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Até muito recentemente, o estudioso da gênese dos conceitos encontrava-se inferiorizado pela carência de um método experimental que lhe permitisse observar a dinâmica interna do processo.
Os métodos tradicionais de estudo dos conceitos subdividem-se em dois grupos. O chamado método da definição, com as suas variantes, é típico do primeiro grupo de métodos. É usado para investigar os conceitos já formados na criança através da definição verbal dos seus conteúdos. No entanto, este método tem dois importantes inconvenientes que o tornam inadequado para investigar o processo em profundidade. Em primeiro lugar, é um método que se exerce sobre o produto acabado da gênese dos conceitos, descurando a dinâmica e o desenvolvimento do próprio processo. Em vez de registar o pensamento da criança, limita-se freqüentemente a suscitar uma reprodução verbal do conhecimento verbal, de definições acabadas fornecidas a partir do exterior. Pode ser um teste do conhecimento e da experiência da criança ou do seu desenvolvimento lingüístico, mais do que estudo de um processo intelectual no verdadeiro sentido da palavra. Em segundo lugar, este método, ao centrar-se na palavra, não consegue entrar em linha de conta com a percepção e a elaboração do material sensorial que dão origem aos conceitos. O material sensorial e a palavra são materiais indispensáveis na formação do conceito O estudo separado da palavra coloca o processo num plano puramente verbal que não é característico do pensamento da criança. A relação entre o conceito e a realidade permanece por explicar; o significado de uma determinada palavra é abordada através de outra palavra e esta operação, por muito que nos permita descobrir, nunca nos dará um quadro dos conceitos da criança mas sim um registo das relações existentes no seu cérebro entre famílias de palavras previamente formadas.
O segundo grupo engloba os métodos utilizados no estudo da abstração. Estes métodos incidem sobre os processos psíquicos que conduzem à formação dos conceitos. Exige-se da criança que descubra um certo número de traços comuns numa série de impressões discretas, abstraindo esses traços comuns de todos os outros traços com que se encontram fundidos na percepção. Os métodos deste tipo descuram o papel desempenhado pelo símbolo (a palavra) na gênese do conceito: um quadro parcial substitui a estrutura complexa do processo total por um processo parcial.
Assim, ambos os métodos parciais tradicionais separam a palavra do material da percepção e operam com uma, quer com o outro, tomados em separado. A criação de um novo método que permite a combinação de ambas as partes foi um grande passo em frente. O novo método introduz no quadro experimental palavras sem sentido que a princípio não significam nada para a criança sujeita à experiência. Introduz também conceitos artificiais relacionando cada palavra sem sentido com uma combinação particular dos atributos dos objetos para a qual não exista nenhum conceito nem palavra. Por exemplo, nas experiências de Ach(1), a palavra gatsun vai a pouco e pouco significando “grande e pesado”; a palavra fal, pequeno e leve; Este método pode ser utilizado tanto com crianças como com adultos, visto que para resolver o problema o indivíduo observado não precisa ter já qualquer experiência ou conhecimento prévio. O método também entra em linha de conta com o fato de um conceito não ser uma formação isolada, ossificada, imutável mas parte ativa de um processo intelectual, constantemente mobilizada ao serviço da comunicação, do conhecimento e da resolução de problemas. O novo método centra a investigação sobre as condições funcionais da gênese dos conceitos.
Rimat levou a cabo um estudo cuidadosamente preparado com adolescentes, utilizando uma variante deste método. A conclusão principal a que chegou foi a de que a verdadeira gênese dos conceitos excede a capacidade dos pré-adolescentes e só começa com o dealbar da puberdade. Escreve este autor:
Estabelecemos terminantemente que só ao findar o décimo segundo ano da vida das crianças se manifesta um acentuado e súbito aumento da capacidade de formar sem ajuda, conceitos objetivos generalizados... O pensamento através dos conceitos, emancipado da percepção, traz à criança exigências que excedem as suas possibilidades mentais para as idades inferiores a doze anos(35)(35, p. 112)
As investigações de Ach e Rimat provam a falsidade da concepção segundo a qual a gênese dos conceitos se baseia nas conexões associativas. Ach demonstrou que a existência de associações entre os símbolos verbais e os objetos, por mais numerosas que sejam, não é, em princípio, por si própria suficiente para a formação dos conceitos. As suas descobertas experimentais não confirmam a velha idéia que pretende que um conceito se desenvolve pelo máximo fortalecimento das conexões associativas envolvendo os atributos comuns a todos – um grupo de objetos e o enfraquecimento das associações – estabelecidas entre os atributos em que esses mesmos objetos diferem.
As experiências de Ach demonstraram que a gênese dos conceitos é um processo criativo e não mecânico e passivo; que um conceito surge e toma forma no decurso de uma complexa operação orientada para a resolução do mesmo problema, e que a simples presença das condições externas que favorecem uma relacionação mecânica entre a palavra e o objeto não basta para produzir um conceito. Segundo este ponto de vista, o fator decisivo para a gênese dos conceitos é a chamada tendência determinante.
Antes de Ach, a psicologia postulava a existência de duas tendências básicas que regeriam o fluxo das nossas idéias: a reprodução através das associações e a persistência. A primeira tendência, traz-nos à memória as imagens que em experiências passadas se encontravam ligadas à imagem que, em determinada altura, nos ocupa o espírito. A segunda é a tendência de cada imagem para regressar e voltar a penetrar no fluxo de imagens. Nas suas primeiras investigações, Ach demonstrou que estas duas tendências não conseguiam explicar os atos de pensamento que possuem uma finalidade conscientemente orientada. O estudo dos conceitos por parte de Ach mostrou que nenhum conceito novo se formava sem o efeito regulador da tendência determinante gerada pela tarefa experimental.
Segundo o esquema de Ach, a gênese dos conceitos não segue o modelo de uma cadeia associativa em que um elo solicita o segundo: é um processo orientado para um objetivo, uma série de operações que servem como passos intermédios em direção a um objetivo final. A memorização das palavras e a sua relacionação com determinados objetos, por si só, não conduz à formação do conceito: para que o processo comece terá de surgir um problema que não possa ser resolvido doutra forma, a não ser pela formação de novos conceitos.
Esta caracterização do processo de formação de novos conceitos é no entanto insuficiente. A criança pode compreender e empreender a tarefa experimental muito antes de atingir os doze anos de idade, e no entanto ser incapaz de formar novos conceitos até ter atingido essa idade. O estudo do próprio Ach demonstrou que as crianças não diferem dos adolescentes e dos adultos pela forma como compreendem os objetivos, mas pela forma como o seu espírito opera para atingir esses objetivos. O pormenorizado estudo experimental de D. Usnadze sobre a gênese dos conceitos em idade pré-escolar(44)(44, 45,) também demonstrou que, nessa idade, as crianças abordam os problemas exatamente da mesma maneira que um adulto quando opera com conceitos, mas que o caminho que seguem para os resolver é inteiramente diferente. Só podemos concluir que os fatores responsáveis pela diferença essencial entre o pensamento conceptual do adulto e as formas de pensamento características da criança de tenra idade não são nem a tendência determinante, nem o objetivo prosseguido, mas outros fatores que os investigadores não inquiriram.
Usnadze assinala que, embora os conceitos completamente formados só surjam relativamente tarde, as crianças começam a utilizar palavras socorrendo-se delas para estabelecerem um terreno de compreensão mútua com os adultos e entre si Com base nisto, conclui que as palavras se apoderam da função dos conceitos e podem servir como meios de comunicação, muito antes de atingirem o nível dos conceitos característico do pensamento completamente desenvolvido.
