundo de um Dmítrov ao exemplo funesto de um Torgler?

Em que o exemplo de heroísmo e de justeza dialética de um Dmítrov demonstrou sua superioridade sobre a linha errônea de um Tanev e de um Popov?

O interesse que essas questões desperta é tanto mais fervente quando, dia a dia, a técnica repressiva do fascismo tende a unificar-se e a diferenciar-se e novos combatentes caídos em mãos do inimigo são chamados a enfrentá-lo.

Quer disponham ou não da assistência de defensores escolhidos ou designados ex-officio, têm sempre que estar em condições de corrigir as faltas, os desvios ou de preencher as lacunas da defesa.

Entregue a si mesmo ou não, quer seja ou não defendido lealmente por um advogado honesto, cada militante acusado deve assumir ele próprio e só ele sua defesa política.

A defesa política e só a ela é que todos os meios técnicos, jurídicos, devem ser subordinados.

E essa própria defesa politica está subordinada a uma lei fanal de onde decorrem todas as outras e que, só ela, permite traçar experiências verificar a linha:

Para que uma defesa politica revolucionaria seja justa, é mister e suficiente que esteja de acordo com os interesses das massas laboriosas.

Na ausência de cultura politica e de experiência revolucionária, um operário, ainda que jovem, ainda que sem partido, guiado por seu instinto de classe, poderá servir à causa de seus irmãos de combate, à causa dos trabalhadores, melhor do que todos os Torgler dos dois continentes.

A ti, jovem trabalhador, é que particularmente se dedica este ensaio: terá alcançado seu objetivo e realizado sua ambição se chegar a suscitar tua emulação perante grandes exemplos, cujo ensinamento inesquecível ele resume para teu uso.

Se te acontecer, no decorrer da luta que moves lado a lado com teus camaradas, por teu pão, pela liberdade, pela decência, pela paz, seres aprisionado pelos mercenários do inimigo, lembra-te desses homens, dessas mulheres que, acorrentados como tu, souberam erguer-se frente a esse colosso de pés de barro que se chama o fascismo.

Lembra-te de Dmitrov e mostra-te digno dele.


Notas de rodapé:

(1) Lênin: Obras completas, t. VII, p. 79, E.S.I., 1928. (retornar ao texto)

Inclusão: 05/06/2020