Vêmo-nos confrontados, portanto, com o seguinte estado de coisas: uma criança é capaz de apreender um problema e visualizar o objetivo que tal problema levanta, num estádio muito precoce do seu desenvolvimento. Como as tarefas levantadas pela compreensão e a comunicação são essencialmente semelhantes para a criança e o adulto, a criança desenvolve equivalentes funcionais dos conceitos numa idade extremamente precoce. mas as formas de pensamento que utiliza ao defrontar-se com estas tarefas diferem profundamente das que o adulto emprega pela sua composição, pela sua estrutura e pelo seu modo de operação. O principal problema suscitado pelo processo de formação do conceito – ou por qualquer atividade finalista – é o problema dos meios pelos quais tal operação é levada a cabo, por exemplo, não se consegue explicar cabalmente o trabalho, se se disser que este é suscitado pelas necessidades humanas. Temos que entrar também em linha de conta com os instrumentos utilizados e a mobilização dos meios adequados e necessários para o realizar. Para explicar as formas mais elevadas do comportamento humano, temos que pôr a nu os meios através dos quais o homem aprende a organizar e dirigir o seu comportamento. Todas as funções psíquicas de grau mais elevado são processos mediados e os signos são os meios fundamentais utilizados para os dominar e orientar. O signo mediador é incorporado na sua estrutura como parte indispensável a bem dizer fulcral do processo total. Na gênese do conceito, esse signo é a palavra, que a princípio desempenha o papel de meio de formação de um conceito, transformando-se mais tarde em símbolo. Nas experiências de Ach não se dá a esta função da palavra a atenção suficiente. O seu estudo, embora tenha o mérito de desacreditar, de uma vez por todas, o ponto de vista mecanicista sobre a formação dos conceitos, não pôs a nu a verdadeira natureza do processo – nem geneticamente, nem funcionalmente, nem estruturalmente. Enveredou por uma direção errada com a sua interpretação puramente teleológica, que eqüivale a afirmar que é o próprio objetivo que cria a atividade apropriada através da tendência determinante – isto é, de que o problema traz consigo a sua resolução.
Para estudar o processo de gênese do conceito nas suas diferentes fases de desenvolvimento, utilizamos o método elaborado por um dos nossos colaboradores, L. S. Sakharov (36). Poderíamos descrevê-lo como o método do duplo estímulo: apresentam-se ao indivíduo observado duas séries de estímulos, uma das quais como objeto da sua atividade e a outra como signos que servem para organizar esta última.(2)
Sob muitos e importantes aspectos, este modo de proceder inverte as experiências de Ach sobre a formação dos conceitos. Ach começa por dar ao indivíduo observado um período de aprendizagem ou de prática; pode manipular os objetos e ler as palavras sem sentido neles escritas antes de se lhe dizer qual a tarefa que se lhe pede. Nas nossas experiências, põe-se o problema ao indivíduo sujeito a observação logo de início; o problema não se altera durante toda a experiência mas as chaves para a sua resolução são introduzidas pouco a pouco, de cada vez que a criança volta um bloco. Decidimo-nos por esta seqüência porque julgamos que, para que o processo se desencadeie, é necessário pôr a criança perante o problema. A introdução gradual dos meios necessários à resolução do problema permite-nos estudar o processo total da formação dos conceitos em todas as suas fases dinâmicas. A formação do conceito é seguida pela sua transferência para outros objetos; o indivíduo observado e induzido a utilizar os novos termos para falar dos objetos diferentes dos blocos experimentais e a definir o seu significado duma forma generalizada.
Na série de investigações sobre o processo de gênese dos conceitos iniciados no nosso laboratório por Sakharov e completados por nós e pelos nossos colaboradores Kotelova e Pachlovskaia(48) (49)(48, 49, p. 70) estudaram-se mais de cem indivíduos – crianças, adolescentes e adultos, incluindo alguns com perturbações das atividades lingüísticas e intelectuais.
Os principais resultados do nosso estudo podem ser resumidos como se segue: o desenvolvimento dos processos que acabam por gerar a formação dos conceitos começam durante as fases mais precoces da infância, mas as funções intelectuais que, em determinadas combinações formam a base psicológica da formação dos conceitos amadurecem, tomam forma e desenvolvem-se apenas durante a puberdade. Antes dessa idade encontramos certas formações intelectuais que desempenham funções semelhantes aos dos conceitos genuínos que mais tarde aparecem. Relativamente à sua composição, estrutura e funcionamento estes equivalentes funcionais dos conceitos têm uma relação com os verdadeiros conceitos que é semelhante à relação entre o embrião e o organismo completamente desenvolvido. Identificar ambos seria ignorar o lento processo de desenvolvimento entre a fase inicial e a fase final.
A formação dos conceitos é resultado de uma complexa atividade em que todas as funções intelectuais fundamentais participam. No entanto, este processo não pode ser reduzido à associação, à tendência, à imagética, à inferência ou às tendências determinantes. Todas estas funções são indispensáveis, mas não são suficientes se não se empregar o signo ou a palavra, como meios pelos quais dirigimos as nossas operações mentais, controlamos o seu curso e o canalizamos para a solução do problema com que nos defrontamos.
A presença de um problema que exige a formação de conceitos não pode por si só ser considerada como causa do processo, embora as tarefas que a sociedade coloca aos jovens quando estes entram no mundo cultural, profissional e cívico dos adultos sejam um importante fator para a emergência do pensamento conceptual. Se o meio ambiente não coloca os adolescentes perante tais tarefas, se não lhes fizer novas exigências e não estimular o seu intelecto, obrigando-os a defrontarem-se com uma seqüência de novos objetivos, o seu pensamento não conseguirá atingir os estádios de desenvolvimento mais elevados, ou atingi-lo-á apenas com grande atraso.
A tarefa cultura, por si só, porém, não explicas o mecanismo de desenvolvimento que tem por resultado a formação do conceito. O investigador deve intentar compreender as relações intrínsecas entre as tarefas externas e a dinâmica do desenvolvimento e considerar a gênese dos conceitos como função do crescimento cultural e social global da criança, que não afeta apenas o conteúdo mas também o seu modo de pensar A nova utilização significativa, o seu emprego como meio para a formação dos conceitos é a causa psicológica imediata da transformação radical no processo intelectual que ocorre no limiar da adolescência.
Nesta idade não aparece nenhuma função elementar nova que seja essencialmente diferente das que já existem: todas as funções existentes passam a ser incorporadas numa nova estrutura, formam uma nova síntese, passam a fazer parte de um novo todo complexo; as leis que regem este todo determinam também o destino de cada sua parcela individual. O recurso às palavras para aprender a orientar os processos mentais pessoais e parte integrante do processo de formação dos conceitos. A capacidade para regular as nossas ações pessoais utilizando meios auxiliares só atinge o seu completo desenvolvimento na adolescência
Da nossa investigação resultou que a acessão à formação dos conceitos se opera em três fases distintas, cada uma das quais se subdivide em vários estádios. Nesta seção e nas seis que se seguem, descreveremos estas fases e as suas subdivisões à medida que aparecem quando as estudamos pelo método do “duplo estímulo”. Os bebês dão o primeiro passo para a formação dos conceitos quando congregam um certo número de objetos num acervo desorganizado ou “monte” para resolverem um problema que nós adultos resolveríamos geralmente formando um novo conceito. O “monte”, constituído por um conjunto de objetos dessemelhantes reunidos sem qualquer base. revela um alargamento difuso não orientado, do significado do signo (palavra artificial) a objetos aparentemente não relacionados uns com os outros, ligados entre si ocasionalmente na percepção da criança.
Neste estádio, o significado das palavras para a criança não denota mais do que uma conglomeração sincrética e vaga dos objetos individuais que duma forma ou doutra coalesceram numa imagem no seu espírito. Dada a sua origem sincrética, essa imagem é altamente instável.
Na percepção, no pensamento e na ação, a criança tende a fundir os elementos mais diversos numa só imagem não articuladas sob a influência mais intensa de uma impressão ocasional. Claparède deu o nome de sincretismo a esta conhecida característica do pensamento infantil; Blonski chamou-lhe “coerência incoerente” do pensamento infantil. Descrevemos noutra ocasião o fenômeno como resultado de uma tendência para compensar a pobreza das relações objetivas bem apreendidas por meio de uma super-abundância de relacionações subjetivas e para confundir estas reações subjetivas com as ligações objetivas entre as coisas. Estas relações sincréticas e os “montes” de objetos: congregados em torno do significado de uma palavra, refletem também os laços objetivos, na medida em que estes últimos coincidirem com as relações existentes entre as percepções ou impressões da criança. Por conseguinte, muitas palavras têm parcialmente o mesmo significado para o adulto e a criança, especialmente as palavras que se referem a objetos concretos que fazem parte do meio ambiente habitual da criança. Os significados que os adultos e as crianças atribuem a determinada palavra como que “coincidem” muitas vezes no mesmo objeto concreto e isto basta para assegurar a compreensão mútua.
A primeira fase da formação dos conceitos que acabamos de descrever subsume três estádios distintos. Foi-nos possível observá-los pormenorizadamente no quadro do estudo experimental.
O primeiro estádio na formação dos conjuntos sincréticos que representam para a criança o significado de determinada palavra artificial é a manifestação do estádio das aproximações sucessivas (de “tentativas e erros”) no desenvolvimento do pensamento. O grupo é criado ao acaso e a adjunção de cada objeto não é mais do que uma simples tentativa ou hipótese, o objeto é imediatamente substituído por outro, mal se verifica que a hipótese é errada, isto é, quando o experimentador volta o objeto e mostra que este tem um nome diferente.
Durante o estádio que se segue, a composição do grupo é grandemente determinada pela posição espacial dos objetos experimentados, isto é, por uma organização puramente sincrética do campo visual da criança. A imagem ou grupo sincréticos formam-se como resultado da contiguidade no espaço ou no tempo dos elementos isolados ou pelo fato de a percepção imediata da criança os levar a uma relação mais complexa.
Durante o terceiro estádio da primeira fase da formação dos conceitos a imagem sincrética repousa numa base mais complexa: é composta de elementos retirados de diferentes grupos ou “montes” já anteriormente formados pela criança da forma que acima se descreveu. Estes elementos sujeitos a uma nova combinação não têm qualquer relação intrínseca entre si, de forma que a nova formação possui a mesma “coerência incoerente” que os primeiros conjuntos. A única diferença reside no fato de que ao tentar dar significado a um novo nome a criança já consegue seguir uma operação a dois tempos, mas esta operação mais elaborada permanece sincrética e não produz uma ordem mais elevada do que a simples reunião de “montes”.
A segunda fase importante na via da gênese do conceito engloba muitas variações de um tipo de pensamento que designaremos por “pensamento por complexos”. Num complexo, os objetos individuais isolados encontram-se reunidos no cérebro da criança não só pelas suas impressões subjetivas, mas também por relações realmente existentes entre esses objetos. Isto é um novo passo em frente, uma progressão para um nível muito superior.
Quando atinge esse nível a criança já superou parcialmente o seu egocentrismo. Já não confunde as relações entre as suas impressões com relações entre coisas – passo decisivo para abandonar o sincretismo e se aproximar do pensamento objetivo. O pensamento por meio de complexos já é um pensamento coerente e objetivo, embora não reflita as relações objetivas da mesma forma que o pensamento conceptual.
No pensamento dos adultos persistem certos resíduos do pensamento por meio de complexos. Os nomes de família são talvez o melhor exemplo disto. Todo o nome de família, (“Petrov”, por exemplo) subsume o indivíduo duma maneira que se assemelha estreitamente ao modo de funcionamento dos complexos infantis. A criança que atingiu esse estádio de desenvolvimento como que pensa em termos de nomes de família; quando começa a organizar o universo dos objetos isolados, fá-lo agrupando-os em famílias separadas, mutuamente relacionadas.
Num complexo, as ligações entre os seus componentes são mais concretas e factuais do que abstratas e lógicas; do mesmo modo, também não classificamos uma pessoa na família Petrov por haver qualquer relação lógica entre essa pessoa e os outros membros portadores do nome. São os fatos que ditam a resposta.
As ligações factuais que subjazem aos complexos são descobertas através da experiência. Por conseguinte, um complexo é, acima de tudo, e principalmente, um agrupamento concreto de objetos ligados por nexos factuais. Como um complexo não é formado no plano do pensamento lógico abstrato, os nexos que o geram, bem assim como os nexos que ajuda a criar, carecem de unidade lógica; podem ser de muitos e diferentes tipos. Todo e qualquer nexo existente pode levar à criação de um complexo. É essa a principal diferença entre um complexo e um conceito. Enquanto os conceitos agrupam os objetos em função de um atributo, as ligações que unem os elementos de um complexo com o todo e entre si podem ser tão diversas quanto os contatos e as relações existentes na realidade entre os elementos.
Na nossa investigação observamos cinco tipos fundamentais de complexos que se sucediam uns aos outros durante este estádio de desenvolvimento.
Chamamos ao primeiro tipo de complexo o tipo associativo. Pode basear-se em todo e qualquer nexo que a criança note entre os objetos da amostra e os objetos de alguns outros blocos. Na nossa experiência o objeto-amostra, o que fora dado em primeiro lugar à criança com o nome à vista, forma o núcleo do grupo a ser construído. Na construção de um complexo associativo, a criança pode acrescentar um bloco ao objeto de partida por ter a mesma cor que este, juntando a seguir outro porque é semelhante ao núcleo pela sua forma e dimensão ou por qualquer outro atributo que lhe chame a atenção. Qualquer conexão entre o objeto do núcleo e outro qualquer objeto basta para que a criança inclua esse objeto no grupo e o designe pelo “nome de família”. A conexão entre o núcleo e o outro objeto não tem que ser um traço comum, como por exemplo, a mesma cor ou forma; uma semelhança ou um contraste, ou uma proximidade no espaço podem também servir para estabelecer a ligação.
Para a criança dessa idade a palavra deixa de ser o nome próprio do objeto singular; torna-se o nome de família de um grupo de objetos relacionados entre si por muitas e variadas formas, tantas e tão variadas como as relações entre as famílias humanas.
O pensamento por complexos do segundo tipo consiste em combinar os objetos ou as impressões concretas que estes deixam no espírito da criança em grupos que se assemelham muito estreitamente a coleções. Os objetos são agrupados com base em qualquer traço por que defiram, complementando-se, assim, mutuamente.
Nas nossas experiências, a criança tomava objetos que diferiam da amostra pela cor, pela forma ou o tamanho, ou por outra qualquer característica. Não pegava nelas ao acaso; escolhia-os porque contrastavam com o atributo da amostra que tomara como base do agrupamento e complementava esse atributo. O resultado disto era uma coleção das cores e formas presentes no material da experiência, por exemplo, um grupo de blocos de diferentes cores.
O que guia a criança na construção da coleção era a associação por contraste e não a associação por semelhança. No entanto esta forma de pensar combinava-se por vezes com a forma associativa propriamente dita, atrás descrita, produzindo uma coleção baseada em princípios mistos. A criança não consegue manter-se fiel durante toda a experiência ao princípio que originalmente aceitara para base da coleção. Insensivelmente passa a considerar uma característica diferente, de forma que o grupo que daqui resulta se torna uma coleção mista, de cores e turmas, por exemplo.
Este longo e persistente estádio de desenvolvimento do pensamento da criança radica na sua experiência, na qual verifica que coleções de coisas complementares formam por vezes um conjunto ou um todo. A experiência ensina à criança certas formas de agrupamento funcional: a chávena, o pires e a colher; um talher constituído por um garfo, uma faca, uma colher e um prato; o conjunto de roupas que veste. Tudo isto são modelos de conjuntos complexos naturais. Até os adultos, quando falam dos pratos ou das roupas, habitualmente estão a pensar em conjuntos de objetos concretos mais do que em conceitos generalizados.
Recapitulando, a imagem sincrética que leva à formação de “montes” baseia-se em nexos vagos e subjetivos; o complexo associativo fundamenta-se nas semelhanças existentes ou outras ligações necessárias entre as coisas; o conjunto complexo, baseia-se nas relações entre os objetos observadas através da experiência pratica. Poderíamos dizer que o conjunto baseado nos complexos é um agrupamento de objetos baseado na sua participação na mesma operação prática – da sua cooperação funcional.
Após o estádio de pensamento que opera por complexos, há que colocar necessariamente o complexo em cadeia – uma adjunção dinâmica e seqüencial de ligações isoladas numa única, sendo o significado transmitido de um elo para o outro. Por exemplo, se a amostra experimental é um triângulo amarelo, a criança poderia por exemplo, pegar em alguns blocos triangulares até a sua atenção ser atraída por, digamos, pela cor azul do bloco que a determinada altura acabara de acrescentar ao conjunto; passaria a selecionar blocos azuis sem atender à forma – angulosos, circulares, semicirculares. Isto, por seu turno, basta para voltar a alterar o critério; esquecendo-se da cor, a criança passa a escolher blocos redondos. O atributo decisivo varia constantemente durante todo o processo. O tipo de nexos ou a forma como cada elo da cadeia se articula com o que o precede e o que se lhe segue não apresentam coerência nenhuma. A amostra inicial não tem importância fulcral. Cada elo, uma vez incluído num complexo em cadeia, é tão importante como o primeiro e pode tornar-se um ímã para uma série de outros objetos.
A formação de cadeias demonstra flagrantemente a natureza factual concreta e perceptiva do pensamento por complexos. Um objeto que entrou num complexo devido a um dos seus atributos, não entra nele como portador desse atributo, mas como elemento isolado com todos os seus atributos. A criança não abstrai o traço isolado do todo restante, nem lhe confere um papel especial como acontece com os conceitos. Nos complexos a organização hierárquica está ausente: todos os atributos são funcionalmente equivalentes. A amostra pode ser completamente esquecida quando se forma uma ligação entre dois objetos diferentes. Estes objetos podem não ter nada em comum com alguns dos outros elementos e, no entanto, fazerem parte da mesma cadeia por força de compartilharem um atributo com outro dos elementos.
Por conseguinte, o complexo em cadeia pode ser considerado como a forma mais pura do pensamento por meio dos complexos. Ao contrário do complexo associativo, cujos elementos, no fim de contas, se encontram interligados por meio de um elemento – o núcleo do complexo – o complexo em cadeia não tem núcleo, há relações entre elementos isolados, mas nada mais.
Um complexo não se eleva acima dos seus elementos como acontece com o conceito; funde-se com os objetos concretos que o constituem. Esta fusão do geral com o particular, entre o complexo e os seus elementos, esta amálgama psíquica, como Werner lhe chamava, é a característica distintiva de todo o pensamento por complexos – e do complexo em cadeia, muito em particular.
Como o complexo em cadeia é factualmente inseparável do grupo de objetos concretos que o formam, adquire amiúde uma qualidade vaga e flutuante O tipo e a natureza das ligações podem mudar de elo para elo imperceptivelmente quase. Muitas vezes, uma semelhança muito remota basta para criar uma ligação entre dois elos da cadeia. Por vezes os atributos são considerados semelhantes, não devido a uma semelhança genuína mas devido a uma vaga impressão de que têm alguma coisa em comum. Isto leva ao quarto tipo de complexo observado nas nossas experiências. Poderíamos designá-lo por complexo difuso.
O complexo difuso e marcado pela fluidez do próprio atributo que une os seus elementos individuais. Formam-se grupos de objetos ou imagens perceptualmente concretos por meio de ligações difusas ou indeterminadas. Por exemplo, uma das crianças das nossas experiências escolheria indiferentemente para associar a um triângulo, trapézios ou triângulos, pois aqueles lhe faziam lembrar triângulos com os vértices cortados. Os trapézios conduzi-la-iam aos quadrados, os quadrados aos hexágonos, os hexágonos aos semicírculos e estes por fim aos círculos. A cor, como base para a seleção, é igualmente flutuante e variável. Os objetos amarelos podem ser seguidos por objetos verdes; a seguir o verde pode mudar para azul e o azul para o preto.
Os complexos resultantes deste tipo de pensamento são tão indefinidos que podem não ter limites. Tal qual uma tribo bíblica que aspira a multiplicar-se até ser mais numerosa do que as estrelas do céu ou as areias do mar, também um complexo difuso no espírito de uma criança é uma espécie de família que tem poderes de expansão ilimitados por adjunção sucessiva de mais e mais membros ao grupo original.
As generalizações da criança nas áreas não sensoriais e não práticas do seu pensamento que não podem ser facilmente verificáveis através da percepção ou da ação são os equivalentes na vida real dos complexos difusos observados nas experiências. É bem sabido que a criança é capaz de transições surpreendentes, de espantosas generalizações e associações, quando o seu pensamento se aventura para lá das fronteiras do pequeno mundo palpável da sua experiência. Fora desse mundo, a criança constrói freqüentemente surpreendentes complexos ilimitados pela universalidade das ligações que abarcam.
Estes complexos ilimitados, porém, são construídos segundo os mesmos princípios dos complexos concretos circunscritos. Em ambos os tipos de complexos, a criança mantém-se dentro do limite das ligações concretas entre as coisas, mas, na medida em que o primeiro tipo de complexos compreende objetos que se encontram fora da esfera do seu conhecimento prático, estas ligações baseiam-se naturalmente em atributos difusos irreais e instáveis.
Para completar o quadro do pensamento por meio de complexos. temos que descrever um outro tipo de complexos – que como que constitui a ponte entre os complexos e o estádio final e superior do desenvolvimento da gênese dos conceitos.
Chamamos pseudo-conceitos a este tipo de complexos, porque a generalização formada no cérebro, embora fenotipicamente se assemelhe aos conceitos dos adultos é psicologicamente muito diferente do conceito propriamente dito; na sua essência é ainda um complexo.
Na montagem experimental, uma criança produz um pseudo-conceito sempre que cerca uma amostra com objetos que poderiam também ser congregados com base num conceito abstrato Por exemplo, quando a amostra é constituída por um triângulo amarelo e a criança pega em todos os triângulos do material experimental, poderia estar a ser orientada pela idéia geral ou conceito de triângulo. No entanto, a análise experimental mostra que na realidade a criança é orientada pela semelhança concreta visível e se limita a formar um complexo associativo confinado a um certo numero de ligações, um certo tipo de conexões sensoras. Embora os resultados sejam idênticos, o processo pelo qual são atingidos não é de maneira nenhuma o mesmo que no pensamento conceptual.(3*)
Temos de deter-nos a observar este tipo de complexos com algum pormenor. Ele desempenha um papel predominante no pensamento da criança na vida real e é importante como elo de transição entre o pensamento por complexos e a verdadeira formação de conceitos.
Os pseudo-conceitos predominam sobre todos os outros complexos no pensamento da criança em idade pré-escolar, pela simples razão de que, na vida real, os complexos que correspondem ao significado das palavras não são espontaneamente desenvolvidos pela criança: a trajetória seguida por um complexo no seu desenvolvimento encontra-se pré-determinada pelo significado que determinada palavra já possui na linguagem dos adultos.
Nas nossas experiências, a criança, liberta da influência diretriz das palavras familiares, era capaz de desenvolver significados de palavras e de formar complexos de acordo com as suas preferências pessoais. Só através da experimentação poderemos avaliar o tipo e a latitude desta atividade espontânea de domínio da linguagem dos adultos. A atividade pessoal da criança não se encontra de maneira nenhuma esterilizada, embora se encontre geralmente oculta da vista e canalizada para vias complexas, por influência da linguagem dos adultos.
A linguagem do meio ambiente, como os seus significados estáveis, permanentes, aponta o caminho que a generalização infantil seguirá. No entanto, constrangido como se encontra, o pensamento da criança prossegue ao longo da via pré-determinada, segundo a forma peculiar ao seu nível de desenvolvimento intelectual. O adulto não pode transmitir à criança o seu modo de pensar. Apenas lhe fornece o significado já acabado de uma palavra, em torno do qual a criança forma um complexo – com todas as peculiaridades estruturais funcionais e genéticas do pensamento por meio de complexos, mesmo quando o produto do seu pensamento é na realidade idêntico, pelo seu conteúdo, a uma generalização que poderia ter sido obtida por meio do pensamento conceptual. A semelhança externa entre o pseudo-conceito e o conceito real, que torna muito difícil pôr a nu este tipo de complexos é um dos mais importantes obstáculos para a análise genética do pensamento.
A equivalência funcional entre o complexo e o conceito, a coincidência que existe na prática entre o significado de muitas palavras para o adulto e a criança de três anos, a possibilidade de compreensão mútua e a aparente similitude dos seus processos intelectivos levou a presumir-se erradamente que todas as formas de pensamento e de atividade intelectual dos adultos já se encontram presentes em embrião no pensamento das crianças e que na puberdade não se dá nenhuma transformação radical. É fácil compreender a origem desta concepção errada. A criança aprende muito precocemente uma grande quantidade de palavras que significam a mesma coisa para ela e para o adulto. A compreensão mútua entre o adulto e a criança cria a ilusão de que o ponto final do desenvolvimento do significado das palavras coincide com o seu ponto de chegada, de que o pensamento é fornecido já acabado à criança desde início e de que não se dá nenhum desenvolvimento.
A aquisição pela criança da linguagem dos adultos explica de fato a consonância entre os complexos da primeira e os conceitos da segunda – por outras palavras, a emergência de conceitos complexos ou pseudo-conceitos. As nossas experiências, em que o pensamento das crianças não é entaramelado pelo significado das palavras demonstra que, se não existissem os pseudo-conceitos, os complexos da criança seguiriam uma evolução diferente dos conceitos dos adultos e a comunicação verbal entre as crianças e os adultos seria impossível.
O pseudo-conceito serve como elo de ligação entre o pensamento por complexos e o pensamento por conceitos. É dual por natureza, pois um complexo já traz em si a semente em germinação de um conceito. O intercâmbio verbal com os adultos torna-se assim um poderoso fator de desenvolvimento dos conceitos infantis. A transição entre o pensamento por complexos e o pensamento por conceitos passa despercebida à criança, porque os seus pseudo-conceitos já coincidem no seu conteúdo com os conceitos dos adultos.
Assim, a criança começa a operar com conceitos, a praticar o pensamento conceptual antes de se aperceber ter plena consciência da natureza destas operações. Esta situação genética muito peculiar, não se limita ao processo de acessão aos conceitos; é a regra mais do que a exceção no desenvolvimento intelectual das crianças.
Vimos já com clareza que só a análise experimental nos pode dar os vários estádios e formas do pensamento por complexos Esta análise permite-nos pôr a nu, duma forma esquemática, a verdadeira essência do processo genético de formação dos conceitos e dá-nos assim a chave para compreender o processo tal como se desenrola na vida real. Mas um processo de formação dos conceitos experimentalmente induzidos nunca refletem perfeitamente o desenvolvimento genético exatamente como ocorre na vida real. As formas fundamentais do pensamento concreto que enumeramos aparecem na realidade em estados mistos e a análise morfológica até agora exposta terá que ser seguida por uma análise funcional e genética. Devemos tentar correlacionar as formas de pensamento complexo descobertas na experiência com as formas de pensamento que encontramos no desenvolvimento real da criança e verificar as duas séries de observações uma com a outra.
A partir das nossas experiências concluímos que, no estádio do pensamento complexo, os significados das palavras tal como as crianças os percebem referem-se aos mesmos objetos que o adulto tem no espírito, o que assegura a compreensão entre a criança e o adulto, mas que a criança pensa a mesma coisa de maneira diferente, por meio de operações mentais diferentes. Tentaremos verificar esta proposição comparando as nossas observações com os dados sobre as peculiaridades do pensamento infantil e o pensamento primitivo em geral coligidos pela ciência psicológica.
Se observarmos que grupos de objetos a criança relaciona entre si ao transferir o significado das primeiras palavras e como procede, descobrimos uma mistura das duas formas a que nas nossas experiências chamamos complexo associativo e imagem sincrética.
Tomemos de Idelberger um exemplo, que é citado por Werner(55)(55, p.206). No 251º dia de vida, uma criança emprega a palavra au-au a uma figura de porcelana chinesa que representa uma rapariga e com que a criança gosta de brincar No 307º dia, chama au-au a um cão que ladra no pátio, aos retratos dos avós, a um cão de brinquedo e a um relógio. No 331º dia aplica o mesmo nome a um pedaço de pele com uma cabeça de animal notando particularmente os olhos de vidro e a outra pele sem cabeça. No 334º aplica-o a uma boneca de borracha que chia quando é comprimida e no 396º dia aplica-o aos botões de punho do pai. No 443º dia profere a mesma palavra mal vê uns botões de pérola dum vestido e um termômetro de banho.
Werner analisou este exemplo e concluiu que se podia catalogar da seguinte forma todas as coisas a que a criança chamava au-au: em primeiro lugar, os cães e os cães de brinquedo e pequenos objetos oblongos que se assemelhassem à boneca de porcelana (por exemplo, a boneca de borracha e o termômetro); em segundo lugar, os botões de punho, os botões de pérola e outros pequenos objetos semelhantes. O atributo que servia de critério eram as superfícies oblongas ou as superfícies brilhantes parecidas com olhos.
É evidente que a criança unia estes objetos concretos segundo os princípios dos complexos. Estas formações espontâneas de complexos preenchem completamente todo o primeiro capítulo da história do desenvolvimento das palavras infantis.
Há um exemplo bem conhecido e freqüentemente citado deste tipo de derivas: a utilização pelas crianças da palavra quá-quá para designar primeiro um pato nadando na água dum lago e depois toda a espécie de líquidos, incluindo o leite engarrafado; quando acontece a criança observar uma moeda com uma águia desenhada, a moeda passa a ser um quá-quá sendo depois a designação transferida para todos os objetos redondos com o aspecto de moedas. Eis um complexo em cadeia típico: cada novo objeto incluído na cadeia tem algum atributo comum com outro elemento, mas os atributos de ligação estão constantemente a variar.
A formação de complexos é responsável pelo fenômeno peculiar de uma palavra poder, em diferentes situações, ter significados diferentes ou até opostos, desde que haja qualquer nexo associativo entre esses significados. Assim, uma criança pode dizer antes, quer para antes e depois, ou amanhã para amanhã e ontem, indiferentemente. Temos aqui uma perfeita analogia com algumas línguas antigas – o Hebreu, o Grego e o Latim – nas quais uma mesma palavra indica por vezes também o seu contrário. Os Romanos, por exemplo, tinham uma mesma palavra para alto e baixo. Tal casamento de significados opostos só é possível em resultado do pensamento por complexos.
O pensamento primitivo tem outro traço muito interessante que nos mostra o pensamento por complexos em ação e indica a diferença entre os pseudo-conceitos e os conceitos. Este traço, que Levy-Bruhl foi o primeiro a reconhecer nos povos primitivos, Storch nos doentes mentais e Piaget nas crianças – é designado correntemente por contaminação. Aplica-se o termo à relação de identidade parcial ou estreita interdependência estabelecida pelo pensamento primitivo entre dois objetos ou fenômenos que na realidade não apresentam qualquer continuidade nem nenhuma outra conexão reconhecível.
Levy-Bruhl(26) cita von den Steinen a propósito de um flagrante caso de participação observado nos Bororo do Brasil que se orgulham de serem papagaios vermelhos. Von den Steinen a princípio não sabia como interpretar uma afirmação tão categórica, mas acabou por achar que os índios queriam significar precisamente isso. Não se tratava apenas de uma palavra de que se tivessem apropriado, ou duma relação familiar sobre que insistissem: o que queriam significar era uma identidade de essências.
Parece-nos que o fenômeno da contaminação não teve nenhuma explicação psicológica suficientemente convincente e isto por duas razões: em primeiro lugar, as investigações tenderam a centrar-se sobre o conteúdo do fenômeno e a descurar as operações mentais nele envolvidas, isto é, a estudar o produto em vez do processo; em segundo lugar, não se efetuaram quaisquer tentativas adequadas para ver o fenômeno no contexto de outras conexões e relações formadas pelo cérebro primitivo. Acontece demasiadas vezes que aquilo que atrai a atenção das investigações é o fantástico, o extremo, como por exemplo, o fato de os Bororo se considerarem como papagaios vermelhos a expensas de fenômenos menos espetaculares. No entanto, uma análise mais aturada mostra que até as conexões que não se chocam abertamente com a nossa lógica são formadas pelos povos primitivos com base nos princípios do pensamento por complexos.
Como as crianças de certa idade pensam por pseudo-conceitos, como, para elas, as palavras designam complexos de coisas concretas, o seu pensamento terá necessariamente como resultado a contaminação, isto é, conexões que não são aceitáveis pela lógica dos adultos. Determinada coisa pode ser incluída em diferentes complexos por força dos seus diferentes atributos concretos e. consequentemente, pode ter vários nomes. A utilização de um ou de outro depende do complexo que é ativado em determinado momento. Nas nossas experiências observamos freqüentemente casos deste tipo de contaminação em que um objeto era incluído simultaneamente em dois ou mais complexos. A contaminação não é uma exceção no pensamento por complexos, muito pelo contrário, é a regra.
Os povos primitivos também pensam por complexos e, consequentemente, nas suas línguas a palavra não funciona como uma entidade portadora de um conceito, mas como um “nome de família” para grupos de objetos concretos congregados não logicamente, mas factualmente. Storch mostrou que este mesmo tipo de raciocínio é característico dos esquizofrênicos que regridem do pensamento conceptual para um tipo mais primitivo de intelecção, rico em imagens e símbolos. Ele considera que o uso das imagens concretas em lugar dos pensamentos abstratos é um dos mais característicos traços do pensamento primitivo. Assim, a criança, o homem primitivo, e o alienado, por muito que os seus processos mentais difiram no respeitante a outros aspectos importantes, manifestam todos fenômenos de contaminação – sintoma do pensamento primitivo por complexos e da função das palavras como nomes de família.
Estamos portanto em crer que a forma como Levy-Bruhl interpreta a contaminação é incorreta. Este autor aborda o fato de os Bororo afirmarem serem papagaios vermelhos do ponto de vista da nossa lógica, presumindo que também para o homem primitivo tal asserção significa uma identidade de essências. Mas como, para os Bororo, as palavras designam grupos de objetos e não conceitos, a sua asserção tem diferente significado. A palavra que designa papagaio é uma palavra que designa um complexo de que eles fazem parte conjuntamente com os papagaios. Não implica identidade, tal como o fato de duas pessoas compartilharem o mesmo nome de família não implica que sejam uma e a mesma pessoa.
A história da linguagem mostra claramente que o pensamento por complexos com todas as suas peculiaridades é o próprio fundamento do desenvolvimento lingüístico.
A lingüística moderna estabelece a distinção entre o significado de uma palavra, ou expressão, e o referente, isto é, o objeto que designa. Pode haver um só significado e vários referentes, ou diferentes significados e um só referente. Quer digamos “o vencedor de Jena” ou o “derrotado de Waterloo”, estamos a referir-nos à mesma pessoa e, no entanto, o significado das duas expressões é diferente. Só há uma categoria de palavras que têm por única função a função de referência: são os nomes próprios. Usando esta terminologia, podíamos dizer que as palavras das crianças e dos adultos coincidem, pelos seus referentes mas não pelos seus significados.
Também na História das línguas encontramos exemplos de identidades de referentes combinadas com divergências de significados. Esta tese é confirmada por uma grande quantidade de fatos. Os sinônimos existentes em cada língua são um bom exemplo disto. A língua russa tem duas palavras para designar a Lua, a que se chegou através de diferentes processos de pensamento claramente refletidos pela etimologia Um termo deriva da palavra latina que conota “capricho, fantasia, inconstância” e tinha por intenção óbvia sublinhar a volubilidade de formas que distingue a Lua de todos os outros corpos celestes. A palavra que está na origem do segundo termo, que significa “mediador”, foi sem dúvida impregnada pelo fato de o tempo poder ser medido pelas fases da Lua. Entre as línguas o mesmo acontece. Por exemplo, em Russo, a palavra que significa alfaiate deriva de uma velha palavra que designa uma peça de pano; em Francês, Inglês e Alemão significa “o que talha”.
Se seguirmos a evolução de uma palavra em qualquer linguagem e por mais surpreendente que tal possa parecer à primeira vista, veremos que o seu significado se transforma exatamente da mesma forma que o pensamento das crianças. No exemplo que citamos, a palavra au-au aplicava-se a uma série de objetos totalmente distintos do ponto de vista dos adultos. No desenvolvimento da linguagem semelhantes transferências de significado não constituem exceção, antes pelo contrário, são regra. O russo tem uma palavra para dia-e-noite, a palavra sutki. A principio. significava costura, junção de duas peças de roupa, algo entretecido, passou depois a ser utilizada para designar todo e qualquer tipo de junção, por exemplo, a junção de duas paredes de uma casa e, portanto, um canto ou esquina; começou a ser utilizada metaforicamente para designar “crepúsculo”, a altura “em que o dia e a noite se casam, se encontram”; passou depois a designar o intervalo entre um crepúsculo e o seguinte, o atual sutkí de 24 horas. Palavras tão diversas como costura, canto, crepúsculo e 24 horas são englobadas num só complexo no decurso do desenvolvimento de uma palavra da mesma forma que uma criança incorpora diferentes coisas num grupo com base na imagética concreta.
Quais são as leis que regem a formação das famílias de palavras? O mais freqüente é os novos objetos serem designados em função de atributos que não são essenciais, de forma que a palavra não exprime verdadeiramente a natureza da coisa nomeada. Como um nome nunca é um conceito quando aparece pela primeira vez, é simultaneamente demasiado limitado e demasiado vasto. Por exemplo, a palavra russa que designa rato significava primeiramente “ladrão”. Mas uma vaca não é nem de longe apenas um animal com cornos, nem um rato se limita a roubar; assim, os seus nomes são demasiado limitativos. Por outro lado, são demasiado latos, na medida em que esses epítetos podem ser aplicados – e realmente são-no em certas línguas – a um certo número de outras criaturas. O resultado disto é uma luta incessante, no seio da língua em desenvolvimento, entre o pensamento conceptual e a herança, o legado, do primitivo pensamento por meio de complexos. O substantivo criado por um complexo, o nome baseado num, entra em conflito com o conceito que passou a representar. Na luta entre o conceito e a idéia que deu origem ao nome, a imagem perde gradualmente terreno; desvanece-se da consciência e da memória e o significado original da palavra acaba por ficar obliterado. Há alguns anos toda a tinta de escrever era negra e a palavra russa que designa tinta refere-se à sua cor negra. Mas isso não nos impede de falarmos hoje de “negrura” vermelha, verde ou azul sem notarmos a incongruência da combinação. As transferências dos nomes para novos objetos ocorrem por contiguidade ou semelhança, isto é, com base em ligações concretas típicas do pensamento por complexos. As palavras que estão sendo elaboradas na nossa época apresentam-nos muitos exemplos do processo como coisas heterogêneas se misturam num mesmo agrupamento. Quando falamos da “perna da mesa”, do “cotovelo da rua”, da “boca na botija”, estamos a agrupar objetos duma forma semelhante aos complexos. Nestes casos, as semelhanças visuais e funcionais que servem de mediadores no processo são bastante claras. A transferência pode ser determinada, no entanto, pelas associações mais variadas, e quando se trata de uma transferência que ocorreu há muito tempo, é impossível reconstruir as conexões existentes com conhecimento perfeito do pano de fundo histórico do acontecimento.
A palavra primitiva não é um símbolo direto de um conceito mas antes uma imagem, um retrato, um esboço mental, uma curta história sobre esse conceito quer dizer, uma autêntica obra de arte em ponto pequeno. Ao nomearmos um objeto por meio de um conceito pictórico desse gênero, vinculamo-lo a um grupo em que figura uma certa quantidade de outros objetos. A esse respeito, o processo de criação da linguagem é análogo ao processo de formação dos complexos no desenvolvimento intelectual das crianças.
Na linguagem das crianças surdas-mudas podemos aprender muitas coisas acerca do pensamento por complexos, pois a estas crianças falta o principal estímulo para a formação de conceitos. Privados de intercâmbio social com os adultos e deixados a si próprios para determinarem que objetos devem agrupar sob a égide de um mesmo nome, formam os seus complexos livremente e as características especiais do pensamento por complexos aparecem na sua forma pura e nítida.
Na linguagem por sinais dos surdos-mudos, o ato de tocar um dente pode ter três significados diferentes: “branco”, “pedra” e “dente”. Os três significados pertencem a um mesmo complexo que, para melhor elucidação, exige um gesto suplementar de apontar ou imitativo, de forma a precisar-se que objeto se quer significar em cada caso concreto. As duas funções da palavra encontram-se, por assim dizer, separadas. Um surdo-mudo toca o dente e a seguir, apontando para a sua superfície ou fazendo um gesto de arremesso, diz-nos a que objetos se refere em cada caso.
Para comprovarmos e complementarmos os nossos resultados experimentais fomos buscar alguns exemplos de gênese de complexos do desenvolvimento lingüístico das crianças, do pensamento dos povos primitivos e do desenvolvimento da linguagem enquanto tal. Dever-se-á notar no entanto que até o adulto normal, que é capaz de formar e utilizar conceitos, não opera sistematicamente com conceitos ao pensar. Para lá dos processos primitivos de pensamento dos sonhos, o adulto desvia-se constantemente do pensamento conceptual para o pensamento concreto do tipo dos complexos. A forma transitória do pensamento, o pseudo-conceito, não se limita ao pensamento das crianças; também nós recorremos a ela muito freqüentemente na nossa vida de todos os dias.
A nossa investigação levou-nos a dividir o processo de gênese dos conceitos em três fases principais. Descrevemos duas dessas fases, marcadas pela predominância da imagem sincrética e do complexo, respectivamente, e chegamos agora à terceira fase. Tal como na segunda, pode ser subdividida em vários estádios.
Na realidade, as novas formações não aparecem necessariamente apenas após o pensamento por complexos ter completado a sua trajetória de desenvolvimento. Duma forma rudimentar podem ser observadas muito antes de a criança começar a pensar em termos de pseudo-conceitos. Essencialmente, no entanto, as formas que vamos começar a descrever têm uma segunda raiz, uma raiz independente. Possuem uma função genética diferente da dos complexos no desenvolvimento mental da criança.
A principal função dos complexos consiste em estabelecer ligações e relações. O pensamento por complexos dá início à unificação das impressões dispersas; ao organizar elementos discretos da experiência em grupos cria uma base para futuras generalizações.
Mas o conceito desenvolvido pressupõe algo mais do que a unificação Para formar esse conceito é também necessário abstrair, isolar elementos e ver os elementos abstraídos da totalidade da experiência concreta em que se encontram mergulhados. Na genuína gênese dos conceitos é tão importante unificar como separar: a síntese tem que combinar-se com a análise. O pensamento por complexos não pode efetuar ambas as operações. A superabundância, a superprodução de conexões e a debilidade da abstração constituem a essência mesma do pensamento por complexos. A função do processo que amadurece durante a terceira fase do desenvolvimento da gênese dos conceitos é constituída pela satisfação do segundo requisito, embora os seus primeiros passos radiquem num período muito anterior.
Na nossa experiência, o primeiro passo em direção à abstração dava-se quando a criança começava a agrupar o máximo número possível de objetos, por exemplo, objetos que eram pequenos e redondos ou vermelhos e chatos. Como o material experimental não contém objetos idênticos, até os que apresentam o maior número de semelhanças são diferentes sob certos aspectos. Daqui se segue que, ao colher assim os que melhor “se casavam”, a criança tem que prestar mais atenção a certos traços de um objeto do que aos outros – dando-lhe um tratamento preferencial, por assim dizer. Os atributos, ao somarem-se, fazem com que o objeto que apresenta o máximo de semelhanças com a amostra se torne o centro de atenção, abstraindo-se assim, em certo sentido, dos atributos a que a criança presta menos atenção. A primeira tentativa de abstração não é obvia enquanto tal, porque a criança abstrai todo um grupo de traços, sem os distinguir claramente uns dos outros; amiúde, a abstração de um tal grupo de atributos baseia-se apenas numa impressão vaga e geral de semelhança dos objetos.
No entanto, o caráter global da percepção da criança abriu brechas. Os atributos de um objeto foram divididos em duas partes a que não se deu a mesma importância – e isto é um começo de abstração positiva e negativa. Um objeto não entra já no complexo in toto, com todos os seus atributos – alguns vêem vedada a sua entrada; se, com isso, o objeto é empobrecido, os atributos que provocaram a sua inclusão no complexo adquirem um relevo mais vincado no pensamento da criança.
Durante o estádio seguinte do desenvolvimento da abstração, o agrupamento de objetos com base no máximo de semelhança possível é superado pelo agrupamento com base num único atributo, por exemplo, o agrupamento exclusivo dos objetos redondos, ou dos objetos chatos. Embora o produto não se possa distinguir do produto de um conceito, estas formações, tal como os pseudo-conceitos, são meras percursoras dos autênticos conceitos. Segundo o uso introduzido por Gross(14), podemos chamar a estas formações conceitos potenciais.
Os conceitos potenciais resultam de uma espécie de abstração isolante de natureza tão primitiva que se encontra presente em certo grau não só nas crianças de muito tenra idade como também nos animais. Pode treinar-se as galinhas a responderem a um atributo distinto em diferentes objetos, como por exemplo, a cor ou a forma, se esse atributo for sinal de comida acessível; os chimpanzés de Koehler, tendo aprendido a utilizar um pau como instrumento, utilizavam outros objetos compridos quando precisavam de um pau e não o tinham.
Mesmo nos bebês muito pequenos, os objetos ou as figuras que apresentam certos traços comuns evocam respostas semelhantes. No mais precoce estádio pré-verbal as crianças esperam nitidamente que situações semelhantes conduzam a desfechos semelhantes. A partir do momento em que uma criança associou uma palavra com um objeto, facilmente se aplica a um novo objeto que a impressiona por, em certos aspectos, ser semelhante ao primeiro. Os conceitos potenciais, portanto, podem ser formados, tanto na esfera do pensamento perceptual, como na esfera do pensamento prático, virado para a ação – com base na semelhança de significados funcionais, no segundo. Estes últimos são uma importante fonte de conceitos potenciais. É do conhecimento geral que os significados funcionais desempenham um papel muito importante no pensamento da criança infantil. Quando Se lhe pede que explique uma palavra, uma criança dir-nos-á aquilo que o objeto designado pela palavra em questão faz, ou – o que é mais freqüente – o que se pode fazer com esse objeto. Até os conceitos abstratos são muitas vezes traduzidos na linguagem da ação concreta: “Razoável quer dizer quando estou a suar e não me deixo estar numa corrente de ar”.
Os conceitos potenciais já desempenham um certo papel no pensamento por complexos. Por exemplo, os complexos associativos pressupõem a existência de que se “abstrai” um traço comum de diferentes unidades. Mas enquanto o pensamento por complexos predominar, o traço abstraído é instável, não tem posição privilegiada e facilmente cede a sua dominância temporária a outros traços. Nos conceitos potenciais propriamente ditos, um traço que alguma vez tenha sido abstraído não se volta a perder facilmente no meio de outros traços. A totalidade concreta de traços foi destruída pela sua abstração e abre-se a possibilidade de unificar os traços numa base diferente. Só o domínio da abstração, combinado com o pensamento por complexos desenvolvido permite à criança avançar para a formação dos conceitos genuínos. Um conceito só surge quando os traços abstraídos são novamente sintetizados e a abstração sintetizada daí resultante se torna o principal instrumento de pensamento. Como ficou provado pelas nossas experiências, é a palavra que desempenha o papel decisivo neste processo; a palavra é utilizada deliberadamente para orientar todos os processos parciais do estádio superior da gênese dos conceitos(4*).
No nosso estudo experimental dos processos intelectuais dos adolescentes observamos como as formas primitivas de pensamento, quer as sincréticas quer as que se baseiam nos complexos, vão desaparecendo gradualmente, como os conceitos potenciais vão sendo usados cada vez menos e os verdadeiros conceitos começam a formar-se – raramente a princípio e depois com crescente freqüência. Mesmo após o adolescente ter aprendido a produzir conceitos, não abandona as formas mais elementares; estas continuam a operar durante um certo período, continuando até a predominar em muitas áreas do seu pensamento. A adolescência é menos um período de consumação do desenvolvimento do que de transição e crise.
O caráter transitório do pensamento do adolescente torna-se particularmente evidente quando observamos o funcionamento real dos conceitos acabados de adquirir. Certas experiências especialmente projetadas para estudar as operações que os adolescentes levam a cabo com os conceitos põem em evidência acima de tudo uma flagrante discrepância entre a sua capacidade para formar conceitos e a sua capacidade para os definir.
O adolescente formará e utilizará muito corretamente um conceito numa situação concreta, mas sentirá uma estranha dificuldade em exprimir esse conceito por palavras e a definição verbal, em muitos casos, será muito mais restritiva do que seria de esperar pela forma como o adolescente utilizou o conceito. A mesma discrepância ocorre no pensamento dos adultos, mesmo em níveis de desenvolvimento muito avançados. Isto está de acordo com o pressuposto de que os conceitos evoluem de forma muito diferente da elaboração deliberada e consciente da experiência em termos de lógica. A análise da realidade com a ajuda dos conceitos precede a análise dos próprios conceitos.
O adolescente defronta-se com outros obstáculos quando tenta aplicar um conceito que formou numa situação específica a um novo conjunto de objetos e circunstâncias em que os atributos sintetizados no conceito aparecem em configurações que diferem da original (exemplo disto seria a aplicação a objetos quotidianos do novo conceito “pequeno e alto” desenvolvido no teste dos blocos). No entanto, o adolescente corretamente é capaz de realizar essa transferência num estádio relativamente precoce do desenvolvimento.
Muito mais difícil do que a transferência em si é a tarefa de definir um conceito quando já não tem quaisquer raízes na situação original e tem que ser formulado num plano puramente abstrato, sem referência a nenhuma situação ou impressão concretas Nas nossas experiências, há crianças ou adolescentes que resolvem corretamente o problema da formação do conceito, mas descem a um nível muito mais primitivo de pensamento quando se trata de definir verbalmente o conceito e começam muito pura e simplesmente a enumerar os vários objetos a que aquele se pode aplicar na configuração particular em que se encontra. Neste caso operam com a palavra como um conceito mas definem-no como complexo – forma de pensamento esta que vacila entre o conceito e o complexo e que é característica e típica desta idade de transição.
A maior de todas as dificuldades é a aplicação de um conceito que o adolescente conseguiu finalmente apreender e formular a um nível abstrato a novas situações que têm que ser encaradas nos mesmos termos abstratos – um tipo de transferência que habitualmente só é dominado pelo fim do período de adolescência A transição do abstrato para o concreto vem a verificar-se tão árdua para o jovem, como a primitiva transição do concreto para o abstrato. As nossas experiências não deixam quaisquer dúvidas que neste ponto, de qualquer forma, a descrição da gênese dos conceitos dada pela psicologia tradicional, a qual se limita a reproduzir o esquema da lógica formal, não tem qualquer relação com a realidade.
Segundo a escola clássica, a formação dos conceitos é realizada pelo mesmo processo do retrato de família nas fotografias compósitas de Galton. Estas são realizadas tirando fotografias de vários membros de uma mesma família sobre mesma chapa, de forma que os traços de família comuns a várias pessoas surgem com extraordinária vivacidade, enquanto os traços pessoais variáveis de cada um se esfumam com a sobreposição. Presume-se que na formação de conceitos se dá uma intensificação de traços semelhantes; segundo a teoria tradicional a soma destes traços é o conceito. Na realidade, como alguns psicólogos há muito notaram, e as nossas experiências demonstram, o caminho pelo qual os adolescentes atingem a formação dos conceitos nunca se conforma com este esquema lógico. Quando se vê em toda a sua complexidade o processo de gênese dos conceitos, este surge-nos como um movimento de pensamento dentro da pirâmide dos conceitos, que oscila constantemente entre duas direções, do particular para o geral e do geral para o particular.
As nossas investigações mostraram que um conceito se forma não através do jogo mútuo das associações, mas através de uma operação intelectual em que todas as funções mentais elementares participam numa combinação específica. Esta operação é orientada pela utilização das palavras como meios para centrar ativamente a atenção, para abstrair certos traços, sintetizá-los e representá-los por meio de símbolos.
Os processos que conduzem à formação dos conceitos desenvolvem-se segundo duas trajetórias principais. A primeira é a formação dos complexos: a criança une diversos objetos em grupos sob a égide de um “nome de família” comum; este processo passa por vários estádios. A segunda linha de desenvolvimento é a formação de “conceitos potenciais”, baseados no isolamento de certos atributos comuns. Em ambos os processos o emprego da palavra é parte integrante dos processos genéticos e a palavra mantém a sua função orientadora na formação dos conceitos genuínos a que o processo conduz.
Notas:
(3*) A seguinte análise das observações experimentais é tirada do estudo de E. Hanfmann e J. Kasanin (16)(16, pp. 30-31):
Em muitos casos o grupo, ou grupos, criados pelo sujeito têm quase o mesmo aspecto que numa classificação coerente, e a carência de uma verdadeira fundamentação conceptual só transparece quando o sujeito se vê na contingência de pôr à prova as idéias que consubstanciam o seu agrupamento. Isto acontece no momento da correção quando o examinador vira um dos blocos erradamente selecionados e mostra que a palavra nele escrita é diferente da do bloco de amostra, por exemplo, que não é mur. Este é um dos pontos críticos da experiência...
Sujeitos que abordaram a tarefa como um problema de classificação respondem imediatamente à correção de uma forma perfeitamente específica. Esta resposta é adequadamente expressa na afirmação: “Ah! Então não se trata da cor” (ou forma, etc.)... O sujeito retira todos os blocos que tinha colocado junto à amostra e começa à procura de outra possível classificação.
Por outro lado, o comportamento exterior do sujeito no início da experiência pode ter sido o de tentar conseguir uma classificação. Pode ter colocado todos os blocos vermelhos junto à amostra, procedendo com bastante segurança... e declarar que pensa que aqueles blocos vermelhos são os murs. Então o examinador vira um dos blocos escolhidos e mostra que tem um nome diferente... O sujeito vê-o retirado, ou mesmo retira-o ele próprio obedientemente, mas é tudo quanto faz: não faz nenhuma tentativa para retirar os outros blocos vermelhos de junto da amostra mur. À questão do examinador se é que ainda pensa que aqueles blocos devem estar juntos, e são mur, responde peremptoriamente. “Sim, devem manter-se juntos porque são vermelhos”. Esta réplica demolidora revela uma atitude totalmente incompatível com uma verdadeira tentativa de classificação e prova que os grupos que ele tinha formado eram na realidade pseudo-classes. (retornar ao texto)
(4*) Deve ficar bem claro neste capítulo que as palavras também desempenham uma importante, embora diferente, função nos vários estádios do pensamento por complexos. Contudo, consideramos o pensamento complexo um estádio no desenvolvimento do pensamento verbal, à diferença de muitos outros autores (21, 53, 55) que alargam o termo complexo para incluir o pensamento pré-verbal e mesmo o instinto primitivo dos animais. (retornar ao texto)
Inclusão | 03/01/2011 |